Círculo Máximo
Círculo Máximo, Geovanni Lima (MG), no Parque de Cultura do Governador, com vista ao mar. Fotos: Divulgação

ARTE!✱ – Seu percurso se inicia pela literatura…
Sim. Eu transito bem nesse campo interdisciplinar, gosto disso, tudo o que faço vem de alguma forma da poesia. Uma busca sempre atravessada por um olhar poético, sobre a forma de ler. Meu primeiro emprego foi numa editora, depois fui trabalhar com publicidade, música, artes. Trabalhando um pouco com tudo que ia chegando. Aprendendo enquanto fazia. Letra de música, cenografia, filme, designer. Fiz cenário para Gal, Macalé, Adriana Calcanhotto. Eu acho que tudo isso para mim vai se conectando. Comecei a fazer curadorias e, de alguma forma, a maneira de pensar é atravessada por essa minha formação, acho que familiar. Meu pai [o escritor e diretor artístico Waly Salomão ] era poeta e também conviveu no meio de artes plásticas. Cresci nessa mistura, nesse caldeirão de referências. Minha formação e a minha vida vão juntas.

Vários anos depois de formado, em Comunicação: Jornalismo e Cinema, voltei para a universidade para fazer mestrado, justamente porque na PUC do Rio de Janeiro tinha esse programa que pensava a literatura no campo ampliado (pegando ali da Rosalind Krauss e a forma de entender a escultura como algo muito além das fronteiras do objeto escultórico e do monumento), que se chamava Literatura, Cultura e Contemporaneidade. E lá era isso, a mistura, olhando pra cultura de forma múltipla. Sem aquela bobagem de contar palavras e rimas pra julgar um poema, para mim uma perda de tempo quando tem tanta coisa incrível acontecendo num bom poema. A forma objetiva, pragmática, eficiente de ler um poema ou uma obra de arte é a eliminação das possibilidades, é o desencantamento da arte. Ou como escreveu em algum lugar [o filósofo checo-brasileiro Vilém] Flusser, estão confundindo rigor com rigor mortis. Ou ainda, como me disse certa vez um professor, “o que importa é a possibilidade de invenção de novos sentidos para o mundo”. Ou seja, o que importa é o desvio.

Um projeto do qual tenho muito orgulho virou livro publicado pela Cobogó, Flutua pelas ruínas, flutua, em parceria com a Editora PUC-Rio e o David Rockefeller Center for Latin American Studies. Na sequência entrei num doutorado lá em Harvard, que foi uma loucura, muda tudo, suas referências, seu ponto de vista, tudo se multiplica. Uma experiência de desamparo que te tira o chão, e aos poucos você vai enraizando novamente, se encontrando.

E eu aprendi assim, com meu pai, a ler as coisas como vivas. Você pega um livro, uma obra de arte, e dialoga, conversa. Alterar. Nômade. Não tenho esse olhar sobre a coisa morta, de dissecar. Fico buscando o pulsar nas coisas. Essa foi minha formação: meu pai, Heloisa Teixeira, Marcelo Yuka, Tunga. Humor e bagunça. Criar e colocar pra fora, em movimento.

ARTE!✱ – Como você chegou ao Parque Cultural Casa do Governador? Acha que seu perfil influenciou no convite?
Sim, o Fabrício Noronha, que é o secretário de Cultura de Espírito Santo, tem uma visão muito ampla, criou em 2021 um edital para esculturas nos arredores da Casa do Governador. Foi o primeiro edital nacional de cultural do estado e transformou aquele enorme espaço em um parque. A Casa do Governador já ocupava uma mítica na cabeça de todo capixaba, um terreno na beira do mar, inacessível. As esculturas permitiram o início da abertura para a população. Na sequência, fizeram mais um edital de esculturas, e com o sucesso e a curiosidade, especialmente a partir de um evento quinzenal chamado Parque Aberto – que, como o nome diz, abria o Parque para todos com shows, eventos, food trucks – o governador Renato Casagrande e o Fabrício criaram o Parque Cultural Casa do Governador. É um espaço incrível, um bosque à beira-mar.

E é aqui que eu entro. Junto com o instituto selecionado para gerir o espaço: o IAC. Eu chego para tentar organizar essa personalidade artística do Parque. Os editais foram muito importantes, mas geralmente criam um todo muito disperso. Um dos desafios (são muitos) é dar força a esse conjunto e expandir. Desenvolver as potências que o Parque tem como um local de convivência com a arte, de estímulo, de encontro, de catalisador.

ARTE!✱ – Parece ter sido uma tendência terceirizar a gestão de espaços públicos através de uma empresa dedicada. Você acha que é isso mesmo? As OSCs, elas têm liberdade de contratação, são autônomas?
É uma parceria. O governo é o, digamos, cliente. Tem a escolha, a voz, ou seja, pode determinar a direção. Mas é isso, é uma parceria. A OSC consegue ser mais dinâmica, trazer outras formas de investimentos. É menos amarrado. E eu acho que no meio das artes funciona, porque o espaço artístico é muito idiossincrático. Ele depende de muitas formas de pensamento. É muito importante criar políticas de desenvolvimento cultural, e isso não acontece com editais de produção de obra, de desenvolvimento. É bom existir, mas muitas vezes acaba mais por segregar, porque cria uma competição, do que unir. E para a produção artística, para a criação, o encontro, a troca, o convívio, o acaso, tudo isso é incrivelmente importante.

Algo que é muito importante num centro cultural fazer as pessoas olharem as coisas de forma diferente, movimentar. E se essa estrutura for muito dura, você não consegue ter essa maleabilidade. Existe uma preocupação minha de [o Parque] não se tornar também só um lugar de evento, um lugar que você vai porque tem algo acontecendo, um show, uma feira, por exemplo, e depois vai embora. Fica tudo reduzido a números: passaram tantas pessoas, que incrível. Engorda os dados. Mas quando aquilo poderia ter acontecido em absolutamente qualquer outro lugar, não se constrói nada, se esvazia. É importante tentarmos criar uma relação com o espaço. Por isso o Parque é um espaço que tem que abrigar, receber as pessoas, pelo que o próprio espaço é. Acho que temos o compromisso de se criar legados, de estimular e criar raízes, aprofundar o trabalho no Parque em algo que se transforme em parte da cidade, que vire parte da vida dos moradores.

ARTE!✱ – Que iniciativas já foram tomadas e quais estão por vir?
Internamente estamos cuidando do espaço e das obras – que nunca tinham recebido manutenção. Reorganizando caminhos para desenhar novos sentidos. E estamos articulando para receber obras de artistas importantes para colocar o Parque no roteiro nacional das artes. Não p

osso dizer nomes ainda, mas fiquem de olho, tem coisa boa vindo. Nessa mudança de novos caminhos, vamos mudar a entrada de forma a criar todo um novo fluxo de relação com o parque. Tem um projeto de derrubar o enorme muro e fazer um gradil, arejando mais a conversa com a rua.

Uma das primeiras novidades, agora já em maio, é o ciclo Desnaturada, com curadoria do Ailton Krenak. Serão três dias de mergulho para pensar a própria ideia de natureza, para gerar futuros alimentados pela ancestralidade, renaturalizar-nos. E qualquer oportunidade para ouvir um sábio como o Krenak, ou o Sidarta Ribeiro, é incrível. O Ailton Krenak tá sempre desconcertando, de passo em passo, de uma maneira muitas vezes sutil, ele desdobra a conversa para te levar por caminhos enviesados. É uma alegria trocar com ele. É uma honra poder recebê-lo dessa forma.

Outra invenção que estamos levantando junto com o Nathan Braga, e que acho que vai ser o grande transformador, é criar uma escola dentro do parque. Estamos aproveitando algumas atividades que existiam no Plano de Trabalho que trazia demandas da Secretaria de Cultura e jogando a barra lá pra cima: ao invés de oficinas e atividades de um dia, trazer um projeto mais completo e integrado, uma escola livre capaz de misturar o meio ambiente, agrofloresta com estudos de arte, de desenho. Não uma escola com um viveiro, uma horta, dentro, mas um viveiro-escola onde se vivenciaria encontros com a natureza, do ambiente e da criação como experiência na arte, como uma atitude de integração com a vida. Pensar formas de vida, entender o outro, desnaturalizar para ler o ritmo do que nos cerca. Escola e viveiro integrados para ser um berçário de futuros. Escola Viva de Artes, a nossa EVA.

Um espaço que sempre me estimulou e inspirou foi o exemplo da escola do Parque Lage no Rio de janeiro. Foi um lugar que frequentei de criança, participava da Colônia de Férias no Parque Lage. Ficava lá, rabiscava, ficava correndo pelo parque. E, ao longo da vida, ia encontrar amigos, viver o lugar, conhecer pessoas, trocar ideias. Por isso o Parque Lage foi importante para tantas gerações, assim como o MAM-Rio na década de 1960, ou a UFBA [Universidade Federal da Bahia, em Salvador] com Edgard Santos antes disso. Esses lugares, por sua simples abertura ao convívio, geram coisas que reverberam por décadas.
Enfim, é um círculo que permitirá ir despertando novas inquietudes nos frequentadores. Mas é isso. Nesse momento temos o desafio e a reflexão de criar esse plano. Eu estou voltando para o Brasil justamente para me envolver com tudo isso aí.

ARTE!✱ – Você nasceu no Rio?
No Rio. Na Zona Sul, mas cresci em Salvador, meu pai foi ser coordenador do Carnaval da Bahia, levado por Gil. Depois voltei pro Rio, andando por todo canto. Já morei em tantos lugares, nem sei mais dizer de onde vim. Adoro mapear lugares novos.

ARTE!✱ – Como estão organizados para a gestão do Parque?
Fred Mascarenhas e Mirella Schena são os coordenadores do Parque. Fred no administrativo e Mirella no artístico-cultural. Eu entro como curador: diretor curatorial. Outra peça bem importante é o Nathan Braga, que é o nosso diretor pedagógico. Ele estava morando em Porto Alegre, trabalhando no educativo da Bienal do Mercosul, e importamos ele pra cá. Uma aquisição superimportante para a gente – especialmente agora com o projeto da EVA.

Na diretoria temos ainda a Dani Maia, que cuida da produção, e recentemente entrou a Melissa, para a Comunicação. Mas a equipe toda é incrível. Mirella, Fred e eu começamos montando a equipe, e temos uma sintonia deliciosa, muito produtiva. Meu braço direito aqui no Parque é o David Trindade, que cuida da manutenção e conservação das obras, e é artista também. Aliás temos alguns artistas/criadores na nossa equipe: o Nathan é um artista da pesada, a Mirella também é cenógrafa, o Kaique, da produção, é DJ e formado em arte, entre outros. Isso gera um olhar e um clima especial aqui dentro. ✱


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