Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.
Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.

“Por que retornei à Amazônia?”, indaga Sebastião Salgado na apresentação de seu recente trabalho nomeado após “a floresta que estende-se ao infinito”. Agora, oito anos do início da sua empreitada na Amazônia, o fotógrafo consegue responder que voltou não pelo lado sombrio – os incêndios, o desmatamento, o envenenamento dos rios pelos garimpeiros, o tráfico de drogas -, mas para saborear a beleza incomparável da Amazônia e renovar seu vínculo com os povos nativos que cuidam da floresta com tanta diligência.

Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc
Vista da exposição no Sesc Pompeia, em São Paulo. Foto: Everton Ballardin/Cortesia Sesc

“Quando eu comecei a fotografar a Amazônia, ela não estava de nenhuma forma em evidência. Eu achei que eu tinha que fazer as fotografias. Eu senti o bioma ameaçado e vi uma diferença muito grande entre a Amazônia dos anos 1980 e depois a Amazônia do início dos anos 2000”. Sem um projeto específico em mente (fosse a publicação ou a mostra itinerária que agora se encontra no Sesc Pompeia, em São Paulo), a urgência de Salgado o levou a percorrer a floresta do estado do Pará ao Amazonas, do Acre a Rondônia, Maranhão ao Mato Grosso. As abrangentes movimentações eram sempre antevistas pela FUNAI – Fundação Nacional do Índio, a responsável por proteger os direitos dos povos indígenas de todo o território nacional. “Antes de finalizar os planos de visita a um grupo específico, eles consultavam a comunidade para saber se estaria disposta a receber alguém de fora. No meu caso, um fotógrafo”, conta. “Por intermédio da FUNAI, contratei um tradutor para cada viagem, geralmente alguém da etnia em questão, que havia passado um tempo fora e, por isso, aprendido o português”. Prévio à entrada na selva, Salgado e sua equipe se abasteciam de comida, já que parte do acordo para estar lá era não depender da comunidade para se alimentar. Outros ítens essenciais também viajavam com eles: soro antiofídico, painéis solares, solução para purificar a água, iPod. Para estarem justos e contratados era necessário também completar “quarentena” de dez dias quando chegassem ao designado posto da FUNAI, com o intuito de evitar a transmissão de doenças, vírus e bactérias de fora aos povos indígenas.

Família Asháninka. Estado do Acre, Brasil, 2016. Foto: Sebastião Salgado.
Família Asháninka. Estado do Acre, Brasil, 2016. Foto: Sebastião Salgado.

Desde a adoção da Constituição brasileira de 1988, 26% da Amazônia – equivalente a 13% de todo o território brasileiro – foram reservados exclusivamente às comunidades indígenas, lembra o fotógrafo. Nessa imensidão, Salgado registrou eventos naturais majestosos pelo ar, a exemplo dos rios aéreos e montanhas amazônicas, e água, através de semanas navegando o Rio Negro. De volta à terra acompanhou tribos na caça, pesca e nos rituais em que sua presença era permitida. “Na maioria das aldeias, a densidade do matagal bloqueia por completo a vista à distância. O próprio céu é emoldurado por árvores gigantes. Quando os membros das comunidades indígenas vão caçar ou pescar, eles desaparecem completamente em espaço de segundos. Portanto, sempre que os acompanhava, tinha o hábito de ficar colado aos seus calcanhares, não os perdendo de vista nem um segundo por medo de me perder”.

Dentro das aldeias, um estúdio móvel também era improvisado e chamava aqueles que se sentiam à vontade para ter seu retrato tirado. Apesar da artificialidade, a lisura da tela – em oposição à textura da vegetação – forneceu um campo mais apropriado para que objetos e costumes tradicionais viessem à tona, sem distrações. Enquanto isso, sua jornada pelo Rio Negro e através do Parque Nacional de Anavilhanas o levou à foz do rio Jaú, navegando em velocidade reduzida, a apenas alguns metros das árvores. “Pegamos chuvas tão densas que fizeram parar o barco por total falta de visibilidade. As formações de nuvens eram tão bonitas, tão volumosas e tão dramáticas que nos faziam sentir o tamanho da nossa insignificância”. Piranhas e jiboias gigantes impediram que ele mergulhasse no Rio Negro, mesmo assim, Salgado conseguiu banhar-se na umidade dos rios aéreos – torrentes de vapor que se formam sobre a floresta -, fotografá-los do seu interior. Do alto, o fotógrafo teve dimensão dos maiores massivos de montanha do Brasil: “A Amazônia com a qual estávamos acostumados era um território plano, com rios que a serpenteavam; uma parte da Amazônia realmente é uma grande planície, mas uma grande parte é uma quantidade de montanhas incrível”. Tais paisagens aéreas, raras em documentação fotográfica, foram exploradas com a ajuda do exército brasileiro, que permitiu a imersão de Salgado em suas missões. Segundo ele, as distâncias são tamanhas que somente os militares, que cobrem todo o país e que têm dezenas de bases disseminadas, podem chegar a esses locais.

Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.
Rio Jutaí. Estado do Amazonas, Brasil, 2017. Foto: Sebastião Salgado.

“O exército brasileiro tem uma característica muito interessante na Amazônia: a grande maioria do corpo, que são os soldados, a base do exército, é indígena”, conta Salgado. “Eles conhecem a floresta, eles vêm da floresta. E qual é a função de um exército? É defender a soberania nacional. E a Amazônia, o bioma amazônico, representa quase 50% [49.29%] do território brasileiro”. Para Salgado, o nível de banditismo na Amazônia atual é preocupante e faz imprescindível tal defesa. “O governo atual, que é um governo aparentado das milícias, facilitou e levou a violência para a Amazônia de uma maneira incrível”. Ele alerta, no entanto, para as diferenças entre os jovens oficiais que estão na floresta e os chamados militares da reserva. “O que é uma contradição, você vê, a participação de oficiais, principalmente oficiais da reserva do exército brasileiro, no governo predador atual – que são velhos generais ainda aparentados com a ditadura, velhos generais ainda muito próximos de uma determinada ideia de direita – tem uma diferença brutal com os novos oficiais, com a base, que são os soldados, que estão lá dentro da Amazônia defendendo ela”. 

O fotógrafo lembra que, durante a carreira, seu contato com as tropas brasileiras se deu mais fora do país que dentro do território nacional, fosse em missões das Nações Unidas em Angola, ou na Guerra da Bósnia, onde os soldados participaram desarmados como observadores da própria ONU. Esse contato criou nele uma admiração que o compele a fazer o seguinte pleito politicamente: “Para mim, a esquerda brasileira vai ter que mudar [em relação ao exército]. A esquerda brasileira condena até hoje o exército brasileiro [por sua participação no Golpe de 1964], mas eu acho que ela teria que mudar, teria que fazer um movimento em direção ao exército, porque excluindo o exército e se excluindo do exército ela deixa o lugar para a extrema direita entrar lá dentro como entrou com o governo Bolsonaro”. Na visão de Salgado, a defesa desse movimento vem da essencialidade das forças armadas em todos os países do mundo; “sejam de esquerda, sejam de direita, não importa, é um corpo técnico que o país depende dele, que é uma instituição importante, forte e que tem que ser neutra”.

Voltar ao planeta

Aos 78 anos, Salgado acredita “na ideia de abrangência, de comunidade, de trazer dentro do seio do que você quer mostrar; o opositor, o opositor não é um inimigo que você tem que abater no radicalismo, eu acho que o opositor é um parceiro futuro que você tem que trazer, que conquistar”.

Por outro lado, uma injeção de certo tipo de ativismo mais radical pode ser substancial às questões do meio ambiente e sua preservação, afinal “a ecologia neutra torna-se cúmplice da injustiça de um mundo onde a comida sadia, a água limpa, o ar puro e o silêncio não são direitos de todos – mas, sim, privilégios dos poucos que podem pagar por eles”, como sugeriu Eduardo Galeano. Nesse sentido, a modernização desenfreada preocupa a ambos, “hoje nós não pertencemos mais ao nosso planeta…” lamenta Salgado destacando o nível de dependência da sociedade urbanizada ao mundo da via expressa. “Não sabemos viver sem a assistência que foi criada em volta da gente, nós perdemos essa habilidade em relação à terra, em relação ao planeta e eu acho que nós teríamos que organizar a volta ao planeta, nós tínhamos que aprender do planeta, que voltar espiritualmente ao planeta se a gente quiser sobreviver como espécie”.

Seria a crítica de Salgado suficientemente categórica? Ao escolher destacar apenas a vida na floresta, o fotógrafo corre o risco de apresentá-la imortal?

“A Amazônia ainda é um paraíso, ainda é um lugar dos mais maravilhosos do planeta, e que tem que ser divino. Amazônia é o paraíso e o paraíso tem que ser defendido, nós não podemos jogar o paraíso no inferno”, defende ele. Mas salvo o nobre mérito da questão, talvez o dilema resida na possibilidade de que as imagens – sublimes, de belíssimos contrastes marcantes, com céus atormentados e imponentes – não desencadeiem o impulso de fazer algo a respeito para que o bioma não percorra viagem contrária de Dante. Pode-se dizer que o perigo de apresentar o bioma como fatia do sagrado é que, nessa espécie de narrativa, mesmo após o fim dos tempos ainda há a segunda vinda do salvador. Cresce a ameaça do discurso messiânico. A passividade não se julga tão grave. A cobrança do compromisso é um acordo entre cavalheiros.

Já seu Instituto Terra, fundado em 1998 com a esposa e sócia, arquiteta e ambientalista Lélia Wanick Salgado, atende à urgência que outro bioma brasileiro requer, a Mata Atlântica. O instituto é situado na cidade mineira de Aimorés, onde se encontrava a antiga fazenda de gado da família do fotógrafo e, em pouco mais de 20 anos, viabilizou o plantio de mais de 2 milhões de mudas de árvores (utilizando mais de 290 espécies nativas de Mata Atlântica) dentro da Fazenda Bulcão, área reconhecida como reserva particular de patrimônio natural (RPPN). Nesse tempo, o instituto também investiu na recuperação de nascentes da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e na produção de mudas nativas – 6 milhões até agora – para reflorestamento próprio e de terceiros. Além disso, até 2023, o Terra espera ter concluído a primeira fase do seu projeto de banco genético da Mata Atlântica. O programa foi iniciado em 2018 e seu objetivo é garantir a continuidade de espécies encontradas no Vale do Rio Doce, ressaltado pelo próprio instituto como “uma área de Mata Atlântica altamente degradada e com a ameaça de extinção de diversas espécies nativas”. As logísticas e o andamento da empreitada são atribuídos a Lélia, quem assina a expografia da recente mostra no Sesc Pompeia, como também a edição, concepção e realização do livro Amazônia. Inclusive, foi dela a ideia de que a exposição fosse repleta de música. “Amazonia é uma região muito musical, os indígenas são muito musicais, eles cantam muito, tem muitas festas e muitos instrumentos. Lélia viajou muito na Amazônia comigo e queria, absolutamente, que nós trouxéssemos música na exposição”.

Com o propósito de criar a trilha sonora a servir como fio condutor da exposição, Jean-Michel Jarre, compositor e produtor popular na França (tido como um pioneiro da música eletrônica), teve acesso aos acervos do Museu de Etnologia de Genebra, que vem recuperando sons da Amazônia inteira durante anos. Os cantos e instrumentos indígenas aparecem também em outra experiência sonora, a projeção com os retratos dos integrantes das tribos que Salgado visitou. A música nesse espaço ficou a cargo do grupo Pau Brasil, de São Paulo, junto com Marlui Miranda. Uma última projeção de paisagens homenageia o maestro Heitor Villa-Lobos tocando “Erosão (Origem do rio Amazonas)”. 

Ao fim de Amazônia, Salgado apela: “Para sobreviver como cultura, esses povos não podem ser simples objetos de interesse antropológico. [Eles] devem contribuir e também se beneficiar do desenvolvimento sustentável da Amazônia por meio de sua extraordinária riqueza botânica, renovável em especiarias exóticas, nozes ou plantas com propriedades medicinais e cosméticas”. Nessa última fala, a defesa dos direitos indígenas e pela preservação do bioma caminha junto com o pragmatismo, tendo em vista que “de acordo com imagens de satélite, em contraste com as terras privadas, com gigantescos parques nacionais ou terras públicas de propriedade do Estado, houve pouquíssima ocorrência de incêndio ou atos de desflorestamento dentro das reservas indígenas”. E como o próprio fotógrafo já havia constatado antes: “Quando se abate uma parte da floresta é como se essa floresta não tivesse valor… A gente joga no chão, põe fogo, destrói para implantar pecuária”. E quanto custa a floresta? “O preço que é necessário colocar para reconstruir esse hectare de floresta”, ele responde. “Se 10 mil hectares de floresta são derrubados, você está derrubando mais de 200 milhões de dólares. Jamais na história dessa propriedade rural – que vai se fixar onde a floresta foi destruída – produzirá a quantidade de capital que ela destruiu”.


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