Pelas frestas da Trienal de Arte de Sorocaba


    Frestas – Trienal de Artes se insere no fenômeno da descentralização da arte e reforça seu propósito de espaço aberto para livre expressão. Idealizada pelo Sesc de Sorocaba, chega a sua segunda edição com obras ativistas, colaborativas e urbanas que profanam a ordem estabelecida da cidade paulista, situada a 90 quilômetros da capital. Os 58 artistas contemporâneos, de 13 países, reforçam a relação dialética entre a arte e a realidade social, provocam o pensamento local e provam que a arte pode ser também um espaço de jogo. Há um movimento sucessivo e sistemático em toda grande mostra em busca do novo, e ele se depara com forças antagônicas entre a ruptura e a continuidade. A curadora Daniela Labra acerta no tema Entre Pós-Verdades e Acontecimento ao colocar em xeque as duvidosas verdades midiáticas que incendeiam as redes sociais.

    Na cerimônia de abertura, depois das falas oficiais, o artista Gustavo Speridião surpreende o público com uma cantora executando, à capela, o hino A Internacional Comunista, numa crítica pertinente à situação precária dos trabalhadores de hoje. Enquanto isso Panmela Castro, autora do grafite que enfureceu um bispo da cidade por considerá-lo pornográfico, se prepara para apresentar a performance Femme Maison, um alerta sobre o papel desigual da mulher na sociedade. Espalhado pelo espaço um grupo performático faz chuva de papel com fotos de políticos e a tarja “golpistas”. Apesar do pequeno porte, Frestas mostra personalidade com pontos cortantes que rasgam a superfície tranquila e o cinza do cotidiano da cidade.

    A concepção de uma arte participativa, colaborativa e desmaterializante se espalha por vários locais nos quais algumas obras são efêmeras. O grafiteiro Nunca, ao “tatuar” índios brasileiros na lateral de um prédio no centro da cidade, transforma sua obra em alerta contra a extinção de um povo em extinção.

    Em termos de comunicação, Frestas forma uma cultura visual em mosaico, substituindo a cultura linear, se abre ao desconhecido para encontrar o novo, mas equilibrando artistas emergentes com as complexas junções conceituais dos nomes já consagrados. Raul Mourão faz um exercício de exteriorizar e interiorizar a presença humana na potente instalação realizada com grades e balanços. Sob o título Passagem, a instalação se abre para a participação do público, como se reforçasse a ideia de que não se pode simular a liberdade, como fala Ritkrit Tirabanija. Há nessa obra inesgotáveis sugestões de uso do corpo e seus efeitos comportamentais.

    A confluência de esforços dos artistas vindos de regiões diferentes, cujos trabalhos são realizados praticamente ao mesmo tempo, reforça a ideia de que exposições dessa natureza são mesmo laboratórios experimentais. Daniel Senise, expoente da Geração 80 resgata parte do período de fausto da cidade, com fotos do antigo refeitório da Estrada de Ferro Sorocabana, antes um orgulho do País. Sobre belas imagens incorpora e fixa objetos e resíduos retirados do próprio local, numa dissolução visual do sujeito e revoltante lembrança do desmonte das malhas ferroviárias do Brasil. A intervenção Vazio Pleno, de Maria Thereza Alves, tem encontro marcado com Sorocaba para desvendar a presença indígena na cidade, uma contribuição no campo antropológico, reproduzindo quinze réplicas de uma urna indígena encontrada num museu da cidade. Ao enterrar as cópias em vários pontos da cidade, ela desloca a discussão sobre a condição dos povos indígenas de um campo protegido para as ruas, permitindo uma reflexão mais ampla.

    Frestas tem obras singulares e o esforço para constituir a mostra num campo aberto, sem censura, é o seu grande feito. Dias & Riedweg foram às profundezas para trazer à tona uma obra inédita, Esperando um Cliente paradigma do universo underground. Uma videoinstalação sobre o acervo do fotógrafo norte-americano Charles Hovland exibe as fantasias sexuais de mais de três mil pessoas que responderam a ele por meio de anúncio em jornais nova-iorquinos entre 1970 e 1980. Dias & Riedweg são autores de obras seminais da arte contemporânea.

    A violência já deu vida a milhares de trabalhos de todos as matizes e parece que o público é atraído por categorias bem definidas, de significado provocante, como o trabalho da artista e médica legista mexicana Teresa Margolles que dá sua contribuição com uma coleção de joias em ouro 18K confeccionadas com estilhaços de bala ou vidro retirados de corpos de vítimas da guerra do narcotráfico em seu país.

    Sob o olhar de um estrangeiro, o alemão Michael Wesely, as imagens captadas nas manifestações de rua, favoráveis e contra o impeachment de Dilma Rousseff, exibidas na parede, transformam-se em plataforma de polêmica diante das quais alguns visitantes cerram os dentes, enquanto outros apenas sorriem. O artista parece perguntar qual é o fundo real das divergências entre a esquerda e a direita brasileiras. Ou qual a sua importância não verbal, mas real?

    Às vezes o homem é colocado em relação direta ao ambiente que o cerca, como por exemplo, o cubano Reyner Leiva Novo. Em uma imensa parede ele exibe centenas de escovas de dente usadas, que ele trocou por novas com os habitantes de Sorocaba, compondo uma história intima e local.

    O coletivo norte-americano Guerrilla Girls é o porta voz de uma nova consciência feminista que denuncia a segregação das mulheres dentro do Art System, dominado majoritariamente por homens. Na verdade, o que criticam é que poucas coisas mudaram na relação homem/mulher dentro do circuito de arte que insiste em repetir, sob formas disfarçadas, o comportamento conservador do mercado de outras décadas. O coletivo traz também o Departamento de Reclamações, já realizado no ano passado na Tate Modern, em Londres. Uma imensa lousa com giz se abre para o público deixar seus protestos. O grupo mantém o anonimato e só se apresenta com máscaras de gorila, em atitudes de dominação, ameaça, gozação, uma resposta ao universo restrito, árido e domesticado da arte.

    O desfecho fica para Yango Hernandéz, o jovem artista cubano consagrado em exposições internacionais que, numa simples e potente instalação, aperfeiçoa a engenharia da imagem política. Uma cadeira com apenas três pernas se equilibra sobre um “palco”, girando em torno de si mesma, dentro de um círculo de madeira recortada. Falamos de um objeto fraturado, frágil e cotidiano, que trafega pelo tempo por meio da memória e pode nos remeter ao desiquilíbrio econômico, político, social, intelectual de todo o planeta.

    Já pensando na terceira edição, Frestas Trienal de Artes de Sorocaba poderia se inspirar na Bienal de Lyon que em suas primeiras edições faz carreira solo para depois contaminar outras instituições importantes da cidade. A partir dessa expansão torna-se mais potente e internacional.


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