Frequentador e pesquisador no Museu Afro Brasil há cerca de 12 anos, o curador, gestor cultural e doutorando em Antropologia Hélio Menezes, 37, assumiu a direção artística do “mais brasileiro dos museus” – como afirma –, há cerca de cinco meses, após ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo (2023), curador de Arte Contemporânea do Centro Cultural São Paulo (2019-2021) e cocurador da destacada mostra Histórias Afro-Atlânticas (2018), no MASP e Instituto Tomie Ohtake, entre outras. Quase dois anos após a morte de Emanoel Araujo (1940-1922), criador e diretor desde o início do Museu Afro Brasil (que agora leva também seu nome), Menezes chega à instituição no ano em que ela completa 20 anos, com uma série de planos para intensificar a conexão com a produção contemporânea – tanto artística quanto intelectual – e criar canais mais intensos e efetivos de diálogo com o público e a sociedade.

Para Menezes, o Museu Afro Brasil foi um grande “berçário”, “muito capaz de gerar uma geração de profissionais”, mas não foi capaz de mantê-la por perto ao longo do tempo. Criou e fomentou um campo de debate sobre a riqueza da produção afro diaspórica, sobre o racismo e decolonialismo, mas perdeu algum protagonismo no debate. Com uma coleção vasta e extremamente rica, de cerca de 10 mil obras de arte e mais milhares de livros e documentos, o museu já passou por algumas mudanças expográficas desde a entrada de Menezes, mas sempre respeitando o legado e os conceitos desenvolvidos por Emanoel. Entre elas, “arejou” o espaço com a retirada de alguns objetos, especialmente àqueles ligados a violência mais explicita da escravidão – como peças de tortura, por exemplo. “Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, mas de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor.”

Vinculado à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, com um repasse anual de R$ 13 milhões, e visitação de 150 mil pessoas em 2023 (e 100 mil este ano, até o momento), o museu apresenta atualmente, além de um pequeno espaço de tributo a Emanoel, quatro mostras temporárias: “Entre linhas: Aurelino dos Santos e Rommulo Vieira Conceição”, “As vidas da Natureza-Morta”, com curadoria de Claudinei Roberto da Silva, “Artistas contemporâneos do Benin”, a partir do acervo da instituição, e “Wagner Celestino: caminhos do samba”.

A arte!brasileiros esteve no museu para entrevistar Hélio Menezes, que falou sobre estes e outros assuntos, entre eles a localização de um “museu disruptivo” em meio a uma das regiões mais ricas da cidade e os planos para a celebração dos 20 anos. Ao longo de um ano, a partir de outubro, a instituição organizará uma série de encontros, debates e mostras, relacionados à sua história. Entre elas, “A história do poder na África”, com curadoria de Vanicléia Silva-Santos, e uma grande mostra a partir do acervo de “arte popular” do museu – chamada também arte naif, arte bruta ou arte do inconsciente. “São expressões que serão debatidas, porque sempre colocam uma adjetivação à palavra arte, quase como uma maneira de negá-la”, afirma ele. O fato é que muitas exposições relembrarão mostras passadas, que ajudaram a constituir o acervo do museu, enquanto outras pretendem apontar caminhos para seu futuro.

Por fim, ao falar da potência crescente de uma produção intelectual e artística negra no país – “não se consegue mais falar com propriedade sobre a produção artística contemporânea se não se passa pela produção brasileira” – Menezes também não se ilude quanto ao papel da arte, por si só, como solução para problemas estruturais da sociedade. “Essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos”, conclui.

Leia a entrevista completa abaixo.

ARTE!✱ – Hélio, você assumiu a diretoria do Museu Afro Brasil há quase cinco meses. Queria começar perguntando como tem sido o trabalho, um pequeno panorama. O que já foi possível entender, fazer e planejar?

Hélio Menezes – Talvez seja importante voltar um pouquinho no tempo. Eu comecei a minha pesquisa sobre o museu há cerca de 12 anos, a partir sobretudo de investigações de cunho acadêmico. Então, dediquei meus anos de graduação, iniciação científica, mestrado e doutoramento ao próprio museu – à curadoria do Emanoel e ao Museu Afro Brasil. A minha pesquisa inicial se deu sobretudo a partir das exposições curadas e organizadas pelo Emanoel que culminaram no Museu Afro Brasil, 15, 20 anos antes de sua abertura. Não necessariamente ele tinha isso em mente, esse objetivo predeterminado de que elas criariam o museu. E pesquisar essas exposições me levou à conclusão de que elas construíram o acervo da instituição. Então, o museu é uma espécie de reunião dessas experiências curatoriais e pesquisas que lhes antecederam. Ou seja, de alguma maneira, eu já conhecia com profundidade as histórias da composição de boa parte deste acervo.

Então isso acabou sendo uma um ponto facilitador para mim, porque se trata de um museu bastante complexo, cujas histórias remontam a décadas antes da sua própria fundação, à formação da coleção pessoal do Emanoel, à formação institucional do museu. É uma instituição bastante desafiadora para quem não a conhece, pelo seu tamanho, pela sua complexidade, por abordar uma série de temas e de artistas que não figuravam – e muitos ainda não figuram – nos principais manuais, livros ou cursos de história da arte do Brasil. É um museu disruptivo. A sua coleção é disruptiva e, por isso, necessariamente demanda do frequentador, do interessado, da interessada, um engajamento, inclusive emocional, mais intenso, mais denso.

E nesses cinco meses eu me concentrei especialmente, em primeiro lugar, em ouvir os funcionários do museu, das diferentes áreas. Foram semanas de muita escuta, leitura dos relatórios e dos organogramas. Isso me permitiu criar um diagnóstico dos desafios mais urgentes e daqueles desafios que precisam ser enfrentados com o tempo. E que diagnóstico é esse? Eu diria que o museu tem a necessidade mesmo de uma série de modificações que são de ordem operacional, de ordem interna, que diz respeito à criação de fluxos de trabalho, protocolos, de redesenho de um organograma de modo a ser um museu mais funcional. Há uma série também de pesquisas, sobretudo de documentação, de história das exposições, história das obras, trajetória da formação do acervo, que precisam ser tornados públicos, que precisam estar disponíveis à consulta e a pesquisadores. Então, há toda uma dimensão pouco visível ao público que me tomou boa parte do tempo e que certamente tomará os próximos anos.

Mas há uma outra dimensão que demandou a minha atenção ao longo dos cinco meses iniciais, que aí já é mais um trabalho visível ao público, que diz respeito a uma remodelação da exposição de longa duração; diz respeito a organizar um programa curatorial e cultural para o museu; e também de repensar conceitualmente. Eu acho que esse é o maior desafio: como repensar conceitualmente o propósito, a missão do museu, o seu acervo, os seus modos de exibição.

ARTE!✱ – Você teve essa experiência recente de ser um dos curadores da 35ª Bienal de São Paulo? Claro que uma bienal tem uma duração específica, um recorte curatorial específico e grandes holofotes sobre ela, é muito diferente da rotina de dirigir um museu, seu dia a dia. Ainda assim, queria saber se você acha que traz, aqui para o Museu Afro Brasil, aprendizados específicos do que viveu ali, coisas que podem ser valorosas e úteis no trabalho no museu?

Eu diria que não só a Bienal, mas toda minha trajetória anterior de alguma maneira pavimentou essa minha chegada aqui, ainda que não fosse de modo programático. Então é claro que a Bienal tem uma dinâmica diferente da rotina de museu, mas em algum sentido bastante aproximado. O museu é muito mais desafiador, mas de alguma maneira essas duas experiências profissionais se aproximam, na medida em que numa bienal você quase constrói uma instituição inteira, por três meses. Tem que pensar em todos os aspectos. E na 35ª edição a gente se preocupou especificamente com isso, não somente da exposição stricto sensu, mas de todo o programa educacional e público; da comedoria etc., dentro de uma preocupação curatorial. Então, de alguma maneira, fazer uma bienal é quase construir uma instituição.

ARTE!✱ – Um museu temporário…

Sim, um museu temporário, por assim dizer. Agora, é claro que o museu exige outras especialidades para o seu funcionamento. Há um cuidado, por exemplo, de salvaguarda, um cuidado de conservação de obras, sobretudo pensando em conservação preventiva, diante de um espaço como o nosso, com 12 mil metros quadrados, dentro de um parque. Quer dizer, então tem outras atribuições muito mais complexas. Mas, por exemplo, eu acho que eu trago mais até uma experiência em termos de gestão em aparelho público pelo tempo que eu passei no Centro Cultural São Paulo, por exemplo, do que propriamente a Bienal.

ARTE!✱ – Quando você assumiu o museu, uma das coisas que disse é que pretendia trazer um olhar mais contemporâneo para a programação e para o acervo. Queria que falasse um pouco mais sobre isso, o que seria esse olhar contemporâneo?

Eu penso que ao longo dos 20 anos do museu ele foi uma espécie de berçário, de celeiro, dos mais importantes profissionais da arte e da cultura. Sobretudo profissionais negros da arte, da cultura e da pesquisa tiveram suas trajetórias marcadas pelo Museu Afro Brasil. Seja como pesquisadores externos, como pesquisadores da casa, funcionários, pessoas contratadas para atividades de maior ou menor duração… alguns dos nomes mais importantes da curadoria, da pesquisa, de artistas e de gestores de instituições da minha geração passaram pelo museu. O que me chama a atenção é que a instituição foi muito capaz de gerar essa geração de profissionais, mas não foi capaz de mantê-los. Esses profissionais estão hoje nas mais importantes instituições do Brasil e do mundo, mas quase nunca aqui.

Então, trazer uma maior contemporaneidade ao museu significa aproximar estes profissionais, que queremos que estejam cada vez mais envolvidos, mas é também algo sobre a composição do próprio acervo.  Ao longo desses últimos 20 anos, o Museu Afro Brasil foi uma das mais importantes instituições para fomentar um debate sobre decolonialidade, sobre produção negra contemporânea. Foi, e segue sendo, um museu que exerce uma decolonialidade muito antes desse termo estar em voga, mas a coleção, embora tenha sido alimentada e ampliada ao longo desses 20 anos, apresenta uma lacuna sobretudo dessa produção brasileira contemporânea, de autoria negra, que hoje está nas mais importantes coleções de instituições do mundo, mas não aqui.

Então trazer mais a contemporaneidade ao museu diz respeito a trazer os pensamentos mais contemporâneos sobre expografia, sobre curadoria, sobre produção artística, sobre historiografia brasileira. Esse é também um museu muito preocupado com a história e nesses 20 anos houve um florescimento da intelectualidade negra, um aumento expressivo das pesquisas historiográficas de Brasil, que precisam estar manifestas também no museu.

ARTE!✱ – Sobre o acervo, existe então um foco em aquisições neste momento?

Sim… no Museu Afro Brasil, quando falo em acervo, estou falando de três acervos que compõem a nossa coleção como um todo: um acervo museológico, um acervo documental e um acervo bibliográfico. Então, é nessas três dimensões que a contemporaneidade deve se expressar. Isso passa certamente por aquisições de novas obras. Ou seja, por estratégias para aquisição de novas obras, um diálogo mais aproximado com os artistas; uma abertura maior da nossa biblioteca, que é uma biblioteca extraordinária, mas que deve voltar a ocupar um lugar de maior interlocução com autores, com editoras, ou seja, uma frente muito ampla de expansão e revisão do acervo. E há todo um material que precisa ser continuamente renovado em termos de informações, de legendas e informações técnicas. São obras tanto documentais, quanto museológicas, quanto bibliográficas, que precisam ser continuamente alimentadas com informações sobre suas origens de doação, origem de chegada ao museu e assim por diante. Dizem respeito às características da coleção, retraçar essa história é uma missão continuada do museu, com um acúmulo de 20 anos para ser feito também.

ARTE!✱ – Tem uma citação sua muito interessante em entrevista recente à Veja: “Este é o Museu Afro Brasil e não o Museu da escravidão. Estamos buscando estratégias para falar da violência sem reencená-la. A denúncia continua a fazer parte, mas não é mais protagonista”. Isso tem a ver com o olhar contemporâneo que você quer focar? Pode falar um pouco mais…

Sim, todas essas questões fazem parte de uma visão mais ampla sobre o museu. Eu acho que quando digo que em 20 anos a historiografia, os debates curatoriais e artísticos se desenvolveram exponencialmente, muitas dessas reflexões, muitos desses debates miram o Museu Afro Brasil, naturalmente, nos demandando o que fazer diante das novas reflexões. Uma delas, de fundamental importância, diz respeito a essas imagens de controle, instrumentos de tortura, uma série de elementos que muitos museus, sobretudo os museus que têm uma certa preocupação com acervos negros ou que se denominam museus negros, muitas vezes têm as suas coleções em número expressivo. Eu acho que, embora esses objetos e imagens de controle colonial, de reencenação da violência, estejam muito presentes no nosso cotidiano como brasileiros – em grandes monumentos públicos, aqui mesmo próximos do museu, por exemplo; ou em cafeterias no centro de São Paulo é muito comum você observar reproduções de escravizados em situação de extrema violência colhendo café –, quer dizer, embora exista uma normalização dessa violência racial, não me parece que o museu seja um lugar para a reencenação disso. Acho que é um lugar para a desconstrução da naturalização da violência racial.

E, portanto, quando eu afirmo que este não é um museu da escravidão, com isso eu quero afirmar que a história afro brasileira ou afro diaspórica, de maneira mais ampla, não começa na escravidão – tem toda uma história que lhe é anterior –, não termina com o fim da escravidão e tampouco se resume a ela. É fundamental que outros aspectos da vida negra, que outros aspectos da cultura brasileira, da produção estética e artística afro brasileiras, encontrem espaço no museu para além de uma narrativa sobre a escravidão. A retirada do espaço expositivo, por exemplo, de alguns objetos de tortura, de alguns objetos de violência racial, abre espaço para uma discussão, para um debate. Esses objetos seguem disponíveis para consulta, tanto virtual quanto presencial, para quem quiser. Mas eles estão no momento retirados da exposição permanente e essa foi das primeiras modificações que fizemos nesses primeiros meses de trabalho na exposição de longa duração. Para abrir literalmente espaço para mais narrativas, que não tentem subsumir a história afro brasileira ou afro diaspórica à escravidão. Não se trata de negá-la, se trata de enfrentá-la a partir de estratégias que não busquem reencenar a dor, mas falar dela.

ARTE!✱ – Vivemos, de alguns anos para cá, um contexto em que pautas ligadas às questões identitárias, decoloniais e antirracistas ganharam grande destaque no mundo das artes e da cultura. Seja nos debates, pesquisas, na programação de instituições e até mesmo no mercado de arte. É curioso pensar, no entanto, que em meio a isso o Museu Afro Brasil – que exerce há 20 anos um trabalho intenso e que possui este acervo grandioso – não parece ter tido o protagonismo que merecia, ou poderia, ter. Já falamos sobre o distanciamento de pessoas “criadas” no museu, por exemplo. Mas eu gostaria que você falasse um pouco mais do assunto. Enfim, você concorda com este diagnóstico e, se sim, o que é possível fazer?

Essa é uma pergunta intrigante. Há mesmo algo paradoxal nesse lugar, que é de entender como que o museu foi proponente muito antes do tempo desses debates que hoje são centrais e incontornáveis em todo o mundo, mas não assumiu o protagonismo dentro deles posteriormente. E me parece que só é possível tatear uma resposta a esse paradoxo à maneira em que a gente observa que o museu, por uma série de questões, não se abriu aos canais de comunicação mais amplamente com a sociedade. Então me parece que só se enfrenta esse paradoxo aumentando esta comunicação com a sociedade e com essa nova historiografia, novos pensamentos curatoriais, com essas abordagens antirracistas e decoloniais. Quem são os atores? Quem são os pensadores? Quem são os artistas que estão nesse campo?

Quando você cita Histórias Afro-Atlânticas, que eu fiz parte, você me fez lembrar que, meses antecedendo a abertura dessa exposição, eu estava visitando aqui o museu e o Emanoel Araujo perguntou: “Hélio, por que você está fazendo essa exposição no MASP e não aqui?”. E eu respondi para ele: “Por que é que eu estou fazendo a exposição no MASP e não aqui?” Eu repeti a pergunta como resposta. Demos risada e não havia resposta possível a ser colocada naquele momento. Mas eu acho, agora, seis anos depois, que é por essa dificuldade que o museu durante alguns anos enfrentou nos seus canais de comunicação justamente com esses atores todos que ele próprio ajudou a fomentar, o que não o colocou como um protagonista natural neste momento. E é esse lugar de protagonismo que estamos recuperando.

ARTE!✱ – Agora, para além desse canal de comunicação com artistas, pesquisadores, curadores etc., penso no próprio público. Sabemos que a participação, a interação e as dimensões educativas de modo geral são cada vez mais relevantes nos museus, que há tempos deixaram de ser apenas espaços de fruição. Neste sentido, como aproximar o público e trazer mais gente para cá?

Neste aspecto, uma coisa é importante destacar. O Museu Afro Brasil tem um público extraordinário, bastante expressivo. Então, mesmo com esse paradoxo do qual falamos, ele nunca deixou de despertar interesse, procura e demanda das pessoas. O que me parece um objetivo é aumentar a variabilidade desse público e, também, trazer mais pessoas, claro. Nós temos um público bastante frequente sobretudo de pesquisadores e estudantes, uma quantidade de frequentadores do Parque Ibirapuera e um certo público também estrangeiro. Isso é muito interessante, você ouve outras línguas sendo praticadas neste museu diariamente. Muita gente vem ao Brasil e quando é perguntada sobre qual museu quer conhecer, é o Museu Afro Brasil. Porque é o mais brasileiro dos museus. Agora, esse público pode ser ainda ampliado e, sobretudo, não só na dimensão de frequentador, mas de interlocutor. Para que estas pessoas, estes diletantes, visitantes, pesquisadores ou simplesmente interessados por alguma exposição ou pela história do Brasil e pela arte brasileira, também possam se comunicar ao museu. Então não é só uma dimensão de expansão de público, mas de uma qualificação da instituição, para que a gente possa ter uma escuta ainda mais cuidadosa, ainda mais acolhedora.

Por exemplo, este ano completam-se 13 anos de um programa chamado Singular Plural, que é um programa de acessibilidade do museu. Além da dimensão da acessibilidade ser um ponto hoje central, o fato de ser um programa longevo tem trazido uma enorme, uma significativa expansão de um público com necessidades especiais – sejam cognitivas, físicas, motoras, sejam pela idade. Para mim é uma alegria ver o museu ampliando a participação desse público. Então quando eu falo de abrir canais de comunicação com a sociedade, isso diz respeito a uma ampliação de público, sem dúvidas, mas diz respeito também a uma melhor qualificação dos canais do museu para a escuta desse público, para relacionar-se com esse público.

ARTE!✱ – Isso passa também pelas redes sociais?

Sim. Isso passa pela comunicação do museu, que tem que ser reestruturada. Passa pelo site, pelas redes sociais, por uma comunicação que tem que ser mais estratégica, mas também por uma comunicação que possa servir melhor à produção de conhecimento. Nós estamos diante de um acervo que é tão extraordinariamente rico, com peças que, mesmo em exibição, quando destacadas, são iluminadas por informações valiosas. Então isso também tem que ser melhor extrovertido. Museus são espaços importantes de produção de conhecimento. Este daqui, em sendo, repito, o mais brasileiro dos museus, com um acervo museológico de entre oito e 10 mil peças, mas, contando os acervos documentais e bibliográficos chegamos a mais de 20 mil obras, há um pedaço literal do Brasil aqui. E há muita produção de conhecimento que se realiza internamente, que precisa ser melhor divulgada, melhor extrovertida.

ARTE!✱ – Agora, pensando no espaço físico do museu, ele está em um lugar muito especial da cidade, num edifício do Niemeyer, no parque mais importante de São Paulo, mas ao mesmo tempo um tanto afastado da vida urbana mais central – ao contrário de museus como MASP, IMS, Pinacoteca etc. Não há uma estação de metrô que sai no parque, por exemplo. Além disso, ele está cercado de bairros extremamente elitizados. Como lidar com isso e tentar trazer um público diverso?

Essa pergunta é excelente, porque a localização do museu já é uma de suas obras mais importantes. Ela já começa a afetar, digamos, já tem efeitos no museu por si só. Estamos falando de um museu negro, o Museu Afro Brasil, dentro de um conjunto de bairros onde se concentra a maior parte da riqueza da cidade, e de uma riqueza racializada, que é uma riqueza sobretudo branca. Para termos um comparativo, o bairro de Moema, que é um bairro contíguo ao museu, tem a menor população relativa negra entre todos os bairros de São Paulo. Em torno de 5%. E, no entanto, ainda assim, o museu é espaço dentro dessa zona, entre aspas, nobre, onde as negritudes, as periferias, encontram casa, encontram um local de acolhida e de expressão.

 Então a localização do museu no parque carrega mesmo certa ambiguidade. De um lado é um local extremamente nobre, um parque bonito, com um prédio histórico, de um arquiteto histórico, por outro lado, não há transporte público e facilidade para chegada ao parque, as linhas tanto de ônibus quanto de metrô não são suficientes e geram algum tipo de empecilho – também em termos de acessibilidade isso é uma dificuldade. O que podemos fazer e estamos fazendo, e isso acontece desde antes da minha chegada, é ir aumentando a capacidade de conversa com os gestores, tanto públicos quanto privados. Hoje, o acesso ao Parque Ibirapuera é controlado por uma organização privada, então o museu negocia, conversa – assim como os demais museus que estão situados no parque –, mas não temos hoje uma capacidade autônoma de alteração desses fluxos em relação a transporte, a acesso.

E, nesse meio tempo, buscamos desenvolver estratégias, sobretudo de programação cultural, de ações educativas e de programações culturais que dialoguem com os anseios mais diversos presentes na sociedade, inclusive daqueles que não moram nos bairros em que o museu está interligado. Então, eu acredito que uma programação curatorial, educativa e cultural robusta, interessante, tem efeitos positivos nesse sentido. E temos colhido resultados, como ver as nossas exposições cheias tanto na abertura quanto nas semanas subsequentes. Abrimos a exposição do Entrelinhas com o Rommulo Vieira Conceição e o Aurelino dos Santos, abrimos a exposição Caminhos do Samba, com as fotografias do Wagner Celestino, As vidas da Natureza-Morta, que é uma exposição curada pelo Claudinei Roberto, e a exposição dos artistas contemporâneos do Benin, que foi feita a partir do acervo do próprio museu e vemos um público significativo.

ARTE!✱ – O Museu Afro Brasil passou a se chamar Museu Afro Brasil Emanoel Araujo após a morte do Emanoel. Queria aproveitar pra pedir pra você falar um pouco da importância dele. Nesse caso, menos como artista, que já sabemos, mas como criador, curador e gestor desse museu, um grande promotor da arte afro no país…

Emanoel é uma figura fundamental na história da arte brasileira, na história das instituições museais do Brasil, com passagens pelo Museu de Arte da Bahia e pela Pinacoteca – isso antes da criação do Museu Afro Brasil. Eu acredito, tenho certeza, de que a relevância do Emanoel está muito bem documentada e sedimentada, seja ele como artista, seja ele como responsável pela criação de um espaço como este museu ou pelo tempo de gestão dele em outras instituições pelas quais ele também passou. Penso que o Museu Afro Brasil, quando adota muito orgulhosamente o nome do seu fundador como parte do seu nome é uma um reforço desta homenagem e desta relevância do Emanoel no cenário nacional e também internacional. O único ponto que eu adicionaria a esse coro, ao qual me filio, de entender e respeitar a relevância fundamental do Emanoel, é de que o Museu Afro Brasil é, sim, resultado de um empenho pessoal dele, o que é inquestionável, mas eu o vejo como uma espécie de capitão, digamos assim, alguém que capitaneou uma luta que é também coletiva e histórica. Quer dizer, esse museu é resultado de uma luta negra.

Eu me dediquei, por exemplo, a entender quais foram as iniciativas de institucionalização e criação de museus de arte afro brasileira e, claro, podemos retroceder à criação do Museu de Arte Negra, pelo Abdias Nascimento, nos anos 50; podemos voltar ao Museu Afro-Brasileiro, em Salvador, cuja fundação remonta aos anos 70; a gente pode pensar em experiências museais como o Museu de Laranjeiras, em Sergipe, o Museu do Negro, no Rio de Janeiro… quer dizer, há uma série de iniciativas de diferentes portes, com diferentes fôlegos, de musealizar a arte negra ou a história brasileira a partir da perspectiva negra. O Museu Afro Brasil é, sem dúvida, o maior logro dessa luta, mas eu acho que é importante localizar o museu nesse histórico amplo de lutas negras que encontrou em Emanoel essa figura de proa, essa figura capaz de concatenar, num certo momento histórico, a criação do espaço como esse que fica de legado para todos nós.

ARTE!✱ – E 2024 marca os 20 anos do museu. Vocês pensam em fazer algum tipo de celebração, alguma exposição… Algo para marcar a data?

Sim, 20 anos não são 20 dias… e por isso pedem da gente um momento de reflexão desta caminhada da instituição, mas também, complementarmente, nossa visão quanto ao futuro, quanto aos próximos 20, 40, 200 anos do museu. E, portanto, o que a gente está preparando não será uma comemoração pontual, mas aproveitaremos todo o ano para homenagear as duas décadas e, ao mesmo tempo, apontar algumas direções daqui para frente. Então, estamos organizando uma série de exposições, mas também de seminários e de publicações que vão sempre lidar com essa dobradiça: como olhar para trás para mirar para frente. Isso inclui, por exemplo, um seminário de reflexão sobre o museu; o convite a uma série de pesquisadores das diferentes áreas que compõem a exposição de longa duração do museu, para que possamos repensar, juntos, essa reelaboração, essa reapresentação da nossa própria exposição de longa duração e por aí vamos.

ARTE!✱ – Para finalizar, uma pergunta um pouco mais geral, mas que obviamente repercute no que se pensa e se faz aqui no museu. Ao mesmo tempo que temos este destaque maior dado às pautas das quais falamos, sobre decolonialidade e antirracismo, parece haver também um aumento de ataques, no Brasil, à aspectos da cultura afro, como as matrizes religiosas, por exemplo. Há também uma extrema direita racista que parece ter saído do armário e se mostra muito poderosa. Te parece paradoxal isso? Ou justamente uma coisa pode ser uma resposta à outra…. Como você vê esse momento?

Eu me lembro que nós fechamos o último dia de exibição de Histórias Afro-Atlânticas no dia da eleição de Jair Bolsonaro. E para mim já foi uma sensação bastante curiosa a de visitar o último dia da exposição com uma grande manifestação pró-Bolsonaro na Avenida Paulista. Essa situação que você descreve que é de, ao mesmo tempo, um crescimento do interesse e mesmo de uma produção mais volumosa, mais robusta, de maior qualidade e   diversidade de autorias negras, encontra, no mesmo tempo e espaço em que vivemos, uma contemporaneidade com um recrudescimento de uma violência racial. Ou de uma “dívida impagável”, para usar os termos da Denise Ferreira da Silva. Eu acho que essa dívida que é social, que é econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora esse campo seja fundamental para a elaboração de novas visões, de uma elaboração mais crítica a partir dos sentidos.

A arte nos possibilita redimensionar uma série de questões que rebatem no mundo social e abordá-las a partir de um outro prisma, a partir de uma outra sensibilidade. Mas acho que devemos cobrar das políticas públicas o que diz respeito a políticas públicas. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução. E eu acho que é nessa situação que a relevância do Museu Afro Brasil se torna ainda mais exponencial. A relevância dele num contexto de recrudescimento de violência racial, num contexto de aumento – ou pelo menos de uma maior discussão e uma maior visibilidade – de casos de racismo no Brasil e no mundo, torna ainda mais importante o contraponto que este museu exerce há 20 anos.

Agora, não me parece necessariamente uma contradição que esse cenário aconteça. Porque não é à toa que muitas vezes nos momentos de maior violência é onde nós visualizamos uma maior resistência e uma exigência de maior criatividade, de criação de estratégias para fazer frente a esses avanços autoritários, conservadores, racistas, classistas. Então, o que me parece é que há uma movimentação artística no Brasil que foi ainda mais incentivada diante das adversidades. Isso não é um elogio às adversidades. Eu acho que se com pouco o Brasil já é capaz de fazer o que faz na produção de arte contemporânea, de modo a hoje pautar os debates de arte em todo o mundo, se com um pouco, com restrição de verbas, com restrição orçamentária e um cenário político desfavorável, ainda assim o Brasil se coloca como protagonista – e o Brasil negro, em especial –, imaginemos o que pode vir a ser um país que elogia a sua produção artística. Um país que apoia os artistas e as instituições de arte ao invés de persegui-las, censurá-los ou inibi-las.

 


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