Na Página anterior, ALTO, residência artística criada por Marianne Soisalo, localizado nas montanhas de Alto Paraíso de Goiás.

Foi graças ao filme De olhos bem fechados (1999), de Stanley Kubrick, que a brasileira de família finlandesa Marianne Soisalo criou uma das residências artísticas mais radicais em meio à natureza exuberante das montanhas de Alto Paraíso de Goiás, a 230 km de Brasília, na Chapada dos Veadeiros.

Vivendo em Londres nos anos 1990, Mari, como é chamada pelos amigos, era uma das proprietárias do cabaré Madame Jojo, que foi alugado por Kubrick para gravar uma das cenas de seu filme, quando o personagem interpretado por Tom Cruise encontra o amigo músico.

“Com o dinheiro do aluguel ela comprou o terreno onde hoje funciona a residência”, conta o artista Rodrigo Garcia Dutra, que desde o ano passado divide a responsabilidade pela residência ALTO com Mari.

Apesar de o filme ter sido rodado no final do século passado, o terreno em Alto Paraíso foi adquirido apenas em 2008 e as construções tiveram início em 2011. Nesse meio tempo, Mari, ativista ambiental com mestrado em Zoologia pela Universidade de Cambridge, dormia no Bruce, seu Landrover, quando ia à região.

Obra de Manoela Medeiros

No local ela mandou construir duas casas em árvores distintas, planejadas e realizadas por um especialista alemão, uma delas a 30 metros de altura. A visão de lá é deslumbrante, com direito a araras azul sobrevoando a região. Essas casas são a base do Mariri Jungle Lodge, uma casa criativa e um espaço de projetos de permacultura. Foi junto com a artista Karolina Daria Flora e o artista espanhol Rafael Perez Evans, atualmente vivendo em Londres, que ela criou o ALTO, recebendo artistas tanto por inscrição pelo site www.altoartresidency.com quanto por convite, o que tem sido organizada por Dutra e Mariana Bassani.

O artista foi morar em Alto Paraíso, em 2017, para trabalhar no Instituto de Arte e Educação da Secretaria de Educação de Goiás e atuar com arte em escolas públicas e em um assentamento dos Sem Terra. “Depois de cinco meses no serviço público decidi sair, e como já estava em contato com a Mari, acabei me envolvendo na residência”, conta Dutra. Tendo se formado pelo Royal College of Art, Londres, em 2014, ele retornou ao Brasil para participar da mostra Histórias Mestiças, no mesmo ano, realizada no Instituto Tomie Ohtake, e acabou se envolvendo com os índios Huni Kuin, que lá estavam para um ritual de ayahuasca na obra de Ernesto Neto. “Por conta desse chá acabei decidindo voltar ao Brasil”, explica o artista.

ALTO é uma residência bastante particular, com tempo de estadia aberto, por estar voltada a artistas com envolvimento com a terra e com a sustentabilidade. É o caso, por exemplo, da escritora inglesa Olivia Sprinkel, que irá passar um tempo lá nos próximos meses, escrevendo sobre o aquecimento global,.

Contudo, não são apenas ativistas os convidados, mas também aqueles interessados na temática, como foi o caso dos artistas Manoela Medeiros e Romain Dumesnil, que passaram duas semanas por lá no final do ano passado, a convite de Dutra. Juntos, eles possuem o Átomos, um espaço de arte autônomo, no Rio de Janeiro. Já passaram pela residência a convite de Dutra as artistas Marcia Ribeiro, Julie Beaufils, Daniela Fortes e Bia Monteiro, sendo que, ainda em 2019, está programada a vinda do artista Ivan Grilo.

Obra do artista Romain Dumesnil

“Acho importante deslocar para fora dos grandes centros urbanos os espaços de produção e reflexão em arte”, defende Dutra.

Uma das obras criadas por Medeiros na residência é uma releitura de Caminhando, obra emblemática criada por Lygia Clark, em 1964, por sua vez uma apropriação da fita de Moebius, onde dentro e fora se constitui como mesmo espaço. Enquanto a obra de Clark é em papel, a revisão de Medeiros é com folhas de árvores de Bananeira.

Se por um lado a experiência em Alto do Paraíso é deslumbrante, por conta da diversidade das florestas e cachoeiras da região, ela também é desafiadora frente aos conflitos com o agronegócio. Foi ele, provavelmente, o responsável pelo incêndio ocorrido em outubro de 2017, que destruiu 35 mil hectares de vegetação do cerrado no Parque Nacional dos Veadeiros, logo após sua expansão em cerca de três vezes. Especula-se que o incêndio, iniciado ao mesmo tempo em muitos lugares diferentes, teria sido uma contraofensiva dos fazendeiros.

Com essa situação de polarização, o que afinal é o retrato do Brasil atual, ALTO se torna uma experiência de imersão em um santuário ecológico que, longe de ser mero turismo, é afinal outra forma de vivenciar os conflitos e dilemas mais centrais do país.

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