O colecionador João Carlos de Figueiredo Ferraz com o prêmio do MuBE. FOTO: Iara Morselli

O empresário e colecionador de arte João Carlos de Figueiredo Ferraz, 66, é um defensor determinado da aproximação entre museus e acervos privados. De um lado, por considerar que as coleções particulares devem ser vistas pelo máximo de pessoas o possível – “a arte é uma coisa que tem que ser compartilhada”, diz ele. De outro, porque essa aproximação possibilita que os museus diminuam o foco na formação de acervos e aumentem os investimentos em seus espaços e estruturas técnicas – algo essencial em muitas instituições brasileiras hoje.

Neste sentido, o colecionador se diz muito feliz com o convite feito pelo Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) para realizar uma mostra com obras de seu acervo, como parte de uma série de exposições que o museu pretende apresentar em parceria com coleções privadas. Intitulada Construções e Geometrias, a mostra, com curadoria de Cauê Alves, traz um recorte de quase 60 obras da coleção de Dulce e João Carlos de Figueiredo Ferraz, colocadas em diálogo com a arquitetura do edifício projetado por Paulo Mendes da Rocha.

Entre os artistas expostos estão nomes de diferentes gerações, como Adriana Varejão, Amilcar de Castro, Carlos Garaicoa, Carmela Gross, Cildo Meireles, Edgard de Souza, Ernesto Neto, Nelson Leirner, Laura Vinci, Nuno Ramos e Waltércio Caldas, que representam apenas uma pequena parcela da coleção Figueiredo Ferraz – hoje com cerca de 1000 obras de 382 artistas (sendo 308 brasileiros) e que segue em expansão. “Atualmente existe uma quantidade muito grande de novos artistas e novas galerias, e é praticamente impossível acompanhar tudo, mas tento manter os olhos abertos para as coisas novas e para acompanhar os artistas que já conheço faz tempo”, afirma.

A relação do colecionador com as artes visuais, que começou na primeira metade dos anos 1980, resultou, entre outras coisas, na criação do Instituto Figueiredo Ferraz, em 2011, na cidade de Ribeirão Preto; no convite para assumir a presidência da Bienal de São Paulo, com gestão no biênio 2017-2018; e, em junho deste ano, no recebimento do Prêmio MuBE Colecionismo e Apoio à Arte.

Sem título, 1999, obra de Laura Vinci que está na mostra no MuBE. FOTO: Mauricio Froldi

Em entrevista à ARTE!Brasileiros, o colecionador falou sobre sua trajetória e sobre a situação política e cultural no Brasil atualmente, vista por ele com certa preocupação. Para além de um barulho desnecessário e excessivo feito pelo governo federal em torno das mudanças na Lei Rouanet, Figueiredo Ferraz diz ser preocupante a situação do patrimônio cultural brasileiro. Em referência ao incêndio no Museu Nacional, ele afirma: “Do jeito que está, outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins e salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo”. Leia abaixo a entrevista na íntegra.

ARTE!Brasileiros – Você poderia contar um pouco sobre como surgiu o seu interesse pelas artes plásticas e como se deu o início de sua trajetória como colecionador, nos anos 1980?
João Carlos de Figueiredo Ferraz – O gosto pelas artes plásticas vem de muito cedo, desde que sou criança. Agora, a coisa de colecionar começou quando eu me mudei de São Paulo para Ribeirão Preto, em meados dos anos 1980. A casa era grande e eu quis comprar um quadro para colocar na parede, para decorar a casa. E um amigo meu, primo da galerista Luisa Strina, me levou lá, onde eu comprei o meu primeiro quadro. Assim começou. E fui me envolvendo, conhecendo os galeristas, os artistas, os críticos. E quando eu percebi não tinha mais paredes, não tinha mais espaço, e eu estava colocando quadro embaixo da cama.

Como e quando você percebeu que tinha em mãos mais do que um conjunto de obras (um acervo particular), mas uma coleção de vocação pública?
Frequentando galerias e ateliês, eu fui comprando mais obras ao longo do tempo. E, sem espaço para abrigar tudo, muita coisa foi ficando guardada. E em 1999, a Maria Stella Teixeira de Barros, visitando minha casa, me convidou para fazer uma exposição no MAM de São Paulo (O Espírito de Nossa Época, 2001). E eu achei ótimo, porque eu mesmo estava curioso para tirar as coisas das caixas e também para ver como estava se comportando o andamento do meu olhar, que é algo que ao longo do tempo nós vamos aprimorando, adquirindo outros gostos. E eu queria ver se se aquelas coisas juntas tinham uma lógica, um fio condutor.

E você percebeu que tinha?
Sim, quando a exposição foi montada fiquei supercontente, e impressionado, porque ao longo do tempo eu mantive essa coerência do olhar. Isso me deixou animado, e a partir desse momento eu coloquei na cabeça que um dia eu ainda teria um lugar onde eu pudesse expor essas obras.

E o que você diria que é essa coerência?
Isso é curioso, porque na verdade a arte nesse período é de uma diversidade imensa. Você tem todo tipo de produção, dos concretos aos abstratos, fotos, instalações… E eu fui comprando de tudo. E apesar dessa variedade imensa, essas obras conversavam entre si, havia um diálogo. E eu vi que ali se formava um núcleo que era representativo da época.

Daí até a abertura do instituto, como foi o processo?
Demorou ainda uns dez anos. A exposição no MAM foi em 2001, e a partir daí eu comecei a procurar ou outras instituições que eventualmente se interessassem em ir para Ribeirão Preto ou algum espaço, algum lugar onde eu pudesse montar o instituto. E foi muito difícil. Até que em um determinado momento surgiu a oportunidade de comprar um terreno, em um lugar muito privilegiado, e aí resolvemos construir o instituto.

“Fontana”, 2016, de Waltércio Caldas, obra que está na mostra do MuBE. FOTO: Mauricio Froldi

Como você avalia essa trajetória de quase oito anos do Instituto Figueiredo Ferraz e qual o impacto que percebe da atuação do instituto na cidade de Ribeirão Preto?
Acho que essas coisas andam juntas. O instituto evoluiu na medida em que ele foi impactando a cidade. Nós começamos logo no segundo ano um programa educativo muito intenso, fizemos um convênio com as secretarias de Educação de Ribeirão Preto e do Estado de São Paulo e passamos a receber todas as escolas municipais da cidade e da região. E acho que isso fez uma grande diferença, e continua fazendo, porque são crianças que muitas vezes nunca tiveram a oportunidade de ver uma obra de arte, e ali eles têm um acompanhamento, desenvolvem um raciocínio poético. Acho que isso faz uma grande diferença e cria um legado que o instituto vai deixar.

Você considera que ainda o Brasil ainda carece de mais iniciativas deste tipo? Ou seja, mais pessoas que, independentemente de governos ou do Estado, percebam a necessidade de criar iniciativas culturais públicas e abertas?
Sim, acho que sim. Acho que o primeiro passo monumental nesse sentido foi Inhotim, aquele espaço maravilhoso. Agora acho que outras iniciativas também estão surgindo, como a FAMA em Itu, mas ainda são poucas. Acho que poderia ter algum tipo de incentivo que fizesse com que as pessoas abrissem mais suas coleções. Porque acho que a arte é uma coisa que te que ser compartilhada, porque ela é um patrimônio nacional. É importante que as pessoas tenham acesso. Mas é preciso que haja um estímulo, uma política de cultura do Estado. Nós temos uma série de decretos, regras e coisas que mudam a cada governo, e isso acaba contaminando, porque gera insegurança. Se tivesse garantias mais claras, tudo seria mais fácil.

E o que pensa para o futuro da instituição?
De certa forma, eu tenho novamente um problema equivalente ao que eu tinha no início, quando eu queria tirar as obras das caixas. Porque o instituto, apesar de ter um tamanho bastante generoso, já ficou pequeno para o número de obras. Então o que eu faço é a cada ano convidar um curador para que ele faça uma leitura da coleção e um recorte, para montar uma exposição. E isso é superinteressante porque eu vejo as obras se aproximarem umas das outras com um outro olhar, provocando outros diálogos, outras tensões. E temos também uma sala de mostras temporárias, onde fazemos umas quatro ou cinco exposições por ano, com artistas convidados ou outras coleções.

A atual exposição no MuBE traz um recorte da coleção feita pelo curador Cauê Alves, com grande enfoque na arte construtiva e geométrica. Como você vê essa exposição?
Eu fiquei muito contente de poder trazer para São Paulo esse recorte. Ele fez uma seleção a partir de um olhar sobre a arquitetura do Paulo Mendes da Rocha. Uma seleção de obras mais concretas e neoconcretas, e que não tem muita preocupação com data. Tem coisas mais antigas ou mais recentes. Além disso, o museu está iniciando um projeto que eu acho muito importante. Porque nós sabemos que as instituições brasileiras, tanto públicas quanto privadas, vivem com grande dificuldade, tentando arrecadar fundos, fazendo clube de patronos… E elas tem a função de criar sua qualidade técnica, trabalhar a manutenção dos espaços, se aparelhar com equipamentos modernos, porque a arte hoje demanda essa tecnologia. E muitas vezes elas não conseguem fazer isso porque estão preocupadas em formar acervo. Então eu acho que há instituições que poderiam fazer uma aproximação com as coleções particulares, criar parcerias com elas, e pegar suas verbas para melhorar a qualidade técnica de seus espaços. E essa iniciativa do MuBE em fazer essa aproximação é muito importante, e é uma maneira de a população poder ver obras que muitas vezes estão guardadas.

Mudando um pouco de assunto, como avalia seu período como presidente da Fundação Bienal, nos anos de 2017 e 2018?
Esses dois anos que eu estive à frente da Bienal foram seguramente os anos mais difíceis da minha vida e provavelmente também os mais ricos. Os mais difíceis porque logo no terceiro mês depois que eu assumi o cargo eu tive que fazer um transplante de medula, por conta de um câncer. Então foi muito difícil acompanhar tudo, porque a presidência da Bienal demanda muita presença, muitos compromissos, contatos. E eu fiquei, entre entrar e sair de hospital, uns seis ou sete meses. Agora, foi muito rico porque eu tive a sorte de escolher o Gabriel Pérez-Barreiro como curador, um profissional da maior qualidade, superpreparado e inteligente, fácil de trabalhar junto. E a gente trocou muito, conversou muito sobre o projeto dele, que eu achei muito bonito. E isso, de certa forma, também me ajudava a sair um pouco dessa tensão do meu tratamento do câncer.

“Globo”, 2012, obra de Carlos Garaicoa que está na mostra do MuBE. FOTO: Edouard Fraipont.

O Brasil vive, já há alguns anos, um momento político e econômico conturbado, com uma grande polarização nos discursos e com uma crise que ainda parece longe de acabar. Como você percebe esse momento, considerando sua experiência na área cultural?
Acho que na nossa área, das artes visuais, das artes plásticas, esse novo governo fez uma tempestade em copo d’água. Muito barulho político. Por exemplo, todo esse escândalo que foi feito em relação à Lei Rouanet não era necessário. Podia mudar algumas coisas sem todo esse barulho. E no fim o que se fez foi mudar o limite de captação, mas criar uma regra de exceção que engloba todo mundo. Quer dizer, não mudou quase nada. E com relação à acusação que se fez de mau uso do dinheiro público, de gastos indevidos, isso era função do Ministério da Cultura fiscalizar. Todos os projetos tinham que prestar contas, mas o que acontecia era que muitas vezes o Minc não analisava. Então não era um problema da Lei Rouanet, mas um problema político dentro do ministério. Por isso digo que o novo governo fez todo esse estrondo, essa tempestade, em uma coisa que não precisava.

Para agradar um certo público, um eleitorado…
Claro, para agradar eleitores. Escolheram a Lei Rouanet como alvo. Agora, para além das artes plásticas, em relação à outras áreas como cinema e teatro, acho que algumas decisões que o governo Bolsonaro tomou são muito preocupantes. Ele proibir estatais e empresas de economia mista a fornecerem recursos para a Lei Rouanet, através de seus resultados, está tirando do mercado um volume de dinheiro muito grande, que vai fazer muita falta. Isso é uma coisa precisa ser discutida com mais serenidade, para ficar claro que é importante a manutenção desses apoios. E se por acaso não quiserem colocar esses recursos dessas empresas em Lei Rouanet, que usem pelo menos para recuperar o patrimônio cultural brasileiro, para não acontecer como aconteceu no Museu Nacional no Rio de Janeiro. Porque do jeito que está outros museus vão queimar também. Nossos acervos estão sendo perdidos em meio à umidade, cupins, salas de exposições caindo. Recuperar isso é obrigação do governo.

Nesse sentido, muita gente que trabalha nas áreas cultural e educacional – e pode-se dizer que este é o seu caso, com o instituto – tem se sentido bastante acuada com as políticas do governo. Você sente isso? Acha que há uma certa incompreensão dos atuais governantes do papel da cultura e da educação na construção de uma sociedade melhor?
Eu acho que sim. Mas também, para ser justo, acho que não temos bons parâmetros de referência. Porque a falta de uma política cultural de Estado é um problema de todos os últimos governos, não só desse. Falta uma política de Estado, não de partidos políticos. Agora, esse discurso mais agressivo que temos ouvido é mesmo lamentável.


Serviço: Construções e Geometrias
MuBE – R. Alemanha, 221 – Jardim Europa, São Paulo
Até 18 de agosto
Entrada gratuita

 

 

 

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