"Paisagem", de Regina Silveira, obra comissionada para a Bienal. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo
"Paisagem", de Regina Silveira, obra comissionada para a Bienal. Foto: © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

A abertura da 34a Bienal de São Paulo neste sábado, dia 4, mais de um ano depois do previsto, parece decretar de forma definitiva o fim da quarentena no circuito das artes, dando ainda mais fôlego à agenda agitada que vem movimentando museus e galerias nos últimos dias e que, estrategicamente, desconsidera que ainda estamos longe de debelar os riscos da pandemia. É preciso ressaltar que o acesso à bienal só é possível mediante apresentação de comprovante de vacinação. Com mais de mil obras espalhadas pelo gigantesco Pavilhão Ciccillo Matarazzo, de 35 mil metros quadrados, a mostra – tradicionalmente um evento de grande impacto que costuma atrair as atenções do público, da mídia e do setor especializado -, tem este ano um apelo extra: a forte tônica política presente em parte significativa dos trabalhos selecionados, que funcionam como um grito de resistência que se torna ainda mais agudo às vésperas da orquestrada manifestação do governo para solapar as instituições e reduzir o espaço democrático no país.

Em seu conjunto, a exposição parece corporificar a ideia expressa em seu título. Faz escuro mas eu canto, tirada de um poema escrito por Thiago de Mello escrito em 1963, é uma clara convocação de sobrevivência e desafio, de enfrentamento da corrosão de direitos duramente conquistados, por meio da arte e da cultura. Mas esse processo de resistência assume diferentes nuances, como gostam de ponderar os curadores – Jacopo Crivelli Visconti (geral) e Paulo Miyada (adjunto) – ao afirmarem que procuraram fugir das classificações, deixando tudo em um estado maior de indeterminação. Fica evidente, ao observar os trabalhos selecionados, uma convivência no mesmo espaço de tônicas distintas, com trabalhos de grande teor crítico, como o fascinante e assustador labirinto de vidros cravejados de balas de Regina Silveira, feita especialmente para essa edição da Bienal, convivendo com expressões mais sutis e históricas, como o delicado exercício pictórico de Giorgio Morandi (1890-1964) ou Eleonore Koch (1926-2018).

Além do título, a exposição foi concebida em função de alguns enunciados, elementos de forte peso simbólico, imantados de conteúdo poético e histórico, que o público vai encontrando ao longo do percurso. Um exemplo desses enunciados, que parece contaminar e iluminar de forma surpreendente os trabalhos a sua volta, é a série composta por dezenas de retratos do abolicionista norte-americano Frederick Douglass (1818-1895), que utilizou sua própria imagem como ferramenta na luta pela liberdade e contra o racismo. Diante desse potente painel se encontra uma gigantesca âncora, de mais de uma tonelada, que compõe a obra Complexo Atlântico – Cordas, de Arjan Martins, uma configuração apenas aparentemente abstrata, que toma o espaço central do Pavilhão e remete ao “triângulo do Atlântico”, comércio entre Europa, América e África responsável pela manutenção da economia escravagista. Os dois trabalhos tratam diretamente do nosso passado, com ecos no presente. E, em seu atrito no espaço expositivo, reverberam de forma muito mais intensa. O mesmo ocorre entre as monotipias feitas a partir de imagens de vulcões por Carmela Gross, reunidas na obra Boca do Inferno, e o meteoro Santa Luzia, uma das poucas peças que sobreviveram ao incêndio que destruiu um Museu Nacional, exatamente por ser feita da mesma matéria magmática e resistente a um fogo que nos ameaça intensamente.

Com uma montagem bastante arejada, sem acúmulos intensos de trabalho ao longo do pavilhão, a mostra parece ora aproveitar-se dos espaços vazios e generosos, ora lançar mão de nichos mais íntimos, criados por meio de estruturas que compartimentam os espaços. Feitas com três tipos de materiais – juta, polietileno e madeira -, essas divisórias quebram a monotonia do espaço vazio e criam texturas, espaços intermediários entre a escala do corpo e a escala urbana. “É como se fossem peles, camadas de memória no tempo e no espaço”, explicou Carla Zaccagnini, uma das curadoras convidadas, na coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira.

Com mais de 90 artistas e uma intencional busca de diversidade – englobando temas, gerações e linguagens distintas -, surpreende a presença especifica do retrato nas obras selecionadas. Como se essas questões de resistência à opressão se materializassem de forma contundente num esforço de constituição de identidades, sobretudo usando o próprio corpo, como o magistral Alma no Olho, de Zózimo Bulbul e as já citadas fotos de Douglass.

Uma das referências teóricas fundamentais da 34a edição é a obra do pensador Edouard Glissant, da Martinica. E, mais especificamente, seu conceito de direito à opacidade, que se opõe frontalmente à imposição da racionalidade ocidental – que tolhe, submete e descarta aquele não se enquadra nos paradigmas vigentes. “O racista recusa aquilo que ele não compreende”, pontua o escritor. Essa defesa da opacidade pode ser entendida de múltiplas maneiras na mostra, também em uma sintonia mais direta com a noção de escuro contida no título. Afinal, “um único modo de haver luz também pode ser opressivo”, lembra Miyada. Ou, como sintetiza Crivelli Visconti, “não preciso compreender inteiramente o outro para reconhecer sua humanidade”.

Tal aspecto adquire relevância quando se considera que esta edição da Bienal é, seguramente, aquela que conta com mais artistas indígenas, tanto brasileiros como de outras regiões do planeta. É intensa a presença de Jaider Esbell, por exemplo, que apresenta um enorme painel de desenhos e recortes no terceiro andar, no qual incorpora em imagens as fricções entre diferentes culturas. Destaca-se também na mostra um equilíbrio ainda pouco comum entre os diferentes gêneros e um olhar atento às opressões de caráter histórico ou contemporâneo. E também abre-se espaço para outras formas de expressão artística que vão na contramão das noções de progresso, exploração da natureza e incapacidade de diálogo entre diferentes sistemas de saber, lidando com questões como identidade, opressão e luta.

Serviço: 34ª Bienal de São Paulo – Faz escuro mas eu canto
Pavilhão Ciccillo Matarazzo – Parque Ibirapuera, São Paulo
De 4 de setembro a 5 de dezembro de 2021
Entrada gratuita
Acesso mediante apresentação de comprovante de vacinação contra Covid-19


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