Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo
Vista da escadaria do Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Foto: Hélio Nobre

Fechado para visitação em 2013 em razão de problemas estruturais no prédio, o Museu Paulista da Universidade de São Paulo – conhecido como Museu do Ipiranga – vem passando por um amplo projeto de reforma, física e conceitual. E deve reabrir as portas no ano que vem, aproveitando o ensejo do Bicentenário da Independência, para trazer ao público sua nova configuração. Além de adaptar o palacete neoclássico às exigências de um museu contemporâneo, o processo de modernização enfrenta o desafio de propor novas leituras e interpretações da história, rediscutindo, reclassificando e repensando esse patrimônio de forma a estabelecer novas correlações entre passado e presente que não perpetuem visões estanques e discursos consolidados de poder.

Do ponto de vista arquitetônico, o museu ganha o dobro de área construída, novos espaços de apoio, uma maior integração com o jardim circundante, instalações modernas como elevadores, escada rolante, banheiro em todos os andares e uma cuidadosa adaptação de seu espaço para atender todo tipo de público, com 100% de acessibilidade para pessoas com deficiência. A expectativa é que essas transformações permitam passar de 300 mil visitantes anuais (na época do fechamento) para 700 mil ou um milhão.

Um dos destaques do projeto desenvolvido pelo escritório H + F, que venceu o concurso realizado em 2017, é a busca por um olhar mais generoso, tentando revelar mais aspectos externos e internos da instituição. Propõe uma maior visibilidade do entorno (com a instalação de uma grande janela panorâmica, voltada para o Jardim Francês) e deixa aparente elementos do próprio arcabouço do prédio, exibindo parte da parede de juçara original. E cria a possibilidade de ver de cima – a partir do mezanino instalado no último andar – toda a estrutura construtiva.

De certa forma, essa ampliação da visibilidade às diferentes camadas estruturais, presentes no projeto arquitetônico, reverbera também no amplo processo de reconfiguração do próprio projeto museológico, que se articula em torno de uma clara tentativa de iluminar as várias dimensões históricas, sociais, culturais que se entrecruzam nessa instituição mais do que centenária. Do prédio-monumento, pensado no final do século 19, à configuração atual de museu de história moderno, baseado no estudo da cultura material, muitas camadas se sobrepõem. Num esforço conjunto dos cinco docentes responsáveis pela curadoria da instituição e de uma ampla equipe de pesquisadores, técnicos, educadores e estudantes, estruturou-se um novo formato para as mostras. Serão 11 exposições permanentes, uma grande mostra temporária e uma série de atividades paralelas a serem selecionadas por meio de editais, chamadas de “contrapontos”, para dialogar com o acervo.

“A gente acha que o museu é um lugar privilegiado para se estudar a dimensão material da sociedade. Como essa materialidade ajuda a construir as coisas, as nossas relações”, explica Vânia Carneiro de Carvalho, coordenadora do novo plano expositivo, lembrando que já faz muito tempo que o Museu Paulista deixou de lado a historiografia baseada nas grandes personalidades. “Nós procuramos trabalhar o museu como um lugar de exercícios, de desafio das imagens e das memórias que elas teriam que representar”, complementa Paulo Garcez Marins, atual chefe do Departamento de Acervo e Curadoria.

As exposições

As mostras de longa duração se articularão em torno de dois eixos: “Para entender a Sociedade” e “Para Entender o Museu”, olhando ao mesmo tempo para importantes aspectos da vida cotidiana, como o mundo do trabalho, os hábitos de consumo e a complexa história da instituição. Nesse núcleo mais ligado ao cotidiano está, por exemplo, a exposição Casas e Coisas, que deriva da pesquisa de doutorado de Vânia e que investiga como os objetos ajudam a construir a identidade de gênero e muitas vezes escondem formas arraigadas de preconceito. Ou a mostra Territórios em Disputa, que vai tentar mostrar como o conceito de território de posse dos portugueses entra em conflito com a noção de território dos povos indígenas que estavam aqui.

Já o mergulho em busca de uma maior compreensão da história e do papel do museu, aponta em duas linhas: mostrar ao público o trabalho feito pela instituição, seu papel como centro de pesquisa e de educação pertencente à USP desde 1963, e ajudar a tornar transparente, revelar a forte estratégia ideológica presente no projeto base do museu, inaugurado há 100 anos por Affonso d’Escragnolle Taunay. Foi ele quem idealizou e conduziu com mão de ferro um projeto museológico para reforçar a ideia de um protagonismo paulista na formação nacional, alçando as Bandeiras como momento fundador e elemento dinamizador do progresso nacional – corporificado no eixo monumental. Como esse núcleo é tombado como patrimônio imaterial pelas três esferas – municipal, estadual e federal -, esse exercício de revisitar e revelar o caráter construído dessa história será feito por meio de uma série de intervenções multimídia. A mostra temporária também procurará relativizar essa visão “paulistocêntrica” da independência, ao mostrar o caráter plural dos vários movimentos independentistas que eclodiram ao longo do século 19 no país.

Tanto nessas intervenções como em outras exposições que problematizam essa relação tensa entre memória e ideologia, o importante é – segundo os curadores – ensinar o público a questionar as imagens, não aceitar uma visão congelada, unidirecional, da história nem considerar as imagens construídas como um duplo do real. Imagens são imantadas de valores simbólicos, que contribuíram fortemente para o silenciamento de negros e índios e para uma falsa visão “pacífica” das nossas relações sociais – como ficou evidente no recente debate acerca da estátua do Borba Gato. Afinal, como explica Garcez, muitas vezes o que se revela “é uma narrativa apaziguadora, racista, sexista e elitista, à medida que também os personagens são quase todos oriundos das elites do país. Então nós temos que de alguma maneira enfrentar essas questões com o público”. “Pensamos o museu como um laboratório de caráter intelectual, educativo, mas também um laboratório de cidadania”, conclui ele.


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