“Faça amigas e amigos, não arte!”, defende o coletivo ruangrupa, logo na introdução do guia da documenta quinze, pela qual respondem como direção artística. A provocação está longe de ser uma frase de efeito. Toda a concepção desta mostra está voltada para a criação de espaços de encontros e trocas, a partir de uma ampla rede de artistas e coletivos. No site, estão elencados 72 grupos, mas como cada um trabalha com dezenas de colaboradores, estima-se que cerca de 1.500 pessoas participem desta edição da mostra.
Nesse sentido, difícil não perceber a energia que emana dos 39 lugares por onde a mostra se espalha em Kassel, na Alemanha, alguns recebendo apenas um grande painel, enquanto outros ocupam vários andares de antigas fábricas desocupadas. Em muitos deles, os próprios artistas vivem durante os cem dias da documenta, aberta no dia 18 de junho.
Criado em 2000, o ruangrupa é um coletivo da Indonésia que vem desenvolvendo propostas de caráter participativo. Entre elas, está o lumbung, que na zona rural do país é o celeiro onde é armazenado, de forma comunitária, o excedente da colheita de arroz. Assim, caso haja necessidade no futuro, qualquer pessoa da comunidade pode utilizar parte desta reserva. No campo da arte, simplificando, lumbung acaba sendo um sistema de trocas e, portanto, de solidariedade, de amizade.
Dentro do concorrido sistema de arte contemporânea, estas duas ideias estão longe de ser uma prática, mas a documenta quinze através da complexa rede criada pelo ruangrupa, aponta como não só elas são possíveis, como já ocorrem de fato. Aliás, o próprio coletivo foi ampliado, acolhendo cinco novos membros de quatro cidades: Kassel, Amsterdã, Jerusalém e Møn (Dinamarca).
Assim, o museu Fridericianum, primeira sede da documenta, em 1955, foi transformado em Fridskul, um espaço-escola, que é habitado por 11 coletivos, entre eles a Gudskul, de Jakarta, na Indonésia. Ele é composto por três coletivos, incluindo aí o próprio ruangrupa, e é voltado a consolidar recursos criativos e intelectuais, em sentido crítico à educação formal.
Todo o lado direito do térreo do Fridericianum é ocupado pela Gudskul, sendo que uma parte é acessível a visitantes para ver como funcionam os workshops, e outra restrita apenas às 40 pessoas que participam do projeto e vivem no museu, dormindo e comendo ali também, para desespero de alguns cidadãos de Kassel.
O mundo dos bebês
É também no térreo do Fridericianum, mas do lado esquerdo, que se encontra o projeto da artista brasileira Graziela Kunsch, Public Daycare (creche pública) e é um ótimo exemplo da complexidade do lumbung no contexto da documenta quinze. Trata-se de um amplo espaço dividido em duas partes: uma delas, a creche em si, aberta diariamente e gratuitamente das 10h às 17h, onde mães, pais e demais cuidadores podem levar crianças de até 3 anos – pela porta dos fundos do museu – e vivenciar com elas a abordagem pedagógica da pediatra húngara Emmi Pikler (1902-1984), que inspira o projeto. A outra seção, acessível aos visitantes o dia todo, apresenta fotografias da também húngara Marian Reismann (1911-1991), que por décadas documentou o cotidiano do Instituto Pikler, em Budapeste, e um vídeo da artista mostrando o “desenvolvimento motor livre” ou “autoiniciado” de sua própria filha. A partir das 17h, todos os espaços estão liberados para visitação.
Pikler demonstrou que bebês com vínculos afetivos são capazes de brincar livremente, sem a direção de adultos, e esse brincar livre coincide com o movimento corporal livre, cada bebê em seu próprio tempo. “É comum adultos anteciparem as posições motoras de bebês – sentando-os, colocando-os em pé, ajudando-os a andar –, esperando que, o mais rapidamente possível, os bebês se tornem parte do ‘mundo adulto’. E se invertermos essa relação, descendo ao chão, tornando possível que bebês vivam plenamente seus primeiros anos de vida, ou o ‘mundo dos bebês’? A minha contribuição para a Fridskul foi criar um espaço onde, mais que ensinar os bebês, nós adultos possamos aprender com eles”, explica Kunsch.
Para desenhar o ambiente preparado, ela trabalhou junto a Elke Avenarius, diretora de uma creche local e engenheira civil de formação. O mobiliário foi todo pensado para garantir a crescente autonomia dos bebês. A colaboração na arquitetura foi tão intensa que Elke se tornou co-autora do projeto. Há anos, a prática de Kunsch se baseia na colaboração, mas no contexto da documenta quinze, ela se multiplica em várias camadas, desde o respeito a mulheres que nos anos 1940 já trabalhavam com educação infantil e fotografia, a construir redes na própria cidade de Kassel, como na parceria com Avenarius.
Essa, de fato, é uma energia mobilizadora da mostra, que começa antes da exposição em si, e seguirá no futuro, quando os móveis serão transferidos para a Casa do Povo, em São Paulo, entidade também parceira do projeto. No total, 26 pessoas e entidades estão listadas como “cooperadoras” da proposta de Kunsch. Nos dias seguintes à abertura, ela contou que a porta dos fundos estava cada vez mais sendo usada e a cidade havia abraçado o lindo projeto.
Eu sou porque somos
Dessa forma, como se percebe, a partir de cada artista-lumbung, ou seja, aqueles convidados inicialmente, é tecida uma teia que vai se ampliando para várias direções, em geral buscando questionar a ideia de autoria e a noção de objeto. A documenta quinze, de fato, não é uma exposição de objetos, mas uma experiência possível de colaborações.
Contudo, não se trata de uma exposição repetitiva e homogênea, já que a ideia de experiência é muito ampla e a diversidade de temas dessa documenta é imensa e com grandes surpresas. Um dos lumbung-membros é a Fondation Festival sur le Niger, fundada em 2009, que organiza um festival multicultural em Segu, no Mali. Não se trata de um evento, mas de uma instituição voltada a promover a formação de jovens artistas, além de estimular práticas colaborativas baseadas na filosofia Maaya: “eu sou porque somos”.
Na documenta, o grupo ocupa um amplo espaço na Hübner Areal, uma antiga fábrica de trens e ônibus, de três andares, com várias áreas para apresentações musicais, além de exibir obras de alguns de seus fundadores, como Abdoulaye Konaté, um dos mais prestigiados artistas africanos, que participou da 19ª edição do Sesc_Videobrasil, em 2014.
Denominado como Vestíbulo Maaya, a partir da importância da hospitalidade como prática no Mali, 39 artistas ocupam o espaço do Festival sur le Niger na mostra alemã.
Nesse mesmo edifício, em seu subsolo, está uma das instalações mais acachapantes da documenta quinze – que faz com que seja impossível dizer que não há arte em Kassel, frase recorrente dos críticos da mostra. Aliás, sim, para além de todas as redes criadas a partir dos artistas-lumbungs, há muitos trabalhos plásticos impressionantes, caso de Amol K Patil, artista indiano que apresenta uma série de esculturas, filmes e desenhos com iluminação dramática. Entre as esculturas, estão mapas de lugares por onde o artista viveu nos últimos tempos, incluindo Kassel, feitas de terra com engrenagens que, discretamente, criam pequenos movimentos nas estruturas. É das obras mais impactantes da documenta.
Contra narrativas
Em outra fábrica desocupada, o Hafenstrasse 76, próxima do porto da cidade, está o trabalho do artista não-binário Nino Bulling. Cartunista que explora os limites entre o documental e a ficção especulativa, Nino expõe no local desenhos ampliados de sua nova publicação, firebugs, viabilizada pela documenta quinze. No entanto, sua presença em Kassel também representa um debate sobre artistas queer, trans e non-conforming que trabalham com quadrinhos, e vão participar de um workshop organizando junto com o coletivo libanês Samandal Comics.
O resultado será publicado pela editora alemã Steidl. Aqui, neste caso, vê-se como a proposta do lumbung se multiplica de forma orgânica a partir de cada convidado – no caso de Nino, também participa o Sindicato dos Artistas Gráficos. Nesse mesmo edifício, outro coletivo queer, o Fehras Publishing Practices, também se ocupa de narrativas gráficas, desta vez abordando questões do Mediterrâneo Oriental, Norte da África e da diáspora árabe.
Outro eixo importante desta documenta diz respeito ao meio ambiente: vários são os coletivos que atuam nessa questão, caso do espanhol INLAND, criado por Fernando Garcia Dory, que possui uma estação de rádio, uma academia, organiza mostras e produz queijo. Nesta edição, INLAND ocupa parte do Museu de História Natural Ottoneum, onde apresenta o vídeo Animal Spirits, em colaboração com Hito Steyerl, que ironiza o conceito de “espírito animal” (um impulso emocional) desenvolvido por John Keynes. Outro dos grandes trabalhos desta documenta, Animal Spirits também é uma forma de ampliar o debate ecológico realizado por INLAND.
Finalmente é essencial ainda apontar coletivos de militância política, caso do INSTAR – Instituto de Artivismo Hanna Arendt, criado pela cubana Tania Bruguera, que ocupa parte da Documenta Halle, um amplo espaço criado em 1992, para a nona edição da Documenta. Lá, INSTAR organiza uma série de dez mostras com artistas cubanos que produzem contra narrativas sobre arte e história de seu país na América Central.
Esta edição da documenta, como toda grande mostra, também enfrentou polêmicas. Primeiro, uma perseguição de grupos de extrema-direita a coletivos palestinos. Depois, logo na abertura, a acusação de que havia imagens antissemitas em um imenso painel próximo à Documenta Halle, People’s Justice (2002), do coletivo indonésio Taring Padi, que foi coberto e, finalmente, retirado logo na sequência. O fato gerou um pedido de desculpas formais no site da documenta, tanto por parte do ruangrupa, quanto do Taring Padi, além de ter sido organizado um debate sobre antissemitismo na arte, no final de junho. O Taring Padi, aliás, ocupa vários espaços da mostra, um dos mais belos em uma antiga piscina pública, o Hallenbad Ost, com uma diversidade de cartazes e pôsteres de demonstrações políticas, muitos feito como gravuras. A polêmica, no entanto, funcionou como combustível para guerras culturais que gostam de atacar arte contemporânea.
O ocorrido, contudo, não retira da mostra sua potência e a energia inédita em exposições de grandes dimensões como a documenta. Construída de forma colaborativa e orgânica, propiciando uma imensa rede ativa de artistas, ativistas e militantes, ela é uma resposta contundente a uma Europa que enfrenta uma guerra e a um mundo que vê o neoliberalismo das Big Techs colapsar as democracias. Não se trata de acreditar em utopias, mas de demonstrar que a resistência é possível e ela já ocorre em muitos lugares, onde o lumbung, mesmo que muitos não usem esse nome, já existe na prática.