Gervane de Paula, “Arte aqui eu mato”, 2016. Foto: Karina Bacci.

Para a ciência médica e, mais recentemente, a neurociência, de forma muito simplista, a memória comporta processos complexos pelos quais o indivíduo codifica, retém e armazena e, por último, resgata informações. Ao recuperar as informações, dois mecanismos são importantes: o resgate e o reconhecimento, que envolvem comparar estímulos antigos com novos. Isso ajudaria, no mecanismo, a evitar falsas lembranças.

Não obstante, no final do século XIX, com o advento dos estudos freudianos, o aparelho de memória ganhou outros contornos. Freud introduz a importância da lembrança e do esquecimento como foco no tratamento de pacientes, em oposição a uma teoria mecânica da memória. As lembranças sofreriam ação de forças opostas, aquelas que buscam a lembrança como supostamente ela foi e aquelas que exercem uma resistência, produzindo um “falseamento na recordação”.

Mecanismos do aparelho psíquico — o deslocamento, o recalque, a recusa de traços de memória — formarão parte desse “falseamento da recordação”.

A memória vai cumprir um papel fundamental ao longo de toda a teoria psicanalítica.

Em 1914, Freud escreve o texto intitulado Recordar, repetir e elaborar, onde articula com mais precisão os mecanismos do binômio lembrança/esquecimento, e acrescenta mais uma aplicação à prática psicoterapêutica. Freud introduz a “transferência” e a importância do psicanalista no processo de trabalho com as lembranças do paciente, com a sua memória.  Ao mesmo tempo percebe, na “repetição” de traços, atos e representações psíquicas inconscientes dos pacientes, um intento ou forma de recordar. Cria-se, de alguma forma, uma “nova memória”, daquilo que “não se quer recordar”.

O conteúdo dessa repetição são todas as inibições, traços patológicos e seus sintomas. Lacan, por sua vez, na linha freudiana, diz: “A análise veio nos anunciar que há um saber que não se sabe”. A análise teria a finalidade de possibilitar que advenha a verdade do sujeito.

Mas o ser humano se constrói na relação com o outro, se firma socialmente, e em uma ordem simbólica que precede o próprio sujeito. Um aparelho psíquico, ou de memória, nunca é só. É pelas constatações ao longo da teoria psicanalítica que podemos considerar também a teoria da memória, em Freud, enquanto uma teoria da “memória social”.

Hoje os desafios contemporâneos exigem novos caminhos de pesquisa. Especialistas de diferentes disciplinas, por exemplo, montaram o Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde investigam o conceito de memória inserida em um campo de lutas e de relações de poder, configurando um contínuo embate entre lembrança e esquecimento, entendendo a “memória social” como um campo inter ou transdisciplinar. No começo do século XX, a memória social era entendida como o estudo de sistema de valores que unificavam determinados grupos sociais, religiosos, de classe, de território.

Porém, agora essas questões estão totalmente subvertidas pela tecnologia, pelas migrações, pelas questões de gênero, pela sobrecarga informacional, midiática, etc. “Os pesquisadores do campo da memória, entre os quais incluímos nossos alunos, trazem questões que nem sempre podem ser respondidas com os conceitos tradicionais dessa área de estudos: questões relativas ao patrimônio imaterial, aos novos usos da linguagem, à crise das instituições, às novas estratégias de resistência, da subjetividade e da criação artística”, dizem Jô Gondar e Vera Dodebei na apresentação do livro O que é memória social? (Contra Capa, 2005).

Atualmente, presenciamos fatos e declarações de vários setores de nossa sociedade interessados em não lembrar, grupos sociais que, pelo contrário, fazem questão de esquecer.

A arte, como já cansamos de dizer, não é dissociada do corpo social e permite, nesta edição, que essas questões apareçam como preocupações nas representações textuais ou visuais, nos debates, nas entrevistas e análises que nossos colaboradores apuraram neste último período.

As instituições estão querendo olhar para seus arquivos para falar do presente. Artistas, historiadores e arquivistas estão pesquisando nos documentos e fotografias do passado o que não quer ser lembrado e o porquê. As montagens estão preocupadas em preservar efeitos de som e legibilidade para melhorar a compreensão do visitante.

A arte nos permite construir uma “memória de luta” contra o esquecimento e a barbárie.

 


GONDAR, Jô e DODEBEI, Vera (orgs.). O que é memória social?, Rio de Janeiro. Contracapa Livraria Ltda. Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UFRJ, 2005.

FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

HALBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

JUNIOR, Gabbi; FARIA, Osmyr. A teoria do inconsciente como teoria da memória. Psicologia USP 4.1-2, 1993.


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