Abertura oficial do seminário

O alerta do educador José Eduardo dos Santos, em sua fala final no VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, sobre um iminente encerramento das atividades do Acervo da Laje (Salvador), é, a um só tempo, exemplar da precariedade com que atuam as iniciativas culturais na periferia da institucionalldade oficial, como também um eco de resistência das narrativas e práticas contra-hegemônicas, tema dos encontros que aconteceram nos dias 20 e 21 de março, em Vitória, no Espírito Santo.

Com patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, o Seminário, em parceria com o Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), foi uma realização da Atmo e da Arte!Brasileiros, por meio da Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC) e do Governo do Estado do Espírito Santo / Secretaria de Estado da Cultura, que entende o papel e a importância da esfera pública de incentivar e investir em debates sobre temas emergentes, como a decolonialidade e a crise climática.

Para o Acervo da Laje, iniciativa concebida e liderada há quase 15 anos por José Eduardo Santos e Vilma Santos, assim como o Sertão Negro (Goiânia), a sobrevivência de suas propostas passa, não sem certa ironia, por uma inserção em parâmetros institucionais, a exemplo da criação de um CNPJ, como apontou Luciara Ribeiro, representante do projeto goiano criado pelo artista Dalton de Paula, que, não à toa, cogita ter Luciara como sua diretora, novamente num movimento de institucionalização nos moldes de entidades museais e de centros culturais inseridos em estruturas hegemônicas. O nó górdio dessa complexa equação? A obtenção ou captação de verbas que viabilizem e mantenham suas atividades, mesmo quando anti-majoritárias em suas essências artística e ideológica.
Em entrevista à Arte!Brasileiros após a sua fala, Santos ressaltou que é preciso haver uma discussão sobre a redistribuição de recursos e editais, “para que esse dinheiro da cultura chegue aonde tem que chegar: aos artistas, agentes de culturas, às populações mais vulneráveis, porque isso vai possibilitar que a arte brasileira conheça uma diversidade maior de expressões e vai favorecer outros circuitos de existência.”

Pertinente e urgente, a fala de Santos sintetiza parte das discussões que permearam tanto os workshops, que aconteceram no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), quanto as mesas do Seminário em si, realizado no teatro da Casa da Música Sônia Cabral. Houve também o compartilhamento de experiências e um tom propositivo.
Vale ressaltar que, ainda que compreendam o papel social, de acolhimento e proteção das comunidades em seus entornos, estas iniciativas e os agentes culturais à frente delas reivindicam o reconhecimento – e, claro, a remuneração – da produção de pensamento e das experimentações artísticas que ensejam e promovem.

Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas

A APRESENTAÇÃO

Com curadoria de Nicolas Soares, Fabio Cypriano (jornalista e crítico de arte, diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Arte da PUC-SP e membro do conselho editorial de Arte!brasileiros), e de Patricia Rousseaux, fundadora e diretora editorial da Arte!Brasileiros, as mesas do Seminário tiveram início na tarde do dia 20/3.

Fabricio Noronha, Secretário da Cultura do Espírito Santo e Presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, abriu a primeira noite do Seminário ressaltando a importância da parceria do Governo do Estado com a Arte!Brasileiros, com Nicolas Soares, curador e diretor do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) e de gestores de demais equipamentos culturais envolvidos no projeto, assim como da produtora Atmo, em nome ds curadora Clara Sampaio.

Soares relembrou um ciclo de debates realizado em 2019, quando ele estava à frente da galeria capixaba Homero Massena, que ele considera como uma gestação, ainda não assim imaginada, do Seminário, quando houve uma aproximação com a Arte!Brasileiros, que à época já demonstrava seu interesse pela produção artística do Espírito Santo.

Fundadora e diretora-editorial da Arte!Brasileiros, Patricia Rousseaux destacou em sua fala inicial que, durante o governo obscurantista de Bolsonaro, empreendeu um mapeamento de iniciativas culturais que resistiam ao ataque sistemático do poder vigente. Encontrou, em estados como o Ceará e o Espírito Santo, uma “intenção pública e política”, que não se via no eixo Rio-São Paulo, de continuar investindo em nas artes e na educação.
Foi nesse mapeamento que foram identificadas iniciativas como a Casa do Governador e o trabalho que vinha sendo realizado pelo MAES. O resultado foi o desejo de realizar o Seminário em Vitória, abrindo espaço para de discutir os retrocessos que estamos vivenciando em escala global, na educação, na cultura, na ciência, na luta ambientalista e no respeito pelo outro. Para Patricia, são consequências das marcas indeléveis deixadas pelo colonialismo, perpetradas e agravadas pelo neoliberalismo.

Em seguida, houve uma performance de Glicéria Tupinambá, tendo como pano de fundo vídeos, propositalmente sem som, para falar do silenciamento histórico do Manto Tupinambá, uma vestimenta sagrada utilizada em rituais e cerimônias de seu povo. Um exemplar que estava em um museu da Dinamarca foi devolvido em 2022? ao Brasil e sua reinvidicação pelos tupinambás contraria uma narrativa, até pouco tempo tida como verdade histórica, sobre a extinção desse povo. Há um território no sul da Bahia que atualmente luta por sua demarcação.

Durante sua participação, Glicéria falou da importância da arte como um espaço para o debate com a sociedade, abrindo diálogos. Ao fim, ponderou que as pessoas que ocuparam o país aqui deixaram canhões e fortalezas, ao passo que os tupinambás legaram, ao mundo, o que há “de mais belo, precioso e frágil”, que é o Manto Tupinambá de 400 anos, hoje de volta a um território tupinambá, a uma terra dos povos originários, que é o Rio de Janeiro.

“E eu falo que a gente depois ocupou o Velho Mundo. A marca disso são os outros mantos, que estão ainda na Itália, na França, na Suíça, na Bélgica, E trazer tudo de volta não resolve. Eu penso para além do museu. Quero entender a nossa história, que não passa apenas pelo roubo, mas pela diplomacia. È preciso ter cuidado com o que falamos, porque podemos cometer alguns erros. Mas é possível reverter algumas narrativas. Todas podem coexistir. Existe mais uma, além de roubo”, disse.

O SEMINÁRIO, DIA 1, MESA 1
Retina colonial

Com o título Experiências da luta anticolonial no sistema das artes: por uma contraofensiva saudável, radical e com amor, e mediação de Fabio Cypriano, a primeira mesa teve como participantes Lia D Castro (artista, São Paulo), Marcus Vinicius Sant’Ana (historiador, pesquisador do ES) , Guilherme Marcondes (sociólogo, antropólogo, UFRJ, SP).

Cypriano apresentou a artista paulista Lia D Castro e ressaltou que ela atua de maneira transversal no terreno das artes visuais. Destacou que Lia lança mão da prostituição, com garotos na faixa etária de 18 a 25 anos, brancos e auto-declarados heterossexuais, como ferramenta de trabalho e investigação sobre raça, gênero e sexualidade. Lia então citou o que teria sido uma fala de cliente: “A prostituição é fundamental para manter a ordem social que é o padrão de família”. Para ela, essa premissa coloca o trabalho da prostituta como uma proposta colonial para que essa manutenção ocorra.

“Como uma mulher trans e prostituta, percebi que poderia trazer outras narrativas em relação à prática sexual. O meu interesse era usar a prostituição como forma de diálogo para poder entender quem são esses homens. Parto da pergunta que nomeia o projeto – Seus filhos também praticam? – em que eu satisfazia o desejo sexual deles em troca de informação da maioria deles – homens cisgêneros, brancos, das Forças Armadas e das policia – sobre como a criminologia ou a Justiça via as pessoas pretas e as pessoas transexuais.

Lia também citou um texto intitulado “Ignorância branca”, do jamaicano Charles Mills, em que o filósofo e escritor, segundo a artista, critica como a cultura pensada pelos brancos é marcada pela ausência da informação e da verdade, o que criaria uma memória de caráter colonial. “Ou seja, também o branco passar por um processo colonizador”, disse. Por conta disso, o interesse de Lia não era mudar a relação de seus clientes quanto a ela, mas entre si mesmos. E mais: a inclusão e a representatividade em diversos setores da sociedade não são suficientes. Elas se tornaram uma armadilha para pessoas pretas, por exemplo.

“Não queremos ser inclusas em ambientes racistas. Nem assimiladas pelas pessoas brancas. Eu comecei então a entender que via o mundo com o olhar do homem branco. Uma retina colonial que impacta culturalmente a todos nós, pessoas pretas, trans, da periferia etc.”, afirmou, Para Lia, a branquitude, assim como a cisgeneridade, são sistemas. Para ela, quando falamos de narrativas decoloniais e anti-hegemônicas é necessário quebrar os pactos daqueles sistemas. Não se trata apenas de discursos, mas de práticas que devem ultrapassar a fronteiras dos museus, por exemplo, e alcançar outros espaços da sociedade.

Histórias invisibilizadas

O segundo participante da Mesa 1 foi o historiador e professor Marcus Vinicius Sant’Ana que, por meio de vídeos publicados no Instagram (@santanamarcusvinicius), entre outras iniciativas, em que relata fatos e recupera personagens históricos invisibilizados, de modo similar ao projeto Tá na História, do petropolitano Thiago Simão Gomide e inspirado no “movimento liderado por Luiz Antônio Simas de ver a rua como uma vertente importante da cidade”, como escreveu Maria Hirszman na edição 70 da Arte!Brasileiros.

Também mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela Universidade Federal dos Espírito Santo (UFES), Sant’Ana iniciou sua fala ponderando que a academia não dá a mesma dimensão – ou ainda propriedade e hierarquia – sobre manifestações populares, objeto de seus estudos e ensino, quanto a vivência delas. “Antes de ser historiador e pesquisador de cultura popular, eu sou sambista, que desfilou na Unidos de Jucutuquara pela primeira vez aos 9 anos de idade”, pontuou.

Em vez de falar a respeito dos assuntos que estuda, o historiador afirmou que iria se debruçar sobre o processo de suas pesquisas. Em um slide, Sant’Ana mostrou reportagens sobre o desconhecimento que o capixaba tem de sua própria história. E questionou: “Isso quer dizer que o capixaba não gosta da própria história?” e “quais são os meios que o capixaba tem de conhecer a sua própria história?”. Comentou que o estudo da história oficial do estado se limitava em geral a decorar quais foram seus governadores após o período colonial e quais as respectivas realizações.

Isso teria sido o ensejo para ele desenvolver seu projeto, ressaltou que, na Casa da Música Sônia Cabral o público estava num lugar privilegiado, o centro histórico da cidade. “Quando a gente por este lugar, mesmo que seja em nosso cotidiano, a gente tem contato com essa história? Ela é contada, é convidativa?, perguntou. A resposta veio na forma de outro slide: uma estrada de pedras, de 200 anos, na Gruta da Onça havia sido coberta por cimento, levando a uma investigação do Ministério Público do Espírito Santo. “Essa estrada foi feita por escravizados da Fazenda de Jucutuquara, que a usavam, por exemplo, para quaisquer tipos de atividades comerciais e ela foi acimentada numa reforma”, explicou. Em tempo: a trilha é registrada como sítio arqueológico no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Noutro slide, Sant’Ana mostrou a estátua de bronze de Dona Domingas, “uma mulher negra, escravizada, que vagava pela cidade catando papel e madeira, dizia-se à sua época que tinha mais de 100 anos”, contou. “O que ela catava, vendia para seu sustento. O que sobrava, ela usava para encomendar uma missa pelas almas do escravizados”.
Instalado próxima ao Palácio Anchieta, sede do poder executivo do estado do Espírito Santo, o monumento não tinha qualquer identificação há mais de 30 anos, segundo o historiador. “Quem passa por ali, não têm ideia de quem ela foi. E não sei se vocês sabem, mas ela está numa praça, que se chama Franklin Delano Roosevelt, que foi presidente dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial”, disse. “Isso é uma sintoma de que, mesmo que a pessoa tenha interesse de conhecer a história capixaba, ela não vai ter facilidade para poder aprender”.

Sant’Ana listou a seguir “atos amenizadores” desta invisibilização – ou, por vezes, distorção – da história, que ele aplica a seu projeto: vídeos que trazem a história do Espírito Santo; citação de fontes; fomento à cultura; curta duração; referências visuais do cotidiano”. E salientou que essa história do estado é, sim, desbravada, com pesquisas e artigo maravilhosos no departamento de História da UFES. “Mas eu sentia a necessidade de ter contato com o público. Foi então que ele começou a gravar os vídeos que veicula em rede social.

Aos vídeos, o historiador passou a promover uma “imersão” por meio de “caminhadas que contam a história e a história preta” de Vitória, assim como a “passagem por pontos que expressam ou rememoram fatos e personagens históricos”. “Eu não poderia simplesmente tentar passar informações sobre uma igreja do século 18 [Igreja de Nossa Senhora do Rosário] em dois minutos, sem destrinchar tudo que ela tinha de conhecimento histórico”, ponderou.
“Mas, no caso da caminhada sobre história negra, se temos 20 pontos de interesse em mente, em mais de 15 deles eu terei que lidar com a imaginação porque esse lugares já não existem mais e são pouquíssimas a referências históricas”.

Interseccionalidades

Em sua participação na Mesa 1, o sociólogo e antropólogo Guilherme Marcondes compartilhou reflexões sobre sua trajetória acadêmica e profissional, destacando os desafios enfrentados como artista e pesquisador negro no Brasil. Ele abordou a interseccionalidade das opressões — racismo, machismo, classismo e homofobia — e como essas experiências moldaram sua perspectiva e atuação no campo da arte contemporânea.
Marcondes discutiu sua pesquisa de doutorado em sociologia na UFRJ, na qual investigou os caminhos de inserção e consagração de jovens artistas no circuito artístico. Enfatizou a importância da legitimidade, visibilidade e do reconhecimento para esses artistas, e como as estruturas de poder e dominação influenciam suas trajetórias.

Além disso, destacou a necessidade de desmistificar a ideia de que “na arte tudo pode”, apontando para as regras implícitas que regem o mundo da arte e a importância de compreendê-las para uma inserção bem-sucedida. Ao longo de sua fala, Marcondes também compartilhou experiências pessoais de discriminação e violência, ressaltando a resiliência necessária para superar tais obstáculos e alcançar seus objetivos acadêmicos e profissionais.

Ele concluiu sua fala incentivando os jovens artistas a se conectarem com suas pesquisas estéticas e a buscarem reconhecimento sem se submeterem aos desejos de galerias ou curadores, valorizando sua autonomia e autenticidade artística.
Proposições

Em seguida, houve um debate mediado por Fabio Cypriano, que lançou algumas questões aos participantes. Cypriano indagou como as instituições culturais podem incorporar práticas decoloniais de forma efetiva, indo além de ações simbólicas. Perguntou de que maneira a arte pode ser utilizada como ferramenta de resistência e transformação social e, por fim, quais são os desafios enfrentados por artistas e pesquisadores na promoção de narrativas contra-hegemônicas no panorama artístico atual.

Marcus Vinicius Sant’Ana abordou a relevância de repensar os currículos acadêmicos e os programas de formação artística, propondo a inclusão de perspectivas afro-brasileiras e indígenas como forma de combater a hegemonia eurocêntrica. E sugeriu que as instituições culturais adotem políticas afirmativas e criem espaços de escuta ativa para artistas e pesquisadores de diferentes origens.

Já Guilherme Marcondes enfatizou a importância de compreender as estruturas de poder que permeiam o sistema artístico, destacando que a transformação só será possível com a desconstrução dessas hierarquias. Incentivou a criação de redes de apoio e colaboração entre artistas, pesquisadores e instituições comprometidas com práticas decoloniais, visando a construção de um ecossistema artístico mais justo e representativo.
Do público, vieram perguntas, por exemplo, acerca da inclusão de artistas periféricos e de suas narrativas nas grandes instituições culturais. E também sobre a forma como o ensino de arte pode contribuir para a desconstrução de paradigmas eurocêntricos. Para Lia D Castro, é importante reconhecer e valorizar as práticas artísticas que emergem das periferias, enfatizando que essas expressões são fundamentais para a construção de uma cultura verdadeiramente inclusiva.

Lia ressaltou ainda a necessidade de as instituições culturais se abrirem para diálogos horizontais, permitindo que vozes historicamente marginalizadas tenham espaço e protagonismo.

DIA 1, MESA 2
O desafio da luta decolonial nas instituições

A segunda mesa do primeiro dia do Seminário teve como palestrantes Deri Andrade (pesquisador e curador, Inhotim, BH); Luciara Ribeiro (pesquisadora, Sertão Negro, Goiás); José Eduardo Santos (pedagogo, doutor em Saúde Pública, Acervo da Laje, Salvador), com mediação de Nicolas Soares.

Soares iniciou a mesa destacando a importância de repensar as estruturas institucionais para acolher narrativas historicamente marginalizadas. Ele enfatiza a necessidade de ações concretas que vão além de iniciativas simbólicas, afirmando que “não basta abrir espaço; é preciso transformar as estruturas que perpetuam exclusões”.
Deri Andrade compartilhou sua experiência na promoção de artistas negros e indígenas. Ele ressaltou a importância de políticas institucionais que garantam a presença contínua desses artistas nos espaços culturais, afirmando, em consonância com a falar de Soares, que “a inclusão precisa ser estruturada, não episódica”.

Já Luciara Ribeiro abordou a necessidade de descolonizar os currículos acadêmicos e as práticas curatoriais. Ela destacou que “a decolonialidade não é uma tendência, mas uma urgência”, enfatizando a importância de reconhecer e valorizar os saberes tradicionais e ancestrais nas instituições culturais.
Por fim, José Eduardo Santos falou de sua experiência na construção de espaços culturais comunitários. Ele enfatizou que “a cultura é um direito, não um favor”, e que as instituições devem atuar como facilitadoras, não como gatekeepers, para garantir o acesso equitativo à produção cultural.

O debate da Mesa 2 reforçou a necessidade de uma transformação estrutural nas instituições culturais brasileiras, promovendo práticas decoloniais que reconheçam e valorizem a diversidade de narrativas e saberes presentes no país.

O primeiro dia do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com um show de Fabriccio. Natural de Vitória (ES), ele é multi-instrumentista, compositor e produtor musical. Suas canções exploram temas como afetividade, sensibilidade masculina e espiritualidade, com influências da literatura, do cinema e da magia presente no cotidiano.

O SEMINÁRIO, DIA 2 – ABERTURA
a dupla fratura da modernidade

Na tarde do dia 21/3, na Casa da Música Sônia Cabral, teve início, as 17h, o segundo dia do VIII Seminário. Após breve apresentação de Patricia Rousseaux, a abertura dos trabalhos ficou a cargo do escritor e pensador martinicano Malcom Ferdinand, autor de Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho (Ubu Editora).

Em seu livro, Ferdinand faz. Ele também introduz o conceito de “dupla fratura da modernidade”, referindo-se à separação entre natureza e cultura e à desconexão entre lutas antirracistas e ambientais. Essa fratura, Ferdinan defende, impede uma compreensão abrangente das injustiças ecológicas, pois desconsidera a exploração da natureza e a opressão de povos colonizados.

Em sua apresentação, que durou cerca de 40 minutos, Ferdinand ressaltou que era um homem negro pertencente à “academia francesa branca, uma mistura rara, que pode explicar o contexto” a partir do qual ele produz seu trabalho. Ele defendeu a própria noção de planeta Terra e meio ambiente é um “constructo colonial” e que a forma como damos significados as coisas não está separada de um imaginário que temos delas, algo que demanda o que ele chama de “decolonização ecológica”.

Como exemplo, citou que, do “choque entre o Velho e o Novo Mundo”, com a “descoberta” das Américas, por Cristóvão Colombo, teria sido imposta uma perspectiva de “habitar colonial”, baseada na dominação e exploração, para além da “conquista de terras, do estupro, do genocídio de povos”, que inclui ainda a prática de nomear coisas e seres vivos.

O escritor trouxe à tona o conceito-chave de sua pesquisa – a dupla fratura da modernidade – que faz uma crítica ao modelo dominante de ambientalismo, que muitas vezes ignora as dimensões coloniais e raciais da crise ecológica. O movimento ambiental e sua ideia de preservação partem de uma noção de refúgio para o homem branco, ligada ainda à ideia de remoção de povos originários.

Também o conceito de pesquisa – em meio a corpos não brancos – foi criticado por Ferdinand por seu caráter “extrativista”, que implica em um pesquisador investigar determinando assunto em uma comunidade, por exemplo, colher os fruto e nada dar em troca. “Quem determina o que é pesquisa, que decide o que é ou não ciência?”, indagou.
A proposta de Ferdinand é desenvolver uma ecologia decolonial que reconheça e valorize os saberes e práticas dos povos originários e afrodescendentes, com modos de vida que promovem uma convivência mais harmoniosa com o meio ambiente. O autor enfatiza a importância de integrar as lutas antirracistas, anticoloniais e ecológicas para enfrentar efetivamente a crise ambiental contemporânea.

Ao fim de sua apresentação, Ferdinand abriu espaço para perguntas da plateia. Guilherme Marcondes, que havia participado do Seminário na noite anterior, pediu que Ferdinand elaborasse mais a sua crítica ao conceito de Antropoceno, termo usado para descrever uma nova época geológica proposta, caracterizada pelo impacto significativo e duradouro da humanidade na Terra.

“O antropoceno não é apenas um conceito, mas uma história do mundo e da Terra, que tem a sua gramática, sua linguagem e sua hierarquia de valores. Um conceito romovido por uma pessoa em particular, um cientista holandês, que ganhou um Nobel. Mas o que é importante é o fato de ele ser de um país colonizador. Então ele está elencando os países que horam colonizados pela Holanda. E todo mundo aceita essa narrativa de um homem branco. Eu proponho outra palavra, o negroceno. Seria bom para todos. A tarefa decolonial é tornar possível uma pluralidade”, argumentou Ferdinand, em sua fala final.
Em seguida, aconteceu a Mesa 3, intitulada A deseducação potencial, mediada por Gabriela Leandro Pereira (Gaia) e com a participação de Horrana de Kassia, Gleyce Heitor e Napê Rocha.

Como mediadora, Gabriela, arquiteta capixaba que leciona na Univeridade Federa da Bahia, propôs uma reflexão sobre o conceito de “deseducação potencial”, questionando as estruturas tradicionais de ensino e aprendizagem. Ela destacou a importância de práticas educativas que valorizem saberes ancestrais e experiências comunitárias, desafiando os modelos eurocêntricos de conhecimento. Em seguida, Gaia passou a palavra para as participantes da mesa, “muito interessada no olhar crítico, cuidadoso, que elas têm desenvolvido nos seus trabalhos, nas suas atuações.

DIA 2, MESA 3
Recusa e reapropriação

A educadora e curadora Horrana de Kassia compartilhou sua experiência no Instituto Moreira Salles, enfatizando a necessidade de repensar as instituições culturais a partir de uma perspectiva antirracista e decolonial. Ela discutiu estratégias para tornar os espaços culturais mais inclusivos, promovendo a participação ativa de comunidades historicamente marginalizadas.

Para Horrana, a palavra “desaprender”, presente no título da mesa, encerra uma ideia de uma prática de transformação e indagou aos colegas e público: “O que precisamos desaprender para construir justiça, em especial no campo das artes, da educação e da cultura de modo mais amplo? Questiou ainda como conceber mudar os instituições culturais e espaços de aprendizado para que não sejam mais espaços de manutenção de violência e desmemória.

Recordou um monólogo de Elisa Lucinda em que a poeta, cantora e atriz parte de sua relação com o filho. Horrana então “tomou emprestado” um trecho de reportagem sobre Elisa:

“Para Elisa, a poesia é como construtora da cidadania. ‘Criei meu filho Juliano à base de poesia, e o resultado é avassalador, no sentido da delicadeza, de humanidade, altruísmo, solidariedade e ética. Os poetas levantam a bandeira da paz. Dificilmente o poeta é da cultura da guerra. Juliano é talvez responsável por um dos versos mais bonitos dentro da minha obra. Ele tinha 4 aninhos e disse: mãe, sabe por que eu gosto de você ser negra? Porque combina com a escuridão. Então, quando é de noite, eu não tenho medo. Tudo é mãe, tudo é escuridão’”.

A passagem da reportagem faz com que Horrana não considere desaprender apenas um gesto político, de resistência, mas também de afeto, uma prática sensível de reeinvenção das relações. “E a palavra poética muitas vezes é excluída dos espaços institucionais. Mas tenho acreditado que ela pode e é uma ferramenta fundamental de reconstrução das formas de pertencimento e de reconhecimento”, ponderou.

Para Horrana, desaprender é um processo contínuo. Sua prática profissional , no Espírito Santo e outros estados, atravessa “múltiplos espaços” em sua trajetória, como o MAES, Palácio Anchieta, Galeria Homero Massena etc. Antes de passar por demais instituições, como a Pinacoteca de São Paulo e, hoje, o IMS, ela “já experimentava o museu, e o museu como espaço de aprendizado, mas também de confronto”.

“Os desafios institucionais não são isolados. Estão hiperconectados por processos históricos e políticos ainda mais amplos dos quais sou parte e participante”, afirmou. “Então, desaprender, de partida, no meu entender, tem a ver com reconhecer a minha trajetória, que não se inicia no eixo Rio-São Paulo, mas é constituída por todas essas experiências, memórias, aprendizados que trago aqui”.

Horrana então relembrou sua atuação, como curadora de pesquisa e ação transdisciplinar, numa parceria entre a Pinacoteca de São Paulo e a coleção Ivani e Jorge Yunes, de 2021 e 2022, e em que ela buscou implementar processos curatorias que “desafiaram os modelos rígidos dessas instituições” e propuseram outras narrativas de atuação e mediação com esses espaços. Para ela, a experiência foi como uma “metodologia de ocupação”, no sentido de provocar e promover uma revisão dos espaços a partir dos trabalhos criados pelos artistas envolvidos na exposição resultantes, Atos modernos, entre eles Castiel Vitorino Brasileiro e Misty Queiroz.

Para ela, partindo do contexto do projeto, a ideia de “desaprender” é um gesto político de recusa e reapropriação daquilo que nos foi tirado pela colonialidade”, disse. “Talvez para a [escritora israelense Ariella Aïsha] Azoulay, desaprender não seja apenas um processo de individual, mas uma prática coletiva que nos permite acessar saberes silenciados e reencontrar modos de existir que foram apagados pelo sistema de poder. Desaprender talvez signifique substituir um saber por outro”, sem apagar, eliminar o outro, afirmou.

Crítica e cautela

Gleyce Heitor Gleyce abordou sua atuação como curadora no Inhotim, destacando projetos que buscam integrar arte contemporânea e saberes tradicionais. Ela ressaltou a importância de curadorias que dialoguem com as realidades locais e que promovam a valorização de práticas culturais diversas.

A educadora e pesquisadora ponderou que, na manhã daquele diz, havia levado a seu workshop “metodologias e modos de fazer” ligados à sua expertise e trajetória, mas que naquela noite iria se ater ao tema da mesa, como algo que une as participantes, a proposta de “desaprender”, segundo Azoulay, para a contrução de novos olhares e novas narrativas, assim como o pensamento do educador pernambucano Paulo Freire.

Gleyce então disse que queria fazer uma convite para “termos cautela com a ideia deseducação”, lembrando que aquele era o Dia Internacional Contra a Descriminação Racial, apresentando em seguida um slide em que uma faixa celebrava a entrada de um rapaz de uma comunidade quilombola (Arturos) num curso de medicina.

“A imagem indica a importância da educação, embora a gente venha a passar por aqui por uma crítica às estruturas, aos modelos institucionais de educação”, pontuou. “A educação é, sim, no Brasil, um dispositivo de mobilidade social, principalmente para as pessoas negras, pobres, indígenas.

E, embora sejam espaços de manutenção da violência e reprodução da ordem, é importante ler nossos processos de resistência história com muita nuance, com cuidado para não generalizar, porque, por vezes em alguns espaços subjazem também processos de resistência. A escola também pode ser o espaço de segurança alimentar ou onde as crianças ficam enquanto as mães precisam trabalhar”, salientou.

Encruzilhadas

Natural de Vila Velha (ES), Napê Rocha mora no Rio de Janeiro. Ela trouxe reflexões sobre sua pesquisa no Espírito Santo, discutindo como as práticas artísticas podem servir como ferramentas de resistência e afirmação identitária. Em sua fala inicial, propôs partir da noção de encruzilhada “ como perspectiva crítica para as artes visuais”, como signo de transgressão ou “fenômeno cosmológico, filosófico ou intelectual”. E, ainda, partindo da ideia de, como nos terreiros, conhecimento não se aprende, incorpora-se.

Napê apresentou uma obra sem título, e de autoria compartilhada, da série Procedimentos para desenhar uma encruzilhada, produzida com riscaduras de giz de pemba branca sobre tecido preto em 2023, no Solar dos Abacaxis, no Rio, no contexto de seu programa público.
“A encruzilhada é este lugar da semântica, da sintaxe, onde todos os atos de fala vão acontecer”, disse. “E Exu é o dono do verbo e da palavra falada. No contexto da diáspora, existe uma língua imposta pelo colonizador e a que a gente utiliza para manter os atos de aproximação com a terra de origem”.

Em síntese, Napê enfatizou, a partir, por exemplo, da proposição do pretuguês – segundo Lélia Gonzalez, uma africanização da língua portuguesa brasileira – e do paxubá – dialeto usado pela comunidade LGBTQIA+ no Brasil, com raízes na cultura africana e no candomblé –, assim como na figura de Madame Satã – uma das personagens mais representativas da vida noturna e da Lapa carioca na primeira metade do século XX, que traz em seu nome o cruzamento do feminino (madame) e masculino (satã) – a relevância de narrativas que venham a emergir das periferias e comunidades tradicionais, propondo uma escuta atenta e respeitosa a esses saberes.

“A encruzilhada ousa talvez nos ensinar que esses territórios são lugares da habitalidade, onde todo tipo de criação e recriação acontece, ligadas a transfigurações e transgressões, simultaneamente o centro e a periferia, o verso e o avesso”, afirmou. “Encruzilhadas são um gesto político, que nos coloca a pensar quais posições a gente ocupa ao longo desses caminhos coletivos e individuais, posições transitórias e dinâmicas. E como a gente performa as possibilidades de transgressão diante das políticas de controle dos corpos e subjetividades”.

Em conjunto, as falas das participantes da Mesa 3 convergiram para a ideia de que a “deseducação potencial” reside na capacidade de desaprender modelos opressivos e abrir espaço para formas de conhecimento mais inclusivas e plurais. As três participantes defenderam a construção de práticas educativas e culturais que reconheçam e valorizem a diversidade de experiências e saberes presentes na sociedade

brasileira.

DIA 2, MESA 4
Reconfigurações

Logo após teve início a Mesa 4, com o nome Arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida. Com mediação de Patricia Rousseaux, participaram Sandra Gamarra (artista, Peru) – que representou a Espanha na 60ª Bienal de Veneza, em 2024, com o projeto Pinacoteca Migrante, sob curadoria do historiador Agustín Pérez Rubio –e Luciano Feijão (artista, ES).

Em seu projeto em Veneza, Sandra se debruçou sobre o conceito de “migração”, invertendo narrativas tradicionais, trazendo à tona histórias apagadas e abordando temas como racismo, extrativismo e migração. Nesse contexto, migrantes humanos e não-humanos, como plantas e matérias-primas, tornam-se protagonistas.

A artista fez uma apresentação de seu trabalho, contextualizando cada obra. Ela destacou sua crítica à forma como os museus, especialmente os de arte ocidental, representam as narrativas coloniais e eurocêntricas.

Em seu projeto LiMAC Museo Imaginado de Arte Contemporáneo, realizado no Museu Reina Sofía (Madri, 2023), ela propõs a criação de um museu imaginário que confrontava essas estruturas dominantes. “É um museu que não existe, mas que poderia existir. Um museu construído com obras que vêm de diferentes coleções, como se estivéssemos fazendo uma ficção de museu”, afirmou.
Sandra reconfigurou obras clássicas da arte europeia, inserindo personagens indígenas, elementos da natureza das Américas e símbolos coloniais, para questionar a exclusão de histórias latino-americanas e indígenas na arte canônica. “A ficção do museu é a da neutralidade. Essa suposta objetividade constrói um olhar que exclui outras formas de ver e de contar”, ponderou.

A artista utiliza a pintura – “pinto como uma forma de me aproximar da história da arte, mas também como uma forma de fazer uma crítica a ela” – como meio principal, incorporando textos e elementos museográficos que evocam arquivos, etiquetas e vitrines, desconstruindo a ideia de neutralidade dos museus.

Desse modo, propõe uma reinterpretação crítica das instituições culturais e suas formas de construção da memória, convidando o público a imaginar novos modos de representação que incluam outras vozes e narrativas. Em suma, sua produção tem forte base política e histórica, abordando temas como colonialismo, apropriação cultural e apagamento histórico.

“O que me interessa é como a arte constrói uma memória visual que, muitas vezes, apaga, silencia ou deforma outras memórias”, argumentou. “Quero que o público se pergunte por que olha do jeito que olha, por que uma obra está ali e não em outro lugar, por que algo é considerado arte e outra coisa não.”

O encerramento da mesa ficou a cargo do artista capixaba Luciano Feijão. O artista mencionou um projeto que vem elaborando nos últimos tempos: “Minha pesquisa atual tem como foco uma espécie de anti-anatomia, uma tentativa de criar uma imagem do corpo negro que não seja baseada nos regimes tradicionais de saber, como o científico, o artístico e o pedagógico”, disse.

Feijão criticou a maneira como os corpos negros historicamente foram submetidos a olhares classificatórios, exóticos ou utilitários, tanto na arte quanto na ciência e na educação:

“A história da representação do corpo negro é uma história de dissecação — literal e simbólica. Foi preciso abrir, catalogar, estudar, classificar. Meu trabalho tenta fugir disso, propor outra forma de ver.”
Luciano propõe, então, uma abordagem sensível e ética da imagem, que subverta o olhar objetificador: “Quero uma imagem que se afaste da lógica da exposição e se aproxime da presença. Que não seja sobre mostrar o corpo negro, mas sobre escutá-lo, acompanhá-lo, estar com ele.”

Feijão busca criar um novo vocabulário visual e conceitual que não reproduza o apagamento ou a espetacularização da corporalidade negra: “Não quero oferecer respostas visuais prontas. Talvez meu trabalho seja sobre o que não se vê, ou sobre o que se recusa a ser visto da maneira esperada”, concluiu Feijão, que em seguida apresentou um vídeo que já se debruça sobre sua pesquisa.

ROSANA PAULINO

A artista Rosana Paulino (SP), que não pôde participar do Seminário por incompatibilidade de agenda, gravou um vídeo para Arte!Brasileiros, que foi exibido após o encerramento da última mesa.

Em sua fala, ponderou que, desde que se iniciou nas artes visuais, há cerca de 30 anos, não compreendeu seu pensamento e sua práticas como propriamente contra-hegemônicas.
Seu envolvimento com o ofício partira, ela disse, de “uma necessidade absolutamente gigantesca” de falar quem ela era, discutir de onde vinham e questionar por que “a gente não percebe pessoas negras, ou não percebia, nesse ambiente da arte brasileira, sendo que esse é um país em que oficialmente 58% da população já se coloca com negra”, argumentou.

Rosana também questionou por que a arte feita por pessoas minorizadas sempre foi colocada como uma arte naïf, folclórica, “vamos dizer assim, de menor estatura”. Só depois de muito tempo, prosseguiu a artista, ela percebeu “esse local de contra-hegemonia”.
“Para mim, o que importava menos era pensar uma estrutura política nesse sentido. Na minha época, eu diria que foi por desespero. O modo como eu iniciei as minhas pesquisas vem muito do fato de eu não me encontrar, no início da carreira, dentro das técnicas clássicas, como a gente aprende na universidade”.

Representação

Rosana ponderou que sempre quis olhar para as suas raízes e que, desde criança, tinha paixão por um álbum de fotografias de sua família e queria “usar aquelas pessoas, aquelas imagens que não via dentro da história da arte”.

“Nunca fui muito de pintura. Até hoje as pessoas falam que eu pinto, mas eu acho que mais no campo do desenho. Eu sei costurar, aprendi desde criança”, prosseguiu. “Juntando essa questão técnica a uma observação do ambiente ao meu redor, vai surgir, por exemplo, um trabalho que eu considero que é o primeiro da minha carreira, o Parede da Memória”.
Nessa obra, Rosana reuúne fragmentos de fotografias antigas de sua família colados sobre tecido para produzir uma série de patuás, amuletos iguais ao que ela via no alto da porta de entrada da casa de seus pais. “Ninguém passava debaixo de um elemento desses sem ser tocado, sem ter a sua curiosidade despertada”, lembra. Tecido e costuras também apareceram anos depois em obras de Rosana como a instalação Assentamento e Atlântico Vermelho.

Rosana argumentou também que, como artista, sempre buscou práticas do cotidiano que foram relegadas, que foram “tidas como menores”, como a cerâmica, tratada com queima primitiva, “como indígenas faziam, como os negros faziam, e fui buscar lá atrás essa tradição”. Já em séries mais recentes, como Senhora das Plantas, a artista partiu de uma “investigação sobre o feminino, esse psicológico feminino que a gente não encontra. Olhando questões como o eterno, o sagrado, vemos que tem deus até do Ártico, né? Mas não tinha [uma deusa] negra. E resolvi pensar essa psicologia para o Brasil através do meu entorno, das plantas, que eu adoro”.
A educação

Rosana também ressaltou o papel da educação, em especial de professores e professoras que têm usado o trabalho de artistas afro-brasileiros. “A partir disso, as crianças vão crescendo com outra referência. Na luta antirracista, anti-colonial, anti-hegemônica é absolutamente fundamental, porque você só desrespeita os direitos daqueles que não são considerados humanos”, argumentou.

Por fim, a artista acredita que avanços aconteceram, que não se pode pensar apenas a contemporaneidade, pois no passado muitos ajudaram a esses caminhos, trazendo essas questões antes mesmo que elas fossem colocadas como anti-colonizadoras ou contra-hegemônicas. E ela ressaltou: ainda falta muito.

“O principal é nós termos pessoas desses grupos subalternizados dentro dos espaços de poder. Precisamos de pessoas nos museus, nas instituições culturais, pessoas negras, mulheres, indígenas, pessoas que foram subalternizadas. Nós precisamos ter essas pessoas também nos espaços de decisão”.

O VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com uma apresentação, também no palco da Casa da Música Sônia Cabral, de Douglas Germano (SP), compositor, violonista, que atua na cena musical desde a década de 1980. Com cinco álbuns lançados — Duo Moviola (2009), Orí (2011), Golpe de Vista (2016), Escumalha (2019) e Partido Alto (2021) —, sua obra transita pelo samba e suas vertentes. Foi diretor musical da Cia. Teatro X, assinando trilhas para nove espetáculos, incluindo Calígula (2002), que lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Trilha Original (2003).

WORKSHOPS

Parte da programação do Seminário, os workshops aconteceram nas manhãs dos dias 20 e 21/3, no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo, onde também se deram as inaugurações da instalação Wifi Grátis (ou Intromisssão), de Carlo Schiavini & Elvys Chaves, no Museu de Arte do Espírito Santo, com curadoria de Clara Sampaio e Nicolas Soares, curador e diretor do MAES, e da exposição Abstrações, com obras do acervo da instituição.

Deri Andrade, criador e responsável pelo Projeto Afro – plataforma de mapeamento e difusão de artistas negros-, e curador do Instituto Inhotim Brumadinho, MG), fez uma apresentação intitulada “Estratégias em curadorias decoloniais”.
Com mediação de Ananda Carvalho, curadora e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo, Andrade discorreu sobre a maneira como projetos de pesquisa e exposições vêm se transformando a partir do letramento contra o racismo estrutural e da luta pela diversidade.

Andrade relembrou o projeto expositivo “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, que o Inhotim realizou entre 2021 e 2024, em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). Dividido em quatros, o programa de mostras foi uma ação de curadoria compartilhada, um modelo inédito na história da instituição.
Um caso de estudo de institucionalização de uma iniciativa independentente, trazido à tona por Andrade, foi a mostra Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, desdobramento do Projeto Afro que reuniu, entre dezembro de 2023 e março de 2024, no CCBB SP, trabalhos de artistas como Arthur Timótheo da Costa, Maria Auxiliadora, Rubem Valentim e Mestre Didi e Lita Cerqueira.

No dia 21/3, foi a fez de Gleyce Heitor, diretora de educação do Inhotim, comandar o workshop “Por uma articulação interdisciplinar em arte e educação”, com mediação da professora Margarete Sacht Góes, curadora do programa educativo da Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU/UFES).

Cada vez é mais imperativo um diálogo interdisciplinar entre a cultura e a educação. A arte tem sido um elo fundamental na construção de reflexões sobre o sujeito, seu desenvolvimento e sua relação com o meio ambiente. O workshop discutiu dois casos de implementação destas estrategias. ✱


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