Marcelo Brodsky, RJ, passeata dos cem mil, da série 1968 el fuego de las ideas, 2014-16. Cortesia Galeria Superficie

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omo bem se sabe, seria um equívoco reduzir o que se conhece por Maio de 1968, que completa agora 50 anos, aos protestos, greves e embates ocorridos na França durante aquele mês. O que teve início com atos estudantis em Paris – na verdade em março, na universidade de Nanterre – se expandiu pelo mundo em um conjunto de eventos espaçados no tempo e com desdobramentos na política, no comportamento e na cultura.

Como simboliza um famoso cartaz da época – “corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês” – Maio de 1968 representou um embate entre gerações, entre visões de mundo conservadoras e progressistas. Influenciou não só movimentos e ativistas das mais variadas correntes de esquerda, mas também intelectuais e artistas de diversos cantos do mundo.

É por conta de tamanha reverberação que o que poderia parecer um assunto bastante específico, os reflexos de Maio de 1968 na fotografia de arte latino-americana, se revelou um vasto universo de investigação para o curador e historiador de arte Rodrigo Orrantia, 41. O colombiano radicado em Londres veio ao Brasil para participar do ciclo de debates Talks da SP-Arte/Foto, em mesa ao lado do célebre fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira, e antes conversou com a ARTE!Brasileiros.

Segundo Orrantia, “a história política e cultural dos diferentes países do continente está fortemente interligada e foi influenciada desde o início por fenômenos globais como o verão de 1968”. Citando o reconhecimento internacional de artistas como a brasileira Rosangela Rennó, a chilena Paz Errázuriz e o argentino Marcelo Brodsky, além da realização de mostras como a retrospectiva “América Latina 1960/2013” na Fundação Cartier de Paris, Orrantia diz ver um aumento significativo na difusão da “fotografia histórica” do continente mundo afora. Leia abaixo a entrevista.

ARTE!BrasileirosDe que modo você percebe os impactos dos eventos de 1968 na produção artística latino-americana?

Rodrigo Orrantia – Penso que Maio de 1968 foi um dos primeiros “despertares” de uma geração excepcional. Sua influência é evidente na produção artística, mas também na cultura popular, principalmente na música. Na América Latina foi especialmente importante porque vários países eram governados por ditaduras, governos militares e de extrema direita. E Maio de 1968 se tornou sinônimo de resistência, dando força a uma geração que sofreu anos de censura e repressão, por vezes com tortura, prisões e desaparecimentos.

Mario Fonseca, Habeas Corpus 7b 1981. Cortesia Chantal
Fabres Latin American Art e Austin Desmond Fine Art

Mais especificamente no campo da fotografia, que artistas você destacaria quando pensa na produção desta época?

Cada vez que descubro um artista desta geração é um novo mundo que se abre. E é importante mencionar que só agora muitos deles estão tendo o reconhecimento que merecem. Muitos passaram despercebidos ou mesmo pararam de produzir em algum momento. Durante os anos 1960 e 1970, ou mesmo no início dos 1980, a fotografia não era considerada arte como a pintura, o desenho ou a escultura. Então é muito estimulante ver como os artistas adotaram, em um momento tão controverso, a fotografia como meio de criação artística. Existem vários nomes que são muito importantes, como Luis Camnitzer no Uruguai, Felipe Ehrenberg no México, Brodsky na Argentina e muitos outros. Minha preocupação é que artistas desta geração estejam começando a morrer, como aconteceu recentemente com Ehrenberg e Graciela Sacco, e é urgente reconhecer e salvaguardar seus legados.

Estamos falando de artistas de vários países diferentes…

Em cada país o movimento de 1968 foi vivenciado de maneira distinta. E é interessante ver como muitos artistas, escritores, poetas e músicos da América Latina se dirigiram para Paris. Alguns deles exilados de seus países, outros buscando conectar-se com as vanguardas e os novos movimentos artísticos, especialmente a arte conceitual e a performance – com as quais dialogavam a fotografia, o cinema e as primeiras experiências com som e vídeo.

Maio de 1968 se refere a uma grande diversidade de ideologias, movimentos políticos e artísticos que atuaram em diferentes lugares do mundo. Ainda assim, você consegue perceber características comuns na produção dos artistas dos diferentes países?

É muito importante não cair na armadilha das generalizações. Pois 1968 não foi um movimento, como o entendemos na arte, foi mais a união de várias dissidências. Mas, ao mesmo tempo, existem certas características que lhe conferem uma personalidade. Originalmente era um grupo de estudantes, muito jovens, que acreditavam firmemente que poderiam construir um mundo melhor e, especialmente no caso da América Latina, socialmente mais justo.

E de que modo você diria que este contexto de governos autoritários no continente influenciou os trabalhos dos artistas? É possível perceber uma urgência maior em tratar de temas políticos na América Latina?

Penso que sim. E talvez seja isso que torna a produção na América Latina tão importante. Estamos falando de uma geração que arriscou tudo pelo seu trabalho. Os criadores visuais, artistas e fotógrafos tiveram que desenvolver uma linguagem muito sofisticada para passar pelos filtros da censura, para poder falar sobre suas próprias realidades e sobre o mundo por trás da cortina dos regimes. Em certo sentido, acho que a situação não mudou. No ano passado trabalhei com uma artista venezuelana em um projeto com vários fotógrafos do país, sob o regime de Nicolás Maduro. A urgência por questões políticas no contexto americano ainda está em vigor, e espero que a geração de 1968 seja um exemplo e uma influência positiva para os artistas e fotógrafos contemporâneos.

Graciela Sacco, Adelante ll 2015, série Cuerpo a cuerpo

Podemos olhar, naquele período, para produções fotográficas mais documentais ou mais artísticas, por vezes mais preocupadas com a forma ou com o conteúdo. Mas essas fronteiras nem sempre são tão nítidas… Como você percebe essa questão?

Nestas décadas a tradição fotográfica de documentar se encontrou com novas manifestações artísticas, como a performance, por exemplo. Mas também, e isso é fundamental para entender a fotografia na América Latina da época, muitos entenderam que a documentação poderia ser um exercício artístico e também político. Um bom exemplo é o trabalho de Paz Errázuriz no Chile, documentando as realidades escondidas ou perseguidas pela ditadura. O meio fotográfico abrange um amplo espectro de imagens, desde práticas muito preocupadas com o conteúdo até experimentos com as possibilidades expressivas do meio, onde a forma e especialmente o comportamento da luz foram muito importantes. Para mim o interessante é ver que nas décadas de 1960 e 1970 obras feitas com fotografia começaram a aparecer e ganhar prêmios em Salões Nacionais, de mãos dadas com a revolução gráfica da arte Pop. Os artistas libertaram o meio fotográfico, retiraram-no do quarto escuro e o levaram para as oficinas gráficas. Penso que isso permitiu novos diálogos entre conteúdo e forma. Foi o começo de um uma etapa de experimentação fabulosa. Isso se vê, por exemplo, nas primeiras instalações de Miguel Angel Rojas, na Colômbia, e nas obras de Graciela Sacco, na Argentina. Uma verdadeira libertação para a fotografia.

E olhando agora, décadas depois, como você vê a relevância destes trabalhos produzidos naquela época?

Para mim, estas obras só ganharam mais força ao longo do tempo. É somente agora, 50 anos depois, que podemos entendê-las em contexto. Você precisa dessa distância no tempo para vê-las mais claramente. É por isso que sinto essa necessidade urgente de registrar conversas com os artistas daquela geração que ainda estão vivos, para garantir seus legados e aprender com suas experiências.

Você disse certa vez que quando olha para fotografias históricas pensa em como aquelas pessoas registradas no passado olhariam para nós, para o mundo de hoje. Isso acontece no caso destas imagens latino-americanas?

Sim, penso muito sobre isso. Não apenas com a América Latina hoje, mas também a que verá essas imagens em 50 ou 100 anos, quando nós não estivermos mais aqui. As realidades ainda estão muito próximas, às vezes para o nosso pesar. Quando vejo muitas dessas imagens, sinto uma grande responsabilidade. Com os artistas, por um lado, mas acima de tudo com as histórias e as pessoas nessas fotografias. A responsabilidade de não permitir que caiam no esquecimento. Estas são as imagens que nos permitem e permitirão que as gerações futuras vejam em primeira mão a realidade de um continente. Elas são o começo de uma nova história ou da possibilidade de reescrever a história existente. E esse sempre foi o papel da arte.


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