O professor Renato Araújo da Silva. Crédito: Rosana Gonçalves

Por Renato Araújo da Silva

Ainda com crise de identidade e às margens do centenário da Semana de 22 e do período africano de Picasso, a arte brasileira, em sua “virada cultural”, continua o seu rumo procurando possíveis respostas para o velho desafio modernista. Como a arte do início do século XXI poderia fazer frente ao seu uso instrumental asfixiante dentro do multiculturalismo, identitarismo e a aflição de se tornar uma mera inclusão social (financeira) de alguns artistas e instituições, quase todos ciclicamente à beira da insolvência, quer seja econômica, moral ou existencial? Cem anos percorridos, aboliu-se mesmo o futuro primitivo?

Para o nacional modernismo, parece que o desafio estrutural era uma busca sincera por uma identidade brasileira distinta das imposições externas, ainda que vagamente identificada às culturas mestiça, indígena e negra nacionais. Como técnicos, os modernistas quiseram organizar essa equipe, naquilo que os atletas tinham de mais “primitivo”, “genuíno” e “autêntico” – isso a despeito da agressividade e violência com que foram tratados no país desde sempre. Enquanto o fundamento dessa identidade afro-indígena brasileira no flerte próprio das classes médias culturais esteve continuamente em ebulição, não supúnhamos que também estivesse em jogo.

Passado esse tempo, o que impediu a realização da vitória modernista neste jogo da arte e da sociedade? Dito de outra forma, por que o “herói da nossa gente” e a divisa tupi or not tupi deixaram rapidamente de fazer sentido já lá atrás, em seu lapso histórico original, porém isolado, quase idealista? Os historiadores sociais que se debruçaram sobre esse problema culparam acertadamente as modificações advindas da segunda grande guerra (a política da boa vizinhança), as ditaduras Vargas e a militar, o fado provinciano daquele Brasil “país do futuro” eternamente agrário, atado ao passado colonial, oligárquico, clientelista, entre outros atrasos que tanto nos definem. No entanto, há algo de extremamente notável na arte brasileira, ainda difuso e mesmo assim bastante óbvio e que, tão logo emerge, vai sendo constantemente varrido para debaixo do tapete: no campo onde se joga a arte, uma das regras do jogo é o racismo.

Tal como aquela agressividade que o ego (identidade) introjeta, internaliza no sentido de si próprio criando o superego e o sentimento de culpa, a agressividade contra a identidade mestiça ou afro-indígena na civilização brasileira – ou seja, o nosso racismo – expressou-se na forma de uma necessidade de punição e autopunição. Como o indígena foi absolvido dentro de nós citadinos ou fora expulso do jogo e desde o início desterritorializado, como é extemporâneo, isto é, já nasceu assassinado, que se puna, então, o negro! 

Antes das rupturas e interrupções “por falta de luz”, o jogo modernista prosseguia com excelentes jogadores que explicitaram a identidade afro-indígena brasileira; na “zaga”: Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr.; tivemos poucos bons goleiros!, mas atacantes, sim, muito bons: Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Joel Rufino, entre tantos outros. Mas hoje, com estes jogadores física e ideologicamente mortos e com este jogo sem possibilidades de prorrogação, quão gigante deverá ser o peso para a consciência da historiografia da arte brasileira se o negro e o índio tiverem de ser incluídos “por cotas” ou apenas na forma do sentimento de culpa?! Pior ainda, que reedição de um desastre social emergiria se essa inclusão acontecesse no mundo artístico apenas por pressão forçada a partir do multiculturalismo (em sua contraditória evocação pós-racial)? Que estratégia de negócios acolheriam os negros em museus e galerias senão a mesma dos algoritmos e anúncios focais – a dos números? No momento desse massacre cultural da sociedade digital –, esta que ajudou a dar o último golpe para fazer desaparecer não só a identidade negra dentro da brasileira, mas o próprio interesse numa identidade qualquer que não fosse a consumidora – o fundamento afro-índio-mestiço-luso-brasileiro é vislumbrado agora na forma desse game over deprimente que nos acorda: a perda da bela partida antropofágica que parecia de vitória tão certa aos olhos joviais de um Mário e um Oswald
de Andrade.

Os Macunaímas das ruas, assim como os Timótheos e Estevam Silvas dos museus, estão sendo cirurgicamente exterminados na raiz. Premia-se o garrancho na estética da sociedade de consumo, porque o escândalo foi deglutido e naturalizado. É por isso que hoje, apesar do noticiário mainstream e dos “mapas da violência”, o racismo na era digital volta à esfera da indiferença ou do tabu. Na era da pós-verdade e do “salve-se quem puder” impostos pelas grandes corporações e novas oligarquias, a diminuição da dignidade humana é proporcional ao aumento da dignidade da máquina, assim como a elite negra e os negros artistas ora chamados ao gueto pelas ondas de valorização institucionais das quais participam como alimentos, o fazem dentro de um risco calculado: não por dignidade e talento, mas pela vazão deste sentimento de culpa mesclados ao cumprimento das ordens do politicamente correto.

Como falar agora de arte brasileira, corpo negro, consciência negra, arremedos de cidadania, resquícios da dialética do senhor e do escravo se todos nós somos mais ou menos escravos dos números e dos algoritmos? Apenas para falar o óbvio ululante de que “uns são mais iguais que outros”? De que negros também fazem arte? De que Black lives matter? A única resposta possível é que tendências sociais muito mais profundas advindas da trágica (ou patética) lógica cultural do capitalismo tardio impuseram a todos nós, seres biológicos, que joguemos no mesmo time: o dos derrotados; mas sem crises de identidade, porque não há como falar de uma arte brasileira se ela não for realmente brasileira.

Arte afro-brasileira, a propósito, não é um estilo, não é uma vanguarda, sequer mesmo um movimento social ou artístico; é a arte do Brasil – senão pleonasmo. Mas, neste caso, ter vergonha do que somos ou tentar nos livrar do prefixo “afro”, deste substantivo composto, união semântica de palavras tão sinonímias, supondo que com isso aliviaríamos tensões sociais, pesos de consciência ou pressões temáticas sobre uma certa “liberdade do artista”, seria o mesmo que refrear aquela pulsão carnavalesca que reside em cada brasileiro e força-la de volta para o inconsciente de onde invariavelmente ela voltará a gritar: Arte!Afro-Brasileiros!


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