Pintura horizontal
Obra símbolo de Aguilar militante contra a devastação das florestas, Rio Amazonas foi pintada em 2015 e faz parte da série Rios Voadores. Foto: Karin Kahn

Delírio e afetos traduzidos em pinturas marcam a volta de José Roberto Aguilar ao circuito de arte, com a exposição Destinos, o Homem Inventa o Homem, em cartaz na Fiesp. A performidade de cada tela é parte de um voo ancestral proposto por ele na tentativa de desvendar o universo, o homem e a natureza, na mostra que marca seus 60 anos de arte.

Aguilar interpreta as superfícies brancas das 69 telas como pistas de pouso para exibir uma cosmologia cujo fio condutor perpassa pelos filósofos gregos, Revolução Francesa, Picasso, Van Gogh, Bispo do Rosário e a cidade de São Paulo. Seus desejos são espiralados como um tornado e evoluem com a liberdade costumeira, como na abordagem radical de Guernica de Picasso. Pintada este ano, a intervenção é uma alusão à bipolaridade política do mundo atual num conflito que desemboca no dilema: ou a guerra ou a paz. As telas de grandes dimensões, algumas inéditas, dispostas na boa montagem de Haron Cohen, são demonstrações inconclusas de uma arte de hipóteses que parecem nunca ter um ponto final. Em Mademoiselles d’Avignon de Picasso, que leva o título 1907, ele celebra o ano da invenção da arte moderna e a criação da teoria da relatividade restrita, de Einstein.

O trabalho de Aguilar é intenso e obsessivo como atesta Rio Amazonas, uma tela de grandes dimensões que traduz a sua ligação com o ativismo ambiental na defesa do planeta que, segundo ele, vem sendo destruído pela ganância e ignorância. “Essa tela está ligada à série Rios Voadores, alusão aos cursos de água atmosféricos que se deslocam, passam por cima de nossas cabeças carregando umidade da Bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil”. Desde 2004, Aguilar se divide entre São Paulo e Alter do Chão, no Pará, onde mantém casa/ateliê e uma forte relação com a floresta amazônica e a comunidade ribeirinha local, envolvendo-a em suas obras coletivas. A imensa tela é uma ode à natureza e um grito de alerta, o mais potente e emblemático trabalho da mostra.

"Guerra ou Paz", de Aguilar, é uma acrílica e esmalte sobre tela
“Guerra ou Paz”, de Aguilar, é uma acrílica e esmalte sobre tela de 2019, e faz alusão à polarização política que atualmente toma conta do mundo. Foto: Karim Kahn

Aguilar mantém uma narrativa livre, sem filtros e traz a multiplicidade de interesses que gravitam em torno de suas reflexões sobre raciocínio, livre arbítrio, destino, meio ambiente. Dez de suas telas de grandes dimensões ensaiam um voo sobre a civilização ocidental, desde os filósofos gregos até uma possível ocupação de Marte em 2050. Em um segundo conjunto de 35 pinturas que podem ser lidas como tarôs, faz o caminho inverso, do objeto à ideia. Ele propõe ao visitante um jogo, uma viagem a locais imaginados. “Os destinos se transformam sempre, depende de você, como tudo na vida”. Cada quadro é identificado como a escolha de cada pessoa e se constitui em um campo cifrado com diálogos entre o que vemos e como compreendemos o que vemos. “A tela mais recente da exposição eu fiz há três semanas, como uma performance dentro da sala da exposição. No campo ampliado nascem gestos expandidos que formam uma grande onda”. Em outro trabalho, um emaranhado de fios com nomes de bairros emerge sob o título São Paulo, uma fricção da arte e urbanismo, com seus sapatos borrados de tinta pairando no ar.

A linha evolutiva dos 60 anos de arte revela Aguilar e seu intenso envolvimento com a arte contemporânea brasileira. “Tudo começou em meados dos anos 50, com meu colega de colégio Jorge Mautner. Aos 15 anos líamos tudo que caia nas mãos. Eu queria ser escritor, mas segui as artes plásticas e Mautner foi para a literatura”. Aos 22 anos Aguilar expõe na VII Bienal de São Paulo e Mautner, com 21, lança o livro Deus da chuva e da morte, que começou a maquinar aos 15.

Tentar categorizar a arte de Aguilar é correr atrás do vento. Até hoje ele vive a multiplicidade de suas transgressões na literatura, pintura, videoarte, música, cinema. Sua pintura ganha impulso em 1963 quando chama atenção de Mário Pedrosa e Clarival do Prado Valladares. Suas telas já traziam as cores e técnicas que lembram o grupo CoBrA. Dois anos depois ele participa da antológica exposição Opinião 65, com Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Antonio Dias, Carlos Vergara, considerada um marco na arte brasileira.

“Com o AI-5 o clima fica insuportável e mudo para Londres, onde já estavam Caetano, Gil e Mautner”. Na área das performances cria obras polêmicas como Ópera do Terceiro Mundo, com Lucila Meirelles, e apresentada na Journées interdisciplinaires sur l’art corporel et performances, no Beaubourg de Paris, e irrita os críticos. “Só não nos interromperam porque lá não há censura”. A década de 1980, foi marcada pela Casa Azul, seu ateliê na Joaquim Eugênio de Lima, por onde passavam intelectuais como Mário Schenberg, Haroldo e Augusto de Campos, o pintor Nuno Ramos e o compositor e músico Arnaldo Antunes, que logo cria a banda Titãs. Aguilar mistura Bukowski com ensinamentos indianos, expande seu circuito, expõe na Alemanha e Japão, ganha as páginas da Art in América.

Autorretrato de Aguilar tirado frente a um espelho, está com a câmera nas mãos e sorrindo.
Autorretrato de Aguilar, imagem emblemática da juventude do artista multimídia.

Em 1980 incendeia o átrio da Pinacoteca do Estado, antigo anfiteatro do museu, com a performance Concerto para Luvas de Box e Piano. “Esse evento deu início à Banda Performática com Arnaldo Antunes e outros amigos. Fizemos muitos shows e gravamos disco”. Em 86 surpreende com a intervenção no Museu da Imagem e do Som com Anticristo, “uma alusão ao artista búlgaro Christo que embrulhava monumentos, museus, pontes”. Aguilar desembrulha o MIS, que foi coberto por plástico preto durante IV Festival Videobrasil, quando o museu era na avenida Europa. “Fazíamos tudo com muita diversão.”

Todas as fases e linguagens de Aguilar se entrecruzam, dialogam entre si e são testemunhas de uma estranheza que muda o olhar do espectador sobre a realidade e a representação. Suas pinturas são performances de cores e gestos que trazem para o mesmo espaço a percepção de uma realidade ímpar, diferente daquela que move o homem convencional.

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