Fotógrafo, nascido no Cariri (Ceará) no seio de uma família com forte atuação política, Tiago Santana, 58, é um dos mais renomados autores a documentar a vida e cultura do sertão nordestino nas últimas décadas. Seja na premiada série Benditos (2000) ou nos fotolivros O Chão de Graciliano (2006), Patativa do Assaré (2010) e O céu de Luiz (2014), o artista consolidou-se como referência neste campo e, inclusive, foi um dos únicos dois brasileiros (junto a Sebastião Salgado) a ter um trabalho (Sertão, 2011) publicado na renomada revista francesa Photo Poche.
Dito isto, Santana sempre foi também um militante cultural, como gosta de dizer, ou seja, um sujeito atuante na defesa e promoção das artes na sociedade, consciente de seu potencial transformador humana, social e economicamente. O fato é que quando seu irmão, Camilo Santana (PT), elegeu-se governador do Ceará, no final de 2014, Tiago decidiu participar mais de perto da vida política e usou este espaço para lutar pelo setor cultural durante a gestão – que acabou por se estender com a reeleição de Santana em 2018 e, na sequência, com a eleição do também petista Elmano de Freitas, atual governador.
Foram quase 10 anos de atuação informal, ou seja, sem um cargo específico, nos quais houve grandes avanços na área. Junto a qualidade da educação pública no Ceará (não à toa Camilo Santana se tornou ministro da pasta na atual gestão federal), Tiago afirma que a política cultural no Estado também foi fortalecida, tendo seu orçamento aumentado até mesmo na pandemia. A cultura chegou a mais gente com a criação de novos equipamentos de ponta não só na capital, Fortaleza, mas em outras áreas do Estado.
Para geri-los, em 2021 foi criado o Instituto Mirante de Cultura e Arte, Organização Social (OS) que Tiago ajudou a fundar e na qual assumiu a direção em 2023, após a gestão inicial da advogada Lara Vieira. Assim como o histórico Instituto Dragão do Mar (OS pioneira no país, criada em 1998), o Mirante se tornou responsável por alguns dos 27 equipamentos públicos da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE). São eles o Centro Cultural Cariri Sérvulo Esmeraldo, um enorme complexo na cidade de Crato, o Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS) e a Estação da Artes, ambos em Fortaleza. Na Estação estão abrigados diferentes equipamentos: a Pinacoteca do Ceará, o Museu Ferroviário João Felipe, o Centro de Design do Ceará (Kuya) e o Mercado AlimentaCE. O Instituto Mirante, que possui ao todo 464 funcionários contratados diretamente, gere, ainda, o Sobrado Dr. José Lourenço, prédio histórico no centro da capital.
Em entrevista à arte!brasileiros, Santana falou sobre sua trajetória, o trabalho à frente do Mirante, a necessidade de “descentralização” dos investimentos em cultura no país e sobre um momento político no qual o avanço da extrema-direita (que demonstrou grande força na disputa eleitoral em Fortaleza neste ano) representa uma ameaça ao país nos mais variados campos, inclusive no cultural. “O resultado apertado foi um grande alerta, temos muito o que fazer. Não podemos, inclusive, esperar começar a próxima eleição para pensar no assunto. E assim arriscar de novo um projeto que entendemos ser o melhor projeto humano, um projeto de sociedade. Porque aqui [em Fortaleza] não estava em discussão apenas qual o melhor partido, a discussão era entre a barbárie e a civilização”, afirma.
Leia a seguir a íntegra da entrevista.
arte!brasileiros – Tiago, antes de falarmos do trabalho no Instituto Mirante propriamente dito, queria pedir para você contar resumidamente sobre esse caminho que te leva da fotografia para a gestão cultural. Em entrevista ao jornal O Povo você disse que sempre foi um militante cultural. Pode contar um pouco mais?
Obrigado por me chamar de fotógrafo, ando carente em relação a isso, já que atualmente todos só me perguntam de gestão. Mas, brincadeiras à parte, essa questão da militância cultural é importante. Ela tem a ver com a minha fotografia também, mas vem até de antes. Eu vim de uma família militante. Meu pai [Eudoro Santana], com 88 anos hoje, foi e continua sendo militante político. E um sonhador. Então eu aprendi isso desde casa. Meu pai foi preso na ditadura militar, minha mãe também sempre esteve envolvida com a luta pela democracia no Brasil, e desde cedo eu e meus irmãos aprendemos com eles que devemos dar a nossa contribuição na transformação do lugar em que vivemos, do país, enfim. E cada um contribui da forma que pode. Uns no campo da política partidária, outros no próprio campo da arte, onde também se pode fazer política.
Aliás, um parêntese, eu nasci no Crato (no Cariri) por conta da ditadura militar, porque meu pai foi para lá fugindo da ditadura, já que ali foi um certo lugar de refúgio nessa época. Assim como alguns foram para fora do país, meu pai foi morar no Cariri. E acabou ficando décadas. Então, eu brinco que a única coisa boa da ditadura – que na verdade não tem nada de bom – foi eu ter nascido no Cariri. Porque foi definidor na minha vida, sabe? Ali é meio uma síntese do Nordeste, já que tem uma confluência de vários Estados do Nordeste. Aquela região é muito rica culturalmente, em todos os aspectos, e eu acho que ter passado a minha infância e adolescência nesse lugar foi muito determinante na minha visão de país. E, ao mesmo tempo, a experiência visual daquele lugar também é muito impactante.
E o meu pai também tinha uma relação com o audiovisual, ele usava o Super 8 e tinha um laboratório onde revelava as fotografias dele, de família. Aí eu obviamente fui me envolvendo. Então, no fundo, a fotografia foi um pouco o pretexto para poder registrar aquele lugar, a partir da experiência que eu tinha vivido ali. Então, resumidamente, acabei fazendo um livro que chama Benditos, que é muito importante para mim e, eu acho, é importante na fotografia documental, como registro daquele lugar. Depois eu fiz um livro com o grande jornalista Audálio Dantas (1929-2018), que é O Chão de Graciliano, dedicado à obra do Graciliano Ramos, e outro com o próprio Audálio chamado o Céu de Luiz, com o universo de Gonzaga – que nasceu em Exu (PE), ali na fronteira com o Crato. Fiz ainda um livro sobre o poeta Patativa do Assaré, com o pesquisador Gilmar de Carvalho, e teve também uma série minha publicada na Photo Poche, coleção francesa tão importante na minha formação. Falo da importância de estar nela não para me vangloriar, mas pelo fato de a coleção olhar muito pouco para além da Europa e dos Estados Unidos. Vejo que isso agora está mudando um pouco, com outros nomes latino-americanos, mas ainda é insuficiente.
Mas então conte como vem a coisa da gestão, a aproximação com a política no sentido mais institucional…
Acabei me envolvendo mais diretamente na questão da gestão cultural especialmente nos últimos dez anos. E não tem porque esconder, claro que foi muito por conta da relação com meu irmão, que virou governador do Estado. Eu não fui da gestão, no sentido de ter cargo, mas não podia deixar de contribuir, me envolvi muito. Eu já era um militante do campo cultural, sempre estive frente às pautas aqui, apoiando em diversos governos, defendendo a importância e a relevância da cultura. Mas foi mais diretamente nestes últimos dez anos que eu não podia ficar fora.
É a tal história: se eu ficasse fora, sem ajudar, iam criticar, dizer que eu tinha a oportunidade e não ajudei. Se eu ficasse dentro, iam reclamar do mesmo jeito. Entre um e outro, eu decidi contribuir, mesmo que de forma voluntária, dando ideias, sugerindo, brigando por orçamento. Já que estamos falando de militância… então, aí eu acho que era um compromisso, contribuir em um momento em que eu poderia ser mais ouvido. E quando falo “eu”, falo de uma coisa mais coletiva, de um grupo de pessoas que de alguma forma poderiam se envolver.
E o Ceará sempre foi muito à frente do seu tempo na gestão cultural. Por exemplo, a criação da primeira Secretaria de Cultura do Brasil foi no Ceará [em 1966]. Temos também a primeira OS, o Instituto Dragão do Mar. Quer dizer, há uma experiência de estar na vanguarda das políticas culturais, e não falo só de agora. Mas eu acho que a última década foi muito importante na consolidação do Ceará como um lugar que, inclusive em um momento muito difícil, no qual até o Ministério da Cultura foi extinto, o Ceará foi um farol, resistiu. E talvez tenha sido um dos únicos estados que mesmo nos anos de pandemia não parou de investir na cultura.
E sabemos da complexidade que é isso. Um Estado que é pobre, que obviamente tem que ter escolhas na hora de dirigir um orçamento limitado. Enfim, é muito complexo, mas houve um entendimento sobre isso. Porque talvez a cultura seja a pasta mais transversal de um governo, sabe? Ou uma das. Quando você investe em cultura você está investindo em prevenção de violência, você está investindo em mais educação, você está investindo em mais saúde – porque cultura é também saúde –, em segurança pública, na juventude e assim por diante. E eu sempre brinco: quando falam em investir em infraestrutura, em fazer estrada, com bilhões de reais, aí é tudo tranquilo. Mas quando falam em investir um dinheiro substancial na cultura, aí acham que é um absurdo, né?
Como se fosse algo supérfluo…
Sim. E quando falo que houve um entendimento, eu não estou te falando que nada disso foi uma coisa fácil, mesmo tendo um governador com essa compreensão. Até porque o tempo de governo é um tempo muito complexo. Qualquer determinação, até chegar lá na base, passa por várias camadas, burocracias, licitações, enfim, não é fácil. Mas, como militante, meu papel era lutar para que a gente avançasse. E falo tranquilamente que eu acho que o Ceará avançou muito do ponto de vista das políticas culturais. E até da institucionalidade da própria Secretaria de Cultura. Ela, em 50 anos, nunca tinha tido um concurso público. E nessa gestão isso foi feito, pela primeira vez. Então não era só questão de orçamento, era pensar a própria estrutura da Secult para geri-lo, executá-lo.
E, claro, eu estou falando um pouco da minha experiência, mas foi uma construção coletiva, de muitos atores, onde o meu papel era esse, de brigar, pressionar, lembrar que a Cultura é estratégica, inclusive economicamente, algo que raramente é lembrado. O PIB da cultura no Brasil é maior que o PIB da indústria automobilística. Só que nós não temos a mesma narrativa e o discurso que a indústria, o mercado, os economistas têm, né? E é um dever de casa, mostrar a importância e o impacto gerado ao se investir em cultura. E isso tem que estar refletido no orçamento. No Ceará, neste período de que estamos falando, o orçamento do Estado em cultura aumentou cinco vezes, mesmo nos períodos mais difíceis como a pandemia. E queremos que aumente mais, claro.
E dentro disso houve o crescimento também do investimento na infraestrutura dos equipamentos culturais da Secult, esses que são geridos pelos institutos Dragão do Mar e pelo Mirante, em um modelo que é considerado muito exitoso. O governo dá o norte da política, mas a OS administra, executa. Isso facilita, né? Há ainda alguns equipamentos geridos diretamente pela Secult, mas a ideia da secretária Luiza Cela –que também é uma militante do campo cultural há muitos anos – é que todos esses equipamentos sejam geridos por organizações sociais. E isso não é uma critica à capacidade do serviço público, nem nada daqueles discursos anti-Estado, muito pelo contrário, mas uma percepção de que tem sido eficaz, que é um caminho para se fazer junto, melhorar, simplificar.
Até porque uma OS não tem fins lucrativos e trabalha diretamente para o poder público…
Sim, e eu acho que o Estado não pode jamais abrir mão de seu papel, porque cultura é um direito também, assim como educação, saúde. Então o Estado tem que aportar recursos na cultura. Mas acho que a OS pode ajudar também a incrementar esse orçamento, captando também com a iniciativa privada. Para poder ter mais programação, mais coisas. Mas o Estado não deve nunca sair do protagonismo, ele é fundamental como um garantidor desse direito essencial que é o direito à cultura.
E outra coisa que eu queria ressaltar é que também nessa gestão fizemos pela primeira vez uma descentralização dos equipamentos de cultura do Estado do Ceará, que eram todos em Fortaleza. A exemplo do Centro Cultural do Cariri, que é uma espécie de Dragão do Mar [centro cultural tradicional em Fortaleza, gerido pelo IDM) no interior do Estado. Se você pensar na importância do Dragão do Mar, criado em 1999, ele transformou e segue transformando várias gerações. Então eu imagino no Cariri, onde o centro vai completar ainda três anos, você imagine daqui a 10 ou 20 anos, como é que ele vai ter impactado gerações de pessoas que tiveram a possibilidade de ter um equipamento de ponta como esse em suas vidas.
É um equipamento de altíssima qualidade, que eu diria que não tem nenhum aqui em Fortaleza igual, porque ele é um “centro cultural parque”, tem um teatro incrível quase pronto, um planetário, residências artísticas com apartamentos para receber convidados, salas para oficinas. Enfim, ele tem características dessa relação entre natureza, ciência, tecnologia e cultura que é muito interessante. Olha, eu que sou de lá adoraria ter nascido numa época em que tivesse um lugar desses. E isso que nos motiva, sabe? Esse impacto na vida das pessoas, isso é muito bonito. Você chega lá em um domingo e tem 5 mil pessoas fluindo ali naquele espaço, seja no parque, seja vendo exposições, seja vendo um show, seja fazendo uma oficina. Às vezes as pessoas nas secretarias de governo ficam vendo apenas números, planilhas, mas não entendem essa beleza.
E nesses lugares carentes de equipamentos desse tipo o impacto é muito grande. Tem gente que talvez nunca entrasse em um museu, mas que está no parque fazendo um piquenique e acaba entrando. Ou talvez uma pessoa que nunca iria em um show ou numa peça de teatro, mas está no parque e acaba indo. Eu me surpreendo cada vez que eu vou lá. Inicialmente não achávamos que teria tanta adesão e ocupação, mas a coisa foi se transformando, tivemos que ter mais equipes, mais orçamento. Milhares de pessoas foram ocupando e querendo mais, isso tem sido muito bonito. E não é só gente do Crato, ele é regional, atrai as pessoas da região inteira. E sendo muito democrático, com gente de todas as classes sociais convivendo.
Pegando o gancho do Cariri, queria te pedir então para contar um pouquinho mais sobre os outros equipamentos geridos pelo Mirante. Quais são e como tem sido o trabalho com eles?
Começando pelo Museu da Imagem e do Som, que obviamente é muito especial para mim pela minha relação e compromisso com a imagem, o MIS já tem quase 45 anos, já existia, mas era um lugar que estava muito triste de se ver, sem espaços e uma reserva técnica adequados. Era uma casa que tinha uma importância histórica para a cidade, mas estava precisando de reforma. Enfim, não existia um MIS como a gente deveria ter, e então ele foi construído com uma estrutura de ponta.
Já a Estação das Artes é um grande complexo onde temos a Pinacoteca do Ceará, que era uma demanda, um sonho de muitos anos do campo artístico. O Governo do Estado tem um acervo muito importante e ele estava em condições complicadas. A única reserva técnica que o Estado possuía era a do Centro Cultural do Dragão do Mar, que tem 20 e tantos anos e não tinha mais condição de receber esta coleção. Então a Pinacoteca vem não só para a parte de fruição, pela importância que é ter espaços adequados para montar grandes exposições e abranger grandes projetos, mas também para salvaguardar e cuidar desse ativo cultural e econômico que é o acervo.
Então, a Pinacoteca e o MIS nascem com reservas técnicas adequadas para suas áreas, pensando no que já existe e também nos acervos futuros. Foi um grande investimento e sem sombra de dúvida – nem sou eu que digo, mas os especialistas que vêm visitar – é a melhor reserva técnica de museu público do país. Na sua dimensão, na sua qualidade…
No complexo está também o Museu Ferroviário – lembrando que ali era a Estação Ferroviária João Felipe –, um espaço específico dedicado à memória e ao patrimônio ferroviário do Ceará; tem ainda o Centro de Design (Kuya), que tem a ver com o fato de Fortaleza ser uma cidade internacional do design, inclusive com certificação da Unesco, e que pretende conectar o design local com o do resto do Brasil, da América Latina, enfim, do mundo. E é um lugar para se pensar o design de modo amplo, inclusive politicamente, pois ele está em tudo na nossa vida.
E por fim a própria Estação acabou virando um lugar de feiras e, especialmente, de música. Isso nem estava previsto, mas foi acontecendo e hoje eu nem imagino Fortaleza sem esse espaço musical. Shows para no máximo 2 ou 3 mil pessoas, até porque é um patrimônio tombado. E, por último, tem o mercado de gastronomia, também no complexo. Hoje temos uma ocupação ainda temporária, mas seis restaurantes estão sendo implantados ali de forma definitiva até o ano que vem. O Ceará também é um dos poucos Estados do país que tem uma lei da gastronomia, e queremos valorizar isso, a gastronomia como um eixo de política cultural.
Quer dizer, é um espaço muito diverso. E ali está também a Secult, certo?
Sim. Esse projeto foi uma parceria com o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), porque anteriormente parte desse espaço era dele. Então houve uma cessão, o Estado restaurou, reformou e construiu ali. Inclusive a sede do IPHAN hoje está instalada no complexo, assim como a sede da Secretaria de Cultura.
Aliás, um detalhe sobre esses três equipamentos (Estação, MIS e Centro do Cariri) é que, por coincidência, eram todos imóveis tombados, tinham patrimônios históricos importante a serem preservados. E todos tem as partes restauradas, a preservação, acrescidas a construções modernas, que pudessem complementar o conjunto arquitetônico. Trata-se de respeitar a história, que é muito importante, e trazer para o presente a modernidade. Investimos muito em tecnologia.
Mais uma vez, quando a gente chegava numa reunião dessas com os “economistas”, digamos assim, para decidir o orçamento, eles questionavam para que tanto dinheiro em tecnologia. “Para que o MIS precisa ter uma sala imersiva?”, diziam. E nós sabemos que custa caro, mas é importante. Quando você vai fazer um hospital não precisa colocar as coisas mais tecnológicas e avançadas? Sim. E precisa-se de dinheiro pra isso, não é? Então por que na cultura tem que ser diferente? Acham que sempre pode-se botar o que é mais ou menos, o menos ruim. Não, a gente tem que fazer o melhor. Mas isso não é fácil como compreensão… acho até que parte desses meus cabelos brancos foram por essas batalhas.
E hoje temos no laboratório de conservação do MIS, por exemplo, equipamentos que nenhum outro lugar do Brasil tem. Porque achamos que quando você vai tratar de um acervo público, cuidar da memória, é importante ter os melhores equipamentos.
Inclusive, eu vi uma entrevista sua falando sobre a importância econômica da área cultural e nela você diz que parte das elites do Ceará dá muito valor para o MoMA, em Nova York, ou para o Louvre, em Paris, mas não percebe a importância e o impacto socioeconômico que pode ter, por exemplo, a Pinacoteca do Ceará. A que você acha que isso se deve e como mudar essa visão?
Veja só, muitos empresários cearenses são patronos de equipamentos em São Paulo, como a Pinacoteca ou o MASP, mas esquecem que a gente tem agora a Pinacoteca do Ceará. Obviamente temos um papel em inverter um pouco esse pensamento e atraí-los para ver e entender o espaço. Quem vem na Pinacoteca hoje e conhece o lugar vê que ele não deixa a desejar a nenhum equipamento do Brasil. E falo até pensando no mundo, pois é um lugar bem cuidado, com todas as características museais necessárias, uma equipe qualificada. Claro, um centro cultural nunca nasce pronto, ele vai se ajustando ao longo do tempo, mas, ele já nasce grande nesse sentido. Com o pé no chão, mas entendendo sua importância e relevância.
Ou mesmo pensando no centro do Cariri. Por ser no interior você não pode ter uma galeria de qualidade igual a que tem na Pinacoteca de São Paulo ou no MASP? Pois lá tem. Então há um pensamento muito equivocado que precisa ser transformado. E claro que esse foi um embate aqui no Ceará também, mas eu acho que houve uma compreensão do governo, uma parceria nesse sentido.
Voltando um pouco ao assunto da descentralização dos equipamentos, a partir do que você falou sobre ter espaços de qualidade não só em Fortaleza, eu queria aproveitar para falar também na necessidade de descentralização dos investimentos em cultura em âmbito nacional, lembrando que grande parte do dinheiro, dos grandes eventos e das maiores instituições ainda se concentram no Sudeste, especialmente em um eixo Rio-SP. Você vê esse quadro mudando?
Sim, essa é uma questão importante. E aí eu até faço uma observação. Quando a gente fala em descentralizar, depende do ponto de vista de onde é essa centralidade. Porque quando a gente imagina o Brasil, a centralidade é sempre São Paulo, Rio, no máximo Belo Horizonte. E o Brasil não é São Paulo e Rio – eu adoro ambos, não se trata disso. Mas devemos inverter um pouco essa lógica. Assim como quando falamos em centro e periferia…
E você acha que o Estado do Ceará está dando um pouco um exemplo do que pode ser feito em outros lugares do Brasil?
Eu acho que sim, que o nosso caso chama atenção para isso. Agora, por exemplo, está tendo um movimento muito interessante também no Pará, com a história da Bienal das Amazônias. E, inclusive, acabou de ter lá um grande encontro de gestores da América Latina. Enfim, a própria ida da conferência da COP para lá… Eu acho que esses movimentos precisam ser feitos e acho que o Ceará deu uma contribuição nesse sentido. Eu até fiz uma provocação com o próprio Instituto Moreira Salles, que fica ali entre Rio e São Paulo, de que eles deveriam abrir uma sede aqui em Fortaleza, inclusive porque existe no pensamento deles essa visão sobre um Brasil mais amplo. Então acho sim que nós ajudamos a construir e a entender que o Brasil é muito grande, é um país continental, muito diverso, e que precisa dar conta um pouco dessas diversidades – culturais, linguísticas, étnicas, de gênero… da diversidade de vozes.
Falando nisso, é notável na programação dos equipamentos do Mirante uma preocupação com pautas ligadas à identidade nordestina, à valorização da cultura regional, e também pautas ligadas a questões de raça, gênero etc. Olhar para grupos historicamente marginalizados ou minorizados é um eixo de trabalho do instituto?
Sem dúvida. Acho que no Brasil em que a gente vive hoje, no mundo em que vivemos, não dá para ficar mais sem trazer essas questões, essas pautas. É uma briga que a gente tem que ter, e o Instituto Mirante já nasce com esse compromisso. Acho que foi a primeira OS que nasceu, por exemplo, já com as assessorias específicas voltadas para essas áreas, ou seja, uma assessoria de políticas afirmativas e uma assessoria que trata do território. Temos equipes e pessoas qualificadas que trabalham isso.
Pois não adianta você implementar um equipamento como a Estação das Artes no centro da cidade, numa área complexa, onde há ao lado uma comunidade que tem uma questão grave de tráfico, de violência, e não trabalhar em diálogo e em conjunto com eles. A comunidade não é um ser estranho que chega ali. Pelo contrário, você que é o ser estranho que está chegando. Então esse diálogo com a comunidade, com o território, eu acho que isso é uma coisa que, desde o início, temos no pensamento da própria instituição.
Além disso, nas equipes contratadas pela própria instituição temos uma enorme diversidade, com pessoas trans, pessoas negras, indígenas, um percentual alto de mulheres…. Enfim, isso é importante também, porque não basta ficar só no discurso. A dívida que temos com a sociedade brasileira, com esses diversos grupos minorizados, é muito grande. Então temos que ter essa preocupação, seja nos editais, seja no pensamento sobre as exposições, sobre as oficinas, sobre os shows e assim por diante.
E sabemos o quanto isso gera embates. Nesse campo bolsonarista, por exemplo, a gente é muitas vezes bombardeado por conta de um edital que vai trabalhar, por exemplo, na questão de trans. Porque a sociedade ainda é muito preconceituosa. Nós somos, né? E digo nós, eu me incluo também, porque muitas vezes a gente se dá conta de uma palavra que solta, de um gesto que a gente faz… e precisamos estar atentos a isso.
E existem as questões de acessibilidade, que acho que o Mirante é inovador também neste sentido. A gente tem acessibilidade em vários níveis, com especialistas contratados no próprio corpo de funcionários CLT, e uma preocupação seja nas exposições, nos shows, enfim, todas as atividades culturais. Enfim, são várias preocupações, pensando em formas de dar uma contribuição na inovação da gestão pública de cultura, em como construir mecanismos que possibilitem também um acesso mais democrático nos vários níveis.
Bem, estamos até aqui falando de coisas positivas, mas é impossível não pensar também que acabamos de ter uma eleição em Fortaleza muito disputada, em que o candidato derrotado (o bolsonarista André Fernandes, do PL) teve uma porcentagem muito alta de votos, apresentando uma visão muito diferente de política e de cultura desta que estamos falando. Enfim, este fortalecimento da extrema-direita não representa uma ameaça também ao campo cultural no Estado do Ceará?
Sim, eu acho que a gente tem que estar atento e forte o tempo todo. Porque isso não passou, está aí. Essa descoberta que aconteceu agora [no dia da entrevista havia sido revelado o relatório sobre a trama golpista], dessa facção, uma coisa criminosa… essas pessoas deveriam estar na cadeia imediatamente. É tão grave. E isso não passou. Porque esse exemplo do André Fernandes tem a ver com narrativa construída. Um jovem, do campo da comunicação, que foi youtuber, sabe se comunicar bem, criou uma narrativa de que ele é a mudança e tal. E temos que ter muito cuidado. A cultura teve um papel importante nessa eleição, inclusive na aproximação da política principalmente com a juventude. Porque acho que temos uma geração que não sabe, não passou, que nem entende o que foi a ditadura militar. Por isso que eles ficam aí cuspindo, falando que não houve ditadura. E tem também uma geração que nem viveu a mudança que o Lula fez na primeira gestão. Ou seja, são pessoas que precisam ser aproximadas, né? E essa eleição foi um grande alerta, porque não foi fácil, mostrar que era o pior candidato, falando coisas absurdas…
Como o Pablo Marçal em São Paulo…
Exato. Então eu acho que temos muito o que fazer. Não podemos, inclusive, como esquerda, esperar daqui a dois anos começar a próxima eleição para pensar no assunto e trabalhar. E assim arriscar de novo um projeto que a gente entende que é o melhor projeto humano, um projeto de sociedade. Porque aqui não estava a discussão apenas sobre qual o melhor partido, a discussão era entre a barbárie e a civilização.
E que a cultura e a educação, principalmente no nosso caso, podem contribuir muito para que a gente se comunique com essas pessoas, principalmente os mais jovens. E nós não podemos correr riscos, porque sabemos o que seria da cidade de Fortaleza no campo cultural se o outro candidato tivesse ganhado.
O que vai ser bom, agora, é que teremos uma prefeitura [Evandro Leitão, do PT] que vai fortalecer e potencializar o projeto que já temos feito. Porque uma coisa é você tomar uma decisão política, colocar os recursos necessários, fazer uma infraestrutura cultural de qualidade. Isso é muito importante. Mas, mais importante, ou tanto quanto, é você manter isso. Manter os investimentos, não só do aspecto físico, da estrutura, mas da programação, das entregas ao público. Esse é outro desafio também.
E há também parcerias com o governo federal?
Sim, isso também é algo importante, pois agora temos do nosso lado o Ministério da Cultura (MinC), que havia sido extinto [no governo Bolsonaro]. Então, todos esses investimentos que feitos no Estado do Ceará nos últimos anos foram com o dinheiro do próprio Tesouro Estadual. Não tem um tostão de governo federal. E agora a gente tem possibilidade de ter parcerias, de ampliar isso com o MinC, o que é muito bom. Obviamente, o ministério passou por um processo também de reconstrução, mas eu acho que os próximos dois anos serão muito férteis para nós.
Então estamos caminhando, o Ceará avançou muito nos últimos dez anos, mas essa é uma estrada longa, né? Quando eu falo que aumentou muito o orçamento em cultura, a gente ainda quer muito mais. E aí as entregas serão maiores, o número de população atendida maior. Sabemos que há limites, mas seguiremos lutando por isso.
E quanto aos equipamentos geridos pelo Mirante, é preciso lembrar que eles são muito novos. E não nascem prontos, né? Se nascesse pronto, estava morto. E eles vão crescendo e vão sendo construídos no diálogo. Não só com governos, mas estou falando de uma forma mais ampla, com os produtores culturais, os artistas, a comunidade, os territórios. Todos vão contribuindo de alguma forma nessa construção.