Há um debate necessário, atualmente, sobre a relação entre o artista, as representações contidas em suas obras e o um conceito que vem se constituindo como “lugar de fala”, tendo Djamila Ribeiro como uma de suas protagonistas.
A questão é pensar o que é correto eticamente, agora em 2019, que fique claro, se uma artista ou um artista branco pode retratar, por exemplo, questões indígenas, quando há muitos artistas indígenas que podem falar sobre sua realidade com muito mais propriedade?
Incontornável pensar em Claudia Andujar e toda sua militância com os Yanomami, que muito além de abordar um massacre em curso desde os anos 1970, tornou o combate a ele sua missão central. Sua radicalidade vai a ponto de seu trabalho fotográfico ser na verdade uma extensão dessa dedicação e parte significativa de toda venda de sua obra sobre essa temática ser repassada aos indígenas. Antes do termo ser constituído, Andujar de fato já buscava se aproximar do lugar de fala indígena de maneira radical.
A representação do real, na arte contemporânea, é uma chave essencial para sua própria compreensão e teve início quando artistas passam a usar câmeras fotográficas e câmeras de vídeo, já nos anos 1960 e 1970, que se incorporam ao seu repertório de instrumentos de trabalho.
Vimos aí, aliás, um movimento importante: a saída do espaço protegido de criação como o ateliê para a procura do contato com o outro, com as coisas do mundo, ao mesmo tempo que denota uma atenção para a necessidade de estar disposto a se contaminar por essas coisas do mundo, pelo aleatório e pela surpresa. Esse foi um momento importante da renovação da linguagem artística, portanto da experimentação. Inegável perceber como ela é impulsionada pelo uso de novas tecnologias. Dois artistas usaram esse procedimento de forma exemplar: o norte-americano Vito Acconci e a francesa Sophie Calle.
Em 1969, em Follow Piece, Acconci selecionava, de maneira aleatória, pessoas na rua e as seguia, sem que elas soubessem. A perseguição ocorria até que elas entrassem em um espaço privado, onde a presença do artista não fosse permitida. Se a pessoa entrasse em um cinema, por exemplo, Acconci também entraria pagando a entrada. Essas perseguições podiam durar minutos ou mesmo horas, dependia apenas do percurso do outro.
Para Acconci, que tinha formação em literatura e era um crítico do sistema de arte baseado no mercado, esse tipo de ação significava a própria perda da primazia do artista sobre a obra, já que ele declarava “eu quase não sou mais ‘eu’”. O que ele apresentava como trabalho final, no caso, era um mapa da cidade no qual ele marcava as ruas por onde passava, fotos das pessoas que ele seguiu realizadas sem que elas percebessem, observações e marcações do tempo em cada caminhada.
Percebe-se aí de maneira muito clara como esse empenho em sair do espaço protegido do ateliê representa mesmo essa vontade em abandonar o controle total sobre o trabalho e uma necessidade de observar o outro a partir do uso de instrumentos que são típicos, inclusive, da prática jornalística, no caso de Acconci, a câmera fotográfica, especialmente porque suas imagens seguem o estilo documental: não há encenação, o personagem sequer sabe que está sendo fotografado, compondo, portanto, um retrato “real” dessa pessoa.
Sophie Calle fez algo muito semelhante em Paris, dez anos depois, em 1979, mas de maneira ainda mais radical, quando passa a perseguir pessoas nas ruas da capital francesa até ficar obstinada por uma delas, que ela passa a chamar Henri B., e que chega a conhecer em uma festa. Lá Calle descobre que ele vai viajar para Veneza e ela decide segui-lo secretamente, registrando, por duas semanas, tudo que ele faz na cidade italiana. O resultado é a série de fotos e textos Suite Vénitienne (suíte veneziana), na qual ela atua como espiã e analista, ao fazer uma série de ilações sobre o personagem nos relatos escritos. Ao mesmo tempo, essa perseguição obcecada, em uma cidade romântica como é Veneza, levanta a questão da afeição pelo objeto.
Em ambos os trabalhos há muitos elementos que apontam para características essenciais da arte contemporânea, como a recusa da autonomia da arte e da noção de representação, e, para tanto, a busca de uma experiência efetiva, quem em ambos se concretiza em partilhar uma experiência com o outro. É relevante aí que, em ambos os casos, procedimentos como documentar as ações em fotografias e relatar dados objetivos de cada história se aproximam de práticas do jornalismo. Outro fator próximo do jornalismo é a isenção de ambos na busca por não influenciar quem eles estão perseguindo, não se deixando identificar, assim como o jornalista não deve influenciar nas respostas de seus entrevistados.
Arte e jornalismo
Se a abordagem do real realizada por artistas no início da arte contemporânea já parte do uso de equipamentos e técnicas do próprio jornalismo – vamos lembrar que há 50 anos o jornalismo tinha uma posição mais bem avaliada do que ocorre hoje – o jornalismo também buscou inspiração na arte, especialmente na literatura, naquele período.
Ao longo da história do jornalismo, uma prática que tem por objetivo buscar narrar fatos da maneira mais isenta o possível, levando-se em conta, obviamente, todos os limites e contradições do que significa realizar um recorte do real, muitas foram as tentativas de se utilizar de recursos ficcionais para uma melhor aproximação com o que podemos chamar aqui de fatos.
O chamado “new jornalismo” ou jornalismo literário, como atualmente se denomina essa aproximação com a literatura, tem uma ampla história, tanto nos Estados Unidos, onde se costuma apontar seu surgimento em jornalistas como Truman Capote, Gay Talese, Norman Mailer e Tom Wolfe, como no Brasil, com José Hamilton Ribeiro e Joel Silveira, pensando-se no mesmo período dos anos 1950, 60 e 70. Todos eles usaram recursos ficcionais, como atribuir o que um dos retratados estaria pensando sem ter de fato perguntado isso a ele, baseados, contudo, em dezenas de entrevistas e observações. Em Frank Sinatra está resfriado publicado pela Esquire em 1966, por exemplo, Gay Talese faz um perfil do cantor norte-americano, considerado o melhor texto sobre ele, sem entrevista-lo. Suas descrições da vida do cantor, no entanto, são tão detalhadas e contextualizam tão bem suas atitudes, que não haver a entrevista torna-se irrelevante.
Outros jornalistas que participam dessa vertente possuem práticas até mais radicais, como Hunter Thompson que fazia um trabalho de imersão, ele mesmo se misturando aos personagens sobre os quais iria escrever, sem para isso se identificar como jornalista. Foi dessa forma que ele retratou o grupo norte-americano de motociclistas baderneiros, Hell´s Angels, a convite da revista The Nation, que resultou no livro Hell´s Angels – Medo e Delírio sobre duas rodas. Durante mais de um ano, ele conviveu com os motoqueiros radicais clandestinamente, podendo assim realizar um texto muito realista sobre suas atividades fora da lei. O próprio Thompson denominou esse estilo como “jornalismo gonzo”, uma forma irônica de apontar uma contradição na própria condição de jornalista que é se caracterizar como um personagem, sem assumir publicamente, ficando aí em uma zona bastante questionável eticamente. Na Alemanha, o jornalista Hans-Günter Wallraff tem um procedimento semelhante, tendo se passado por funcionário da cadeia de fast-food McDonalds, como um turco trabalhando em condições de subemprego e como repórter do jornal sensacionalista Bild-Zeitung. Em todos esses casos ele publicou livros, sendo o mais famoso Cabeça de Turco, sobre as condições de trabalho para os imigrantes na Alemanha.
Tanto Thompson quanto Wallraf buscam estender os limites do jornalismo a partir da inspiração na literatura, usando procedimentos da ficção. No Brasil, Otávio Frias Filho (1957 – 2018) inspirou-se nesse modelo para produzir reportagens imersivas em casas de swing, no Teatro Oficina e outras experiências, o que resultou no livro “Queda livre, ensaios de risco”.
E o lugar de fala?
Essas experiências imersivas no jornalismo, mesmo que exercidas com muitos limites, representam de fato uma percepção sobre a necessidade empatia, isto é, de conseguir se colocar no lugar do outro para poder ter uma visão mais ampla. Da empatia para a colaboração efetiva é uma passagem que pode ser vista no trabalho Swinguerra, de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, que segue em cartaz em Veneza e deve ser visto no pavilhão da Bienal de São Paulo (veja serviço no final do texto).
Por sua formação em jornalismo, Wagner tem boa parte de sua obra sendo fruto de um diálogo entre práticas documentais e arte. Nascida em Brasília, a artista se formou em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2003. Nos dois anos seguintes, frequentou Brasília Teimosa, a maior favela do Recife, retratando seus moradores de uma maneira muito diferente de como costumam circulam as imagens dessas pessoas, em geral vitimadas após alguma catástrofe. Ela construiu uma série de imagens onde esses moradores estão em momentos de lazer, com atitudes empoderadas, às vezes até semelhantes a como revistas sensacionalistas retratam celebridades.
Se por um lado a artista dá visão a um grupo marginalizado pela mídia, ela constrói essas imagens não só de maneira respeitosa, mas permitindo que eles posem com uma dignidade que em geral não lhes é concedida. Para construir essas imagens, até mesmo com recursos da publicidade e da moda ela se apropria, desconstruindo, assim, a típica imagem do favelado. Vinda a público em 2005, a série rapidamente conquistou o sistema da arte e tem sido exibida em muitas exposições, sendo possivelmente uma das melhores representações da ascensão social ocorrida nos governos do PT.
Desde então, ela vem trabalhando com o alemão Benjamim de Burca (leia aqui perfil da dupla), realizando especialmente vídeos, nos quais segue buscando dar visibilidade a grupos marginais, como os evangélicos em Crentes e Pregadores, de 2014. Nesse vídeo eles retratam os cantores das igrejas evangélicas, inserindo-os em um contexto pop, algo próximo a Terremoto santo, documentário musical com jovens da Zona da Mata pernambucana que sonham em gravar um videoclipe gospel, exibido na mostra Corpo a Corpo, que abriu o Instituto Moreia Salles em São Paulo.
O universo da música foi também abordado em Estas Vendo Coisas, sobre a cena brega do Recife, exibido na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, Incerteza Viva. Nele, Wagner e Burca desenvolvem uma colaboração efetiva com os músicos retratados no trabalho, pois o roteiro foi escrito de forma conjunta com os participantes do Brega e da indústria de videoclipe que o circunda. A colaboração entre os artistas e seus retratados se tornou uma prática comum nos trabalhos mais recentes, incluindo Swinguerra, sendo que não só os artistas, mas Eduarda Lemos, uma das figuras centrais do trabalho, também estavam na abertura da mostra italiana. É em gestos dessa natureza que fica claro como a autoria compartilhada torna-se de fato efetiva.
Falar sobre outro, assim, não é uma atitude voyeurística ou ilustrativa. É comprometimento, algo que teve seus passos iniciais nas primeiras obras de Sophie Calle e Vito Acconci, apesar de eles seguirem o outro, mas sem envolvimento. Em Bárbara Wagner e Benjamim de Burca representar o outro significa uma parceria efetiva de trocas para a construção do trabalho, e para que ele seja um lugar de fala por quem realmente deve falar.
Swinguerra – exibições públicas
Dia 22 de agosto, 21h, na Cinemateca Brasileira
Dia 24 de agosto, às 17h30, no CineSesc
Dia 24 de agosto, das 9h às 19h, no PAVILHÃO DA BIENAL (1º andar), com entrada gratuita
Dia 30 de agosto, 15h, no Centro Cultural São Paulo
Querido Cypriano,
Legal falar da empatia e lembrar da Djamila. Tenho me debatido (!!) muito a respeito dessa posição ética do artista em culturas diferentes.
Poderia ter mencionado as práticas etnográficas dos antropólogos no Brasil e o quanto a arte contemporânea se apropriou desse repertório e ferramental.
Quem sabe em outro texto.
De qualquer forma, o que escreveu aqui colabora muito a chamar atenção à delicadeza dessa posição dx artista.
Obrigada