Mira Schendel, "Sarrafo", 1987. Foto: Ding Musa

* Por Rodrigo Neves

Uma das últimas séries realizadas por Mira Schendel ficou conhecida como Monocromáticos (1986/1987). Tratava-se de superfícies de madeira trabalhadas com gesso, formando ligeiros desníveis, e pintadas com têmpera branca ou negra. A leve sombra criada pelos relevos produzia linhas ópticas que se diferenciavam sutilmente de outras linhas, traçadas com bastão a óleo. À época Mira já tinha quase 70 anos e precisava da ajuda de assistentes para fazer obras maiores. O artista Fernando Bento, um de seus auxiliares, conta que ela costumava apontar os traços brancos deixados no céu pelos aviões, na tentativa de mostrar-lhe mais claramente o tipo de relação que procurava estabelecer entre as superfícies e as duas espécies de linha que corriam por elas.

Penso que esse episódio revela com precisão e lirismo a noção de forma que presidia as obras de Mira Schendel e os vínculos que buscava entre os diferentes elementos utilizados para produzi-las. Por mais que a condição física dos Monocromáticos se diferenciasse do espaço natural e de seus fenômenos, dentro de certos limites eles visavam à obtenção de conexões semelhantes.

Os desenhos em papel de arroz que realizou em meados dos anos 1960 – mais de dois mil e a meu ver equivocadamente identificados como monotipias – estão entre os trabalhos de Mira que melhor revelam essas preocupações. Até sua técnica de realização ressalta a preocupação de não operar sobre a superfície dos papéis, exteriormente. Feitos “por trás”, os desenhos surgiam da própria trama do papel poroso, como um material orgânico – fungos, por exemplo – que se confundisse com sua textura. No entanto, poucas vezes linhas tão frágeis produziram intervenções com tanta intensidade.

Nesses desenhos a sensação de pertencimento – de algo que não foi imposto ao suporte – só se cumpria pela sua capacidade de acentuar a presença do meio que os abrigava (o papel de arroz), algo que a tradição do desenho poucas vezes levou em conta. Nesse período, Mira praticamente trabalhava para si mesma e para um círculo restrito de amigos que apoiava aquelas experiências. Em 1989, após a morte da artista, esses trabalhos ainda eram vendidos a US$ 100!

Em certo sentido, seria Paul Klee – cuja obra Mira conhecia bem – o artista moderno mais próximo de suas preocupações. Mira compartilha com ele a modéstia das dimensões, a presença discreta, a economia das intervenções e um encanto pelas relações sábias, capazes de aproximar serenamente elementos díspares. E então as linhas dos desenhos se viam conduzidas a se aproximar da escrita. A busca de significação por meio de inscrições tão precisas aproximava um movimento singular – a mão individual que age no papel – de sentidos mais amplos, que levariam do grafismo à letra e à palavra. Experiências intensas almejam um âmbito público, e a universalidade da linguagem se desdobrava então naturalmente, como se aos poucos expressão e significação tendessem a coincidir.

No entanto, quando as palavras adquirem maior autonomia, deixando de lado seu vínculo com os movimentos da mão e adquirindo a generalidade dos conceitos, novamente Mira Schendel as devolve a uma situação repleta de ambiguidades.

Em 1959 – com a publicação do Manifesto Neoconcreto -, vários artistas que haviam tomado parte do movimento concretista passam a criticar seu dogmatismo racionalista e defendem uma arte que dê maior importância ao empírico, ao sensual e ao subjetivo. Contudo, acredito que, mesmo se afastando do dogmatismo de Max Bill, vários artistas neoconcretos permanecem operando com uma noção de forma apoiada em concatenações lógicas claramente apreensíveis. As Droguinhas revelam muito bem as relações que a artista buscava entre experiência e significado. Mira já havia transformado a escrita em quase-coisas, em seus grafismos sobre papel de arroz. Para depois transpô-las para o espaço nos Objetos Gráficos.

No entanto, acredito também que estabelecer filiações fáceis entre seus trabalhos e a história da arte brasileira pode conduzir a equívocos. Uma história da arte tão esparsa como a nossa deve aceitar com serenidade os caminhos solitários, as rotas que não têm origem facilmente identificável nem desdobramentos claros: Oswaldo Goeldi, Guignard, Bakun, Iberê Camargo e tantos outros.

Por mais que Mira volta e meia retornasse ao tonalismo e à busca de uma aproximação amena entre seres e coisas, me parece claro que, dos desenhos em diante – ou seja, posteriormente à metade da década de 1960 -, são outros os critérios que a orientam. Os Sarrafos – que, junto com os Monocromáticos, fazem parte de seus últimos trabalhos – guardam a lembrança dos desenhos dos anos 1960: preto sobre branco, ambiguidades entre plano e superfície, uma certa morosidade na diferenciação das coisas. São, com os Monocromáticos, seus trabalhos de maiores dimensões. Mas parecem ser também um testamento: naqueles anos conturbados – em que as manifestações contra a ditadura militar ganhavam força e em que uma esfera pública mais poderosa começava a se constituir no País -, a possibilidade de aproximar não violentamente os seres exigia a configuração de individualidades com uma potência maior.

Em 1987, após a realização dos Monocromáticos e dos Sarrafos, Mira começa a realizar trabalhos com pó de tijolo e cola, em dimensões semelhantes às das duas últimas séries, num espaço cedido pelo galerista Paulo Figueiredo, seu marchand e amigo. E então voltam as leves passagens tonais e a fatura encrespada de algumas regiões. A artista parecia querer expiar uma falta, e numa escala semelhante àquela em que se deixou levar pelas tentações.


Rodrigo Neves é crítico e historiador de arte


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