Nuno Ramos
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março

Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março

Nuno Ramos, o curioso, o intrépido, com uma energia latente que traduz em matéria, volta a Belo Horizonte (MG) em março, em exposição na galeria Albuquerque Contemporânea, com mais de 15 obras realizadas durante 2024. E algumas novidades.

Nuno sempre esteve em movimento. Interessou-lhe desde muito jovem a literatura.  Escreve, pinta, cria instalações e performances motivadas pelas circunstâncias adversas pelas quais o Brasil passa. Jorra sua carga pictórica em objetos, lançando mão de grandes camadas de tinta e explorando a cor, uma de suas marcas registradas.

A arte!brasileiros falou com Nuno acerca de seu trabalho, suas inquietudes, referências e de seus projetos para 2025. Leia a seguir:

ARTE!✱ – O que você estava pensando quando começou a fazer essa série de obras, em 2024?

Nuno Ramos – Ela vai completar um ano certinho: comecei em fevereiro, esvaziando o meu ateliê, que estava insuportavelmente cheio. Tinha começado esse processo um ano antes. Mandamos para duas empresas de depósito mais de 3000 itens: árvores, barco, avião, coisas assim. Era um absurdo de coisas. E então ele estava vazio, e eu comecei a encher de novo. Foi uma coisa bacana de ver, o meu ateliê, que tem 600 metros quadrados, vazio. Foi uma sensação incrível. Tinha coisas e tenho, mais do que o normal.

Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca. Trabalho com pintura, com desenho, com escultura, com instalação. Eu escrevo. Fiz muita performance, teatro, alguns pequenos filmes até agora, uma coisa de dança. Uma chamava Os Desastres da Guerra, que era ali em cima das gravuras do Goya, onde  os atores liam uns textos das mães que perderam os filhos. Fizemos Marcha à Ré, em parceria com o Teatro da Vertigem, durante o governo anterior, realmente ali tentando falar de uma coisa que estava acontecendo. Agora fiz uma intervenção diferente, um concerto sinfônico inédito, criado a partir da trilha sonora do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, com a colaboração de Eduardo Climachauska. O canto de Maldoror: Terra em Transe em Transe. Laura Vinci na concepção cenográfica. Enfim, para dizer que a pintura talvez seja o leito mais constante e o único constante de tudo que eu fiz e de tudo o que eu faço. Eu comecei a fazer essas pinturas, com muita matéria, lá por volta de 1987, 1988. Os quadros pesam muito, e eu sempre que posso volto a eles.

A parte mais visual fica por conta dos desenhos. Desenhei muito, mas a pintura, ela tem um leito dela mesmo, algo que não sei definir. Claro que ela mudou muito. Por exemplo, ela começa, lá em 1980, como uma pintura de época, de pouco contraste tonal. Agora, ela está muito colorida. É isso que eu vi. É uma coisa que se faz histericamente colorida. E mudou muito. Mas de alguma forma eu estou dentro das regras pessoais básicas, que tecnicamente seria pintar no chão. Eu faço tudo no chão. E tem uma espécie de dripping (gotejamento) amalucado que vai recebendo o movimento. Eu sinto como se eu estivesse indo para o ateliê alimentar um bicho que está ali, deitado, esperando para eu trazer o alimento dele. E ele não tem dó. Obviamente não tem projeto, não tem nada parecido com isso. E eu acho que tem uma diferença com o resto do que eu faço. Acho que o horizonte do pessimismo, que atravessa muito do que eu faço, está um pouco ausente aqui. Não que seja otimismo, acho que é o contrário. Acho que existe um desespero pela alegria, pela felicidade, pela positividade, que não sinto tanto no resto de meus trabalhos. Esse contraste é forte. Há um contraste com as instalações mais sóbrias.

A pintura é uma coisa muito solta, chegando perto do exagerado, tem uma historieta da minha vida que eu sempre conto. Quando eu tinha 40 anos de idade, eu fiz uma retrospectiva. Veio me ver um curador inglês, não me lembro do nome, conversamos a tarde inteira. Na hora de ir embora, eu fui acompanha-lo até o táxi. Ele achou que as pinturas eram de outro artista. Eu nunca defini se isso é bom ou ruim: saber qual desses artistas é você, dentro, em cada momento.

ARTE!✱ – E o que você acha? Depende de seu estado de espírito?

Nuno Ramos – Todos nós temos períodos mais soturnos e períodos mais light. Mas eu faço tudo simultaneamente. Depende muito de minha agenda, do que proponho para mim, dos recursos que eu tenho, da própria pintura. Às vezes eu preciso que uma galeria ajude a pagar, porque elas são assim, caríssimas, de fazer. Não sei se é apenas um estado de espírito. Talvez seja alguma coisa mais pesada, mais trágica. Sei que a pintura reage com certo desespero apolíneo. Vamos falar assim.

Ao mesmo tempo sou muito calmo, mas o trabalho é muito, muito ansioso, muito identificado com muitas coisas o tempo todo, me pondo em situações de absurdo. Como agora, por exemplo, no concerto do Municipal. Só pra você fazer ideia, tinha um coro de 80 vozes. Era a orquestra inteira com 70 músicos. Então, você imagina, eu não sei nem ler música. Eu estou sempre em situações assim, meio limite. Rolou, e foi muito legal.

Mas na pintura eu sei quem é que procurou essa situação limite. Na pintura é como se fosse eu voltar para uma identidade, não pensada. Uma identidade sem roteiro. Não tem um script que domina.

Eu queria ser escritor antes de ser artista. Eu passei a adolescência querendo ser escritor. A pintura é sem palavra. Eu agora tenho dado título, mas a palavra não manda, enquanto que na escrita eu sinto que a palavra está o tempo todo operando.

ARTE!✱ – Frente à sua obra, lembro-me de Joseph Beuys, Anselm Kiefer…

Nuno Ramos – É, tem uma coisa de uma força que eu sinto como semelhante. No caso do Kiefer é diferente, porque ele está sempre trabalhando com uma perspectiva mais roteirizada, né? Ele tem toda uma teoria sobre aquilo , é um mundo espiritual etc., que está aí, sempre pairando. Tem uma coisa parecida. Ele foi um artista importante para mim no começo. A matéria dele tem a ver, sim, e os materiais que ele usa… uma espécie de lama. Porém mais simbolizada. Acho que se foi transformando numa espécie de teatralização do drama contemporâneo, de um ponto de vista que foi ficando cada vez mais conservador, na minha opinião, entendeu? Algo assim como se fosse um europeu culto, tomando um Petrus enquanto o mundo incendeia.

Há poucos anos, visitei o ateliê dele lá no sul da França, e achei um pouco isso. O que ele tem, que é muito impressionante: aquele chão, em perspectiva, rústico, feito de pintura e de paus queimados, e o próprio chão. O céu já não funciona tanto. Tem pontos de fuga, vai escapando.

Porém, acho que quando vi as banhas (graxas e gorduras animais que o artista utilizava nas suas obras) do Beuys, as pedras com azeite, isso tudo me pegou para sempre. Acho que é uma influência dessas que não sai, porque não é uma influência só de aparência, é uma influência poética mesmo. Incrível. Visceral. A primeira vez que eu vi as banhas foi uma coisa fortíssima que eu nunca me esqueci. Por outro lado, minhas pinturas são coloridas, tentando seduzir. Não sei a quem, tentando falar com não sei quem. São superloquazes, e eu sinto certo desespero. Essa coisa de hoje em dia. que é esse excesso de rede, de fala, de som, de ser, de sedução, de conexão.

ARTE!✱ – Em Beuys, a matéria que ele buscava ecoava um trauma. Como ecoa a sua, para você?

Nuno Ramos – Minhas pinturas não são austeras, nem recusam isso. Elas querem ecoar a si mesmas. Por outro lado, elas têm uma carga de matéria tal, que é extremamente penosa, é quase um corpo. Aquilo são toneladas de tinta que eu vou pondo, vou pondo.

Eu nunca usei de modo simbólico, muito menos biográfico, como o Beuys fazia. Eu, por exemplo, usei muita vaselina, não apenas de sabão e breu. Usei a areia. São só materiais que eu usei em quantidades assim de tonelada. Mas a vaselina foi um material que me pegou muito. Algo intermediário entre o sólido e o líquido, é uma espécie de indecisão entre dois reinados. Acho que pertenço um pouco a isso. Esse corpo acrescido dá uma espécie de ética para mim, como se eu não pudesse mentir muito.

Quer dizer, quando você tem que cuidar da própria matéria, de ela ficar de pé, não cair numa taça e escorregar, não derreter. De lidar com ela, com as características físicas dela, parece que o trabalho ganha uma verdade, só nisso, independente da imagem, né? Quer dizer, para mim, há uma distinção entre a imagem, que, aliás, é o que me incomoda em geral: haver uma imagem resultante, e a matéria que faz a imagem que eu gostaria que fosse viva. Não que eu consiga, mas que pudesse respirar, que pudesse ser feita de fungos que crescessem, que fossem coisas autônomas. Então a matéria para mim é esse espaço de alguma coisa que eu não controlo, de que eu preciso ficar amigo, pedir licença e ver se ela fala nos meus termos. Atribuir a ela sua própria verdade. Deixá-la pesar, deixá-la suar, deixá-la respirar. Isso tudo é o que me atraiu nesses materiais, todos os que usei a vida toda.

ARTE!✱ – Então, além da tinta…

Nuno Ramos – Há 30 anos tem muito tecido e muito metal. Tem latão, tem alumínio, não tem objetos. Isso é importante. Não é uma colagem no sentido de pegar uma coisa do mundo. Eu construo a tinta. O material. Porque ela é uma lava, sim, você mistura o óleo com a encáustica nela quente. Trabalho com a tinta quente, pelando, muitas vezes com luva, outras vezes ainda no limite da mão, mas é quente. E então aquilo vira um grude, um negocinho que parece um pouco uma lava mesmo, um negocinho que você joga, uma areia quente, alguma coisa assim, e então aí elas vão surgindo.

ARTE!✱ – O que teremos na exposição além das pinturas?

Nuno Ramos – Inventei uma espécie de contramovimento. Ainda não temos imagens da obra que está sendo desenvolvida. Serão três pedras, e nós vamos fazer três quadros do Malevich. Três quadros do Malevich, de pó de mármore, não de pigmento colorido. Uma réplica de pó. Então o quadro tem, sei lá, oito cores. A gente usa oito. A gente faz uns modelos de papelão em computador. A gente separa as camadas, faz as camadas de papelão grosso e aí, com o pó, a gente refaz certinho, como uma mandala, uma mandala do Malevich. Então, se o quadro tem um metro e meio por um metro e vinte, a minha réplica de pó tem o mesmo tamanho. Colocamos em toda a extensão dele um rastelo, como uma vassoura mais dura, que vai andar três centímetros por dia.

Então, ao longo da exposição vou apagar o Malevich, digamos assim. Serão três apagamentos. Os meus quadros vão estar aí e o dele vai estar sendo meio que apagado. Vai ser um movimento meio de vida, de morte, de construção e desconstrução. Para fazer esse varrido, estou desenvolvendo um mecanismo lá em Minas. Num espaço onde Allen Roscoe trabalha, que faz muitos trabalhos para mim, um cara genial, um arquiteto incrível, um cara que fez muito, muitos trabalhos com Amilcar [de Castro].

ARTE!✱ – E por que escolher um quadro do Malevich

Nuno Ramos – Estou usando Malevich porque primeiro, ele está na raiz de toda a pintura do Século 20, cubismo, construtivismo ruso, dessas raízes a dele acho que foi a que mais entrou no nosso construtivismo, muito marcado pela influência russa, os contra-relevos do Helio Oiticica parecem retirados de um quadro dele. Os próprios bichos da Ligia Clark. Uma raíz mais solta, acho que está muito próxima de nós.

Então de um lado tem meus quadros quase que vomitando essa origem com 300k de tinta estertorando essa base e aquela origem sendo desfeita, apagada virando matéria de novo.

ARTE!✱ – Projetos? Depois de Belo Horizonte?

Nuno Ramos – Em junho eu inauguro exposições no MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul). É um espaço novo que estão abrindo em Porto Alegre, assim como em Curitiba.

Vamos fazer duas exposições, mas, curiosamente, uma delas é para refazer um projeto, o Morte das Casas, que eu fiz com a Flavia Albuquerque, em que eu enterrei as casas. Três casas, que chamei de Três Lamas. O museu quer um trabalho à luz das enchentes. Mas eu fui lá, logo depois de começarem, desci em Floripa, peguei um ônibus, não tinha aeroporto ainda em Porto Alegre, e o desastre era tamanho, numa escala e de uma violência, que não dava para fazer nada. Aí eu achei interessante refazer esse trabalho com essas casas afogadas, refeitas de materiais. Mas isso deixamos para ver e conversar mais para frente.


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