Por Tâmara Abreu

Os cancelamentos a obras literárias e a obras de arte em geral estão em pauta dentro e fora do Brasil. Até aí nenhuma novidade. A censura já levou Flaubert e muitos outros escritores aos tribunais de acusação em diferentes épocas na história da humanidade. As causas e os modos de aplicar a censura vão ganhando novos contornos conforme o tempo e o contexto de produção, recepção e circulação dessas obras. Uma das reações mais interessantes aos ventos proibitórios atuais foi a inauguração, em outubro de 2023, do Museo del Arte Prohibido (Museu da Arte Proibida) em Barcelona. Trata-se do primeiro espaço museológico cujo acervo é composto só por obras de arte censuradas e proibidas ao longo da história. São mais de 200 obras, entre as quais estão Picasso, Goya, Klimt, Andy Warhol e outros proscritos.

Recentemente, dois estados brasileiros ordenaram a retirada de O Avesso da Pele (de Jefferson Tenório) das bibliotecas escolares sob pretextos de ordem moral. A escritora Lia Neiva teve um livro proibido pela Prefeitura de Rio Claro (SP) em 2022, sob a mesma alegação. Consideradas as devidas diferenças, casos de censura institucional guardam relações com a censura informal praticada sob a roupagem do “cancelamento” nas redes sociais. J. K. Rowling, Road Dahl, Camões, Dante, Shakespeare, são apenas alguns casos dentre os clássicos da literatura internacional. Na esfera nacional, o caso mais emblemático e polêmico é o do escritor Monteiro Lobato. A ele vamos nos ater daqui pra frente.

Causou polêmica um post do Instagram publicado recentemente (04/03/2024) na conta oficial do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A estratégia de comunicação adotada pela direção do IEL ao postar o card de divulgação do evento, uma bomba semiótica com alto potencial lacrador para redes sociais, foi a seguinte: uma foto do rosto de Monteiro Lobato vandalizada com a inscrição “RACISTA” riscada na testa do escritor está encimada pela pergunta-título do evento “O IEL deve cancelar Lobato?”. O post informava que, no dia 14 de março, no anfiteatro do IEL, haveria uma mesa de debate na qual se discutiria “se o instituto deve ou não cancelar Monteiro Lobato, cujo acervo encontra-se no CEDAE/Unicamp.” E assim foi. Participaram da mesa professores do IEL e a coordenadora técnica do CEDAE, Roberta Botelho. Desta vez, o que estava em questão era cancelar (ou não) um acervo arquivístico. Temos aqui algumas questões que merecem discussão.

O processo de doação de um conjunto arquivístico pelos herdeiros de um
escritor, até que se formalize a aquisição pela instituição mantenedora, é
juridicamente complexo, trabalhoso, tem uma série de etapas e múltiplos atores

A Unicamp guarda uma parte importante dos arquivos de Monteiro Lobato no Centro de Documentação “Alexandre Eulalio”(CEDAE), situado na entrada do prédio do IEL. O Cedae foi parte do evento que discutiu o cancelamento do escritor. Vamos supor que o IEL admitisse cancelar Lobato, atendendo a reivindicações de alguns alunos e das redes sociais. Isto significaria o quê? Retirar os dois mil documentos do CEDAE e devolvê-los à família? Excluir seus livros da biblioteca da universidade? Riscar o nome de Lobato dos programas de disciplinas dos cursos de Letras (se é que ainda está lá…)? A julgar pelo que vem ocorrendo de uns anos para cá e considerando que a proscrição de obras literárias nas instituições de ensino já é uma realidade, nada mais surpreende. A interdição institucionalizada poderia perfeitamente estar a caminho.

O que está em jogo é maior do que se pensa quando uma universidade discute uma questão tão séria com ares de banalidade. Cabe aqui observar que os arquivos pessoais de um escritor não caem do céu. Tampouco são feitos de papéis aleatórios ou documentos quaisquer, mas de fontes históricas que testemunham o passado e permitem aos estudiosos produzirem a historiografia existente sobre literatura brasileira – que não deixa de ser um produto de seu tempo e estar sempre sujeita a novas interpretações. O processo de doação de um conjunto arquivístico pelos herdeiros de um escritor, até que se formalize a aquisição pela instituição mantenedora, é juridicamente complexo, trabalhoso, tem uma série de etapas e múltiplos atores.

Os documentos que compõem o importante acervo do escritor Monteiro Lobato jamais teriam vindo parar no Cedae sem a iniciativa e o trabalho competente da professora, hoje aposentada, Marisa Lajolo quando esteve à frente do projeto temático “Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros”, financiado pela FAPESP. Em números, estamos falando de mais de dois mil documentos entre livros raros em primeiras edições, folhetos, periódicos, centenas de cartas manuscritas e datiloscritas, fotografias, desenhos e aquarelas, além de sete objetos.

Nas dependências do IEL e do CEDAE, muitos estudantes foram formados para exercer com rigor a pesquisa científica e a docência, todos com projetos de pesquisa aprovados e financiados com recursos públicos pela FAPESP. As pesquisas desenvolvidas neste acervo foram legitimadas por vários prêmios das principais instâncias acadêmicas do país. A partir dele foram produzidos dois livros que são referência para os estudos sobre o escritor. Cito apenas um: Monteiro Lobato livro a livro: Obra Infantil organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini (Ed. Unesp, 2008), vencedor do Prêmio Jabuti na categoria “Livro do Ano Não-Ficção” e na categoria “Crítica Literária”, além de ter recebido o selo Altamente Recomendável FNLIJ 2009 (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil).

Não parece razoável supor que seria a finalidade dos professores envolvidos no evento cancelar quem quer que seja. De fato, o encaminhamento da discussão seguiu o rumo oposto, segundo deram conta as notícias publicadas. Provavelmente, chegou-se à conclusão de que uma universidade não é o espaço adequado à prática de cancelamentos. Se assim fosse, o IEL estaria atentando contra a sua missão institucional de preservação da memória da cultura e da literatura brasileiras, lesando o direito coletivo de acesso a essa memória. Ali estão os acervos de Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Hilda Hilst e muitos outros artistas e intelectuais que podem um dia entrar na berlinda como “o cancelado da vez”.

Usuários de redes sociais cancelam diariamente escritores; instituições de
ensino, não. Influenciadores digitais manipulam as emoções alheias;
professores estudam, debatem, pesquisam, constroem conhecimento

Professores sabem – ou deveriam saber – que acervos são bens de interesse público, assim como a universidade. Arquivos em instituições de guarda como o CEDAE não são “canceláveis”, portanto a discussão, nos termos em que foi posta, carece de mérito e de cabimento. Por sua missão social e educativa, a universidade tem o dever de discutir os cancelamentos das obras literárias e suas consequências, mas espera-se que a condução da discussão parta de uma perspectiva de compreensão do fenômeno e análise das obras em toda a sua complexidade, considerando-se suas dimensões estética, social e histórica.

Não se nega o racismo presente na biografia ou na obra de um escritor ou artista, discute-se. O perigo de as universidades aderirem a estratégias de comunicação de massa próprias às redes sociais é o rebaixamento do nível das discussões, quando o seu papel é qualificar o debate, apresentar argumentos fundamentados em leitura e pesquisa, estimular o pensamento crítico por meio do qual se possa discordar de forma democrática e civilizada.

Usuários de redes sociais cancelam diariamente escritores; instituições de ensino, não. Influenciadores digitais manipulam as emoções alheias; professores estudam, debatem, pesquisam, constroem conhecimento. O simples fato de essa pergunta ser o tema do debate promovido pelo IEL acena para a admissibilidade da ideia do cancelamento, flerta com ele. Além disso, organizar uma discussão que já começa por uma estratégia de divulgação nos moldes dos tribunais de censura da internet amesquinha a universidade. Oxalá o debate tenha sido produtivo e tenha permitido ao IEL sair da camisa de força na qual se meteu. ✱

Tâmara Abreu
(Professora da UFRN)
Março/2024

 


 

1 Para maiores detalhes sobre a história da criação e da organização do Fundo Monteiro Lobato no CEDAE/IEL, ver:: Lajolo, M., Bignotto, C., Tin, E., Bastos, G. S., Chiaradia, K., Camargo, L., Martins, M., Silva, R. A. da ., Abreu, T., & Albieri, T.. (2022). De papéis a documentos: Monteiro Lobato (1882-1948) e outros modernismos brasileiros. Revista Brasileira De Literatura Comparada, 24(46), 131–142.
https://doi.org/10.1590/2596-304x20222446mlcbetgbkclcmmrstata

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