A diretora do CCSP, Erika Palomino. Foto: Divulgação

Espaço de acolhimento, convivência e respeito entre os diferentes; palco para as manifestações artísticas e culturais mais inovadoras, disruptivas, ousadas e multidisciplinares; lugar democrático, protegido de censuras, com protagonismo cada vez maior das minorias em sua programação; no contexto político atual, lugar de resistência. Este é o Centro Cultural São Paulo desejado pela jornalista Erika Palomino, diretora do espaço desde fevereiro deste ano.

Convidada para assumir o cargo por Alê Youssef, secretário de Cultura da Prefeitura de Bruno Covas (PSDB), a jornalista tem colocado em prática seu projeto ao lado dos cerca de 200 funcionários do espaço. Os dados mostram, em 2019, um aumento de cerca de 30% no público atendido pelo CCSP em relação ao mesmo período de 2018, o que parece sinalizar que as diretrizes estão sendo bem recebidas. “De qualquer modo, nós estamos mais preocupados em apresentar uma programação de qualidade, moderna e inovadora, do que em aumentar ainda mais o público”, afirma ela.

Sabendo que sua permanência no cargo está ligada à uma gestão municipal específica – que pode ou não ser renovada nas eleições de 2020 –, Palomino diz ter pressa em realizar o máximo de projetos possível, além de promover iniciativas de impacto duradouro como o aumento dos acervos (de livros ou obras de arte), a consolidação do trabalho das novas curadorias (Moda, Performance e a “reativada” Dança), a manutenção dos editais e até mesmo a reforma dos banheiros.

“Nossos focos desde o início foram a produção e difusão de conhecimento crítico. Então o que a gente queria era ter mais artistas negros e negras, pessoas trans, valorizar a diversidade e representatividade, ter mais mulheres na equipe e nos palcos”, diz ela. “Temas que em outros lugares poderiam ser polêmicos, para nós não são, fazem parte do nosso dia a dia”, completa, ressaltando que o CCSP vai receber neste mês de outubro o espetáculo da companhia A Motosserra Perfumada que foi censurado pela FUNARTE.

Projetado por Eurico Prado Lopes Luiz Telles nos anos 1970 e inaugurado em 1982, o CCSP segue renovando seu público e atraindo grande quantidade de jovens e adolescentes. O espaço abriga, até dezembro, a 12a edição da Bienal de Arquitetura e prepara uma programação multidisciplinar intensa para o próximo ano, quando recebe uma das exposições da 34a Bienal de São Paulo. Através de sua associação de amigos (AACCSP), pretende ainda captar recursos com as leis de incentivo para ampliar suas atividades.

Leia a seguir a íntegra da entrevista com Palomino, realizada em sua sala no Centro Cultural São Paulo:

ARTE!Brasileiros – Você completa agora oito meses à frente do CCSP. Queria começar perguntando como você avalia este período de trabalho.
Erika Palomino – Esses meses passaram muito rápido, porque as coisas aqui acontecem com muita intensidade. São milhões de desafios, alguns que eu esperava, outros não. São duzentos funcionários, 46.500 metros quadrados… Então, mesmo que eu já conhecesse o CCSP, entrar aqui como diretora e ter a dimensão da complexidade e do tamanho da operação foi, sem dúvida, um tanto intimidante. Mas eu tinha desde o início o apoio do secretário de Cultura (Alê Youssef) e o suporte da Secretaria, no sentido de que eu teria todas as ferramentas, informações e equipes me apoiando, até porque eu não tinha uma experiência prévia em administração pública. E em relação a implementar um projeto curatorial e resgatar a vocação do CCSP de ser um espaço relevante para as manifestações artísticas e culturais mais inovadoras, disruptivas e ousadas – que é o nosso projeto –, isso eu tinha certeza que seria capaz de fazer. Sobretudo no tocante à diversidade, representatividade, que são temas que ao longo da minha trajetória de 30 anos como jornalista se mantiveram presentes. Então me foi dada autonomia para compor um corpo curatorial que pudesse refletir, em várias áreas artísticas, tudo que está acontecendo no mundo, no Brasil, em São Paulo… Esse acolhimento foi essencial para que eu pudesse implementar um novo projeto para o CCSP.

Espaço interno do CCSP. Foto: Sossô Parma

Houve muitas mudanças na equipe?
Não, o mínimo possível. Eu trouxe três novas curadorias: de Moda, com a Karlla Girotto, de Performance, com o Mauricio Ianês, e retomamos a curadoria de Dança, com a Sônia Sobral. Estas se somaram às curadorias já existentes de Música, Cinema, Teatro, Teatro Infanto-juvenil, Literatura, Artes Visuais – agora com o Hélio Menezes ao lado da Adelaide Pontes –, Bibliotecas e Ação Cultural. E o Jurandy Valença entrou como diretor adjunto, porque eu não gosto de fazer as coisas sozinha, acho que essa troca é fundamental. Por fim, eu trouxe também o Rodolfo Beltrão para a supervisão de Curadorias.

Em texto publicado na Folha de S.Paulo em junho deste ano você afirmou que o CCSP vivia, até recentemente, uma certa letargia, uma crise de identidade. Queria que você explicasse um pouco o que quis dizer com isso e quais as diretrizes adotadas para combater esse quadro.
Eu sentia que faltava uma certa atenção com o CCSP, que é um equipamento extraordinário, muito potente. E eu senti, quando entrei, que as coisas andavam um pouco no automático, com as curadorias dialogando pouco entre elas, com os programadores não sabendo exatamente o quanto podiam gastar. A gente instalou, por exemplo, a ideia de ter as curadorias atuando de forma complementar e transversal, o que seria natural até pela vocação multidisciplinar do CCSP, mas nem sempre acontecia. E agora estamos criando esse ambiente colaborativo, com os curadores conversando entre si, trocando ideias e às vezes juntando orçamentos para viabilizar um ou outro projeto. E isso tudo tem a ver com as próprias diretrizes da Secretaria, já que o Alê Youssef, desde que me apontou como diretora, destacou o objetivo de resgatar essa vocação de vanguarda, inovadora e experimental do CCSP, no sentido de ser o equipamento da Secretaria que fica com essa missão de promover as linguagens mais ousadas e inesperadas, sempre com preços acessíveis ou gratuitamente.

Em relação a essa crise de identidade, muita gente criticou eu ter falado isso, como se eu estivesse falando mal dos diretores anteriores. E não era, na verdade, em relação a isso, porque cada um sabe que gestão quer fazer, que projeto quer implementar. O que eu disse foi mais no sentido de dar uma nova direção, dar um “chacoalhão” de energia que eu senti inclusive que a equipe queria. E os nossos focos desde o início foram a produção e difusão de conhecimento crítico. Então o que a gente queria era ter mais artistas negros e negras, pessoas trans, valorizar a diversidade e representatividade, ter mais mulheres no time, nos palcos… Isso foi um eixo muito claro para nós em 2019, que essas preocupações fizessem parte do dia a dia das curadorias, não só em momentos esporádicos como “o mês da mulher”, por exemplo. E isso significa uma vontade de transformar o CCSP em um lugar de acolhimento e resistência para a população e para a classe artística. Então esse é o nosso projeto, para que esse seja um lugar moderno e relevante para a cidade.

Essa questão da multidisciplinariedade, da mistura de linguagens, está muito presente atualmente no debate cultural, na prática dos artistas. E o CCSP, por ser o primeiro centro cultural multidisciplinar da cidade, é de algum modo pioneiro neste sentido. Enfim, queria que você falasse um pouco mais sobre essa ideia de trabalhar as curadorias de modo multidisciplinar, especialmente em um lugar que tem isso em seu DNA, em suas raízes.
Sim, o CCSP foi criado para ser um centro multidisciplinar, desde o início, mas agora é diferente, porque a coisa é transversal. Então essa ideia de a gente ter curadores e curadoras que se complementam e dialogam faz com que as fronteiras das programações sejam muito borradas. Então um coisa não é mais só dança, só teatro, só performance ou só literatura. A gente chacoalha essas fronteiras que dividem as áreas, incentiva que as pessoas aqui dentro se falem para criar projetos juntos. Um bom exemplo é o Terça Crespa, um projeto que é uma conjunção de literatura, teatro, dança, e que foi viabilizado unindo verbas das diferentes curadorias. E no ano que vem ele vai ser ainda mais potente, porque é um projeto extraordinário de produção de debates e conhecimento crítico em relação à produção de artistas negro e negras. Então esses projetos híbridos são extremamente ricos e interessantes, e acho que esse é o jeito contemporâneo de pensar.

A Biblioteca Sérgio Milliet, no CCSP. Foto: João Mussolin

Além da programação, dos espetáculos, existem outros trabalhos no CCSP que às vezes pouca gente conhece: editais, acervos, núcleo de memória… Como tem sido o trabalho com estes eixos?
Sim, o CCSP é muito grande, eu mesmo não sabia de várias coisas que acontecem aqui. Os acervos, por exemplo, vão ser um foco importante do nosso trabalho no ano que vem. O CCSP cuida de alguns acervos, entre eles a Coleção de Arte da Cidade, de onde vem alguns trabalhos que já estão aqui expostos como o da Leda Catunda e o da Lenora de Barros. E uma das primeiras exposições que vamos fazer no inicio do ano que vem é um recorte dessa coleção, que é da cidade, é da população. O outro acervo que é muito especial é a Discoteca Oneyda Alvarenga, que ano que vem vai fazer 85 anos e nós também vamos dar uma atenção especial. E tem as atividades que acontecem no Piso 23 de Maio, a Folhetaria, o atelier de artes gráficas, as aulas de Yoga, que acontecem no jardim. Tem um edital muito importante que é o do Programa de Exposições, que revelou um monte de artistas ao longo do tempo e que ano que vem comemora 30 anos. Então nós vamos fazer em 2020 uma mostra retrospectiva com 30 desses artistas, mostrando a importância deste edital que revelou gente como a Sandra Cinto, o Jonathas de Andrade, entre outros.

No texto na Folha você fala também sobre “tingir a programação do CCSP com as questões mais urgentes da agenda do país”. Que tipos de questões são essas? E como está sendo o trabalho em um momento político tão conturbado do país?
Para mim, o convite de estar aqui reflete muito a possibilidade de efetivamente fazer alguma coisa pela arte e pela cultura neste momento em que estamos vivendo. Essa possibilidade de estar no CCSP, sobretudo com essa orientação recebida do secretário de valorizar o artista, a produção artística, a liberdade de expressão, a liberdade de ser, isso é muito importante para mim e me fez mudar muito da minha vida para estar aqui. Agora, o próprio edifício que estamos é muito político e foi pensado arquitetonicamente, no período da ditadura, com essa vocação de garantir que aqui fosse um espaço de acolhimento e resistência. Hoje, tenho visto também a nossa capacidade de reagir rapidamente às coisas que acontecem. Então, por exemplo, a gente vai receber agora o espetáculo da companhia A Motosserra Perfumada, que foi censurado. E era um texto da companhia que já era suplente do nosso Edital de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos. Então poder receber esse espetáculo para nós é muito importante, assim como outros com temas que em outros lugares poderiam ser polêmicos, mas para nós não são, fazem parte do nosso dia a dia.

Pensando neste ambiente de ameaças à arte e à cultura, capitaneadas principalmente pelo governo federal, que tem criado não só empecilhos financeiros, mas também esses casos de perseguição e censura, a ideia é que o CCSP se firme como uma espécie de espaço de resistência?
Eu acho que, sim, tanto o público quanto a classe artística perceberam que nós estamos aqui, e que aqui existe esta proteção, esta liberdade, este acolhimento e essa resistência. E eu sinto que o espaço está vibrando, que há uma energia. Por exemplo, nós recebemos este ano o Festival Latinidades, que tinha ficado sem lugar para ser realizado, e foi lindo. O Festival Agora é que São Elas também aconteceu aqui, a Terça Crespa, a Virada da Cena Trans, entre outros.

Aula aberta de Yoga na cobertura do CCSP. Foto: Divulgação

Voltando a essa questão do edifício, a 12a Bienal de Arquitetura de São Paulo, que está exposta em parte aqui no CCSP, é intitulada “Todo Dia” e discute a ideia de cotidiano na arquitetura contemporânea. Parece muito coerente falar sobre o cotidiano justamente neste espaço, que é voltado não só para a realização pontual de grandes espetáculos e eventos, mas para as práticas do dia a dia das pessoas. Faz sentido pensar assim? Como você vê essa ideia de “cotidiano” no seu trabalho no CCSP?
As pessoas se sentem realmente livres aqui. Tem gente que brinca que o CCSP é o maior espaço de coworking do Brasil, porque tem um wi-fi ótimo, as pessoas vêm trabalhar e estudar. E aqui é um lugar incrível para você abrir o seu computador, carregar seu celular, caminhar, beijar, ler, ficar à toa, trazer seu equipamento de som, dançar. Porque as pessoas se sentem seguras, em todos os sentidos. E para nós, da equipe, trabalhar neste lugar é uma experiência única, porque dentro deste espaço arquitetônico você sente essa liberdade, sente essa proteção. A arquitetura é definidora do espírito de tudo que acontece aqui, desde a programação até como as pessoas se comportam aqui. As diferentes tribos que aqui habitam, os gêneros, os corpos que dançam, eles criaram suas próprias geografias no espaço, o que é um grande exercício de convivência e mostra que é possível as pessoas se entenderem, se respeitarem. E trabalhar aqui e poder ver as pessoas vivendo suas vidas, fazendo o que elas querem fazer, isso é muito lindo, inspirador.

Por fim, pensando no planejamento do trabalho, sua gestão no CCSP está vinculado a gestão de uma Prefeitura que pode ou não permanecer, dependendo do resultado das eleições de 2020. Como fica o planejamento do trabalho neste sentido, sabendo que pode ser interrompido daqui pouco mais de um ano?
Nós temos muita pressa para realizar as coisas, porque a gente lida com essa temporalidade de um modo muito concreto. Então queremos tentar realizar tudo o que a gente pode fazer de melhor neste período. E a gente toma muito cuidado para proteger coisas que consideramos importantes, como os editais, e projetos que trouxemos de volta, como o Peripatumen, que é um projeto de Filosofia para crianças. E as próprias curadorias de Moda e Dança, queremos que elas estejam tão consolidadas e absorvidas pela população que possam permanecer independentemente de quem esteja aqui dirigindo. E também queremos aproveitar a oportunidade de que estamos aqui para realizar coisas que fiquem, como a melhoria da Biblioteca, a reforma dos banheiros, a discussão sobre os acervos. Se não vamos poder realizar tudo até o fim do ano que vem, queremos poder levantar discussões que permaneçam depois.

1 comentário

  1. A direção da CCSP , pela jornalista Erika Palomino é, sem dúvida um mérito na vida cultural de São Paulo.
    Palomino traz consigo uma bagagem cultural contemporânea, com embasamento jornalístico de primeira linha.

Deixe um comentário

Por favor, escreva um comentário
Por favor, escreva seu nome