Jaider Esbell, "Entidades". Foto: Indiara Duarte / Sesc SP

Thiago de Paula Souza, Diane Lima e Beatriz Lemos, the triennial’s curators. Photo: Indiara Duarte

Em meio a um contexto pandêmico e de crise política, quais são as possibilidades curatoriais e expositivas? Essa foi uma das perguntas que guiou meses de trabalho de O rio é uma serpente, terceira edição da Frestas – Trienal de Artes. Organizada pelo Sesc São Paulo, com base na unidade de Sorocaba, ela conta com a curadoria de Beatriz Lemos, Diane Lima e Thiago de Paula Souza.

O convite ao trio veio antes da pandemia, possibilitando as primeiras atividades na construção do projeto. Em uma viagem pelo Brasil, os curadores visitaram juntos localidades do Norte e Nordeste: “O mais importante para nós era que a partir desse corpo em movimento e em embate com outros territórios pudéssemos criar um corpo curatorial”, conta Beatriz. Foi nesse movimento que O rio é uma serpente começou a ganhar forma, não como uma temática – o que seria insuficiente para o momento vivido -, mas como uma cosmovisão que reúne os aprendizados de seu processo e que tem em vista a discussão sobre os movimentos contemporâneos, suas geografias e estruturas coloniais.

Mas como a Frestas deságua em Sorocaba? A partir de sequência de encontros de escuta com artistas, produtores, gestores e educadores locais, a equipe buscou entender as necessidades da região e tornou o educativo um dos pilares centrais do pensamento curatorial. “Sempre foi uma preocupação muito grande não sermos como uma nave que pousa na cidade ‘trazendo o conhecimento’ e depois indo embora”, explica Renata Sampaio, coordenadora do educativo. Se o contexto geral parecia tão verticalizado, a proposta aqui era mudar um pouco essa dinâmica. “Não queríamos reproduzir essa visão colonial de quem quer apenas ‘ensinar’ e não construir junto”, completa.

Com a chegada da pandemia de Covid-19, todo o mundo da arte viu a necessidade de repensar suas programações. Com a trienal não foi diferente. A exposição foi adiada seguidas vezes até ser aberta à visitação no dia 21 de agosto de 2021. Para os curadores, essa decisão traz uma provocação sobre suas funções profissionais, lembrando que “talvez a prática curatorial não se limite a uma organização de exposições”, explica Thiago de Paula.

Com isso em mente, mudaram os rumos do projeto e decidiram focar ainda mais nas práticas educativas. Se “o rio é uma serpente porque se esconde e camufla entre o imprevisível e o mistério, cria estratégias para o seu próprio movimento”, como sintetiza o texto curatorial, é com foco no curso e nas curvas deste rio – e nos diálogos que esses promovem – que Frestas decide se construir. “Essa imagem tem nos ajudado a pensar essa cosmovisão e tem nos possibilitado encontrar estratégias e possibilidades para enfrentar o que é curar uma exposição de arte contemporânea nesse momento que o Brasil está vivendo”, explica Diane Lima.

Os afluentes

Foi nesse contexto que a ideia do Programa de Estudos ganhou forma. Quinze artistas que têm a vida e a prática diretamente conectadas à violência colonial foram convidados a participar de uma série de encontros virtuais com as equipes de curadoria, produção e educativo da trienal. “A gente teve encontros intensos discutindo projetos, poéticas, práticas e vida”, conta Thiago. Nesse espaço, os artistas puderam elaborar seus próprios projetos artísticos, que virão a compor a exposição.

A partir das vivências e ideias de Castiel Vitorino Brasileiro, Davi de Jesus do Nascimento, Denilson Baniwa, Denise Alves-Rodrigues, Ella Vieira, Gê Viana, Iagor Peres, Jonas Van Holanda, Juliana dos Santos, Laís Machado, Luana Vitra, Pedro Victor Brandão, Rebeca Carapiá, Sallisa Rosa e Ventura Profana, os encontros trouxeram foco para diversas das discussões que permeavam o pensamento curatorial. Com isso, não apenas os artistas saíam das videochamadas com novas provocações, mas os curadores podiam repensar as possibilidades expositivas.

Foto horizontal, colorida. Em ligação de vídeo do programa educativo de Frestas, três janelas. Na esquerda superior, Renata Sampaio, coordenadora do educativo de O RIO É UMA SERPENTE, na superior direita, Ingra Maciel, na tela inferior, Juliana dos Santos.
A Lei 11.645, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena, foi discutida no Programa de Formação, com Ingra Maciel (dir.), Juliana dos Santos (abaixo) e mediação de Renata Sampaio (esq.). Foto: Reprodução

Foi também nessa direção que se deu O rio é uma serpente: tópicos para a diferença e justiça social, programa de formação online de professores, realizado em reuniões semanais entre os meses de outubro e novembro de 2020. “A aprovação foi tão grande que a formação virou um curso oficial do município, contando progressão de carreira aos professores participantes”, conta Renata Sampaio, que liderou o programa.

Em cada encontro, um ou mais palestrantes se unia ao grupo para discutir estratégias para o trabalho em sala de aula. “A ideia não era mostrar ao professor como dar aula, mas sensibilizá-lo sobre assuntos que achamos de suma importância, para que o debate continue, de forma horizontal, na escola”, explica Renata. “O educativo dessa edição de Frestas está trabalhando a partir de perspectivas, agentes e conceitos não hegemônicos, buscando construir relações com outras áreas do conhecimento”, completa.

O online, porém, expandiu as fronteiras geográficas de Frestas. No Programa de Formação, possibilitou a participação de educadores e convidados de diversos lugares do Brasil e a disponibilização desse material de forma online para que mais pessoas fossem impactadas. Num âmbito geral, possibilitou uma troca ainda mais intensa com o cenário internacional, a partir da parceria estabelecida com o coletivo Ayllu, um grupo de ação artístico-política e de pesquisa colaborativa formado por pessoas migrantes, racializadas e dissidentes de gênero e sexualidade das ex-colônias espanholas, sediado em Madri.

Buscando um espaço crítico de pensamento e criação coletiva, o Ayllu desenvolveu o Programa Orientado a Práticas Subalternas (POPS), que nesta edição reuniu cerca de 40 pessoas de oito países latino-americanos para questionarem o racionalismo, o cientificismo e a falsa objetividade do pensamento eurocêntrico. As discussões geraram um fanzine que fará parte da mostra O rio é uma serpente e agregaram outra discussão ao projeto, trazendo o debate para as questões migratórias.

A participação de pessoas de 25 das 27 unidades federativas do Brasil no curso de expografia também dá tom a essa expansão de Frestas. Conduzido por Tiago Guimarães, arquiteto de exposição da própria trienal, o curso visou contribuir para que mais pessoas tivessem acesso a informações sobre a área. Já a Anti-análise, projeto de mentoria de Pêdra Costa, atendeu a 45 artistas de todo o Brasil ao acontecer no ambiente online, o que não seria possível com a realização presencial em Sorocaba, como haviam pensado inicialmente.

Chegando à foz do rio

Se o objetivo inicial de O rio é uma serpente era levar as discussões do circuito de arte contemporânea brasileiro e mundial para Sorocaba, encontrando caminhos menos violentos, parece que as práticas educativas não só criaram esses pontos de diálogo com a cidade, pelo Programa de Formação, mas propuseram discussões em outros pontos do circuito. Discussões essas que vem a desaguar em Sorocaba na exposição presencial e virtual.

No curso desse rio, não só os artistas e educadores puderam repensar seus processos e refletir sobre as ausências e possibilidades ao seu redor, como também o fizeram a equipe da Trienal e o próprio Sesc. “Torço para que a instituição se reveja em algumas práticas, porque ela é ainda muito branca e isso é algo que é preciso pensar”, pontua Thiago. O foco no processo, a educação como pilar principal do projeto e a construção conjunta de conhecimentos parecem ter sido importantes ferramentas para isso, pois, como conclui Renata Sampaio: “O caminho desse rio foi se fazendo nos encontros, e encontro é algo de mão dupla, todo mundo sai modificado depois dele”.

Lista completa de artistas da 3ª Trienal 

A exposição final conta com obras de 53 artistas e coletivos de diferentes nacionalidades, incluindo os 15 participantes do Programa de Estudos, Pêdra Costa e o coletivo Ayllu. Confira a lista completa:

Aimée Zito Lema (Holanda)
Ana Pi e Maria Fernanda Novo (Brasil)
Antonio Társis (Brasil)
Bronwyn Katz (África do Sul)
Carmézia (Brasil)
Castiel Vitorino Brasileiro (Brasil)
ColetivA Ocupação (Brasil)
Colectivo Ayllu
Dalton Paula (Brasil)
Davi de Jesus do Nascimento (Brasil)
Davi Pontes e Wallace Ferreira (Brasil)
Denilson Baniwa (Brasil)
Denise Alves-Rodrigues (Brasil)
Diego Araúja (Brasil)
Ella Vieira (Brasil)
Elvira Espejo (Bolívia)
Engel Leonardo (República Dominicana)
Fernando Palma Rodríguez (México)
Gê Viana (Brasil)
Guerreiro do Divino Amor (Suíça)
Haseeb Ahmed (Estados Unidos)
Iagor Peres (Brasil)
Ivan Henriques (Brasil)
Jaider Esbell (Brasil)
Johanna Unzueta (Chile)
Jonas van Holanda (Brasil)
Jota Mombaça (Brasil)
Juliana dos Santos (Brasil)
Julien Creuzet (França)
Lais Machado (Brasil)
Laura Lima (Brasil)
Lia García (La Novia Sirena) (México)
Luana Vitra (Brasil)
Madalena dos Santos Reinbolt (Brasil)
Marepe (Brasil)
Mário Lopes (Brasil)
Musa Michelle Mattiuzzi (Brasil)
Negalê Jones (Brasil)
Noara Quintana (Brasil)
Nohemí Pérez (Colômbia)
Paulo Nazareth (Brasil)
Pêdra Costa (Brasil)
Pedro Victor Brandão (Brasil)
Rebeca Carapiá (Brasil)
Renata Lucas (Brasil)
Rommulo Conceição (Brasil)
Sabelo Mlangeni (África do Sul)
Sallisa Rosa (Brasil) e Sucata Quântica (Brasil)
Shirley Villavicencio Pizango (Peru)
Tabita Rezaire (França)
Thiago Martins de Melo (Brasil)
Ventura Profana (Brasil)
Vijai Patchineelam (Brasil)
Zumvi Arquivo Fotográfico (Brasil)

“Entidades”, Jaider Esbell. Foto: Matheus José Maria

A exposição de O rio é uma serpente fica em cartaz de 21 de agosto de 2021 a 30 de janeiro de 2022, e a visitação pode ser feita mediante agendamento prévio. As vagas para as sessões são limitadas, para manter o distanciamento seguro entre visitantes, em consonância com os protocolos para a operação segura de museus, exposições e galerias neste momento. (Saiba mais sobre a 3ª edição da Frestas – Trienal de Artes e leia a crítica de Fabio Cypriano sobre a exposição final)


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