Obra de Beto Shwafaty, no acervo da fundação

Em artigo publicado em um livro (“Luvas!”, em Onda verde, 1920), Monteiro Lobato declara seu amor pelo Rio de Janeiro afirmando que a cidade, durante a criação do mundo, era o almoxarifado de Deus. Nos seis primeiros dias ele tirava de seu depósito todas as belezas e as depositava nos diversos lugares: fatigado, no sétimo dia ele descansou, deixando o almoxarifado na maior bagunça com belezas espalhadas e misturadas por tudo quanto é canto da cidade.

Foi esta a sensação que tive quando visitei as salas que apresentam obras da Fundação Marcos Amaro na Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA), instalada numa antiga fábrica de tecidos construída em 1903 em Itu: espaços generosos com obras – algumas verdadeiramente excepcionais – dispostas numa expografia que dificulta a visão de muitas delas, uma espécie de almoxarifado solicitando uma ordem maior de visibilidade para os trabalhos expostos ou que explicite, por exemplo, as razões para que uma escultura atribuída ao Aleijadinho esteja ali no meio de outras produzidas nas últimas décadas. Porém, apesar dessa impressão de estar em um lugar indeciso entre ser um local de armazenagem ou um espaço de exibição, a sensação foi de fascínio frente àquele conceito de Fábrica de arte e cultura ainda em processo de formulação.

Como a Fábrica se comportará após as adaptações que virão em breve? Quantas oficinas terá, quantos auditórios, qual será sua aparência definitiva? E o acervo, continuará passando aquela impressão de indefinição entre storage e salas de exibição? Uma pista importante para o devir do acervo parece ficar evidente quando se visita a exposição anexa às salas do acervo aqui descritas. Trata-se da exposição Aproximações – Breve introdução à arte brasileira do século XX. Com curadoria de Aracy Amaral, a exposição apresenta uma seleção de obras do final do século XIX até meados do século passado. Iniciando com a primeira versão de Descanso do modelo, 1885, de Almeida Jr., pertencente à Fundação Marcos Amaro. Além dessa pintura, outras ali exibidas também pertencem à mesma instituição: dois Eliseu Visconti, três Portinari e mais uma obra de cada um dos seguintes artistas: Pedro Américo, Castagneto, Lasar Segall, Antonio Gomide, Victor Brecheret, Cícero Dias, Ismael Nery, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Guignard e Ianelli.

Apesar da visão instituída do que seria a “arte no Brasil” daquele período, parece não restar dúvidas de que “Aproximações” (em cartaz até 15 de junho) comporta-se como um elo que une aquela mencionada escultura atribuída ao Aleijadinho – meio perdida na outra exposição – ao grande segmento de arte contemporânea local – o forte do acervo. Esse encadeamento que a mostra de Amaral explicita sinaliza para um devir da Coleção da Fundação Marcos Amaro transformando-se em um museu de arte brasileira, da passagem do século XVIII para o XIX até a atualidade.

Mesmo que essa narrativa sobre o que pode ter sido a arte no Brasil nesses últimos séculos venha sendo revista nos anos recentes, parece não restar dúvidas sobre o quanto será importante um acervo desse porte em uma cidade como Itu, para que novas pesquisas possam ser desenvolvidas no sentido de – quem sabe – reconsiderar essa visão sobre o fenômeno artístico brasileiro que se tornou hegemônica. Afinal, obras boas não faltam ao acervo. Se em seu segmento contemporâneo – sob a responsabilidade de Ricardo Resende –, sobressaem obras de Tunga, Fábio Miguez e Beto Shwafaty, entre outros, o segmento moderno não fica atrás. Afinal ali estão algumas obras que certamente permanecerão como paradigmas da arte produzida no Brasil, seja qual for o enfoque dado, como as pinturas de Almeida Jr., Segall e Guignard ali presentes.

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Terminada a visita, fiquei pensando: apesar de todos os problemas inerentes ao um empreendimento ainda em processo de assentamento, que baita presente para a Itu a presença da FAMA na cidade! Que presente para o país, nesses tempos tão tenebrosos, a presença de Marcos Amaro atuando com todo o entusiasmo de sua juventude em prol da arte e da cultura. Ele e sua coleção de vocação pública – dentro de uma fábrica que tem tudo para se transformar numa usina de arte e conhecimento – fazem renascer a esperança de que nem tudo está perdido, ou se perdendo, no Brasil.

 

 

 


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