Geoneide Brandão, "Óleo sobre a necessidade de materializar o impossível", 2022. Foto: Gabi Lisboa
Geoneide Brandão, "Óleo sobre a necessidade de materializar o impossível", 2022. Foto: Gabi Lisboa

Uma nova geração surge no cenário brasileiro das artes visuais com um diálogo vivo, entendendo a vida e cada trabalho como um ato inaugural. Quatro jovens artistas, de diferentes regiões, parecem respirar e interpretar a mesma inquietação desse momento de mudanças sociopolítico e culturais. 

Lençóis, de tricoline listrado, xadrez e de tantas cores, parecem flutuar no amplo terraço da Casa do Parque, em Alto de Pinheiros, bairro de São Paulo, confirmando a leveza com que Leandro Muniz, 29 anos, desenvolve Domingo, sua recente exposição. Cada peça de tecido tem padronagem diferente e recebe camadas de tinta nos pequenos quadrados e retângulos que ele elegeu arbitrariamente para pintar. 

“Me interessa a identificação do trabalho com a casa, que é a Casa do Parque, um projeto arquitetônico modernista cujos elementos contrapõem-se aos elementos vernaculares como a tricoline”. As relações cromáticas empregadas foram trabalhadas por Leandro por cerca de um ano. As pinturas compõem-se de muitas camadas e procedimentos, algumas são mais matéricas e outras, quase transparentes. “Os tecidos contribuem muito, são pictóricos por si só, um deles, com matrizes geométricas, remete a Paul Klee”.

Como define Leandro, o trabalho é polissêmico, porque tanto permite leituras textuais ou mais genéricas. O conjunto também é imagético com pintura de pequena dimensão sobre paisagem, vegetação, cachoeira, num diálogo aparentemente prosaico. As pinceladas acontecem na frente e no verso do tecido, o que faz com que o visitante se movimente o tempo todo, por entre lençóis. Envolvida nesse cenário, me lembro de Um dia muito especial, filme de Ettore Scola, sobre a chegada de Hitler à Itália, estrelado por Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Há um longo diálogo dos atores entre lençóis nos varais, cena do neorrealismo italiano dos anos 1940.

Voltando à instalação Domingo, que pode ser uma ode à pintura expandida, destaca-se a parede branca na entrada que conduz o visitante à instalação. Sobre ela, Leandro desenha azulejos com traços pretos irregulares, criando movimento. A pintura remete às áreas de serviço azulejadas de branco e dialoga com os lençóis. Para um adolescente que saiu de casa aos 16 anos, Leandro não perdeu o foco de seu projeto de vida. Formou-se em artes visuais pela ECA-USP, faz mestrado e realiza curadorias.

“O perigo da vida é asfixiar-se sob o peso da existência”. A frase da filósofa María Zambrano não abala Fabiana Wolf, sergipana de 27 anos que, aos 20, deixou Aracaju e desembarcou na capital paulista. Agora ela faz sua primeira exposição na Galeria São Paulo Flutuante, no bairro da Barra Funda. Com coragem incomum para uma iniciante, expõe Obituário, uma tela de cinco metros, feita sob o impacto da morte da mãe e do padrasto, pela covid-19. “Também me refiro ao número enorme de pessoas que morreram em todo o mundo”. 

Sua pintura neoexpressionista traz gestos de Basquiat e mescla textos, datas e um emaranhado de traços nervosos. Mas de onde veio a coragem de enfrentar tal dimensão? “Estava muito angustiada com tudo o que acontecia comigo e, no Brasil, guardava muitas coisas dentro de mim. Foi um vômito”. Fabiana demorou apenas uma semana para concluir a pintura, que traz o preto como fio condutor. Em outro trabalho, Arapuca, ela destila sua indignação sobre o momento político de hoje com um vermelho intenso e deixa uma mensagem sintética: “Fora”. Todas as telas foram feitas neste ano e dialogam entre si. Autodidata, sua construção pictórica é elaborada a partir de vivências trabalhadas com giz, pastel oleoso e tinta acrílica. 

Seu propósito, artístico e político, emerge em todos os trabalhos expostos na São Paulo Flutuante, de Regina Boni, conhecida por sempre incentivar artistas jovens. Olho treinado e saberes acumulados por décadas, a galerista viu as obras de Fabiana, trazidas por seu sócio e também artista Manu Maltez, e a convidou para sua primeira exposição. Fabiana diz que preservar sua independência é fundamental. “Nunca me interessei muito pelo mercado, minha preocupação não era ser famosa, vender muito.” Ela sempre manteve certa resistência ao circuito, mas acredita que agora as coisas podem mudar. Regina Boni considera o trabalho de Fabiana extremamente maduro para uma jovem artista. “Não tenho dúvida sobre o caminho promissor que ela terá”. 

Definido por si mesmo como andarilho, R. Trompaz, 33 anos, costuma caminhar pelas ruas de São Paulo. Nessas andanças passou em frente à São Paulo Flutuante, entrou com seu portfólio debaixo do braço. Regina o recebeu, aprovou o que viu e o convidou para expor. Influenciado pelos rappers Emicida e Racionais MC’s, entre outros artistas da mesma matriz social ele, diz que aprendeu muito com os músicos, especialmente a refletir sobre a desigualdade estrutural do Brasil. R. Trompaz mora no bairro Capão Redondo, na periferia de São Paulo, gosta de skate e potencializa seu repertório visual a partir da vivência com a cidade. 

Nos desenhos em branco e preto ele estampa as mazelas dos governantes, gatilho de sua produção. “Tudo o que eu produzo vem da crítica social que está ligada ao projeto Segregação Social Geograficamente Escancarada (Ssge)”. As imagens são justapostas, misturadas, interligadas e captam cenas de enchentes na periferia, moradias precárias, além de edifícios de classe média poupados das tragédias, com influência de Livio Abramo. Já as pinturas trazem um abstracionismo geométrico desenvolvido com pinceladas rápidas, executadas com verniz acrílico e pigmento em pó. R.Trompaz é formado em artes visuais pelas Belas Artes e tem a expectativa de iniciar um novo ciclo. 

A maturidade com que Geoneide Brandão aborda o universo LGBTQIA+ não condiz com seus 22 anos. O repertório traz cenas íntimas de corpos queer pintados a partir da fotografia que aprendeu usando celular quando tinha 14 anos e vivia em Ouro Branco, no sertão de Alagoas. “Com 16 anos já me dedicava à pintura dentro desse processo e há um ano moro no Recife onde frequento o ateliê coletivo Escadaria, com um grupo de jovens”. Geoneide trabalha a partir do corpo e suas simbologias. “Meu interesse foca a sexualidade, a questão de gênero e as relações humanas como um todo”.

Sua pintura executada com pinceladas largas e contínuas vai ganhando espaço. Atualmente ela expõe na coletiva Reflorestar, na Christal Galeria, novo espaço cultural do Recife, onde tem uma obra comissionada. Foi escolhida por meio de um edital e mostra dois trabalhos da série Amor ardor, que reflete questões sobre afeto e intimidade do corpo. Em setembro, ela foi selecionada na chamada do Coletivo Vozes Agudas, com curadoria de Bruna Fernanda, Érica Burini, Khadig Fares e Thais Rivitti, que resultou na exposição Vivemos pra isso, integrante da chamada pública VoA 2022-2023, para artistas mulheres e pessoas não binárias, que ocorreu no Ateliê397 e no galpão da Galeria Vermelho, ambos na Barra Funda, em São Paulo. A exposição reuniu artistas de todo o Brasil e levantou questões pertinentes à causa. Recentemente também passou pelo crivo de um edital no Canadá. Estudante de artes visuais na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), um dos seus focos é pesquisar as interseções entre corpo, gênero e sexualidade ligadas às questões de afeto, alteridade e política.

Quanto ao mercado ela se diz insegura, porque não sabe até que ponto uma jovem como ela, que aborda tema dessa natureza, vai conseguir se firmar. “A cena artística do Recife é aberta, me comunico com artistas incríveis com os quais aprendo muito. Já o mercado é conservador, as pessoas que têm grana não querem investir nesse tema”. Com muitos desafios, o talento de Geoneide vai abrindo portas em outras esferas, ela é uma das artistas da coleção Novas Aquisições, do Banco do Nordeste.

Finalizando, Regina Boni deixa a mensagem. “Se em um jornal importante, no qual, entre outros nomes brasileiros famosos, surgiam obras de Emanoel Araújo, artista baiano, recém-falecido e nunca reconhecido em vida como o grande criador que sempre foi, [é porque] o reconhecimento póstumo é mais comum em nosso país, capitalista e injusto. Daí a importância do marchand abrir seu olhar para novos nomes. Novas pessoas. Novas ideias. O acreditar em novos futuros”.


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