"Zeitnot" (2021).
"Zeitnot" (2021). Foto: Cortesia da galeria.

*Por Mateus Nunes

Em São Paulo, a Verve Galeria finca seu espaço como a raiz de árvore que brota e estoura o concreto das calçadas da cidade. Dirigida pelo artista Allan Seabra e pelo arquiteto Ian Duarte Lucas, celebra a possibilidade de um novo lugar vivo para a exposição artística no centro paulistano, relacionando-se com a história urbana da cidade e revitalizando espaços nostálgicos, como a galeria do Edifício Louvre, um dos ícones arquitetônicos da cidade, situado no bairro da República.

As duas últimas exposições da Verve, No mar com as estrelas, de Fran Chang (cujas obras foram exibidas até o final de agosto) e Pensione Seguso, de Gustavo Rezende (inaugurada em 4 de setembro), mostram a amplitude das poéticas possíveis no seu discurso curatorial, com uma matriz assertiva, entrelaçada e sensível. Por mais que Chang e Rezende habitem quase extremos, a Verve as concilia em uma narrativa coerente.

A delicadeza do ferro

Através de um personagem, no livro O quarto de Giovanni, de 1956, James Baldwin escreve: “Os americanos nunca deviam vir à Europa porque nunca mais vão ser felizes”. A Paris do início do século 20, construída por Baldwin, é embalada pela paixão caótica do estadunidense David e do italiano Giovanni: a atmosfera boêmia, a profusão de personagens e de pessoas interessantes e solitárias, a abertura – e a quase necessidade – ao diálogo. De certa forma, a recente exposição de Gustavo Rezende na Verve Galeria, intitulada Pensione Seguso, é uma ilustração d’O quarto de Giovanni. Por mais que a fagulha de Rezende tenha sido Veneza, e não Paris, são duas cidades de passagem, palco de flâneurs e de viajantes sonhadores.

Há cerca de trinta anos, Rezende morou por um período em Veneza, berço e sacrário da arte ocidental nos últimos séculos. Viveu próximo à Pensione Seguso, hotel no coração da cidade, cinco minutos a pé da Coleção Peggy Guggenheim e da Academia de Belas Artes de Veneza, com uma belíssima vista para o canal. Observa-se dali a fluidez da água, das pessoas, do tempo e dos sonhos. Em um restaurante vizinho ao hotel, Rezende fotografava com seu celular esses personagens espontâneos que o interessavam, como a construir um relicário da solidão.

Gustavo Rezende, "Pensione Seguso" (2021). Foto: Cortesia da Verve Galeria.
Gustavo Rezende, “Pensione Seguso” (2021). Foto: Cortesia da galeria.

Na série Pensione Seguso, composta por seis objetos tridimensionais, o artista representa, alegoricamente, os personagens que constituem essa densa atmosfera veneziana. Como apontado por Ana Carolina Ralston no texto curatorial da exposição, Veneza é, para Rezende, o “local do delito criativo”. Rouba imagens que não escolhe roubar: na verdade, deveria acusá-las por invadirem-no intimamente.

Essas imagens de solidão e de introspecção são gravadas em chapas metálicas verticais quase no formato 3×4. Os olhares desencontrados e a casualidade das posturas são cortados em ferro e pintados de preto. Habitam um espaço da lembrança entre daguerreótipos, estêncis, gravuras de alto contraste, as bases serigráficas de Andy Warhol e as pinturas de Claudio Tozzi, como A prisão e Repressão, de 1968. Rezende distancia essas placas metálicas da parede expositiva com parafusos soldados em seus versos, fazendo com que haja uma tridimensionalidade que proporciona uma penumbra da silhueta dos personagens na parede. A força do ferro a se enfraquecer na luz. Arremendando Marshall Berman, tudo que é sólido se dissolve na luz.

Ao observarmos os personagens retratados por Rezende, é inevitável imaginarmos seus nomes, o que fazem, quem amam e quem os ama. É como se fizéssemos o mesmo caminho feito pelo artista, não em busca dos detalhes formais dos retratados, mas de suas essiências. Vemos, nos rostos da série Pensione Seguso, todos aqueles que já vimos e os que chegaremos a ver.

A força da seda

Como num contraponto complementar, as pinturas de Fran Chang, expostas em sua individual No mar com as estrelas, mostram também como conciliar força e delicadeza, mas de forma inversa à exposição de Gustavo Rezende.

As obras, pintadas com tinta acrílica sobre seda, convidam ao toque, à tentação de manusear os quadros, de colocá-los contra a luz em vários ângulos, de ver seus versos e de analisar a engenhosidade do encaixe das madeiras que compõem os chassis sobre a qual a artista deita o véu. Chang, ao utilizar esse delicado e inusual suporte, promove uma curiosidade sobre a própria plataforma da pintura, interrogando sobre as possibilidades técnicas e vislumbrando até onde pode-se ir.

Sabe-se que um haikai é construído de duas partes sintéticas que, por mais que à primeira vista pareçam habitar mundos diferentes, são conectadas por um corte, o kiru. Esse corte, paradoxalmente, conecta esses dois universos e propõe a união entre duas imagens até então inconciliáveis. O corte nas chapas metálicas de Gustavo Rezende se torna o corte das afiadas palavras e imagens de Chang. É dessa forma que a artista integra o poder das suas pinturas com a vulnerabilidade dos seus títulos, dos quais suas obras não podem ser dissociadas. Ao pintar um ardente céu nublado com nuvens como ilhas, como visto pela janela de um avião, a artista batiza sua obra de Você é a menina que você sempre foi. Em uma praia plácida, de céu limpo e com a linha do horizonte formada por uma cordilheira, encimada por uma lua distante e solitária, somos acompanhados pelo título Receio ser arrastado longe demais. A integração entre a sutileza da pintura sobre seda e a assertividade dos títulos é arrebatadora.

Chang também se debruça sobre a astrofísica – campo ao qual também se dedicou academicamente – e o enxadrismo em suas obras. Analogicamente à pintura das imagens da nefologia – estudo das nuvens –, intitula obras como Zeitnot e J’adoube, ambas expressões dos jogos de xadrez que servem para se remeter às relações com o outro, como se o amor fosse um jogo. O primeiro termo, “Zeitnot”, caracteriza uma situação em que o jogador é pressionado pelo tempo, fazendo com que tome uma rápida decisão, como se as paredes que o cercam fossem rapidamente o asfixiando. A artista ilustra esse momento com uma vista superior de um claro céu azul repleto de nuvens com três grandes astros acima da linha do horizonte. Já, ao pintar um tórrido céu negro repleto de estrelas em uma profusa chuva de meteoros sobre o mar, com a lua no coroamento da composição, Chang traduz sua imagem com a segunda expressão do xadrez, “J’adoube”, utilizada quando um jogador anuncia que tocará nas peças dispostas no tabuleiro, sejam suas ou do adversário, para ajustá-las à melhor configuração. Talvez essa seja uma preciosa descrição, fornecida pela artista, de como é o amor. Aviso que vou mexer em suas peças para que possamos fazer tudo da melhor maneira. A partir desses contrastes obtidos pela sutileza, Chang cria uma atmosfera imagética e poética, elevando-nos à estratosfera, onde o ar é rarefeito, assim como no momento do apaixonamento.


*Mateus Nunes é arquiteto e pesquisador. Doutorando em História da Arte na Universidade de Lisboa, com período de intercâmbio na USP, onde é pesquisador e professor convidado. Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Pará, em Belém. É professor do Museu de Arte de São Paulo (MASP) na ocasião do curso “Arte contemporânea paraense: Hibridismos, imagens e poéticas”.

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