A seguir, reproduzimos dois textos extraídos do livro Travessia do Silêncio, Testemunho e Reparação (2015), publicado pela Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, em São Paulo, sob a coordenação do Dr. Moisés Rodrigues da Silva Júnior e de Issa Fernando Sarraf Mercadante.
PROJETO CLÍNICAS DO TESTEMUNHO DA COMISSÃO DE ANISTIA
Por Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia
Projeto Clínicas do Testemunho é uma nova etapa do programa de reparações da Comissão de Anistia; busca, por meio de Chamada Pública, selecionar projetos da sociedade civil para fomentar a implantação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados por violência de Estado a que se refere a Lei n. 10.559/2002. Os reflexos da violência do Estado praticada no período da repressão se perpetuam no psíquico das vítimas mesmo com o passar dos anos, e a falta de uma política pública no sentido de reparar essas violações reforçam a negação do Estado em reconhecer os erros cometidos por seus agentes, e contribuem para uma não reparação plena. O atendimento clínico às vítimas dos danos produzidos pela violência do Estado brasileiro é necessário para que se busque a reparação plena. Uma reparação apenas nos campos financeiro e moral deixa uma fissura no campo psicológico que precisa ser estudada e erradicada por meio de uma política pública de qualidade. O Estado tem a obrigação de prestar apoio psicológico aos cidadãos atingidos por graves violações dos direitos humanos.
É nesse contexto que surge o Projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia, que tem por objetivo a implementação de núcleos de apoio e atenção às vítimas e testemunhas, nos quais o atendido poderá trocar experiências com seus pares, por meio de escutas realizadas por equipe com conhecimento específico, através de metodologia apropriada para estas modalidades de traumas advindos da violência do Estado.
[…] Assim, a Comissão de Anistia amplia e dá efetividade às políticas públicas de reparação do Estado brasileiro, e permite que a sociedade conheça o passado e dele extraia lições para o futuro, reiterando a premissa de que apenas conhecendo o arbítrio estatal do passado podemos evitar sua repetição no futuro, fazendo da anistia política um caminho para a reflexão crítica, para o aprofundamento democrático e para o resgate da confiança pública dos cidadãos com relação às instituições estatais. O Projeto investe em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital público, garantindo igual possibilidade de acesso a todos, e evitando que uma única visão de mundo imponha-se como hegemônica ante as demais ou uma única metodologia se imponha no campo epistemológico, em respeito ao livre pensamento e o direito à verdade histórica, à memória e à reparação, disseminando valores imprescindíveis a um Estado plural e respeitador dos direitos humanos.
APRESENTAÇÃO
A TERCEIRA MARGEM DA REPARAÇÃO1
Equipe da Clínica do Testemunho do Instituto Projetos Terapêuticos, com redação final de Rodrigo Blum
O ano de 2014 marcou os 50 anos do golpe no Brasil e 40 da sistematização da doutrina de segurança nacional, verdadeira “arquitetura de exceção” projetada pela ditadura civil-militar.
O estado de exceção no Brasil ‘destruiu livros e documentos, invadiu campi universitários, proibiu leituras de obras e de autores considerados antifascistas, socialistas, comunistas entre outros. Censurou textos, livros, letras de músicas, peças de teatro e criou a função do censor em redações de jornais e em veículos de comunicação; legitimou a delação, a espionagem entre vizinhos, a escuta telefônica e criou um clima de suspeição, incômodo e de vigilância permanente. Principalmente, instituiu a pena de morte por fuzilamento e o banimento do solo brasileiro. Não instituiu legalmente duas figuras trágicas que, se legalizadas, colocariam explicitamente o país na contramão das Convenções de Genebra: a autorização para a tortura e o desaparecimento forçado dos opositores capturados’2.
Meio século após o fatídico golpe militar de 1964, os efeitos traumáticos deste terrível período da nossa história começam a ser trazidos à público.
[…] Até os dias de hoje guardamos, através das gerações, as marcas dos efeitos devastadores decorrentes da violência traumática exercida pelo poder das ditaduras latino-americanas que, entre as décadas de 60 e 80 do século XX, amparadas pelo discurso da doutrina de segurança nacional, instituíram como política de atuação o terrorismo de estado. Um poder institucional inquestionável, implacável, com uma lógica de operar aleatória e sujeita a uma total arbitrariedade, sustentada por uma estrutura institucional que coordenou a implementação de uma política de desorientação 14 e terror.
Segundo Giorgio Agamben (2004) trata-se de uma forma de exercício de poder a partir da qual os conceitos de direito subjetivo e proteção jurídica deixaram de fazer sentido. O que se faz com este terror que assombra? É possível deixar de repetir o trauma? Como se aproximar das experiências de horror que, às vezes, só são conhecidas pelas marcas deixadas nos pais e que atravessam as gerações?
1Esse texto tem como objetivo ao mesmo tempo apresentar o trabalho realizado pela equipe da Clinicas do Testemunho – SP, assim como introduzir a temática trabalhada por diversos textos contidos neste livro. Neste sentido, encontraremos aqui uma composição entre a teoria e a clínica, bem como a produção conceitual dos diversos autores
2Maria Auxiliadora de A. C. Arantes. Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 129.
MEMÓRIA SEM LEMBRANÇA
Por Moisés Rodrigues da Silva Junior*
O que exatamente se configura como tortura? As técnicas ancestrais do grande inquisidor Torquemada? O pau-de-arara, os aparelhos de choques elétricos? Na imaginação de muitas pessoas essas são as primeiras cenas que ocorrem quando falamos em tortura.
Para a grande maioria são só essas as cenas e, por isso mesmo, acabam fechando os olhos ou os ouvidos a uma série de outras formas mais sutis mas igualmente cruéis de atormentar o outro. As simulações de execuções, ser testemunha da tortura de pessoas queridas, as ameaças de estupro, o manuseio de genitais e o isolamento apareceram vinculados a, pelo menos, tanta angústia quanto à causada por métodos físicos.
Não são somente os abusos físicos e visíveis que devem ser levados em conta. A manipulação psicológica, a humilhação, a privação sensorial e as posturas forçadas causam tanto dano, estresse e angústias como a tortura física.
No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824, firma-se uma declaração contra a tortura e outros tratamentos desumanos: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca do ferro quente, e todas demais penas cruéis”. Ainda assim, em nossas constituições republicanas nada é apresentado sobre a prática da tortura (Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967), exceto uma menção na Constituição de 1967 quanto ao “respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário”.
[…] A tortura, por seu caráter brutal determinado pela ação humana deliberada, que tem por objetivo, anular pessoas, aterrorizá-las, e que por sua dimensão coletiva e política vale-se de características particulares humanas, não podendo ser considerada um “excesso” produzido por um sádico isolado. É, sim, uma instituição política do estado, produtora de subjetividade não apenas em suas vítimas diretas, mas também em seus familiares, descendentes e por irradiação no conjunto do tecido social.
A experiência extrema que a tortura produz sempre marca e transforma o destino do torturado que se apresenta como a testemunha encarnada de uma ferida que concerne a todos. Seu corpo ferido se oferece como símbolo, como bandeira em que se inscreve o que nele foi atingido e que Robert Antelme (2013) chama de “sentimento de pertença à espécie humana”.
Assim, o clima de terror generalizado e a institucionalização da tortura se traduzem, na subjetividade, como perda do apoio social necessário a seu funcionamento. Como descreve Eric Erikson: “(…) o eu continua existindo, ainda que tenha sofrido dano e mesmo mudanças permanentes; o tu continua existindo, ainda que distante, e pode ser difícil se relacionar com ele; mas o nós deixa de existir.” (p. 73)
Situações de grande violência e silenciamento social golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social) constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as pessoas causando um prejuízo na confiança no entorno social, na família, na comunidade, nas estruturas do governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz da constelação identificatória, base do sentimento de pertencimento à humanidade e da própria identidade, se abala de forma profunda alterando seu funcionamento.
Mesmo não tendo um quadro sintomatológico único, nem uma síndrome unívoca, as sequelas psicológicas da tortura são sérias e permanentes, com tendência ao agravamento com o passar dos anos, e mais. Segundo Léo Eitinger (1995), a lista de danos é extensa:
*a experiência traumática produz sequelas transgeracionais;
*o índice de psicoses é cinco vezes mais elevado do que nas populações que não as sofreram;
*a taxa de suicídio é de 16 a 23% mais elevada nas sociedades onde a tortura ocorreu a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;
*a inserção social é muito difícil, as rupturas familiares são frequentes;
*a capacidade laboral fica muito diminuída, às vezes até impossibilitada;
*além do traumatismo inicial, devem ser levados em conta os efeitos agravantes produzidos pela retraumatização posterior;
*alguns sintomas de sequelas aparecem logo depois de longos períodos aparentemente assintomáticos (20, 30, 40 anos após o ato);
*as doenças físicas, as hospitalizações, as intervenções cirúrgicas etc. são mais graves e frequentes em sociedades que sofreram atos de tortura.
Pensando nessas condições que a tortura imprime na sociedade, direcionamos o foco de nosso trabalho às sequelas psicológicas dos envolvidos nos atos de tortura e numa possível abordagem clínica dessas situações.
CLÍNICA SEMPRE POLÍTICA
Segundo Gilles Deleuze (1988), as questões com as quais a psicanálise se defronta são inevitavelmente políticas. Tratam sempre do “quanto” e do “como” o desejo pode se produzir e se expressar diante das injunções de assujeitamento. Responder clinicamente aos traumas de natureza diversa aos traumas sexuais infantis desafia o clínico a elaborar conceitos úteis à situação, em que a experiência traumática está determinada por uma política de estado com um primeiro e explícito objetivo de fazer falar secundado por uma busca de silenciamento social.
Nicolas Abraham & Maria Torok (1995), comprometidos com a ideia de uma psicanálise com feições humanas e atenta à aceitação do humano, em todo seu sofrimento, diziam que, se alguém lhes pedisse para resumir em uma única palavra o conjunto da temática ferencziana, esta seria catástrofe e seus sinônimos: traumas, acidentes, afecções, pathos.
Para Sándor Ferenczi (1931), a reação imediata ao trauma é uma “agonia psíquica e física que acarreta uma dor tão incompreensível e insuportável” (p. 79) que o sujeito precisa distanciar-se de si mesmo, vivendo num estado de suspensão. As descrições de Ferenczi (1934) em relação à comoção psíquica fazem referência ao terror, à catástrofe, à morte. O desprazer causado pelo excesso não pode ser superado, estando o sujeito enfrentado com a máxima vulnerabilidade e impotência, restando apenas “(…) a autodestruição, a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será preferida ao sofrimento mudo.” (p. 111)
TRAUMA E DESMENTIDO SOCIAL
Ferenczi (1931) postula a realidade do trauma. O fundamental aqui não é a noção de realidade, mas, principalmente, o que pode ser entendido como traumático. Uma catástrofe não é necessariamente traumática; ela pode se tornar traumática se, ao desastre, se somar esse outro elemento, capaz de minar a confiança básica em si, no outro, na vida. “O pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento (…) é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.” (p. 79)
Por desmentido entenda-se o não reconhecimento e a não validação perceptiva e afetiva da violência sofrida. Trata-se de um descrédito da percepção, do sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que vivenciou o trauma. Portanto, o que se desmente não é o acontecido, mas o sujeito. Este modelo não privilegia personagens, e sim relações. Relações de poder, de desvalorização, de desrespeito, enfim, relações políticas com o envolvimento de afetos como vulnerabilidade, humilhação e vergonha, cujas implicações são necessariamente políticas.
RECONHECIMENTO: CAMINHO DA CURA
Considerar o reconhecimento como o avesso do desmentido implica dizer que efeitos traumáticos podem ocorrer quando alguém não é reconhecido na sua condição. Não é possível uma posição neutra a este respeito: o desmentido, enquanto não-validação das percepções e dos afetos de um sujeito, pode ser entendido como um reconhecimento recusado. Nessa linha, podemos dizer que o reconhecimento é, em primeiro lugar, reconhecimento da vulnerabilidade de um sujeito.
Para Ferenczi (1932) o sujeito é vulnerável na relação com o outro, o que implica também o reconhecimento da própria vulnerabilidade. Inaugura-se, assim, a possibilidade de uma comunidade constituída horizontalmente, “comunidade de destino” a partir da precariedade de seus membros. Nas palavras de Ecléa Bosi (1995): “A comunidade de destino se refere ao fato de que um grupo de pessoas pode reunir-se, sem certezas prévias, para discutir ou construir seu próprio destino.” (p. 34)
[…] O pensamento de Ferenczi nos aponta para uma possibilidade de vínculo que, ao invés de constituir-se em torno da autoridade e da ilusão de garantias, sustenta-se sobre uma mesma “comunidade de destino”. O quanto se quanto se acolhe um sujeito traumatizado, o quanto se admite a sua queixa de uma injustiça sofrida, o quanto se reconhece a sua necessidade de reparação: tudo isso configura uma necessidade que deve se estender ao campo da cultura, do direito, e da política. O grande ensinamento destes tempos em que vivemos tem sido que o laço social está ancorado no próprio fundamento do político enquanto arte de viver juntos.
Referências
ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casca e o núcleo. São Paulo: Escuta. 1995
ANTELME, R. A espécie humana. São Paulo: Record, 2013
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
EITINGER, L. Prisión en campo de concentración y traumatización psíquica. In: AZPIROZ, M. R. A. (Org.) Represión y olvido: efectos psicológicos y sociales de la violencia política dos décadas después. Montevideo: Roca Viva, 1995.
ERIKSON, E. Trauma y comunidade. In: ORTEGA, F. (Org.) Trauma, cultura e historia: reflexiones interdisciplinarias para el nuevo milenio. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2011.
FERENCZI, S.
(1922). Psicanálise e política social. In: Obras completas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
(1931). Análises de crianças com adultos. Op. cit., v. IV
(1932). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990
*Moisés Rodrigues da Silva Júnior, médico, psicanalista, analista institucional. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientia e Professor do Curso de Psicanálise do mesmo instituto. Coordenador da Clínica do Testemunho do Projetos Terapêuticos (2013-2016).