Rosana Paulino, As filhas de Eva, 2014. Trabalho exibido na Bienal Mercosul
Rosana Paulino,
As filhas de Eva, 2014. Foto: Divulgação

Apesar de focar em questões femininas, a 12ª Bienal do Mercosul usa no masculino o gênero do título: feminino(s), visualidades, ações e afetos. Segundo a curadora e acadêmica Andrea Graciela Giunta, “feminino não é assunto apenas de mulheres” e “femininas reforçaria o binarismo”.

Ela tem sido responsável por mostras de grande repercussão, como León Ferrari-Retrospectiva, em 2004, no Centro Cultural Recoleta de Buenos Aires, que irritou o então arcebispo da cidade, Jorge Bergoglio, hoje Papa Francisco. A mostra foi vista na Pinacoteca do Estado de SP, em 2006, museu que acolheu outra exposição importante da curadora, Mulheres Radicais, em 2018, organizada com Cecilia Fajardo-Hill e Valéria Piccoli.

Para a bienal sediada em Porto Alegre, que está prevista para ser aberta ao público neste ano, ela trabalha com mais três curadores: a polonesa Dorota Maria Biczel e os brasileiros Fabiana Lopes e Igor Simões.  Segundo Giunta, a mostra irá tratar de questões emergentes da sociedade, como o feminismo negro: “gostaríamos que essa fosse a contribuição mais forte da bienal”. A politização, contudo, não irá abandonar a fruição estética: “Nos interessa pensar uma proposta de problemas e nos aproximarmos também a uma experiência de beleza”.

Ao longo de sua história, a Bienal do Mercosul já fez vários ensaios em como ser fiel ao nome, baseado um tratado comercial, ao mesmo tempo em que repensa tais fronteiras a partir da arte. Nessa edição, Giunta promete uma participação ampla, de vários continentes, que parte de artistas que trabalhem com “as representações dos feminino(s)” além dos “legados coloniais, que se traduzem em termos de estereótipos ou de racismos”. A lista de artistas só será divulgada na abertura da mostra, mas a seguir a curadora detalha alguns dos principais eixos do projeto.

ARTE!✱ – Bienais têm buscado dar atenção e voz às comunidades locais, como forma de ganhar relevância no contexto onde se insere. De que forma isso ocorre na 12ª edição do Mercosul?

Andrea Giunta – A bienal não foi pensada em função de uma estratégia geopolítica para Porto Alegre, mas em relação com a riqueza desta cidade excepcional pela trama cultural que envolve sua história. Desde 2018, quando estabelecemos dois dos eixos da bienal, o feminismo e a cultura afro-brasileira, inauguramos na Feira do Livro de Porto Alegre o seminário “Arte, feminismos e emancipação”, com artistas, curadores e agentes culturais de diversos campos. As apresentações ali realizadas foram a plataforma crítica inicial da bienal.

Porto Alegre não é uma cidade airbnb, 70% da bienal ocorre ao redor de uma praça repleta de gente que vive e trabalha na cidade. Ao redor dessa praça se sucedem infinitos tempos. Não interessa tanto o lugar de Porto Alegre no mapa geopolítico mundial, mas o lugar que vai ter arte, durante quatro meses, no coração de uma cidade de um milhão e meio de habitantes. Durante 2019, o programa educativo, que tem uma extraordinária tradição nesta bienal, pôs em funcionamento um tornado de perguntas que permitiram tornar visível o que vemos, o que pensamos, o que sentimos.

O termo Mercosul já foi problematizado em algumas edições da Bienal. Você pretende fazer um recorte de artistas que abarca essa região ou também será flexível para ira além das fronteiras geográficas limitadas pelo acordo comercial?

AG –  O Mercosul está amplamente representado na bienal por artistas brasileiros, argentinos e, em menor medida, uruguaios. Mas nos interessou mais trabalhar a ideia de região cultural do que região estabelecida por um acordo econômico. Neste sentido, é importante a participação do Chile, e também de Peru, Equador, Bolívia. Consideramos também artistas do Caribe. Além de interrogar as representações dos feminino(s), nos interessou a aproximação aos legados coloniais, que se traduzem em termos de estereótipos ou de racismos, e que tragam geografias culturais que envolvam a América em sua totalidade. Uma perspectiva decolonial, uma perspectiva hemisférica e uma perspectiva transatlântica e transpacífica, em meio a tantos estereótipos que servem de fundamento ao racismo e à discriminação, não são exclusivos da América e menos do Mercosul. Neste sentido, há uma presença estratégica de artistas da Europa, Ásia, África considerados mais em função do conceito de diáspora que de geografias continentais.

Mostras como Mulheres Radicais ou mesmo a reorganização do acervo do Malba (Verboamérica), que tiveram sua participação, tinham um caráter bastante histórico. O que devemos esperar da 12ª Bienal?

AG – Mulheres Radicais, sim, tinha uma perspectiva histórica. Um de seus propósitos era desenterrar artistas mulheres que tinham sido erradicadas das histórias oficiais. Não foi assim em Verboamérica, onde desordenamos a história. A bienal é distinta. Posso antecipar que há obras históricas e obras de artistas muito jovens. Mas o que nos interessou não foi cobrir uma grade de países ou de idades. Nos interessa pensar uma proposta de problemas e nos aproximarmos também a uma experiência de beleza. Gozo e pensamento. É isso que queremos oferecer ao público de Porto Alegre e a quem vier visitar a bienal.

A curadora Andrea Giunta. Foto: Divulgação

O feminismo, e mais especificamente o feminismo negro vem se tornando um movimento de crítica às teorias pós-coloniais e provocando um importante empoderamento de mulheres artistas até então apagadas na história da arte. Você vem realizando importantes mostras que repensam as narrativas oficiais da história da arte. Como o feminismo negro se insere nesta Bienal?

AG – Gostaríamos que essa fosse a contribuição mais forte da bienal. Negro, não exclusivamente feminista. Uma arte realizada por femininos negros, completamente expulsos da história patriarcal, racista e classista que domina o conceito de arte moderna e contemporânea: uma geografia do poder que universalizou, impondo-se como parâmetro frente ao qual todas as outras formas de pensamento e de afeto que envolvem a arte ficam marcadas como “casos”, “curiosidades”, “exceções”, “particularidades”. Não vamos falar de nosso projeto em porcentagens, apesar de ser muitas vezes que se espera de uma bienal, mas queremos apresentar ao público um conjunto de obras completamente envolvidas com aqueles que representam mais da metade da população latino-americana. A cultura e a linguagem sofisticada das artistas afro-brasileiras terão uma ampla presença na bienal.

A Bienal ocupa espaços tradicionais da arte em Porto Alegre, como o Museu Iberê Camargo, o Margs, o Memorial do RGS e mesmo o CHC Santa Casa. A exceção é a praça da Alfândega. Como se pode “friccionar limites e condicionamentos” e “inventar novas formas de fazer, dizer, pensar e criar” em espaços tão convencionais?

AG – É possível intervir no poder a partir das margens, mas também se pode fazer isso nos próprios espaços que concentram o poder. Por que renunciar aos museus? Com Ferrari no Centro Cultural Recoleta, com Mulheres Radicais no Hammer, Brooklyn e Pinacoteca de SP, conseguimos friccionar o poder da Igreja, do patriarcado e dos discursos misóginos encarnados no poder político. Nunca desvalorizo que as obras atuem frente a cem mil espectadores para privilegiar um círculo de 25 agentes culturais que sustentam uma pequena conversação. Workshops, seminários, residências são laboratórios extraordinários, que utilizamos na preparação da bienal, e o programa educativo foi uma plataforma constante em 2019, mas não tememos nem descartamos os espaços irradiantes dos museus.

Geometria brasileira paraíso tropical
Geometria brasileira paraíso tropical

Entre os cinco femininos elencados no site da bienal, — aliás, por que não femininas? —, o #2 fala de “todas as sensibilidades não binárias, fluidas, não normativas”.  Galerias de arte estão começando de forma muita lenta e discreta um processo de inclusão de artistas não binárias. Como foi realizar esse mapeamento fora do circuito comercial?

AG – Atribuímos à palavra do título muitos sentidos. Os femininos porque o feminino não é assunto apenas de mulheres.  Femininas reforçaria o binarismo.  Creio que é falso que as galerias estão incorporando artistas não binarias. O mundo da arte tem marginalizado sujeitos que transitam por identidades fluidas. Menos na arte contemporânea. O que a arte e o mercado estão fazendo é incorporar sujeitos que se empoderam a partir de identidades não binarias, fluidas, não normativas. Então eles as tematizam, investigam desde matrizes filosóficas, e o fazem em primeira pessoa. Cabe voltar a nos perguntar se o mercado domestica. Ao mesmo tempo, também me interessa a lenta inclusão no mercado de artistas negros, de artistas afro latino-americanos. É um processo tão incipiente que o poder do mercado não pode ainda suavizar seu criticismo, sua intensa revolta. Estamos ante uma situação nova por completo. Estou cheia de expectativas frente a este cenário, que considero o mais estimulante da arte brasileira.

Já no #4 dos femininos, você fala de “materiais e técnicas tradicionalmente atribuídos às artes do feminino”. Você pode dar exemplos de artistas ou obras com essa premissa?

AG – Sim, apenas uma, já que não quero diminuir o anúncio dxs artistas: Rosana Paulino, que mais que bordar, sutura. Ela usa a agulha e a costura como uma poderosa marca simbólica da opressão, o racismo e a violência contra as mulheres negras no Brasil. Ela nos revolta em relação a serenidade do doméstico. Faz suas costuras com os arquivos do racismo das fotografias de Auguste Stahl [1824–1877] compiladas por Louis Agassiz [no livro Viagem do Brasil, 1865/6], na pretensão da ciência europeia do século 19, que se articulou como instrumento do racismo.

Ela cruza esta crítica fundamental para entender o Brasil (a violência da raça, não a harmônica coexistência) com as agendas do feminismo, a violência contra os corpos das mulheres negras. E também é fundamental seu foco no cânon da história da arte brasileira, uma arte que se coleciona e hierarquiza como exemplo da união entre abstração e progresso. Conceitos de limpeza e assepsia que ocultam a tragédia da escravidão cujas matrizes seguem vigentes.

Lucy Lippard, em um lindo texto para a Bienal Sesc_Videobrasil, defende a necessidade de reduzir escalas como forma de se contrapor ao atual sistema econômico-social. Bienais costumam ser eventos em grade escala. É possível ou mesmo necessário repensar esse formato de Bienal?

AG – Compartilho plenamente com a ideia de Lucy Lippard. Iniciativas opostas ao espetáculo contribuem para implodir as bases simbólicas do sistema econômico-social dominante. Sempre me interessei pelo poder do precário, em até que ponto uma obra que se afasta da abundância que se pode ver nos parques temáticos das instalações possui um poder de fricção que não se baseia em seu tamanho, mas em seus afetos. Com afetos, poderosas revoltas foram criadas.

Ao mesmo tempo, as bienais são espaços de intervenção pública, que não parece estratégico abandonar. Não creio que articular uma bienal como crítica às bienais agregue ao poder crítico da arte na sociedade. Se trata de uma crítica institucional que por comunicar-se com um círculo muito reduzido e privilegiado pode terminar engolida em sua lógica estratégica. Temos visto bienais com poucas obras, frias, distantes. Não vejo interessantes os exercícios curatoriais retóricos ou se fechar em uma bienal para debater com um círculo seleto de especialistas. Esses temas, prefiro discutir em um café.


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