Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

*Por Alexia Tala

Em 2007, eu fui co-curadora de uma mostra na Galeria Metropolitana, no Chile, onde foi exibida uma peça feita por Guy Brett, provavelmente a única que ele fez. Era uma coleção de obituários publicados no jornal britânico The Guardian. Ele os organizou, fazendo pequenas anotações nas bordas e colando página por página em uma velha pasta de couro que parecia ter tido muita história. Seu interesse especial estava relacionado à fragilidade da vida e à uma análise de como uma pessoa é capaz de resumir a vida de alguém em uma folha de papel. Como tantas conversas sobre esse assunto se acumularam ao longo dos anos, eu sabia que se ele morresse antes de mim, eu escreveria estas linhas sobre a vida dele. Linhas que não pretendem resumir sua vida, mas falar sobre alguns de seus pensamentos, desejos e sonhos em relação à arte.

Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.
Guy Brett no Sesc Pompeia, em São Paulo, obra projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi. Foto: Alexia Tala.

Depois de terminar a escola, Guy Brett (1942-2021) foi diretamente trabalhar no Yorkshire Post e depois no jornal The Times por mais de 10 anos – e consolidou sua escrita crítica como editor de artes visuais da revista City Limits, onde trabalhou entre 1981 e 1983. Com uma sensibilidade extraordinária, sua escrita sempre rejeitou o academicismo e caracterizou-se por uma visão muito particular que se centrava no encontro com a obra de arte, um encontro sensorial, onde o interesse pelos detalhes eram de grande importância em sua observação. Esse engajamento com o trabalho o levou a criar questões que ele mesmo procurava responder por meio de seus textos.

Lembro-me de uma palestra no Chelsea College of Art, em 2011, onde ele foi apresentado como “o padrinho da arte latino-americana na Europa”. Esse título não expressa o caráter admirável de um homem que não só conseguiu instalar a arte latino-americana na Europa nos anos 1960, e uma visão que repercutiu em gerações de artistas e pensadores de todo o mundo, mas que também teve um modo muito especial de conduzir sua vida e sua trajetória de curador, historiador e crítico de arte. As suas colaborações com artistas tornaram-se amizades para a vida, correspondendo-se com muitos deles e mantendo-os no seu pensamento, preocupando-se sempre em estar a par da evolução de seus trabalhos, suas vidas e saúde. Um homem de visão incomensurável, generosidade e humildade.

Em 1973, fez uma longa viagem pela América Latina que influenciou profundamente seu olhar e seu entusiasmo por explorar a região. Em 1977, realizou a exposição We want People to know the Truth: Patchwork pictures from Chile, patrocinada pelo Arts Council, que percorreu até 1978 por diferentes cidades do Reino Unido. Esta exposição mostrou arpilleras feitas por mulheres que contaram suas histórias durante a ditadura militar chilena por meio de seus desenhos de patchwork, feitos em pedaços de sacos de farinha. Seu interesse em explorar várias formas de expressão artística o levou, em 1986, a publicar Through Our Own Eyes: Popular Art and Modern History, onde ele destaca como a necessidade de expressão artística surge naturalmente em grupos sociais quando eles estão sob repressão ou eventos catastróficos. Um livro que Lucy Lippard define acima de tudo como um livro necessário e sugere que “a análise sensível de Brett deve abrir uma direção totalmente nova para aqueles frustrados pelo isolamento da arte erudita em seus próprios contextos”.

Em 1990, na Ikon Gallery de Birmingham, realizou a mostra Transcontinental: Nine Latin American Artists, que foi muito importante para ele, pois considerou que foi a melhor exposição que já havia feito em sua carreira. Por volta de 1967-68, ele pendurou os parangolés de Helio Oiticica nas lâmpadas de seu pequeno apartamento no Soho e organizou outras obras em mesas e estantes, convidando vários diretores de espaço expositivo para tomar um drinque e garantir uma exposição para Oiticica, já que a Signals – icônica galeria administrada por David Medalla e Paul Keeler e da qual Guy era o co-editor do boletim informativo – havia fechado. Essa mostra acabou sendo a icônica Whitechapel Experience, que ocorreu em 1969 na Whitechapel Gallery, em Londres.

Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.
Guy Brett e Lygia Pape em 2001 em Nova York. Foto: Reprodução site Lygia Pape.

Antes do diagnóstico que apontou que ele sofria da doença de Parkinson, ele esperava viver 2013 como um ano sabático para colocar seu arquivo em ordem, viajar um pouco e chegar a uma nova etapa. Depois de muitos anos sendo de alguma forma o porta-voz de Oiticica e Lygia Clark, tinha uma grande vontade de se aproximar das gerações de jovens artistas do Brasil. Em 2012, fez sua primeira incursão em São Paulo para ver jovens artistas, visitando a exposição de Paulo Nazareth na galeria Mendes Wood DM, que conseguiu despertar aquela “curiosidade” que era vital para ele e o entusiasmou a continuar fazendo descobertas.

Após seu diagnóstico e antecipando a quantidade de tempo ativo que teria pela frente, seus planos mudaram e ele se concentrou em dois grandes projetos: a curadoria da mostra Takis na Tate Modern, junto com Michael Wellen, e a publicação de uma seleção de seus ensaios, intitulada The Crossing of Inumerable Paths, livro publicado pela Ridinghouse em Londres. Felizmente, os dois projetos foram concluídos antes de um período de piora mais radical de sua saúde.

“Como você gostaria de ser lembrado, Guy?”, perguntei… Depois de um momento de reflexão, com as duas mãos na testa, ele disse: “Essa é uma pergunta difícil, Alexia, na verdade nunca pensei sobre isso”. Eu disse que me lembraria dele pelo que mais admiro nele e pelo que de certa forma influenciou e moldou a maneira como trabalho com artistas – e é assim que ele construiu seu relacionamento com os artistas com quem trabalhou… “Acho que você está absolutamente certa”, ele disse, e acrescentou que a razão pela qual ele pensava que essas relações se desenvolveram fortemente era porque “sem ser críticos, devemos admitir que todos os artistas podem ter grandes egos e eu não tenho um enorme, se é que tenho um. Então, nós nunca estamos competindo, e eu admiro tanto o que eles fazem que eu só gostaria de ter feito eu mesmo”. E acrescentou: “Você sabe que eu vivo uma vida muito comum e que minha vida tem sido meu trabalho. Mas minha vida (em um sentido mais pessoal) tem sido uma experiência onde artistas, especialmente artistas brasileiros, me acompanharam por todo o caminho”.

Os dias que se seguiram à sua morte foram avassaladores, as inúmeras postagens no Instagram e no Facebook de artistas que o conheceram, colegas, publicações na imprensa, principalmente do Brasil, foram sem dúvida uma chuva de demonstrações de amor, carinho, respeito, reconhecimento e amizade. Exatamente como Guy gostaria de ser lembrado, o personagem humano e adorável. Alguns anos atrás eu o lembrei do título de padrinho da arte latino-americana, ele sorriu e revirou os olhos “isso é a última coisa que eu gostaria de ser lembrado”, ele disse, e eu sabia perfeitamente o que ele quis dizer. 


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