Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo

Por Bitu Cassundé
Chico da Silva desenhando em uma parede
Chico da Silva desenhando em uma parede, entre 1960 e 1975. Guache sobre tela. Cortesia Galeria Galatea, São Paulo

O Nordeste brasileiro foi um grande fornecedor de mão de obra para aventuras econômicas no Norte do Brasil: entre milhares de nordestinos fugidos da seca em direção ao Éden amazônico, a cearense Minervina Félis de Lima migrou para o Acre por volta de 1919 para trabalhar na extração da borracha. Minervina casou-se com um indígena peruano e com ele teve Francisco Domingos da Silva, nascido entre 1922 e 1923.

Ali, por meio das missões religiosas que acolhiam os fluxos migratórios, a “civilização branca” exercia sua violência em um modelo colonial de catequização, exploração e manipulação da fé. Nos primeiros dez anos de vida, o menino Chico da Silva viveu entre esse contexto opressor e a floresta, com suas lendas e liberdade.

Detalhe da obra de Chico da Silva.

Com pouca perspectiva de sobrevivência, Minervina regressa para sua cidade natal, Quixadá, no sertão do Ceará. Nessa paisagem árida, de subsistência castigada pela seca, o pai de Chico é mordido por uma cascavel, cujo veneno lhe é mortal. Após a perda, mãe e filho se assentam, por volta de 1940, em Pirambu, bairro periférico de Fortaleza.

É nos muros da Praia Formosa, em Fortaleza, que Chico da Silva compõe imagens de seres impossíveis e narrativas orais amazônicas. Ele é, então, capturado novamente pelo projeto colonizador quando Jean Pierre Chabloz, enfeitiçado pela poética do artista local, o introduz à tinta guache e ao papel, fazendo-o abandonar o suporte da parede.

Entre 1930 e 1940, o suíço promove a presença de Chico em salões nacionais, como na Galeria Askanasi, no Rio de Janeiro. Já nos anos 1960, Chabloz articula, no recém-inaugurado MAUC/UFC (Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará), um lugar onde o artista criaria um ateliê, receberia um salário e permaneceria durante três anos. A mística construída por Chabloz em torno desse personagem indígena atingira seu ápice em 1966, quando Chico participou da Bienal de Veneza.

Um elemento constante na obra de Chico da Silva é a boca. A boca aberta para o bote, a boca aberta para o alimento, a boca que acolhe e abriga, a boca que come e transforma, a boca que devora, a boca da noite, a boca do estômago. Nas pinturas, são inúmeros os embates, bem como as animalidades que utilizam a boca como arma, como defesa, como prelúdio de perigo.

Chico ativa uma cosmologia particular na qual elementos da vida, do cotidiano, do imaginário amazônico e indígena são protagonistas. Se hoje sua criação de mundos seria classificada como “fabulação especulativa”, o artista em vida nunca foi associado a uma ideia de “futuro”, mas sempre fixado a uma imagem de passado, primitivo e bestializado, e com uma difícil adequação ao presente, ao agora, à ideia torpe de modernidade que se anunciava.

A própria boca de Chico também foi a boca da reinvenção da linguagem, da concepção de novas palavras, das criações dialéticas, que desnorteavam o interlocutor: sua boca com dentes de ouro conferia a seu corpo a mais completa modernidade. A boca de Chico nunca foi a do passado nem a do presente, a sua boca sempre esteve no futuro, e anunciava: até o céu da boca é de ouro.

Outro movimento importante na saga de Chico é a criação da Escola do Pirambu. O lugar reunia artistas colaboradores com os quais Chico compartilhou sua técnica, cuja reprodução logo contaminou a ideia do “gênio” e do “original”, fundamentais ao mercado de arte. Essa diluição da autoria na Escola do Pirambu não passou isenta de punição. Em uma matéria no Jornal do Brasil, o próprio Chabloz acusa o esvaecimento da autenticidade poética do artista. A manchete anuncia: “Suíço decreta a morte artística de Chico da Silva”.

Chico nunca se recuperou artisticamente dessa campanha produzida pelo crítico europeu, que não o respeitava como humano capaz, tratando-o como um primitivo. Chabloz não descobriu Chico da Silva: foram os muros da Praia Formosa que germinaram o visionário artista, e foram seu tino, sua força e coragem de atravessar adversidades na vida e na arte, que o configuraram como um descobridor de si mesmo.

Após o ataque, Chico foi constantemente internado devido ao alcoolismo, a problemas psiquiátricos e aos sinistros de uma sociedade também colonizada que não conseguiu sequer respeitá-lo. Atualmente, sua obra passa por um novo processo comercialmente especulativo, mas Chico morreu pobre em 1985, tornando-se personagem que merece ser desmistificado e humanizado. ✱


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