Solange Frakas, fundadora e diretora da Associação Cultural Videobrasil. Foto: Ale Ruaro

Após o início do período de isolamento social por conta do novo coronavírus, em meados de março, enquanto a maioria das instituições culturais do país correu para as plataformas virtuais para manter suas atividades e seu vínculo com o público, a Associação Cultural Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais. “Essa parada obrigatória, para mim, em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma a fundadora e diretora da associação, Solange Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando”, completa.

Em linha semelhante ao que escreveu recentemente o líder indígena Ailton Krenak, Solange recusa a ideia de que, após a pandemia, devemos voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós.” Em entrevista à arte!brasileiros, a diretora do Videobrasil, associação que realiza ao lado do Sesc um dos mais importantes eventos no calendário das artes visuais do país, a Bienal Sesc_Videobrasil, confirma que a próxima edição da mostra, programada para 2021, será adiada, possivelmente para 2023. Com curadoria do carioca Raphael Fonseca e da senegalesa Renée M’boya, a 22a Bienal já estava sendo concebida, mas deverá ser repensada não só por conta da pandemia, mas também da situação política do país.

“É impossível planejar qualquer projeto diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo”, afirma Farkas. Para ela, os tempos atuais remetem ao início do VideoBrasil, ainda nos anos 1980, quando o então festival precisava submeter à censura os vídeos que seriam exibidos. “Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás”. Neste sentido, completa, “acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.

Enquanto associação que trabalha com a produção advinda do chamado Sul Global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central -, o Videobrasil se reinventou ao longo das décadas, deixando de ser exclusivamente voltado para o vídeo, expandindo seu acervo e programa de pesquisa permanente e alterando o status de seu principal evento de festival para bienal. Tratou, ao longo dos anos, de temáticas que se apresentam cada vez mais urgentes no panorama global, das feridas do colonialismo e do racismo estrutural à violência do Estado e ao papel da memória na sociedade. Temáticas que, muitas vezes, não recebiam o mesmo destaque que agora ganham no mundo das artes. “Acho, sim, que deve-se olhar esse movimento com cautela. Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável.”    

Na entrevista, Farkas fala ainda sobre o acervo do Videobrasil, que deverá ganhar maior destaque no trabalho da instituição nos próximos tempos, e sobre as várias questões colocadas pela pandemia e pelas crises política e econômica no Brasil. Leia abaixo.

ARTE! – Estamos passando por uma enorme crise, sem precedentes, por conta da pandemia do coronavírus. Então eu queria começar perguntando como vocês estão lidando com esse momento no Videobrasil? Quer dizer, o que é possível fazer ou planejar neste contexto?

Solange Farkas – Desde o dia 14 de março nós fechamos o escritório Videobrasil por conta do isolamento social. E desde lá estamos trabalhando de casa, usando as mídias de comunicação para poder pensar, ou repensar, o que fazer. E essa parada obrigatória, para mim, foi uma questão que bateu muito forte. Em um primeiro momento foi uma coisa meio paralisante. Acho que fiquei uns dois meses sem querer pensar em nada imediato, em nenhum projeto para o agora. Fiquei numa ansiedade um pouco paralisante mesmo. E uma coisa provocada por tudo, não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas que é muito acentuada e piorada pela nossa condição política. Então são camadas e camadas de notícias terríveis vindas de todo o mundo – e as nossas, particularmente terríveis. Então diferentemente de outras instituições culturais que ficaram tentando manter sua audiência e seu diálogo com o público, criando projetos online, lives etc., eu não quis, nem consegui, lidar com isso. Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Tentando achar um sentido no modo como operávamos. Só depois desse tempo, então, eu resolvi reorganizar um pouco as coisas. O momento dessa parada também foi muito maluco, porque estávamos em pleno processo criativo da próxima bienal. Estávamos para anunciar o open call agora em junho, com os curadores já  trabalhando, com artistas convidados. Então foi uma parada no meio do processo. E agora vamos comunicar o cancelamento da bienal do ano que vem.

ARTE! – E tinha também a itinerância da 21a edição, Comunidades Imaginadas

Sim, eu tinha duas exposições para esse ano. Primeiro a itinerância, que ainda vai acontecer em Campinas quando o Sesc reabrir, porque teria inaugurado em abril, mas em Rio Preto, que seria em setembro, foi cancelada. E uma exposição que eu estou trabalhando há alguns anos, sobre a questão do Antropoceno, em parceria com o Ilmin Museum of Art, da Coreia do Sul. E este projeto previa um intercâmbio. Nós levamos para lá, em 2019, os artistas brasileiros. E aqui viriam os artistas coreanos em dezembro deste ano, no Sesc Bom Retiro. E a mostra foi cancelada também.

E a 22a Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que seria em outubro de 2021 no Sesc 24 de Maio, foi cancelada pelo Sesc e ainda estamos sem perspectiva de retomada. Enfim, estamos vivendo esse momento de incertezas de todas as ordens. Isso alterou o calendário mundial das artes, que vai ter que ser totalmente realinhado. Até porque eventos de arte, em geral, estão sempre tentando responder a questões do cotidiano, do hoje, às questões políticas. E com um abalo dessa ordem você fica muito inseguro com o que dizer ou como responder à questões tão profundas. Então precisa realmente de um tempo para repensar tudo. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Eu acho que têm questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e como elas vinham funcionando. Eu começo a entender, agora, esse momento em que estamos como um novo ponto de partida mesmo, que pode nos oferecer uma oportunidade única. Claro, em uma situação privilegiada, no nosso caso, porque a gente pode se permitir isso, mas para pensar, por exemplo, como combater esse modo pelo qual o sistema neoliberal em que vivemos coloniza a nossa subjetividade. Tem tantas questões em jogo…             

ARTE! – Pensando nesses reflexos globais, o Videobrasil desde sempre priorizou este olhar para o Sul Global, este Sul geopolítico que incluí países e grupos à margem do capitalismo central. De que modo você enxerga esse mapa geopolítico neste momento de pandemia? O que está acontecendo no mundo escancara ainda mais esse desequilíbrio e desigualdade global? Ou talvez seja uma possibilidade para rearranjos nesse mapa?

Olha, acho que de fato escancara as diferenças, de todas as ordens. As diferenças sociais, econômicas, raciais. Sabemos que os países do Sul Global são atingidos mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas. E somos o lado sempre mais frágil, fato que tem a ver com uma questão social e econômica. Mas ao mesmo tempo existe uma coisa interessante – se é que é possível falar de alguma coisa interessante nesse momento em que há tanto sofrimento, tantas pessoas padecendo -, que é que todas as grandes certezas, as diretrizes sempre colocadas de lá para cá, do Norte para o Sul, estão sendo postas em cheque. Elas foram um pouco por água abaixo. Nesse sentido, estamos um pouco parecidos. E com certeza, quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. A gente vive em crise permanente. E se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas à esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura, claro.

E particularmente no caso do Videobrasil é interessante pensar como o vídeo, nesse momento, ocupa um lugar central em todos os campos da cultura. O vídeo é o modo de comunicação, é a expressão possível nesse momento, é o que está nos conectando. Ele ocupa um lugar central nesse contexto. E para nós é interessante pensar sobre isso. Muita gente me pergunta por que o Videobrasil não está fazendo coisas online. Primeiro porque essa condição forçada me permitiu esse privilégio, de certa forma, de pensar mais profundamente sobre nossas ações, sobre o papel que ocupamos e sobre como lidar com isso tudo a partir de agora, mantendo um lugar de relevância para o cenário das artes nesse lugar do mundo – o Sul – onde somos uma janela importante.

E assim surgiu essa ideia de se voltar mais para esse lugar do vídeo, que temos no nosso DNA. Temos um acervo muito importante, de 35 anos, com a produção desse lugar do mundo. E essa crise toda, todo esse movimento, me fez pensar, principalmente agora com essa perspectiva, ou falta de perspectiva, sobre quando vamos voltar a ter a bienal, de que forma e com que suporte. Repensar como vamos atuar. E pensar em como o acervo pode ser esse novo lugar. Porque nesses anos todos o acervo tem para mim essa importância não apenas na questão da memória – dessa produção sensível desse lugar do mundo -, mas também como um lugar que alimenta e retroalimenta a própria atividade da associação.

ARTE! – E de que modo se daria esse olhar mais intenso para o acervo?

Estamos desenvolvendo nossa nova plataforma, que é o Videobrasil online, para pensar em como agir no universo virtual. Continuar fazendo as curadorias, trazendo curadores da África, América Latina, América Central, como já fazemos, para colocar em destaque artistas importantes que estão neste acervo, fazer exposições individuais e coletivas, tudo isso no universo do Videobrasil online. Se era algo que já existia a possibilidade de ser trabalhado, me parece que esse é o momento. Então depois desse momento do impacto, da paralisia, de uma certa depressão, eu estou agora concentrando esforços e pensando, a partir do acervo, nessas ações, em como continuar contribuindo com essa plataforma do Videobrasil online para essa produção desse Sul Global.    

ARTE! – Tem uma coisa que me veio à mente, quando você falou dessa certa paralisia que te tomou, que tem a ver com algo que o Ailton Krenak escreveu recentemente, de que isso tudo que está acontecendo pode ser a obra de uma mãe amorosa, a Terra, que decidiu fazer seus filhos se calarem pelo menos por um instante, por querer lhes ensinar alguma coisa…

Claro. E vou dizer mais, esse livro do Krenak (O Amanhã Não Está à Venda), assim como o anterior (Ideias para Adiar o Fim do Mundo), caiu para mim como uma bomba, no melhor sentido. Ou seja, vamos prestar atenção. Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está nos acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito, muito, a nos ensinar, a nos dizer. Precisamos prestar atenção nisso. E realmente para mim isso virou um oráculo.

ARTE! – Agora, para além das desigualdades globais de que falamos, a pandemia tem escancarado também as enormes desigualdades internas dos países. Só para dar um exemplo, um boletim recente da prefeitura de São Paulo revelou que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior do que de brancos…

E isso diz muita coisa.

ARTE! – E essas desigualdades vem sendo tratadas há muito tempo no Videobrasil. Na última edição, por exemplo, isso foi muito forte. As coisas que estão acontecendo revelam uma urgência ainda maior de tratar destes assuntos, seja nas artes ou na sociedade como um todo?

Acho que as coisas não estão descoladas. A arte é uma experiência humana, absolutamente necessária. Sabemos disso. Aliás, é a alma da coisa. Não vejo nunca como desconectar a arte da vida, da experiência humana, do cotidiano, da política. Então são coisas que estão juntas, e só fazem sentido juntas. Não dá para pensar a produção artística como um artefato para poucos. Não é perfumaria, é o alimento, digamos assim. Então, pensar todas essas questões que nós temos trazido insistentemente nas nossas ações, isso é como um programa mesmo do Videobrasil, tentar contribuir com esse pensamento, abordar essas questões que dizem respeito não apenas à produção do simbólico, mas à vida, às diferenças cada vez mais acentuadas que existem. E a última edição do Videobrasil parece que era premonitória, de certa forma, quando falávamos dos povos indígenas e trabalhávamos essa ideia das comunidades de afeto. A nação não como Estado, mas a nação como esse Estado que você escolhe, essas comunidades. Não necessariamente a que você nasceu, mas também aquela que você escolhe por afinidade, por afeto.

No Martins, #JÁBASTA!, 2019, acrílica sobre tecidos diversos. Foto: Divulgação.

ARTE! – Falando dessa coisa premonitória, pensei agora na obra do No Martins na última bienal, com pinturas de rostos negros e o escrito “Já Basta”. Bom, nas últimas semanas assistimos, a partir dos assassinatos do americano George Floyd, e no Brasil do menino João Pedro, a explosão de manifestações e da discussão sobre o racismo estrutural que forma as sociedades americana, brasileira e muitas outras. Como você tem assistido esses fatos recentes e a eclosão desse debate sobre racismo?

Eu acho, claro, que a questão do isolamento social faz com que a gente perceba mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. As pessoas não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, essa questão do racismo, que é um racismo estrutural, o nível e o grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu. Foi preciso agora essa explosão nos EUA para as pessoas aqui entrarem nessa campanha. Às vezes até me deprime um pouco, porque eu vejo gente que não está nem aí, que não percebe o que está acontecendo, mas fica reproduzindo nas redes essa campanha. É um certo cinismo.

Então acho que esse é um lugar importante que o Videobrasil ocupa, de alertar, de fazer com que as pessoas olhem para esses lugares. E pensando no lugar de fala dessas comunidades. Não apenas a negra, mas os povos indígenas. Com os povos indígenas eu acho que é pior ainda, porque nem são considerados gente. É uma coisa muito louca, muito perversa. Então acho que a pandemia está ajudando também a olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade. Acho que nunca foi tão evidenciado como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista. Por que é que estamos passando por isso? De onde surgiram essas pessoas? O que é isso? Por que não reagimos? São questões que alguma hora iam explodir. E acho que a pandemia nos força a pensar nessas questões, a olhar para esse lugar.   

ARTE! – Falando sobre a produção artística das comunidades indígenas, de negros, periféricos, LGBTs, mulheres e outros grupos historicamente oprimidos, essa é uma produção que tradicionalmente pouco circula no sistema institucional e no mercado das artes. Mas parece que isso está mudando nos últimos anos e que tanto as grandes instituições quanto o mercado têm se voltado com muita força para essas produções. Queria saber como você enxerga esse movimento. E se ele é algo a se comemorar ou a se olhar com cautela.

Olha, eu acho delicado, desconfio um pouco disso. Acho sim que deve-se olhar com cautela. Claro, parece tão importante as artes olhando para a produção destes artistas negros, indígenas, e com essas questões políticas em pauta. Mas não é exatamente a arte, é o mercado que está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável. Pelo contrário, acho muito nocivo. Tende a banalizar, é perverso.   

ARTE! – Não é um olhar genuíno?

Não. Acho que descobrem esses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem. Mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas. Porque essa pesquisa que nós do Videobrasil fazemos – e outras instituições do mundo também, que têm essa perspectiva mais política e ligada às questões sociais que envolvem a produção artística -, essa pesquisa demanda um tempo, recursos, deslocamento. Porque nesses lugares há uma produção absolutamente potente e extraordinária não apenas no sentido, mas na própria operação, no fazer. E há 30 anos temos feito esse trabalho de colocar um pouco um foco de luz em um lugar que está na sombra. Lugares imensos, no Brasil, na América Latina, na África principalmente.

Além disso eu acho que, no cenário das artes, há também um esgotamento nesses países do Norte. Por que é que, já há algum tempo, esse mundo da arte global – Europa, EUA etc. – começa a olhar para esses lugares chamados subdesenvolvidos? Por uma necessidade, porque é preciso, por um esgotamento deles. Então você vê curadores viajando para o Sul, indo atrás. E isso é algo recente, historicamente. E eu sempre achei que precisávamos estar preparados para esse momento, porque essa relação precisa ser equilibrada. Isso é muito importante. E é claro que eu vejo com muita precaução esse afã do mercado. Porque banaliza, cria rótulos. Temos que ir com cuidado. Mas, também, os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo. E acho que essa é uma grande diferença destes artistas que vêm destes lugares mais subjugados, que sofrem preconceitos, para esses artistas brancos, de classe média, que participam de todas as feiras etc. Tem uma diferença no discurso, na atitude, e isso está impresso também na produção. Por isso a potência do trabalho dessas pessoas, por isso a potência da produção indígena. É uma loucura pensar que os indígenas brasileiros, que são das comunidades originários do globo que vivem em situações mais subjugadas e precárias, tem uma produção tão extraordinária. Então por que é que nós no Videobrasil temos tanta força e energia, apesar de tudo? Porque a gente lida com essa produção tão potente, tão necessária, que pode ajudar tanto nessa reflexão sobre o mundo.

ARTE! – Bom, falando um pouco mais especificamente da política nacional, independentemente da pandemia já existia no Brasil um quadro muito conturbado e ameaçador para a cultura nos últimos tempos. Existe um governo que parece ver as artes, a cultura, como inimigos. Como você vê esse quadro e como é possível trabalhar nesse momento?

A gente vem em um declínio desde o golpe que tirou a Dilma Rousseff. E agora com a cultura declarada como inimiga, que é uma prática típica do fascismo – historicamente nós sabemos disso. Agora, é claro que é impossível planejar qualquer projeto – como a bienal – diante de um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa, às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo. Então a situação é paralisante. Você não tem nenhuma mobilidade, porque você não tem nenhum mecanismo para produzir, nem minimamente.

ARTE! – Financeiramente a situação se torna inviável?

Desde o governo Temer até agora, pensando em uma política pública para a cultura, não existe. Existe, na verdade, um ataque, um desmonte. Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural – sobretudo o Sesc-SP, que tem essa figura extraordinária que é o Danilo Miranda, que é um humanista, um homem sensível e um gestor extraordinário -, a gente não teria feito a bienal desde 2016. Porque não há condições para fazer. Ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Recentemente me perguntaram sobre como a arte pode se manter, como pode reagir a tudo isso. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda. Porque as estruturas, os tentáculos para manter uma produção, as instituições, o financiamento, o modo de exibição, acabam também afetando muito a produção em si. A produção acaba sendo muito moldada para atender essas demandas, que não deixam de ser demandas desse mundo neoliberal, onde o mercado está acima de tudo. Pensando do ponto de vista da criação, o artista precisa de todos esses aparatos para produzir? Claro que não. Claro que é importante, mas talvez agora tenhamos que ser um pouco mais livres, voltar lá para trás, em um tempo anterior a esse boom das artes.

ARTE! – Falando em voltar lá para trás, o primeiro festival Videobrasil foi realizado em 1983, ainda no final do período da ditadura. Olhando para lá e pensando no momento atual, você enxerga paralelos?

É muito parecido. E isso é uma loucura. Parece que eu estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival, em 1983, era um momento de abertura política, e ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte sobre a arte. Então nos primeiros cinco anos de Videobrasil eu submetia todas as obras, antes de exibir, para a censura. E a censura vetou vários trabalhos. Fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censuradas. Então a gente vem desse lugar e está voltando para esse lugar, do ponto de vista da política, muito triste.

ARTE! – Inclusive a censura voltou a ser um assunto…     

Sim, ela existe agora com outros mecanismos. Na medida em que você não pode produzir, não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso, é um modo de censura.

ARTE! – Em entrevistas que fiz recentemente com gestores culturais de instituições brasileiras, o Danilo Miranda disse que em muitos aspectos este é um governo ainda pior para a cultura do que foi a ditadura militar, e o Ricardo Ohtake disse ver traços até do nazismo no atual governo…

Concordo com ambos. Na ditadura as coisas eram mais claras né? E quanto ao nazismo, é perceptível. Não sou eu ou o Ricardo que estamos dizendo, são eles mesmos que fazem manifestações nesse sentido. É uma caricatura do nazismo. Eles reproduzem gestos, tentam resgatar isso. Tristes de nós. E é doloroso pensar que esse cara foi eleito. Mesmo que a gente saiba sob quais condições, mas ainda assim. O que é esse Brasil? O que é esse pedaço do Brasil doente, que ainda hoje apoia esse cidadão? De onde veem essas pessoas tão sinistras que fazem parte desse governo? Então nós somos uma sociedade esquizofrênica, que precisa ser tratada coletivamente.    


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