Ai Weiwei, The low of the journey (A lei da viagem). A obra que remete a travessia de refugiados ao redor do mundo, já foi exposta nos maiores museus. No Brasil entra na água, pela primeira vez, no Parque do Ibirapuera em São Paulo. Atualmente pode ser apreciada na Oca

Ai Weiwei, The low of the journey (A lei da viagem).
A obra que remete a travessia de refugiados ao redor do mundo, já foi exposta nos maiores museus. No Brasil entra na água, pela primeira vez, no Parque do Ibirapuera em São Paulo. Atualmente pode ser apreciada na Oca – Foto: Patricia Rousseaux

O acaso fez com que, exatamente num momento em que resistência parece ser a palavra chave para boa parte da população brasileira, esteja em cartaz em São Paulo uma ampla mostra de Ai Weiwei. A exposição do artista e dissidente chinês, que há décadas desafia o discurso hegemônico com ações e obras ao mesmo tempo ousadas e irreverentes, ocupa todo o espaço da Oca, no Parque do Ibirapuera. E retraça com bastante detalhe sua trajetória, incluindo alguns de seus trabalhos mais notáveis, bem como uma série de intervenções concebidas especificamente a partir do encontro de Weiwei com a paisagem e a cultura brasileira. Além de ser uma oportunidade rara de conhecer mais de perto sua força iconoclasta, a reunião desses trabalhos ajuda a entender as estratégias e poéticas que ele vem adotando nas últimas décadas, que conciliam questões universais como a liberdade de expressão e a perseguição aos refugiados, a um universo mais íntimo e pessoal.

É como se, calejado pelo regime de exclusão imposto a sua família ainda em sua primeira infância e por anos de resistência ao regime totalitário chinês – seu pai, o poeta Ai Qing, foi denunciado como inimigo do regime e exilado por 16 anos –, Weiwei tivesse se tornado psicologicamente impermeável à censura social. Indo mais além, nota-se em sua atitude uma estratégia de confronto às instituições e tradições impostas pela força e um desprezo provocador pelo status-quo. “A época em que me preocupava com o que as pessoas pensavam de mim ficou para trás há muito tempo”, disse ele em entrevista ao El País. Talvez por isso use com tanta falta de cerimônia sua própria imagem nos seus trabalhos.

Ai Weiwei trabalhou durante um ano pesquisando diferentes lugares no Brasil. Foto: Ai Weiwei Studio

Desde sua primeira ação mais desafiadora – a quebra de um vaso da dinastia Han com mais de dois mil anos de idade – ele coloca-se provocativamente em suas obras. Sua imagem reaparece constantemente, nas milhares de selfies que faz por onde passa (muitas delas mostrando o dedo do meio para símbolos de poder, como a Casa Branca) e que posta em sua concorrida conta no twitter. Ou em obras polêmicas como a que fez mimetizando a pose do menino sírio Aylan, encontrado morto nas areias de uma praia de Lesbos. Sua ação contundente em defesa dos refugiados, que gerou uma profusão de ações como o filme “Human Flow”, parece ter incomodado parte do circuito das artes, seja por seu uso excessivo da mídia, seja porque se sentiam mais confortáveis quando o alvo preferencial de Weiwei era o imperialismo chinês.

Em sua temporada brasileira, Weiwei deu ampla vazão a esse uso – para alguns despudorado, para outros desafiante – de sua imagem. Nos mais de 200 ex-votos que encomendou para artesãos cearenses (trocando provisoriamente o uso recorrente que faz da cerâmica e carpintaria chinesa pelo entalhe de madeira típico do nordeste brasileiro) há uma série de “retratos” seus realizando suas performances. E chegou ao ápice de transformar a si mesmo no símbolo de suas causas ao associar seu próprio corpo a um símbolo da natureza potente da Amazônia brasileira.

A obra “Raiz”

Um cativante vídeo entrelaça o “making of” de dois trabalhos distintos: a penosa modelagem do próprio corpo nu do artista para criar uma escultura em gesso – apresentada ao lado do corpo escultural de uma baiana, num questionável tributo à erotização tropical – e o esforço descomunal de modelar – para posteriormente reconstituir na China – um gigantesco pequi-vinagreiro, espécie em extinção, com mais de 30 metros de altura, encontrado em plena selva amazônica. A conclusão é evidente: “Essa árvore sou eu”, evidencia ele ao final.

Confesso admirador de Marcel Duchamp e Andy Warhol, cujas obras estudou em profundidade em seus anos de formação em Nova York (entre 1981 e 1993), Weiwei parece virar esses autores de cabeça para baixo quando associa a alta tecnologia, a fotografia e o vídeo, para dar um caráter simbólico a uma única árvore. Ou quando convoca 1,6 mil artesãos de uma região chinesa famosa por seu trabalho em cerâmica para realizar de forma massiva milhões de sementes de girassol. Tais pecinhas, reproduzidas de forma grandiosa e ao mesmo tempo individualizada (são pintadas à mão, uma a uma), condensam uma pluralidade de leituras: são claras representações do povo chinês, numa referência à alegoria de que Mao seria o sol e os girassóis seus seguidores, e ao mesmo tempo uma crítica ao ocidente, em sua visão do “made in China” como algo pobre e massificado. Uma versão deste trabalho, criado para a Tate Gallery, de Londres, ocupa o terceiro andar da Oca. Infelizmente a instalação é mantida a certa distância do público, que não tem contato direto ou proximidade com as sementes.

Ai Weiwei, Forever Bicycles. A obra foi montada pela primeira vez em 2014 e contém aproximadamente 1.250 bicicletas, Especialmente transportadas para o Brasil

Outro importante trabalho de sua trajetória presente na mostra é “Reto”, uma instalação feita com 164 toneladas de vergalhões de aço retirados dos escombros de mais de sete mil escolas da região de Sichuan, construídas precariamente por desvios e superfaturamentos e que vieram abaixo com o terremoto de 2008, acarretando a morte de milhares de estudantes da região. Inconformado com o esforço do governo de acobertar o incidente, o artista lançou uma campanha para levantar a identidade dos meninos mortos e realizou uma série de ações para jogar luz sobre a conduta criminosa das autoridades.

Talvez o aspecto mais interessante da produção de Weiwei seja sua capacidade de imantar as coisas de significado, de buscar na aparência ou na essência dos objetos e gestos uma potência de síntese que leve à reflexão e ao desejo de mudança. As palavras têm também grande peso na exposição, seja por meio das frases que reescreve sobre couro de boi usando o alfabeto armorial de Ariano Suassuna, seja por meio de frases de resistência espalhadas por todo o espaço expositivo, como aquela situada sobre a instalação “Reto”: “Se você desviar o olhar, você é conivente”.

Não por acaso, o artista se incomoda em ser enquadrado no campo de artista plástico. Diz não costumar ir às aberturas de suas exposições (muitas vezes, há que se reconhecer, por estar detido, como no caso da Bienal de Veneza de 2013, quando teve que ser representado pela mãe). E que levou muito tempo para se considerar um poeta, como o pai, até reconhecer que esta é a “única posição possível ao indivíduo no nosso mundo”.

 


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