Luiz Braga, Oleiro (1979)

Minha opção pela Amazônia é simples e natural, passo ao largo dos estereótipos e modismos que anulam quem nela vive e faz sua história. Uma história comum feita de gente anônima, conhecedora da natureza, criativa na sua essência e alegre no seu cotidiano feito de viagens de canoa, banhos de rio, trabalho duro e muita esperança

(Luiz Braga, Arquipélago imaginário, catálogo, IMS, 2025, p. 23)

Por Henry Burnett

Uma exposição que põe em perspectiva a obra de um artista costuma ser um espaço privilegiado de contemplação, mas também de reflexão. Este é o grande acontecimento de Luiz Braga – Arquipélago imaginário no Instituto Moreira Salles (IMS Paulista), que, com a curadoria de Bitu Cassundé, percorre 50 anos de carreira do fotógrafo belenense através de 258 fotos. Tendo assistido uma ou outra exposição em Belém, visto algumas fotos em momentos distintos ao longo dos anos, seguindo o generoso Instagram do artista, nada se compara ao que uma visita a esta exposição revela em panorama. É como penetrar em um filme mudo, ora em PB, ora em tecnicolor. Fantasia e realidade se contrapõem sem cessar durantes as horas que passamos absortos entre as fotos.

Para muitas pessoas que chegaram na adolescência na década de 1980, Belém era uma cidade bloqueada. Os poucos acessos que davam vista para o Rio Guamá ou para a Baía do Guajará eram locais de turismo. Madeireiras, indústrias, bares, estaleiros e afins cercavam algo em torno de 90% da orla. A “escadinha” – lugar simbólico que dava acesso ao rio para os pescadores – era como uma janela, ou uma lente através da qual se via a floresta, os barcos e as pessoas que neles viajavam. A cidade e a floresta pouco se misturavam. Era possível sentir-se em uma urbe total, numa segunda natureza, hoje expandida no limite do absurdo.

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Apesar disso, o que as fotos revelam a pessoas mais ou menos privilegiadas talvez não seja algo invisível, mas simplesmente ignorado por elas. Um dos espantos de estar diante da obra de Luiz Braga é a sensação de perenidade dos contrastes econômicos da cidade. Mas dizer isso não é tocar no fundo. Suas fotos (re)atualizam tudo em nossa fraca memória coletiva. Mas é aqui, justamente diante do assombro que causam, que a dimensão ética e política de seu trabalho se revela em conexão estreita com suas escolhas estéticas.

São 50 anos de carreira e milhares de fotos. Escolho seis, uma de cada década, de 1970 até 2020, comentadas em ordem cronológica.

 

Luiz Braga, Oleiro (1979)

Oleiro (1979)

A foto faz parte de um conjunto coeso de imagens dedicadas aos trabalhadores e trabalhadoras do Pará. Neste caso o retratado é um oleiro, ou seja, um homem que faz ou vende objetos de cerâmica. Ele não olha para o fotógrafo, parece ocupado em seu ofício. O torso e o pescoço retesados dão a impressão de estar imprimindo força intensa em algo, mas seu rosto é tranquilo, o olhar concentrado, se há esforço em seu afazer não se pode notar. A foto se irmana com as do fotógrafo alemão August Sander, que também retratou trabalhadores braçais em atividade, sobretudo em Semblante da época (Antlitz der Zeit, Schirmer/Mosel, 2003), uma de suas obras de maior repercussão, e que fazia parte de um projeto maior chamado Os homens do século 20 (Menschendes 20. Jahrhunderts). Gostaria de sugerir que esta irmandade não é apenas estética – sobretudo porque a identidade autoral de cada fotógrafo está preservada em sua singularidade, como não poderia deixar de ser –, ela é nomeadamente ética. Como August Sander, Luiz Braga se ocupou em registrar seu povo e, apesar das diferenças abissais entre as circunstâncias alemãs do período entreguerras e a vulnerabilidade social de muitas pessoas que vivem na Amazônia, ambos salvaguardaram a beleza, a leveza, a graça e, acima de tudo, a luta diária das pessoas anônimas. Este homem belo, representado num contraste entre a prata e o negro, com sua tez brônzea, é dono da sua arte, de sua vida e do seu destino. Nada deve ao progresso que assola o mundo, permanece íntegro em sua função manual. Seu trabalho com o barro e a água em nada o apequena. Basta olhar para ele por alguns instantes para ter certeza que estamos diante de um homem de todos os tempos, que havia no princípio e precisa continuar a existir.

Luiz Braga, Plateia no Ver-o-Peso (1985)

Plateia no Ver-o-Peso (1985) 

Esta foto faz parte da primeira fase da obra do fotógrafo, quando, em suas palavras, “não tinha o hábito de refletir sobre o meu fotografar” (Arquipélago imaginário, op. cit., p. 23). Pode ter sido uma das que permaneceu por décadas no arquivo, como grande parte do que produziu em preto e branco naquele início de carreira. Para Luiz Braga também foi uma “revelação” a sensação de ter visto as fotos ampliadas pela primeira vez a partir dos negativos revelados no laboratório do IMS no Rio de Janeiro – o primoroso trabalho de impressão é um capítulo à parte na exposição. Detalhes de um barco de médio porte aparecem em pano de fundo, cordas, escadas, o mastro; mais ao fundo vemos a borda da floresta e entre eles a Baía do Guajará. A floresta e o rio não têm foco, sequer emolduram a cena, chegam a ser encobertos por algumas cabeças, parecem estar ali apenas para que saibamos estar diante do rio, nas proximidades do mercado do Ver-o-Peso. Nesta foto da primeira década de sua produção, Luiz Braga já havia feito uma escolha decisiva: toda a exuberância amazônica que revelaria vida afora seria humana, e não apenas isso, também escolheria personagens à margem da vida social e economicamente privilegiada de Belém e arredores. Vemos apenas duas meninas na foto, em primeiro plano, e meio rosto de um menino no canto inferior direito. Tudo indica que são trabalhadores da feira, talvez alguns clientes, metade negros, metade caboclos, em um momento de distração. Olham para o chão, com exceção do adolescente negro com a camiseta envolvendo o pescoço, o único que mira o fotógrafo. Não sabemos o que estão contemplando, estão sérios, alguns franzem a testa compenetrados. No centro da imagem um homem com cabelo Black Power quase se destaca, mas todos os rostos tem expressividade singular, não há protagonistas. Nesta foto, Luiz Braga registra duas representações étnicas fundamentais da formação do povo paraense, os negros e os caboclos – estes com fortes traços indígenas. São os excluídos de ontem e de hoje. Não há ninguém que possa ser chamado de branco. Também não há fregueses, só serventes e seus filhos. A foto tem exatos 40 anos. Quase nada mudou do ponto de vista socioeconômico, mas não parece ser tão-somente isso o que os olhos do fotógrafo viram na cena. A pessoas guardam profunda austeridade. A menina no centro da foto, que parece segurar um isopor embaixo do braço esquerdo, mantém o direito na cintura, tem o semblante rígido como se a atração à sua frente precisasse entregar mais para justificar a interrupção nas suas vendas. Ao seu lado, com uma caixa de madeira na mão, a de cabelos longos está menos sisuda que enfadada, tampouco parece convencida. Todos os homens adultos resguardam em suas expressões rigor e severidade. Há um grande mistério no que não podemos ver e essas personagens podem; é o que mantém a perenidade da foto. O que veem nos perturba e incomoda, da mesma forma como nos confunde olharmos seus rostos impassíveis imaginando o que pensam, o que esperam daquilo que lhes era oferecido então, o que resta de seus desejos hoje.

Luiz Braga, Mulher na Transamazônica (1996)

Mulher na Transamazônica (1996)

Não há emblema mais forte do impacto da chegada da modernidade na Amazônia que a abertura da Rodovia Transamazônica pelo Regime Militar em 1972, cuja intenção declarada era integrar a região Norte ao resto do Brasil através de sua ocupação, de seu povoamento, ignorando com sordidez as pessoas que viviam na região há milênios. O desastre desse processo desordenado se faz sentir ainda hoje, sobretudo em relação à degradação do ambiente antes ocupado predominantemente pelos indígenas e seus descendentes mestiços. Em Bye Bye Brasil, de 1980, Cacá Diegues já mostrava um processo irreversível de destruição e decadência nas margens da monumental rodovia, mas também deixava ver belezas inauditas; Luiz Braga leva aquele impulso cinematográfico ao extremo. Na foto uma mulher de baixa estatura, negra, de cabelos ondulados, caminha em direção ao nada. Estamos em um dos muitos trechos sem pavimentação de uma rodovia que nunca foi finalizada, um emblema do próprio país que deveria interligar. Sua bolsa poderia indicar que não se trata de uma mulher indígena, “aculturada”, seu vestido elegante e suas sandálias de couro permitem imaginar uma migrante nordestina; no fundo, não é tão mal desconhecer sua origem e seu destino, porque ela é muitas, representa as mulheres que lá nasceram e vivem ou que foram obrigadas a se deslocar para aqueles ermos em busca de uma vida melhor; ela vai aonde quer. Se por um lado a foto expõe a pequenez desse corpo em meio à mata densa e ao sem-fim da estrada, por outro expressa a fibra de uma mulher de idade indefinida, que precisa caminhar muitos quilômetros todos os dias. Enfrentar a temida BR-230 sozinha, comendo a poeira dos caminhões que a atravessam, diz tudo sobre sua força e seu destemor. Ao seu redor, a floresta parece querer reocupar o espaço rasgado através dela. Esta convivência do humano e da natureza é um dos grandes desafios quando se quer pensar a ocupação da Amazônia. Deixá-la existir em sua complexidade ou ocupá-la, produzindo através dela; que destino lhes resta é a pergunta que devemos responder urgentemente.

Luiz Braga, Promesseiros (2006)

Promesseiros (2006)

Luiz Braga fotografou o Círio de Nazaré incontáveis vezes. Nesta foto vemos um recorte de uma das formas de devoção mais impactantes da procissão, a corda, símbolo máximo da fé dos romeiros. Muitas camadas de sentido atravessam este registro. A primeira e mais impactante delas é erótica. Homens jovens apoiam-se uns nos outros segurando seus bíceps, tão próximos que nada se interpõe entre eles. Raro momento em que a masculinidade cede espaço ao contato entre indivíduos sem que seu orgulho seja ferido, como num efusivo abraço depois de um gol. Os pés descalços, a mistura de suores, a exaustão de horas que parecem não passar iguala todos diante da padroeira. Quando a corda passa o pânico se instala na multidão, não há controle sobre a força e o sofrimento que arrasta. Por outro lado, temos uma segunda camada importante representada neste instantâneo: a revelação da fé na sua integralidade, sem clichês, adornos e subterfúgios. O Círio, como parte da “identidade paraense” juntamente com a comida, a música, a linguagem e seus sotaques não escaparam aos estereótipos do que hoje é reivindicado como “autêntico”, “único” e “simbólico”, sobretudo pelos manipuladores da opinião pública e comunicadores dos mais variados espectros; como não faltam oportunistas nos seus camarotes, chorando em público quando a santa passa, enquanto transmitem ao vivo para o Instagram. Neste e nos demais registros do Círio, Luiz Braga revela um momento de alta representatividade, e consegue a proeza de contornar todas as representações oficiais, embora muitas vezes tentem cooptar seu trabalho; sem sucesso. Homens debruçados uns nos ombros dos outros, prostrados, conduzidos de arrasto, promesseiros ou não, que esperam mais do mundo e da vida.

Luiz Braga, Cavaleiro marajoara (2018)

Cavaleiro marajoara (2018)

Das fotos comentadas aqui, esta é propositalmente a única que nos desloca, que suspende a realidade por um instante ilusório e etéreo. É uma das fotos que arrastam o espectador para um espaço mítico. O cavaleiro e seu animal estão fora do tempo, o espaço em torno deles é uma continuação dos seus corpos. A figura deste homem remete a muitas lendas e mitologias, não só locais, mas transnacionais, não só regionais, mas também seculares. Duas em especial falam mais alto: o mito de Narciso e o sedutor boto, que nas narrativas populares engravida mulheres incautas. Seu chapéu oculta suavemente o rosto, parece contemplar a própria imagem refletida no fio de igarapé sob os pés do animal. A técnica tem aqui um papel decisivo. Seriam outras as impressões se estivéssemos diante de uma foto em cores vivas. O verde abundante da mata possivelmente faria nosso personagem e sua montaria desaparecerem. Compondo a série “Night Vision”, a foto suspende os laços que separam nós e eles, local e universal, até mesmo a “identidade” amazônica é obstruída e anulada propositalmente. O herói é um ser além do mundo. Nesta foto, em especial, Luiz Braga sugere uma integração total do homem com a natureza, elimina suas abissais diferenças, cria um Éden atemporal, agnóstico e fantástico. A frondosa árvore arqueada protege e acolhe, mas é um instante em que não há nenhum temor, porque as coisas só existem como parte do todo do universo. Nesta foto extraordinária, o homem não é nada.

Luiz Braga, Guardiãs no templo (2023)

Guardiãs no templo (2023)

A fé católica não é exclusiva nas comunidades amazônicas, e não é de hoje. Na Ilha do Marajó a presença dos pajés é secular, e predominante. Não causa estranheza que religiões cristãs evangélicas também tomassem seu quinhão. Esta foto mais recente mostra um pequeno templo construído de costas para uma área de floresta. Ao lado, nos fundos, um pequeno banheiro sem reboco parece ter sido construído para outro uso que não o dos fiéis, destoa do prédio, quase o ofende. O azul da tintura misturada à cal faz do pequeno templo uma anomalia entre o chão de terra e a mata. O zelo é total. A forma de captar a intensidade de cores que marca o trabalho do fotógrafo está presente aqui, sob luz natural. Um casal ladeia a porta central, posaram para a foto com orgulho, empunham cabos de vassoura como carabinas. O que resguardam? Sua fé? Seu templo? Sua escolha pentecostal? Comportam-se como o personagem de Dino Buzzati em O deserto dos tártaros, Giovanni Drogo, isto é, cumprem sua função vigilante com grande senso de responsabilidade. Estão ali em frente ao monumental espaço que lhes cerca, a floresta que lhes parece desconhecida, temem que sua fé simplória seja vilipendiada, creem, como todos, que a salvação virá, que nada pode interromper seus laços com essa espiritualidade de empréstimo. Esperam a redenção, e creem piamente que ela chegará.

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Henry Burnett é compositor e professor titular do departamento de filosofia da EFLCH/Unifesp. Publicou Cinco prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche (Tessitura, 2008), Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música (Editora Unifesp, 2011), Para ler O Nascimento da Tragédia de Nietzsche (Edições Loyola, 2012), Para ler O caso Wagner de Nietzsche (Edições Loyola, 2018) e Espelho musical do mundo (Editora PHI, 2021), além de vários álbuns musicais, entre eles Não para magoar (2006), Canções da infância inteira (2020) – em duo com Julia Burnett – e o álbum duplo antologia_50_solo e antologia_50_parceria (2021). Meio-dia (7letras, 2021) foi sua estreia na prosa literária. Seu livro mais recente reúne uma seleção de ensaios e artigos publicados nos últimos 20 anos em torno do seu tema mais frequente, Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil (Edusp, 2024).


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