Em 2021, o Festival É Tudo Verdade fica mais uma vez longe das salas de cinema, por conta da pandemia. Realizada em formato inteiramente virtual, a edição deste ano exibe sessões digitais até este domingo, 18 de abril, dia da cerimônia de premiação. Se por um lado a saudade do ambiente físico dos cinemas é um revés, o ponto forte de um festival disponível na web é o acesso. Para assistir aos filmes basta entrar no site www.etudoverdade.com.br. Lá, vá em “Programação”; ao clicar no filme desejado o visitante será direcionado para a página do festival na plataforma de streaming Looke, e então é só começar o filme. Entre os 69 selecionados para o festival deste ano, os filmes 9 Dias em Raqqa, Mil cortes e Vicenta são alguns dos que merecem ser vistos. Embora tenham temporalidades diferentes e produções de países distintos, os três são sobrevoados por temas comuns, caros ao debate político contemporâneo: os direitos da mulher, a liberdade de imprensa e a importância do jornalismo para a manutenção das democracias.
9 Dias em Raqqa
O título de 9 Dias em Raqqa se refere exatamente ao tempo disponibilizado à jornalista francesa Marine de Tilly para conhecer Leila Mustafa, atual prefeita de Raqqa.
Capturada primeiro pelo Estado Islâmico em março de 2013, a cidade foi palco de grandes conflitos durante a guerra. Eventualmente, o grupo extremista expulsou tanto os simpatizantes da oposição quanto do regime Assad da região. Lá, proclamaram a criação de um califado sob a lei da sharia e, em 2014, fizeram de Raqqa a nova capital na Síria.
Foi apenas em 17 de outubro de 2017 que lideranças militares curdas anunciaram que a cidade havia sido libertada e o EI teria sido expulso da região. Foi nesse momento que Mustafa engajou-se na política, iniciando sua participação nos conselhos civis. Galgando espaço entre os chefes das tribos que ditavam as ordens na Síria, ela tornou-se prefeita com apenas 30 anos. Engenheira por formação, Leila encabeçou a reconstrução de sua cidade e foi imbuída também com a tarefa reconciliatória dentro dessa zona arrasada. “O importante é que agora estamos livres do pesadelo que é o EI, mas lembramos do que passamos, e de viver em medo constante… O nosso povo merece mais que isso, na verdade”, confessa Leila.
No documentário, dirigido por Xavier de Lauzanne, a prefeita é apresentada aos poucos. A cada dia que Marine passa com ela, mais peças da sua história são confiadas ao espectador, da mesma forma gradual que Leila as revela à jornalista. Assim, Marine se ocupa de uma zona crepuscular entre interlocutora (e narradora) e coadjuvante, o nosso intermediário até a personagem de seu livro. Enquanto coadjuvante, as próprias angústias da jornalista aparecem na tela: a despedida da família, a preocupação com sua segurança, a barreira linguística, as consequências emocionais de estabelecer um elo com a sua retratada. “A Leila é tão jovem… É pouco tempo, muito pouco tempo para uma biografia. Mas nesse contexto, quantas vidas ela já viveu?”, ela se pergunta, chegando à conclusão que talvez a sua vida privada esteja sendo sacrificada em meio ao seu dever político: “Sua vida pessoal não existe, o seu carro é um alvo… Leila segue adiante sem se preocupar consigo”.
Como prefeita, sua primeira decisão junto ao Comitê de Cultura e Arqueologia foi restaurar a praça central – local que ficou conhecido, no auge da presença do califado, como “o cruzamento da morte” – e sua memória. “Não reconhecíamos mais as ruas que frequentávamos diariamente”, conta Leila a Marine.
Na cidade, também foram retiradas mais de oito mil minas terrestres deixadas pelo EI e até meados de 2019, 300 mil residentes retornaram à cidade. Embora a estabilização ocorra aos poucos, Marine lembra, no final do filme, que após a expulsão do EI, Raqqa foi sendo esquecida pelos jornalistas, e pela ajuda internacional.
Mil Cortes
Se em 9 Dias em Raqqa a ameaça é a do extremismo, em Mil Cortes, da diretora Ramona S. Diaz, ela aparece materializada no populismo de Rodrigo Duterte, presidente das Filipinas desde 2016.
Ambos os filmes estão situados sob o guarda-chuva do jornalismo, e da sua proteção. No entanto, enquanto o primeiro permite uma abordagem menos endurecida de Marine de Tilly e Leila Mustafa, o último adota como forma a reportagem clássica, com inserções de dados, gráficos, notícias e filmagens de arquivo – algumas sendo imagens de choque. Essas ferramentas ajudam a entender melhor a complexa narrativa do crescimento de Duterte nas Filipinas, sua política de ódio e o ataque à mídia, em especial, ao Rappler, site de notícias fundado e liderado pela jornalista Maria Ressa, ambos indigestos ao ditador. Sua perseguição a Ressa e seu veículo ficou escancarada quando, no ano passado, a jornalista foi presa por violar a controversa legislação contra “difamação cibernética”, embora o texto que teria levado à condenação tivesse sido publicado seis meses antes da lei entrar em vigor.
Desde da eleição de Duterte e o início de sua guerra às drogas, o Rappler vem denunciando os abusos do presidente; “A guerra contra as drogas se tornou uma guerra contra os pobres… Tínhamos uma equipe que saía todas as noites e voltava para casa tendo contado pelo menos oito cadáveres à noite”, conta Maria. A principal bandeira de seu governo acabou resultando em 12 mil mortes, muitas de pessoas pobres e usuárias de drogas ilícitas, mas que não tinham ligação com o tráfico. A jornalista lembra que “todo mundo que questionava esses assassinatos nas mídias sociais era automaticamente banido”.
Pia Ranada, setorista do Palácio de Malacanang para o Rappler, cobre Duterte desde seu período como prefeito. Ela aponta que já nessa época havia uma reputação por ser um “punho de ferro”. Patricia Evangelista, repórter investigativa do portal, ressalta, no documentário, a ligação precisa desse aspecto e a eleição do presidente: “Já houve outros presidentes e outros governos, e as vidas deles [da população] não melhoraram. Duterte chega e ele oferece não apenas mudança, ele oferece vingança. ‘Quem quer que tenha feito isso com você, eu vou acabar com ele’”.
Comum aos demais governos populistas, Duterte oferecia uma imagem de alguém excluído dos círculos políticos da elite em Manila, considerado marginalizado, “um político insignificante”. Outra similaridade é o ataque à mídia; em um pronunciamento do presidente à União, Duterte acusava o Rappler de forjar sua identidade e ser uma empresa comandada por estadunidenses (Maria é filipina, mas cresceu nos EUA). “Uma semana depois do presidente fazer isso nós recebemos nossa primeira intimação”, relata Maria, e lembra: “Eu recebia em média 90 mensagens de ódio por hora”. Em outra ocasião, dirigindo-se a Pia, Duterte afirma que “repórteres têm a liberdade de criticar, mas irão para a cadeia por seus crimes”.
Diante disso, o Rappler começou a reunir dados e investigar as contas que atacavam a mídia. Assim, Ressa e sua equipe encontraram uma máquina do ódio, que utilizava de contas falsas, militantes e pessoas contratadas para fazerem ataques online coordenados. “26 contas podem influenciar até outras 3 milhões”, Ressa explica, tentando ilustrar a dimensão do perigo. Para denunciar isso ao mundo, Maria entra em uma frenética jornada de reuniões internacionais que – muito parecido com Leila Mustafa – quase anulam sua vida privada. Em 2018, a jornalista foi eleita uma das pessoas do ano pela revista Time, angariando algum suporte internacional.
Nos Estados Unidos, em um dos encontros registrados no filme, ela afirma: “Acho que, primeiramente, o que acontece nos EUA acontece com o restante do mundo. Para resolver isso, é preciso agir e vou dar dois motivos para tal. Passei um tempo com o delator da Cambridge Analytica, Christopher Wylie. O delator disse que testaram táticas de como manipular vocês no nosso país. E em outros países do hemisfério sul. Se funcionasse em nossos países então eles importariam para os seus”. Seu alerta é para a “morte por mil cortes” que a democracia vem sofrendo. “Quando houver um número suficiente de cortes, a democracia estará tão fraca, que acabará morrendo”.
Vicenta
A história contada no argentino Vicenta, filme de Dário Doria, começa em 2006, com a personagem título descobrindo que Laura, sua filha mais nova e portadora de deficiência mental, havia sido estuprada por um tio e estava grávida. Junto com Valeria, a filha mais velha, Vicenta precisa conseguir que Laura possa abortar. Afinal, sendo uma criança, como poderia já ser mãe?
O documentário ganha certa momentum agora, tendo em vista que em dezembro de 2020 a Argentina aprovou o aborto legal e seguro para gestações até a 14ª semana. A decisão foi conquistada com muitos anos de luta, e o caso “LMR vs. Estado Argentino” contribuiu para impulsioná-la.
O tema do documentário é substancioso e urgente, mas seu formato também merece reconhecimento. O filme é inteiramente realizado com animação de bonecos e sua história é contada por uma narradora (Liliana Herrero) que não se dirige ao público de forma direta; onisciente e onipresente, ela conversa com Vicenta, ao invés disso. Com a escrita e a gravação bem executadas, esse elemento do filme torna-se um ás para a contação da história e contorna bem uma das barreiras para o seu feitio: o fato de que seus protagonistas não desejavam aparecer nele. “Como tornar essa história visível sem as duas principais ferramentas dos documentários, a entrevista e o registro direto?”, questionou o fundador e diretor do festival, Amir Labaki.
O filme acompanha todo o processo de Vicenta, da descoberta da gravidez de Laura até o labiríntico processo com o Estado, “as próximas semanas serão idas e vindas ao tribunal. Para Laura, faltar à escola; para Valeria e para Vicenta faltar ao trabalho. Ir e voltar. Ir e voltar, uma vez e mil vezes”. Da apresentação de uma queixa, em 2011, ao comitê de direitos humanos da ONU ao ato de reparação pública a LMR, em dezembro de 2014.
Na resposta apresentada lia-se: “O comitê de direitos humanos da ONU em abril de 2011 considera que a falta de diligência do estado em garantir o direito legal a um procedimento exigido só por mulheres constituiu, em primeiro lugar, uma violação do direito à igualdade. Considera que a obrigação imposta a LMR de continuar sua gravidez constitui um tratamento cruel e inumano”.
Com isso, o comitê concluiu que o estado deveria reparar Laura, incluindo uma indenização, e tomar medidas para que violações desse tipo não ocorressem no futuro. Em resposta, o Estado deveria apresentar medidas para tal em um prazo de 180 dias. Finalmente, em 2014, a reparação chegou, oito anos depois, e a narradora pergunta a Vicenta: “Quanto dura um abuso de um tio? E das instituições? Quanto dura um dia Vicenta? E um ano? E oito?”.