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Em 2013, uma grande instalação foi apresentada na 18ª Bienal Sesc_Videobrasil com destaques dos primeiros 30 anos de trajetória do festival. Foto: Divulgação

Depois de um período de grandes incertezas e instabilidades – que obviamente ainda não se dissiparam totalmente no Brasil atual -, os próximos anos prometem ser um período prolífico e até mesmo celebrativo para a Associação Cultural Videobrasil (VB). Primeiro, pela efeméride dos 40 anos do 1º Festival Videobrasil, realizado em 1983, ainda nos últimos anos da ditadura civil-militar no país. Segundo, pela confirmação da realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil em 2023, adiada por dois anos por conta da pandemia e que já terá atividades programadas para o próximo ano. Há, ainda, a realização de uma grande exposição do vasto acervo do VB em Vitória (Espírito Santo), a partir de março, a continuidade das mostras virtuais no Videobrasil Online e a participação em outros projetos como uma exposição em cartaz no Museu da Língua Portuguesa.   

Curadora estabelecida com vasta atuação no Brasil e no exterior, ex-diretora do MAM-BA e no comando da Associação VB desde o início, Solange Farkas era apenas uma jovem recém-formada – em jornalismo e história da arte pela Universidade Federal da Bahia – quando decidiu realizar o Festival Videobrasil. Já radicada em São Paulo, teve como principal incentivador o seu sogro, Thomas Farkas (1924-2011), um dos mais importantes nomes da fotografia e do cinema modernos no Brasil e, à época, dono da empresa Fotoptica. Já interessada no cinema underground brasileiro, tema de seu trabalho de conclusão de curso na UFBA, Solange se deixou levar pelos estímulos de Thomas, somados à clara percepção de que o vídeo se estabelecia como nova linguagem no país e no mundo.

“No início dos anos 1980 o vídeo estava surgindo como um equipamento. Existia o cinema e a televisão, mas não o que chamamos de vídeo”, conta ela em entrevista à arte!brasileiros. A produção brasileira anterior a esse período, ainda dos anos 1970, era basicamente circunscrita ao núcleo do professor Walter Zanini, que após adquirir no exterior um equipamento para o MAC-USP cedeu o uso para artistas como Regina Silveira, Wesley Duke Lee, Carmela Gross, Julio Plaza e José Roberto Aguilar. “Mas o equipamento de vídeo mais acessível chegou apenas no início dos anos 1980 e o Thomas sacou que ali tinha algo grande. E me perguntou se eu não queria fazer uma mostra, ou algo do tipo, que estimulasse os artistas a usarem o vídeo e mostrarem essa produção.”

E assim foi realizada, no Museu da Imagem e do Som em agosto de 1983, a primeira edição do festival, em uma escala ainda pequena se comparada à da atual bienal, mas já com mostra competitiva, apresentação de performances, instalações e até mesmo com uma feira de novas tecnologias como computadores, teletexto e videogames. Era o contexto dos últimos anos de ditadura – trabalhos tinham de ser submetidos à censura – e o tom geral era de crítica ao monopólio da televisão aberta, o que se apaziguou nos anos seguintes com a aproximação de produtoras e diretores de vídeo aos canais de TV. A partir daí a história é longa, cheia de transformações e reviravoltas, e sempre ligada não só aos contextos político e cultural, mas também ao caminhar do desenvolvimento tecnológico audiovisual.

Após a realização de oito festivais, Solange criou em 1991 a Associação Cultural Videobrasil, com estatuto que previa a manutenção e ativação do crescente acervo de obras e publicações reunidos nos eventos. No ano seguinte, o Sesc-SP entra como principal parceiro do festival, o que possibilita sua realização com grande estrutura desde então, em unidades como a Pompeia, o Belenzinho e o 24 de Maio.

Primeiras batalhas

Não só os equipamentos de filmagem foram se transformando, mas as próprias tecnologias de armazenamento e cuidado com o acervo. “Manter o vídeo vivo, fisicamente, é caríssimo”, explica Solange. “É uma mídia extremamente frágil para conservação e extremamente volúvel, porque a cada poucos anos muda a mídia de preservação do momento e você precisa converter tudo novamente. Estou fazendo isso há 40 anos e nunca para, dá até para fazer uma arqueologia da mídia a partir dessa história do VB.” Por conta dos enormes custos deste trabalho, Farkas já negocia a passagem do acervo do VB para as reservas técnicas de instituições com maior estrutura, em um processo que deve ter uma conclusão em um futuro próximo.

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Parte da exposição da 20ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc Pompeia. Foto: Divulgação

Está conectada a essa história tecnológica, também, a longa batalha da instituição pelo reconhecimento do vídeo enquanto suporte artístico relevante, tão importante quanto qualquer outro. “O preconceito contra o vídeo, dentro do próprio cenário das artes, era pesadíssimo”, conta ela, que foi tanto observadora quanto agente da transformação desta perspectiva ao longo das décadas. Curiosamente, com a atual pandemia de Covid-19 e o longo confinamento das pessoas em suas casas, a curadora nota um retorno maior a essa mídia: “É interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando”, afirmou à arte!brasileiros ainda em 2020.

Uma outra longa batalha travada pelo VB ao longo das décadas, talvez mais dura e permanente, se refere à decisão da associação de se dedicar à produção artística do chamado Sul Global, definido em uma de suas publicações como “termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central”. Após a internacionalização do festival na passagem dos anos 1980 para 1990 e a inclusão do termo “arte eletrônica” no nome do evento em 1994, o Videobrasil se firmou de fato como plataforma dedicada a produções “de fora do eixo tradicional formado pela Europa e pelos Estados Unidos”.

O conceito de Sul Global, no entanto, esteve sempre em transformação e não deixa de incluir também territórios internos aos países centrais: “É um Sul político, não exatamente geográfico. Não é recortar o globo no meio”. A aproximação com diversas regiões da África, América Latina, Oriente Médio, Leste Europeu e Ásia, entre outros, colocou o VB em um lugar de vanguarda, mas criou também uma série de dificuldades em um mundo geopoliticamente tão desigual. “Inclusive entre os artistas, alguns me diziam: eu não quero ir para África, quero ir para Paris. Porque todo mundo, para existir, queria ir ou para a Europa ou para os EUA”, conta. “Foi uma militância nossa a de tentar criar pontes, redes, que possibilitassem o trânsito entre nós do Sul Global, para que ele pudesse existir sem que os artistas tivessem sempre que ser chancelados pelo norte.”

Se a questão está longe de estar resolvida, Farkas percebe uma enorme mudança nos dias de hoje, com a proliferação, por exemplo, de espaços culturais e residências artísticas em lugares antes excluídos do mapa global das artes. Na entrevista concedida em 2020, no primeiro pico da pandemia, ela afirmou: “Existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. (…) Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E quando passar o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas; nós que vivemos em crise permanente e que sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.

21ª Bienal Sesc_Videobrasil, em 2017, no Sesc 24 de Maio. Foto: Everton Ballardin

Queda e volta por cima

Bastante anteriores à pandemia, outros marcos na história do Videobrasil foram a inclusão, a partir de 2011, dos mais variados suportes artísticos para além do vídeo e da arte eletrônica nos festivais e mostras; e a mudança de sua sede, em 2015, para um grandioso galpão na Vila Leopoldina (São Paulo). Em 2019, o evento assumiu também o nome de bienal, passando a se chamar Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Mas o VB, assim como tantas instituições culturais, não ficou imune às ininterruptas crises vividas pelo país nos últimos anos, especialmente sob o governo Jair Bolsonaro. Com a dificuldade para captação de recursos, a associação devolveu o galpão (onde chegou a realizar mostras importantes) ainda em 2019 e encarou uma espécie de paralisia institucional. “É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirmou Farkas em 2020.

A diretora afirma também que em um profundo período de reflexão nos últimos anos percebeu que precisava repensar algumas estruturas da associação, inclusive estabelecer um tipo de independência do VB em relação à sua própria pessoa. “Porque o acervo, enorme, maravilhoso, também assusta. A pandemia trouxe um dado de realidade cruel, a percepção de que podemos morrer a qualquer hora. E o que acontece com esse acervo? Não pode estar apenas nas minhas mãos, vi que preciso pensar em continuidade.”

A responsabilidade por uma coleção com grande custo de manutenção, que inclui não só os trabalhos reunidos ao longo dos 21 festivais – vários deles feitos a partir de comissionamentos -, mas também coleções inteiras cedidas por artistas (ou suas famílias) como Rosangela Rennó, Rafael França, Marina Abs e Moysés Baunstein, aceleraram a ideia da passagem dos cuidados do acervo para outras instituições. A concretização deste plano não significaria, no entanto, a desvinculação deste acervo da associação, como ressalta Farkas. Neste ponto, ela exemplifica a riqueza do material citando alguns nomes que possuem ao menos dois trabalhos na coleção: Akram Zaatari, Barbara Wagner e Benjamin de Burca, Enrique Ramirez, Eder Santos, Bouchra Khalili, Cao Guimarães, Jonathas de Andrade, Liu Wei, Marcellvs L., Maya Watanabi, Sebastian Diaz Morales, Seidou Cissé, Vincent Carelli, Virgínia de Medeiros, Walid Raad, Walter Silveira, Ximena Cuevas e Ximena Garrido-Lecca.

Com tudo isso em mãos, o VB começou a sair de sua paralisia com a criação da plataforma Videobrasil Online, em setembro de 2020, no auge da pandemia. “Nessa ausência do espaço físico, ficou muito claro para mim que o lugar do vídeo é de fato na telinha. E que faz sentido, mais do que nunca, voltarmos a focar no vídeo, que é a origem da associação.” A página virtual, que apresenta tanto mostras com trabalhos do acervo quanto produções inéditas, já está em sua nona exposição, da artista argentina Gabriela Golder. A mostra, segunda de uma parceria com a KADIST (instituição com sedes em São Francisco e Paris) que inaugurou com a exposição da americana Lynn Hershmann Leeson, seguirá com uma coletiva apenas de mulheres das coleções das duas instituições.

Passaram ainda pelo VB Online ao longo deste pouco mais de um ano as exposições de Abdoulaye Konaté (Mali), Ayrson Heraclito (Brasil), Ayoung Kim (Coreia do Sul), Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi (Brasil), Calderon y Piñeros (Colômbia) e uma coletiva sobre o sistema prisional no Brasil, curada por Juliana Borges. “Então o Videobrasil Online surgiu, em boa parte, como um projeto que funcione neste mundo virtual e que cumpra minimamente esse papel da digitalização e ativação do acervo. É uma plataforma expositiva que nos obriga a digitalizar a mídia, legendar, criar novos verbetes e colocar tudo no ar, com um alcance de público global, o que é fascinante”, diz Farkas.

A “volta por cima” do VB acontece ainda com a realização em Vitória, a convite do Governo do Estado do Espírito Santo, de uma grande mostra que ocupará dois espaços da cidade: no Museu de Arte do Espírito Santo haverá um grande recorte da coleção da associação; no Galeria Homero Massena, uma curadoria em cima dos mais de 300 vídeos de performances guardadas pelo VB que será montada em uma grande instalação audiovisual. Além disso, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, está a mostra Sonhei em Português!, que abriga uma sala com vídeos do VB relacionados a temas da migração e da diáspora de povos ao redor do mundo. “É um exemplo de como, a partir de uma proposta curatorial dada, você pode ir no acervo e achar coisas sobre qualquer tema. Dá para contar muitas histórias, montar diversos recortes, inclusive que dialoguem com os contextos locais. Isso é o nosso grande tesouro.”

Por fim, a maior celebração deve ser a realização da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil – que esteve em suspenso por conta da pandemia – em 2023, exatas quatro décadas após o incipiente festival de 1983. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a mostra no Sesc 24 de Maio já estava em planejamento quando precisou ser cancelada, mas retoma agora a produção em ritmo acelerado. No início do ano será realizada a chamada aberta para os projetos de artistas, que se somam aos cinco nomes convidados para a edição. “Vamos ter que adaptar os temas e o recorte curatorial a um outro mundo, muito diferente daquele de dois anos atrás”, conclui Farkas.


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