Com o mesmo espírito nômade que a caracteriza desde a sua criação em 2012, a 7ª Bienal Internacional do Sertão será inaugurada em Diamantina (MG) no dia 1º de outubro com performances na Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, e no dia 3 no Teatro Santa Izabel, com performances e shows de música.
O espírito nômade da Bienal consiste em se instalar em um estado diferente a cada edição, fortalecendo-se como espaço de circulação da arte para além das grandes capitais. O tema deste ano, Poesia em Confluência, nasce do desejo de reunir pesquisas curatoriais que dialogam com questões urgentes como clima, inteligência artificial, ancestralidade e identidades coletivas. Para Denilson Santana, idealizador da Bienal, historiador e curador, essa busca nasce de um hábito: “Nos anos em que não há Bienal, nós percorremos seminários de arte, filosofia e literatura em busca de ideias inspiradoras, para a próxima empreitada”, explica.
A edição deste ano reúne obras de 50 artistas vindos de diferentes estados brasileiros e do exterior. A curadoria é compartilhada por duas mulheres: Laura Benevides, da Bahia, arquiteta e pesquisadora em arte latino-americana, e Janaína Selva, de Minas Gerais, curadora e pesquisadora em arte e arquitetura. Juntas, elas dividem a responsabilidade de construir diálogos entre artistas, espaços e comunidade, trazendo visões complementares que ampliam as leituras possíveis sobre o Sertão e sua presença no mundo atual.
Denilson Santana, idealizador da Bienal do Sertão, entre as curadoras Janaína Selva e Laura Benevides.
O núcleo contemporâneo da Bienal ocupa o imponente Teatro Santa Izabel, o mais antigo da cidade, cuja arquitetura e história guardam marcas vivas da região. Outro ponto central é a Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri, onde acontecem seminários, pesquisas e oficinas que expandem o alcance do evento para além das salas expositivas.
Um dos pontos de destaque é que essa edição expõe obras comissionadas em outras bienais e trabalhos escolhidos a partir de uma convocatória aberta. “As obras estão expostas no Teatro Municipal, no histórico Teatro Santa Izabel, na Universidade Federal do Vale do Jequitinhonha e no Museu do Diamante, transformando espaços simbólicos da cidade em palcos vivos para a arte contemporânea”.
Mantendo a ideia de evento expandido, Denilson comenta que a programação não se limita às mostras, oferece oficinas de arte voltadas a diferentes públicos, de crianças e jovens da rede escolar a artistas em formação, com atividades que vão da escrita criativa às artes plásticas. “Em todas as edições mantemos vivas as conversações e com elas reunimos artistas, curadores, pesquisadores e moradores em rodas de diálogo, sobretudo com enfoque nas práticas culturais do sertão, sustentabilidade e o papel da arte na transformação social.” afirma. O que ele busca é criar um espaço de encontro e reflexão, onde a arte possa reverberar como prática coletiva e transformadora.
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Luciana Borre, instalação/performance Aquele cheiro do tempo
João Pedro Ramos, Manhã com as galinhas
Kyria Oliveira, instalação da série Micélio
Fernanda Adamski, instalação Rarefeitas
Para Denilson, o diferencial desta exposição em relação às outras bienais é o caráter educativo e as parcerias que eles estabelecem com universidades e museus. “A Bienal mantém uma forte rede de colaboração com curadores internacionais. Este ano contamos com Hermán Pacurucu, curador da Bienal de Cuenca, no Equador, que apresenta obras de seis artistas, e também teremos a interlocução da Posverso, da Argentina, curada por Silvio de Graça, que expõe obras de três artistas, contribuindo para adensar o traço multidisciplinar desta Bienal”, afirma.
A Bienal do Sertão nasceu em Feira de Santana, na Bahia, a partir de uma inquietação pessoal transformada em movimento coletivo. O idealizador conta que, quando foi convidado para ser monitor na Bienal de São Paulo, percebeu suas próprias limitações: dava aulas no ensino médio e via de perto escolas sem biblioteca, com poucos livros e muitas carências. Foi nesse contraste que surgiu a ideia: criar no sertão uma bienal aberta ao mundo, capaz de reunir artistas de diferentes lugares e, ao mesmo tempo, apostar no educativo, formando novos profissionais e estimulando jovens talentos.
Mais do que um evento, a Bienal do Sertão se tornou um gesto de resistência e descentralização cultural. “Faço a Bienal para a cidade inteira, não apenas para um espaço específico”, afirma. A proposta é ativar lugares históricos, resgatar memórias e, ao mesmo tempo, abrir caminhos para novas experiências contemporâneas.
O sonho de Denilson mira o futuro: criar um ponto de apoio na Bahia, sua terra, não como sede fixa, mas como casa de passagem. “Quero um espaço simples, capaz de acolher pessoas e dar conta das demandas enquanto sigo viajando. A Bienal nasceu nômade e assim deve permanecer”, afirma.
Nesse horizonte aberto e libertário, mas sem romper de vez com o sistema, a 7ª Bienal do Sertão se reforça como travessia. É gesto de resistência e invenção, uma plataforma em movimento que ainda não sabe em qual “porto” a próxima edição vai atracar. O inesperado é parte do jogo, é justamente o elemento surpresa que mantém viva a energia dessa bienal experimental, sempre pronta para reinventar caminhos e lançar o Sertão como marco de integração, conhecimento e direito dentro do mapa da contemporaneidade.
Entre os artistas expostos confirmados estão Alana Barbo / Ambuá / Camila Kahhykwyú Canela / Carlos Mélo / Catarina Dantas / Cicero Costa / Conceição Myllena & Flaw Mendes / Cristiane Martins / Danilo Espinoza Guerra / Derlon / Edith Derdyk / Emika Takaki / Erika Dantas / Estêvão Parreiras Pereira / Fernanda Adamski / Gabriela Loayza / Helena Sofia Klipp / Hernán Illescas / Irmãs Gelli / Iván Zambrano / Janaina Wagner / Jimson Vilela / Joana Amora / João Pedro Ramos / José Guedes / Juniara Albuquerque / Kyria Oliveira / Luanda / Luciana Borre / Luiz O. (Luizhim) / Maria Zegna / Manoel Veiga / Mariana Guardani / Marianna Pizzatto / Nina Miyamoto / Padmateo / Polina Shklovskaya & Briseis Schreibman / Raquel Rodrigues / Ricardo Vilas Freire / Samira Pavesi / Sofia Ramos / Soledad Sánchez Goldar / Taís Koshino / Victor Hugo Bravo.
Ignorando uma liminar da Justiça, na manhã desta segunda-feira, 22, uma empresa de demolição entrou nos prédios anexos ao Teatro de Contêiner Mungunzá, na Luz (região central de São Paulo) e começou a derrubar portas, paredes e andares superiores, atendendo a uma determinação da prefeitura municipal. A demolição do prédio anexo, cuja parede é contígua ao espaço cultural, projeta detritos em toda a área, colocando em risco as pessoas que trabalham ali, trabalhadoras do Coletivo Tem Sentimento, além de inviabilizar seu funcionamento.
O funcionamento do Teatro do Contêiner está assegurado pelos próximos 6 meses por determinação da juíza Nandra Martins da Silva Machado, da 5ª Vara da Fazenda Pública, que impede ações de desocupação. Em sua decisão, a juíza justificou que o teatro é composto por 15 estruturas de contêineres marítimos interligados, paredes de vidro, cobertura acústica, iluminação, além de um acervo artístico e cultural e que, por isso, a desocupação do imóvel não seria um processo simples e exigiria um “planejamento técnico e logístico para sua desmontagem, transporte e reestruturação”.
No último dia 19 de agosto, a prefeitura de São Paulo tentou desalojar o teatro à força, com o uso de homens e recursos policiais da Guarda Civil Metropolitana. Foi impedida pela ação dos atores, técnicos, frequentadores e moradores da região. A ação, violenta e fora da legalidade (usaram gás de pimenta e imobilização física em artistas), causou protestos em todo o País e o Ministério da Cultura e a Funarte soltaram notas de indignação, assumindo negociações para cessar as hostilidades do governo municipal. Nesta segunda, a empresa de demolição que começou a derrubar o prédio anexo informou que tinha sido instruída a agir pelos órgãos do governo do município.
A prefeitura diz que o terreno onde está o Contêiner se insere dentro de um plano de revitalização da região e que pretende construir um prédio de habitação de interesse social no terreno. A administração municipal alegou que já havia oferecido três áreas legalizadas para o Teatro de Contêiner Mungunzá, “que não cumpriu três ofícios para saída do terreno municipal ocupado irregularmente”. Entretanto, o teatro tem programação confirmada até dezembro deste ano, “cuja interrupção acarretaria prejuízos não apenas para o Teatro de Contêiner, mas para toda a sociedade e para os inúmeros artistas, educadores e públicos diretamente envolvidos”, segundo a juíza.
O Teatro de Contêiner informou a Arte! Brasileiros que está iniciando uma reação jurídica ao processo de demolição iniciado pela Prefeitura de São Paulo. É a segunda iniciativa desse tipo empreendida na gestão de Ricardo Nunes: ele também foi o responsável por destruir o Teatro Vento Forte e a Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul, no Parque do Povo, em fevereiro. Até hoje, não empreendeu nenhum ato de recuperação do patrimônio demolido, apesar de seu secretário de Cultura, Totó Parente, ter se comprometido com isso publicamente.
Finalista do Prêmio Governador do Estado em 2018, em 7 anos o Teatro de Contêiner Mungunzá tem sido, desde sua fundação, em 2017, uma ilha de acolhimento, delicadeza e excelência cultural no Centro mais complicado de São Paulo. Em 2020, durante a pandemia, o Teatro de Contêiner manteve as portas abertas para moradores em situação de rua, para ajudar com questões de higiene pessoal, além de ter sido ponto logístico da organização de ajuda humanitária Médicos sem Fronteiras (que atuou em dois locais no centro da capital paulista). Abrigou ações de coletivos ativistas do Centro (relacionados à saúde e a assistência social), tornou-se ponto de coleta e distribuição de doações e ajudou a distribuir 40 mil refeições (500 por dia) para a população de rua naquela ocasião.
Um ano antes, em 2019, o Teatro de Contêiner organizou a mostra O Fluxo Expõe – A Arte da Cracolândia, com trabalhos dos artistas Clayton Dentinho, Ed Peixoto, Fábio Rodrigues, Índio Badarós, Jaick MC, Rogério Roque, Wesley Marciano e Yóri Felipe Ken. Os 8 artistas produziam em situação de grande vulnerabilidade social no Fluxo (fluxo era o nome utilizado para designar a localidade próxima à Estação da Luz na capital, na qual havia então uma grande concentração de usuários de crack e de pessoas em situação de rua).
O amplo ateliê de costura que funciona no espaço dos fundos do Teatro de Contêiner Mungunzá, da Cia. Mungunzá de Teatro, foi instalado após um investimento de 65 mil reais, o espaço (como todo o complexo, foi construído com contêineres marítimos, um de 12 metros e outros dois de seis metros). Ali funciona a sede do Coletivo Tem Sentimento, que desenvolve um projeto de geração de renda com e para mulheres que vivem no Centro de São Paulo.
A arquitetura do teatro, dessa forma, além de se caracterizar como Habitação de Interesse Social, um espectro que deve ser protegido pelo Estado, não significa apenas uma intervenção de um grupo de teatro em uma região urbana, mas tornou-se um caso exemplar de desenvolvimento da própria linguagem do teatro dentro das conformações de uma pulsão urbanística.
Men am-ním é a tradução aproximada, na língua do povo Krenak, para a palavra portuguesa “Ocupação” – na verdade, o vocábulo indígena é usado para definir um “lugar conquistado, ocupado”, um território “onde quero estar para passar o saber”. O termo originário não poderia ser mais adequado para denominar a Ocupação Ailton Krenak, aberta no Itaú Cultural, na Avenida Paulista, em São Paulo, no dia 30 de agosto.
Além da tradicional memorabilia do homenageado (a curadoria, coletiva, reuniu mais de 90 peças que remontam a história do mais destacado intelectual, filósofo, ambientalista, escritor e líder indígena brasileiro da atualidade), a mostra Men am-ním Ailton Krenak apresenta um lote respeitável da produção de artes visuais de Krenak, com cerca de 20 telas (pinturas a óleo, nanquim ou urucum), diversos desenhos e apontamentos visuais do ativista mineiro. Nascido em Itabirinha, Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, Krenak comemora 72 anos de idade no próximo dia 29 de setembro. A exposição também traz vídeos, fotografias históricas dos Botocudos (ancestrais dos Krenak), cadernos de notas, fotografias de diversas fases de sua trajetória e depoimentos de personalidades.
Krenak, desde que surgiu para o olho público em 1987, durante a Assembleia Constituinte, vestido com um terno branco e com o rosto pintado de tintura preta de jenipapo para fazer um discurso que mudou os rumos das políticas indígenas no País, alcançou uma autoridade de raros paralelos na vida nacional. Autoridade que o libera até para batizar como “Programa de Índio” uma das saletas de sua mostra na Avenida Paulista. ARTE! BRASILEIROS conversou com o filósofo.
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Cadernos com manuscritos e desenhos feitos por Ailton Krenak Foto: Divulgação
Cadernos com manuscritos e desenhos feitos por Ailton Krenak Foto: Divulgação
Cadernos com manuscritos e desenhos feitos por Ailton Krenak Foto: Divulgação
Cadernos com manuscritos e desenhos feitos por Ailton Krenak Foto: Divulgação
ARTE! BRASILEIROS: Você certamente leu ou conhece o discurso do cacique Seattle, não? De 1855.
AILTON KRENAK: A Carta do Grande Chefe?
ARTE! BRASILEIROS: Sim. De certa forma, nós temos também uma Carta do Grande Chefe, que é o seu discurso de 1988 na Constituinte brasileira. Tornou-se o nosso equivalente, não? Porque estabelece alguns parâmetros de debate sobre a questão indígena que, evidentemente, sempre existiram, mas não tinham sido formulados daquele jeito até então, e foi dentro do Congresso brasileiro.
KRENAK: É um paralelo que me enche de orgulho. E me sugere, inclusive, que a Carta do Grande Chefe é um documento histórico que pode não ter aparentemente nenhuma relação com o que a gente pensa, aquela fala de um chefe indígena do Norte da América respondendo à pretensão do governo dos Estados Unidos de tomar um território deles, com a conversa de que veio comprar a terra. Mas, ao fazer uma análise do discurso, a gente vai começar a entender muito sobre a origem dessa potência política bélica que se constituiu nos Estados Unidos. Lá no começo, quando eles ainda precisavam de território para existir, eles foram roubar mais um pedaço de terra do povo Duwamish. O chefe Seattle era de um povo que vivia no litoral e que, provavelmente, era tão pacífico quanto os nossos parentes Potiguara ou os Tupinambá daqui do litoral da Costa Atlântica. Eles tinham uma grande área de pesca e eram prósperos, viviam numa boa. Não estavam em conflito com ninguém. E aparece um pelotão comandado por um general, o cara já era general, que vai dizer para ele: “A gente veio aqui te trazer uma proposta do grande chefe de Washington, para comprar a sua terra”. Para aquele povo Duwamish, comprar a terra era uma coisa sem sentido. Seria como alguém chegar e falar assim: “Eu vim comprar sua pele”. Total nonsense, né? O chefe Seattle escutou aquela proposta e começou a fazer uma espécie de manifesto sobre a Terra ser a nossa mãe. E é tão lindo. Se tornou um documento que viajou no tempo. No caso do século XX, foi o primeiro manifesto ecológico a animar os movimentos de libertação, o movimento hippie e a contracultura: tudo se apoiava naquela declaração de que a terra não se vende. A terra, ela vai nos sepultar. O Chefe Seattle falou: “Olha, você vai ser enterrado aqui”. Mas também é profético porque ele diz que, se o homem branco conseguir tomar essa terra, como parece que vai, porque o seu Deus, o Deus branco, é super poderoso e ele vai dar essa terra que vocês querem para vocês, então “ensina seus filhos a pisar suavemente na terra”. Essa recomendação, ela parece mais uma maldição. Porque o Seattle sabia que os brancos seriam incapazes de ensinar isso para os filhos deles. Então, é como se você estivesse entregando um dispositivo para alguém e falar: “Ó, segura bem isso aqui, tá?”. Mas você sabe que aquela coisa vai explodir um dia. Quando eu, numa circunstância imprevisível ou imprevista, fui designado para fazer a fala da defesa dos direitos indígenas no debate da Constituinte, eu não sabia o que ia fazer. Eu não tinha um texto. A gente tinha participado das mobilizações dos anos 1980, 1987, 1986, das Diretas Já, e a gente reclamava a Constituinte também como um direito, que a gente tinha o direito de participar da nova Constituição. Então aquela participação minha nos movimentos, junto com todos os movimentos sociais, ela me animou a acreditar que nós estávamos numa onda favorável para confrontar a ideia de que podiam tomar tudo dos indígenas, podiam submeter o povo indígena a uma lógica progressista, desenvolvimentista, que o Brasil tinha que fazer isso. Assim como lá na carta do Seattle, que os Estados Unidos tinham que tomar a terra daquele povo indígena. Aí eu pensei: “Quer saber? Eu vou radicalizar. Eu vou jogar uma maldição nesse Congresso. Eu vou dizer a eles que o sangue dos nossos ancestrais vai recair sobre a cabeça deles”. E eu fui lá para fazer isso.
ARTE! BRASILEIROS: Mas você também demarcou, como se fosse uma pedra fundamental, algumas outras coisas, não?
KRENAK: Eu não sabia que isso ia prevalecer. Eu podia sair preso de lá.
ARTE! BRASILEIROS: Sim, você fala isso no discurso. Para eles não tomarem aquilo como um insulto.
KRENAK: Porque eu vi que podia ser (visto assim). Eles podiam falar: “Esse cara tá insultando o Congresso Constituinte, prende ele!”. E, naquele tempo, algumas dessas pessoas golpistas que estão hoje aí andando, já estavam lá. Quer dizer, eu passei por um fio.
ARTE! BRASILEIROS: Eles sempre estiveram lá, não é?
KRENAK: Eles sempre estiveram lá e nunca perderam tempo, porque a gente teve a promulgação da Constituinte e aí veio a eleição do Collor, que foi substituído depois pelo Itamar. E, na presidência do Fernando Henrique, o ministro (Nelson) Jobim, da Justiça, criou um pretexto para invalidar o princípio que a gente fixou na Constituição, quando criou o Marco Temporal. O pessoal fica falando dessa excrescência jurídica, que é o Marco Temporal, mas eles deveriam dizer quem botou esse ovo.
ARTE! BRASILEIROS: (Nelson Jobim) Que era um jurista, inclusive. Tinha que ter um verniz jurídico.
KRENAK: Foi um ministro da Justiça, que era considerado assim “O Democrata”. Talvez ele fosse o democrata cristão. Porque eles ainda não tinham inventado o patriota cristão, mas eles já tinham uma versão, já estavam ensaiando. Então, eu creio que essas coisas que nós estamos tendo que ver hoje, que defrontar hoje, elas sempre tiveram por aqui, sempre estiveram aí.
ARTE! BRASILEIROS: No seu discurso de 1988, você diz, uma hora: “Vossas Excelências sabem que os povos indígenas estão muito distantes de poder influenciar a maneira com que estão sugerindo os destinos do Brasil”. Ou seja: você diz que as nações indígenas eram frágeis para ameaçar o poderio político dos brancos. Naquele ponto, essa era a situação. Mas isso mudou um pouco, não? Ou você discorda?
KRENAK: Nós nunca deixamos de ser uma minoria radical. A gente não chega a ser 0,2% da população do país. Naquela época éramos 130 mil. 130 mil pessoas é dois Maracanã cheios, né? Se você pensar no Século 21, onde o censo diz que nós somos 1.730.000 pessoas, nós ainda somos menos que 1% da população total do país, não somos?
ARTE! BRASILEIROS: Apesar da autodeclaração de hoje, né? Que é uma novidade. Os próprios Tupinambás da Bahia, de Olivença, não “existiam” até pouco tempo.
KRENAK: É, muitos povos declarados aculturados, integrados, assimilados sem ser consultados, agora estão se autodeclarando e reivindicando suas identidades de origem. Isso é maravilhoso. E é alguma coisa também que não se imaginava, nem os antropólogos imaginavam que fossem ouvir uma numerosa população rural no país, vivendo do Recôncavo até o Maranhão, dizendo que são Tupinambá. Não é só na Bahia, não. Os Tupinambá estão na Costa Atlântica, coincidindo com os mesmos territórios em que eles viviam no século XVII. Quer dizer, aquelas pessoas que ficaram submetidas ao regime dos engenhos de cana de açúcar, depois ao Ciclo do Café, todos esses ciclos econômicos que se transmutaram em trabalhadores de várias épocas, elas estão dizendo que são Tupinambá. Ou que são Xukuru, Cariri ou Pataxó, e Pankararu, ou Potiguara. É um fenômeno que me parece que só pode acontecer num país do tamanho do Brasil e com a história de usurpação que foi a colonização do Brasil. Porque, se a gente tivesse outra perspectiva… Nos Estados Unidos não dá para alguém, numa região qualquer dos Estados Unidos, se autodeclarar indígena. Porque a história dos Estados Unidos não deixou dúvida sobre isso. Ou ela matou todo mundo ou ela… como diz?
ARTE! BRASILEIROS: Confinou.
KRENAK: Ou ela confinou. Ela não deixou ninguém para reclamar depois qualquer dúvida sobre a formação daquele país. Então, eu acho maravilhoso o fenômeno que vem acontecendo no nosso país desde o final da década de 90, que independe de o Brasil ser signatário daquela Convenção 169 que reconhece a autodeclaração, da OIT. As pessoas estão tomando essa decisão de livre e soberana vontade. Da mesma maneira que as pessoas podem decidir o gênero, as pessoas também resolveram decidir o pertencimento. Tem uma discussão agora sobre pardos e pretos ou negros, né? A doutora (Carla) Akotirene diz que nós deveríamos considerar, pela história da escravidão no nosso país, que as pessoas pardas e pretas deveriam todas serem reconhecidas como a população negra do Brasil. Eu concordo com quase tudo que a Akotirene fala, mas eu acho que uma boa parte das pessoas que foram registradas pelos bispos, pelos colégios, pelos cartórios no século XIX e século XX como pardos, eram na verdade indígenas. A história pode mostrar que é verdade isso, senão essa população da Costa Atlântica estaria dizendo que era de algum povo africano.
ARTE! BRASILEIROS: É como você disse: é por livre e soberana vontade.
KRENAK: É por livre e soberana vontade que as pessoas dizem: “Eu sou Tupinambá, eu sou Potiguar, eu sou Guarani, sou Pankararu”. Você não pode chegar e falar: “Ah, não, você é pardo”. Inclusive porque o pardo é uma categoria que se inscreve em cartório. As declarações são de pessoas negras, amarelas, indígenas e pardas. Tem todas essas cartelas (no cartório). Tem todas essas variações. Então a pessoa pode chegar lá e falar assim: Sou pardo. O censo foi melhorando a pergunta nos últimos 20 anos e a resposta foi ficando mais complexa. Antes você ou era preto ou era branco. Teve um período em que nem havia possibilidade de você declarar que fosse indígena. Ou Preto, ou branco. Tem coisa mais óbvia, né? Um país formado por pretos e brancos. Sim.
ARTE! BRASILEIROS: E, mesmo entre os indígenas, a diversidade é muito grande. São grupos muito distintos.
KRENAK: Não só no sentido de distintos como grupos étnicos, mas são distintos também do ponto da constituição mesmo. Você vai ter pessoas que são fortonas, grandões, campeões, você vai ter pessoas miudinhas. Eu me lembro que, quando teve uma discussão sobre a primeira grande invasão da terra Yanomami, a Polícia Federal fez um debate e eu, como representante do movimento indígena, estava numa mesa onde também estava o chefe da Polícia Federal, o Tuma. O velho (Romeu Tuma). As pessoas tinham medo da presença do sujeito. Aí eu estava na mesa. Mas, em compensação, também tinha juristas de relevância, como Dalmo Dallari, e outros defensores de direitos humanos na mesa. E o sujeito lá na mesa argumentando com relação aos Yanomami. Ele (Romeu Tuma) dizia: “Mas os Yanomami, eles são tão mal formados que eles conseguem viver no meio daquela floresta onde uma pessoa não consegue nem se deslocar”. Eu escutei uma conversa dessas e fiquei pensando: “É assim que eles pensam que são os indígenas. Eles acham que existe um tipo de gente que é aceitável, e tem os outros que não são nem admitidos como ser humano, que não têm uma humanidade”. E a história do Brasil é recente. Eu não estou falando de uma coisa do século 19, não; eu estou falando de coisa de ontem. De 1986. É. Quando essa gente mandava e desmandava aqui, né? Então a mudança foi muito grande, porque eu assisti a ela.
Eu vou fazer 72 anos agora. E a metade da minha vida civil foi escutando gente decidir como eram ou quem eram os indígenas. Mas, agora, as pessoas decidem se são indígenas, declaram isso e fazem valer isso. Então, houve uma mudança. Teve uma mudança grande e, no auge dessa mudança, um antropólogo chamado Eduardo Viveiros de Castro, que é um cara muito corajoso, foi acusado de estar inventando índios quando ele disse que, no Brasil, exceto quem não é, todos são índios. Ou: “No Brasil todos são índios, exceto quem não é”. Aí virou uma polêmica, todo mundo quebrou o pau, brigaram com ele, o pior é que ele ele apanhou de todo mundo, ele apanhou dos outros colegas antropólogos, de algumas pessoas indígenas que se achavam ofendidas com essa possibilidade de autodeclaração, mas ele tava prenunciando uma coisa que passou a acontecer de fato. Aí, quando pegaram de novo o Viveiros de Castro para esclarecer aquela fala: “Como é que fica a sua afirmação de que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é?”, ele pegou e respondeu assim: “A gente podia atualizar dizendo que no Brasil só é índio quem se garante”. Eu achei genial. Porque ele tá dizendo o seguinte: quem tem a capacidade de defender a sua (identidade), é. Se ele disser que é, é. Se afirmar, né? E sustentar que é e mostrar que é, ele é mesmo. Agora ele (Viveiros) também desnudava uma coisa gravíssima na nossa história colonial: um branco não precisa provar que é branco. Não precisa.
ARTE! BRASILEIROS: Houve mudança também em relação à representatividade. A representatividade é maior hoje também, não é? Você tem o Ministério dos Povos Indígenas, você tem secretaria indígena na Cultura.
KRENAK: Então, diante do aparelho do Estado, cresceu a representatividade indígena, assim como cresceu também a representatividade negra. Porque, antes, era exclusividade dos brancos ocupar cargos nos ministérios. E vamos dizer que, até o Lula, também era exclusividade dos brancos ocupar a chefia do governo brasileiro. Antes do Lula, você conhece alguém que não era branco? Ocupando a chefia do governo brasileiro?
ARTE! BRASILEIROS: Mesmo os cargos fundamentais, né? Ministros, ministros da Suprema Corte.
KRENAK: Sempre foi um lugar de branco. A gente não é África do Sul, mas a gente também tem apartheid.
ARTE! BRASILEIROS: Tem umas imagens recentes, uma do impeachment da Dilma, outra foto do gabinete do Temer, quando ele forma o seu seu governo pós-golpe, e impressiona como todas as pessoas nas fotos são brancas.
KRENAK: É, também não dava para esperar coisa diferente do Temer. Eu só não sei porque ele não tá sendo julgado junto com esses golpistas aí. Eu não sei onde ele tava escondido no dia da depredação. Eu não sei debaixo de qual cadeira ele tava escondido. Ele tem um dedinho no golpe. Ou um pezinho no golpe, (para lembrar) o Fernando Henrique, que dizia que tinha um “pé na cozinha”. Tem uns que têm um pé na cozinha, outros que têm um pé no golpe e outros que têm o pé na tábua. São aqueles que dão linha, os fujões.
ARTE! BRASILEIROS: Agora é irônico que o Temer tenha papel duplo no golpe, não? Porque o cara que está confrontando o aparelho do golpe é justamente uma figura que ele indicou para o STF, o Alexandre de Moraes, que foi indicado pelo Temer.
KRENAK: É que a gente nunca sabe que vozes falam na cabeça dessas pessoas, né? Circunstancialmente, um cara pode assinar uma nomeação. Mas as vozes que falam na cabeça continuam ocultas.
ARTE! BRASILEIROS: É. Pode ser algum tipo de idiossincrasia. Voltando aqui para a mostra: eu falei com a Daiara Tukano um dia desses, e ela diz que, para os indígenas, não existe a palavra arte.
KRENAK: Na maioria das línguas não tem. Teve uma mostra no MAR (Museu de Arte do Rio) chamada Dja Guatá Porã. Essa mostra, Dja Guatá, foi a primeira que ocupou o espaço inteiro de um museu, no Rio de Janeiro, com obras de autoria indígena.
ARTE! BRASILEIROS: E essa Véxoa que teve aqui na Pinacoteca?
KRENAK: Foi antes (Dja Guatá foi em 2017, Véxoa foi em 2020). Era uma ampla mostra, com ampla curadoria coletiva. A daqui, a Véxoa, teve a curadoria da Naine Terena. E a pergunta que a curadoria da Dja Guatá se colocou era: “O que é a arte?”. E a maioria das pessoas indígenas que respondeu essa pergunta dizia que no seu idioma, na sua cosmovisão, na sua visão das coisas, não existia uma palavra para designar isso que o Ocidente chama de arte. Que na verdade foi a Europa que decidiu que tem um campo do fazer que é chamado de arte. Antes da Europa decidir que tem alguma coisa que é arte, outras culturas, outros povos, não tinham ainda feito essa separação. Mas o que aconteceu é que, nessa experiência dos indígenas no Brasil, todos conseguiram buscar um sentido, uma expressão na sua própria cultura, na sua própria tradição, que dava conta de nomear essa experiência sem considerar que era um campo exclusivo da criação.
Eu fui perguntar para as pessoas mais capazes das famílias Krenak, para me instruir sobre isso, e a pessoa que me instruiu – já se encantou, não está mais viva entre nós, mas ela me disse: “Olha, é um gesto”. A mesma palavra para gesto é a palavra para isso que eles chamam de arte. E eu levei para lá essa expressão, que é Hinta. Gesto. E, sabe aquelas inscrições rupestres, essas marcas que tem nas pedras? Os antigos, os ancestrais, quando eles faziam uma incisão daquelas, quando eles faziam uma impressão daquela na pedra, eles sabiam que aquilo ia durar. Então eles chamavam aquele ato, aquela coisa, de “gesto”, que, com o tempo, pode ser chamado de arte, porque coincide com o que a arte faz. Uma tela, um desenho, uma escultura. Então, quem sabe, nas outras culturas, a aproximação com a ideia de arte tenha passado pela mesma viagem. De repente, nem os gregos chamavam de arte as primeiras expressões do que veio a ser a arte grega. Eles nomearam aquilo no caminho. Será que tudo que existe não é nomeado no caminho? Ou será que as coisas precisam de um pressuposto antes para depois existir. Não é? Só na tradição , digamos assim, que a Bíblia transmite, é que alguma coisa surge de um anúncio, né? “Fez-se luz”, aí criou o mundo e tal. Uma palavra criou, uma palavra criadora. Parece que a arte não é isso. A arte é no caminho, é no percurso.
Ailton Krenak a caminho da aldeia Ashaninka, no Acre, 1995 Foto: Hiromi Nagakura
ARTE! BRASILEIROS: E, nesse momento, essas expressões indígenas ocupam, de uns tempos para cá, os espaços convencionais. Você, por exemplo, estava naquela exposição do Jaider Esbell, no MAM de São Paulo.
KRENAK: Sim. Era um coletivo. Chamava Moquém.
ARTE! BRASILEIROS: E ele (Jaider Esbell) estava também lá na Bienal como co-curador. Conheci ele lá.
KRENAK: Uma pessoa impressionante, que marca. Quem teve algum momento de encontro com Jaider, não esquece. Um cometa, né? E eu fico sempre pensando sobre como pessoas com essa intensidade de vida duram pouco. O Torquato, por exemplo. Torquato Neto. A gente podia fazer uma lista grande. São pessoas que vivem com tal intensidade que duram pouco. Até a cabeça dele, né? Ele quando conversava parecia que ele estava… Com 300 coisas para falar ao mesmo tempo. A impressão que dava era essa. Eu era uma geração adiante da turma dele e, quando ele apareceu para mim, eu fiquei pensando: “Caramba!”. Ele não gostava desse papo de movimento indígena. Achava isso uma coisa sem sentido, a ideia de movimento indígena. Então, ele atuava num espaço tão ativo que ele não precisava ficar dando nome para as coisas que estava fazendo.
Muito provavelmente, se perguntasse para o Jaider: o que é isso que você está fazendo, é arte? Ele ia desbaratinar dizendo que o que ele estava fazendo era uma rede, um balaio, um qualquer coisa. Porque ele não ia nessa história de repetir as mesmas categorias que já estavam aí disponíveis. Me impressionou muito e eu pensava assim: essa geração dele vai transtornar o ambiente em que as pessoas são chamadas genericamente de “os índios”, ou que os índios fazem artesanato ou esses papos atrasados todos; eles vão implodir com essa cápsula. E eles conseguiram mesmo fazer isso. Se eu tiver ajudado em algum sentido, isso só me anima mais ainda, porque eu me identifico muito com a geração deles. Você mencionou a Daiara, e a Daiara Tukano puxa uma lista de mulheres, jovens mulheres indígenas que fazem intervenção nisso que é galeria, museu.
ARTE! BRASILEIROS: Como Glicéria Tupinambá.
KRENAK: É. Imagina o manto Tupinambá, se ele era alguma coisa cogitada no século XX? De jeito nenhum. Ele é uma invenção dessa geração de gente como Daiara, Denilson Baniwa, que é genial, o Gustavo Caboco, a Naine Terena, que a gente já mencionou. Olinda Tupinambá, que é genial, da nova geração também. Tem uma mulher pataxó que tem uma capacidade de se expressar em diferentes materiais, em desenho, escultura e arte, na sua observação do mundo. Arissana Pataxó. Viva Arissana. Maravilhosa. Os trabalhos dela não são, não tem uma singularidade? O jeito dela lidar com a forma, com a representação das coisas, é muito próprio dela, né? E admiro muito o jeito dela atuar também, né? É muito discreta. Quando ela tá no campo da criação, ela surpreende a gente, mas quando ela não tá intervindo, ela tá cuidando da sua própria experiência de vida.
O que tem em comum nessa geração? Eu acho que todos eles descobriram que podem ser o que quiserem. Isso que é maravilhoso. Eles saíram do confinamento colonial que tinha sido estabelecido para “índio”. Esse genérico índio, ele tinha que ficar num determinado lugar. Ele tinha que usar tanga, arco e flecha. Tinha que fazer uma imitação ideal do que o pensamento branco colonial designou para ele. Ele tinha que fazer coisas espetaculares, tipo ficar deitado numa praia, esticando um arco e jogando uma flecha para o céu. Ele tinha que acertar um pássaro em pleno voo. Ele tinha que pegar um peixe com a mão. Ele tinha que virar onça. Ele podia mergulhar, sumir e aparecer jiboia em algum outro lugar. Quer dizer, ele só não podia ser humano.
A geração dessa turma que eu listei agora, eles descobriram que podem ser humanos e podem ser o que quiserem. Inclusive, voar. Ou mergulhar, ou também virar onça e tudo, mas agora sem ser caricatura. Sem ser um simulacro, sem ser o que o Gonçalves Dias queria, sem ser o que o outro lá, o José de Alencar, queria. Aliás, quando me convidaram para fazer uma releituras de O Guarani, a ópera, eu olhei também assim e falei: “Mas tão falando comigo”? Porque historicamente, ou recorrentemente, quem era chamado para isso eram os figurões manjados da dramaturgia, da cena, da arte e tudo. Convidar um indígena fora desse circuito todo para fazer uma releitura da ópera O Guarany, é uma provocação. Eu pensei: “E eles estão querendo me convocar para uma provocação. Será que eu vou encarar essa?” E aí eu fui. Fui em boa companhia. Eu fui com o Denilson Baniwa. Eu fui com os Guarani do Jaraguá. Com o Coral Guarani. E ainda tive a assistência, a generosidade da Cibele Forjaz, que é de lá da turma do Zé Celso (Martinez Corrêa), para fazer direção de palco, aquela coisa toda, né? E o pessoal que fez dramaturgia, todo mundo muito experimentado. Mas a gente decidiu que a gente ia virar a história de cabeça para baixo.
A gente estreou a ópera O Guarany no Teatro Municipal lotado e não parou de lotar até a última apresentação. Os jornais, nervosos, diziam que a elite paulista tinha contratado um identitarista, eu, para destruir Carlos Gomes. Eu pensei: “Caramba, destruir Carlos Gomes não deve ser brincadeira, hein?”. Aí a gente fez a primeira leitura, foi um sucesso imenso. Dois anos depois, a gente montou de novo, o Teatro Municipal me chamou para fazer a remontagem daquela leitura do Guarani. A gente não mexeu muito mais do que naquela primeira versão lá. A gente só aperfeiçoou alguns recursos que a gente queria botar em cena e tem um maestro Livio Tragtenberg, o Livio chegou pra mim e disse: “Você está certo. Você pode pôr a musicalidade indígena se sobrepondo aquela eloquência da ópera que o público, a audiência vai entender o que você está fazendo. Pode ir nessa”. Eu falei: “Mas tem muita gente achando que eu estou insultando a ópera”. A ópera do Theatro Municipal, a orquestra que está executando o libreto, que eu estou insultando eles quando eu ponho no palco uma orquestra Guarani. Eles dizem que não existe uma orquestra Guarani, eu disse ao Lívio. O Lívio afirmou: “Não, você pode dizer que existe, sim, porque eu estudei como os Guarani nas missões produziram a música daquela época, das missões, e como eles continuaram depois que foi desbaratinada as missões jesuíticas a aperfeiçoar a sonoridade deles, do povo Guarani, e que a sonoridade Guarani é muito complexa. Ela tem duração e ela tem a potência de conquistar aquele ambiente da ópera numa boa”. Aí a gente anunciou no programa que ia botar em cena uma orquestra Guarani. Teve um monte de gente que ficou irritada para caramba dizendo: “Mas que é isso? Não existe uma orquestra Guarani. Tem um coro Guarani, mas uma orquestra não”. A gente bancou, botou orquestra lá. Sucesso de novo. Imenso.
Então, eu acho que quando a gente fala de arte indígena, a gente não deveria pensar só nas artes plásticas. A gente deveria pensar nas intervenções que os indígenas têm feito naquilo que amplamente é chamado de arte, na música, no teatro, em qualquer coisa, no cinema também. Tem uma geração na faixa de idade da Daiara (Tukano) ou do Denilson (Baniwa) ou da Zahy Tentehar, ou da Kerexu, que está fazendo filmes. A Txai Suruí ganhou todos os prêmios aí com o filme que celebra a terra, Minha Terra Estrangeira, dirigido pelo João Moreira Salles. Então eu estou fazendo um brainstorm, eu tô fazendo uma tempestade, puxando várias fichas, mas o que eu tô querendo dizer é: cinema, teatro, as artes dramáticas, a pintura, o desenho, as galerias de arte, os museus, as bienais, em todas elas você vai encontrar pessoas indígenas fazendo intervenção. É como se no século XXI tivesse destampado mesmo o campo da criação artística aberta para os indígenas, e eu acho que vai ser cada vez mais. Tem um coletivo indígena chamado Maku, o coletivo Maku, que foi criado pelo Ibã Huni Kuin Kaxinauá, que tem obras agora nas galerias, nos museus, na Fundação Cartier-Bresson lá na França, que comprou a obra obras deles, o que fez com que outras galerias e os outros museus se obrigassem também a ter obras deles.
ARTE! BRASILEIROS: Assim como as obras do Jaider estão lá no Beaubourg.
KRENAK: É, inaugurou uma obra dele aqui também no Masp. Eu não sei por que o Masp demorou tanto, já que ele é um artista daqui. Enquanto ele não foi lá para esse Beaubourg, quando eles compraram a obra dele, a partir daí virou uma coisa. Você entendeu? Parece que uma Bolsa de Valores de algum lugar do mundo fora daqui tem que dizer que alguma coisa vale para os daqui olharem e falarem: “Ah, é mesmo, vale”.
ARTE! BRASILEIROS: A sua frase “O índio vai ser aquilo que ele quiser” se aplica muito a você mesmo. Agora mesmo, você esteve no Carnaval Paulistano. E também está na Academia Brasileira de Letras (ABL). E também compôs um samba com o Diogo Nogueira, ou eu estou enganado?
KRENAK: Olha, na verdade, o Diogo me convidou. Eu tinha a referência do pai dele, né? Do João Nogueira.
ARTE! BRASILEIROS: Você o conheceu?
KRENAK: O João propriamente não, mas a obra dele sim. Todo mundo ouviu, é conhecida, é igual à do Tom Jobim e tudo. Você fala: “Você conheceu o Tom Jobim?”. Não precisa ter conhecido a pessoa. A gente sabe a obra dele. Então, o João Nogueira, para mim, tem essa obra com essa expressão toda. Quando o filho dele falou comigo: “Ah, Krenak, eu queria te mandar a letra de uma música para você completar uma frase e tal, e queria te convidar para você vir para o estúdio fazer a música ali comigo”. Eu fiquei tão admirado desse convite, mas falei: “Eu não sou músico”. Mas, de novo, uma pessoa indígena conquistou o direito de ser o que ela quiser. Eu decidi: “Vou para o estúdio”. E ficou aquela coisa bonita para caramba. Eu fiquei comovido com a música. Ele não me atribuiu nenhuma tarefa de ir lá fazer tocar atabaque, nem flauta, nem nada. Simplesmente ele falou assim: “Põe a poesia que você traz aqui”. E ficou aquele diálogo respeitoso, gentil, colaborativo. Assim como o Gil também e o Emicida fizeram. Botaram a história do Tamanduá na na música do Emicida, no álbum dele Amarelo, aquele do “viver é partir, voltar e repartir”. A frase da música introduz uma história sobre o Tamanduá, que é uma história Krenak, que eu narro e o Gil conta essa história, dizendo: “E aí avô, o que você achou da gente?”. Aí ele responde: “Mais ou menos”. E tal. É frase de uma história chamada Kuán e Os Meninos Sabidos, que é de um livro que eu botei no formato de história para crianças e que tá por aí. Então essa coisa de poder escrever, publicar, distribuir, contar história, fazer filme, fazer teatro, eu acho que ela se abriu como uma possibilidade para todas as pessoas indígenas daqui para frente.
Cotidiano de trabalho na década de 1980: a máquina de escrever e o fax eram as ferramentas de comunicação, além das fitas cassete. Foto: Acervo Angela Pappiani
ARTE! BRASILEIROS: Você tem quantos livros publicados? Você sabe?
KRENAK: Olha, alguém já disse que eu tenho 20 títulos. Alguns são assinados junto com outros autores. Livro de autoria eu tenho Idéias para Adiar o Fim do Mundo, A Vida não é Útil, O Futuro é Ancestral. Tem esse Kuján e os meninos sabidos. Tem outras histórias que saíram por aí ao longo desses anos todos. O Lugar onde a Terra descansa. Ah, tem o Encontros, que saiu pela editora Azougue.
ARTE! BRASILEIROS: Tem também muitos no exterior, né?
KRENAK: É que os meus livros foram traduzidos. Eu tenho títulos traduzidos em 20 línguas. Não são 20 países, são 20 línguas. Quando você publica em espanhol, todo mundo na América Latina lê. Todos os países espanhóis. São dezenas de países hispânicos. Quando você publica em inglês, na Inglaterra, você é lido pelas colônias dele todas. Mas curiosamente meus textos aqui no Brasil pela Companhia das Letras foram comprados para tradução americana dos Estados Unidos, e pelo inglês da Inglaterra. Eu achei ótimo, porque eu pude vender duas vezes o mesmo livro. Eu vendi ele para uma tradução nos Estados Unidos e para uma tradução inglesa no Reino Unido. O do Reino Unido eu sei que ele tá sendo lido na Índia, lido em tudo quanto é lugar que fala inglês. Então, eu não imaginava, eu não imaginava de jeito nenhum que eu fosse ser um autor lido fora do Brasil. Do ponto de vista assim, de autoria. Eu podia ser lido num texto, num artigo, numa reportagem, numa matéria, mas um texto de autoria, difundindo um pensamento que pode ser percebido como uma autoria de um filósofo indígena… Eu comecei a ser chamado de filósofo depois que eu publiquei Ideias Para Adiar o Fim do Mundo (2019).
ARTE! BRASILEIROS: Me disseram que seu método de escrever tem a ver com o seu próprio método de contar histórias.
KRENAK: Isso. É como agora. Isso que nós estamos fazendo aqui é o modo de fazer escrita. Eu conto para você uma história, a gente vai transcrever esse texto, alguém vai trabalhar na edição dele e ele vai sair num formato livro. Eu acho que essa experiência é contemporânea, ela tem tudo a ver com esse tempo, com as tecnologias e com as facilidades que a gente tem hoje para publicar.
ARTE! BRASILEIROS: É quase como a escrita automática lá dos os beatniks lá dos anos 1950.
KRENAK: Provavelmente eu tenha percorrido esse mesmo percurso, mas de outra maneira.
ARTE! BRASILEIROS: O que chama a atenção na sua Ocupação é a quantidade de telas suas que estão expostas aqui, um aspecto que é menos conhecido de sua produção.
KRENAK: Eu acho interessante que é o seguinte: (a ocupação) é uma instalação pré-definida em termos de dimensão. Se você inventar de botar 300 obras aqui, é lógico que não cabe. Então, aquele espaço pré-define de certa maneira os circuitos que um acervo pode percorrer. Mas aqui tem uma curadoria tão genial, uma turma tão especializada, tão escolada nisso, que conseguem fazer tudo com o mesmo tamanho, o mesmo espaço.
ARTE! BRASILEIROS: Na Pinacoteca tinha dois trabalhos grandes seus que estão ali na Ocupação. Mas há outros de colecionadores.
KRENAK: São pessoas para quem doei trabalhos. Eu nunca vendi nada. Nem uma tela. Sempre doei. Mas eu não sabia onde estavam. Um presente que eu ganhei com essa ocupação é que eles localizaram a maior parte dos meus trabalhos que estavam espalhados, localizaram e me deram um catálogo. A Ocupação Krenak está me proporcionando um catálogo das minhas obras. Agora elas têm endereço, cronologia.
ARTE! BRASILEIROS: O que significa esse trabalho de pintura para você na sua produção?
KRENAK: Isso tem a ver com a ideia das nossas diversas culturas indígenas. Nenhuma cultura indígena, nenhuma, eu posso te afirmar, guarda coisas. Coisas não são para ser guardadas. As coisas são para rodar. Circular o mundo. E a ideia de guardar uma coisa, ela tá confrontada com o entendimento de que tudo é efêmero. Arquitetura indígena é efêmera. Você não faz uma casa para durar sua vida inteira. Ao longo da sua vida, você vai fazer e desfazer várias casas. Fazer, desfazer, fazer e desfazer. Essa ideia de uma estrutura de casa que dura por gerações, isso é uma coisa tipicamente europeia. Por isso que eles fazem casas de pedra. Talvez seja por isso que a ideia de arte não coincide muito com o pensamento com a ideia indígena. Porque arte tem a ver com comércio. Não tem a ver com a permanência. Você faz uma coisa dessas para ela continuar existindo, com perenidade. E ao longo do tempo isso foi se transformando numa coisa de patrimônio. Ganhou esse atributo, de ser um patrimônio. A cultura indígena não se encaixa nessas coisas, não se encaixa no pensamento patrimonialista. Nem na cultura, nem na cultura material, nem na cultura chamada simbólica. Não tem essa pauta, não. Você não vai guardar nada. Aí a gente volta de novo à Carta do Grande Chefe, quando o general lá dos militares norte-americanos diziam para o Chefe Seattle: “A gente veio comprar a sua terra”. Você sabe que o desfecho daquela história foi trágico, não é? Eles disseram que não vendiam, os caras invadiram e mataram eles. Que é como os Estados Unidos fazem em qualquer lugar do mundo. Eles chegam e falam: “Quero te comprar”. Você fala: “Eu não tô à venda”.
ARTE! BRASILEIROS: É o que estão fazendo agora em Gaza. Ou na Venezuela. E no Brasil também.
KRENAK: Quero te comprar. “Eu não tô à venda”. Então, vou te matar. Então, esse podia ser o mantra deles, né? Ah, voltando àquele mesmo lugar, ao chefe Seattle, não tinha sentido aquela proposta de comprar a terra. Para o pensamento indígena, ampliando a expressão, (também) não tem sentido preservar essas coisas que você cria. Seja uma casa, um arco, uma flecha. Quando termina uma festa, por exemplo, com o Kuarup, todos aqueles adornos, tudo aquilo é descartado, é transformado em outra coisa, é trocado, é doado, mas não é guardado. Ninguém vai guardar o cocar do ano passado para usar no ano que vem. Tem até uma outra coisa muito curiosa: eu desfilei pela primeira vez numa escola de samba esse ano e eu aprendi uma coisa: eles também desmancham aquilo tudo e fazem outra coisa no ano que vem. É reutilizado.
ARTE! BRASILEIROS: Você curtiu a experiência do Carnaval, não?
KRENAK: Olha, para mim foi uma experiência, assim, arrebatadora. Eu fiquei muito, muito, muito comovido com tudo. Mas isso não quer dizer que eu virei um carnavalesco. Tem gente que acha que agora, ah, descobri o Carnaval. Não, não é isso. Eu não descobri o Carnaval, assim como o Cabral não descobriu o Brasil.
ARTE! BRASILEIROS: Você tá em vias de publicar alguma coisa nova, Ailton?
KRENAK: Você está vendo como é? A gente tem sempre uma expectativa de alguma coisa nova. É nova em termos. A gente podia dizer que não tem nada mais novo do que a vida. Nada mais novo do que todo dia começar de novo. Eu estou sim com um trabalho que reúne textos inéditos que a minha editora, que agora tem sido a editora que me publica, a Companhia das Letras, vai publicar para o ano que vem.
ARTE! BRASILEIROS: Tem a ver com esse momento brasileiro?
KRENAK: Não, ele não é sobre esse momento, não é uma obra refletindo sobre a política, a realidade, digamos, regional, nossa, do Brasil ou da América Latina. Ele tem a ver, sim, com filosofia e eu acho que esse inédito vai ampliar algumas ideias que trabalho nos meus três livros, questões que se puseram para o leitor. Esse inédito também tem a função de sair daquele formato de “gibi”, daquele formato dos meus livrinhos. Dos quais todo mundo gosta; “ó o livrinho do Ailton e tal”. Eu acho que (o formato) foi uma coincidência do tempo, a gente tava saindo da pandemia, um período ainda meio assim, meio tímido da vida livreira. O mercado de livros tinha muitas editoras, muitas livrarias fechando, essa coisa toda. E, de repente a gente tinha um livrinho que não era difícil de comprar, porque é barato, provocando uma uma reflexão sobre o medo que a gente passou na pandemia e a crise que a gente estava imbricado nela, que é esse fim de mundo, mísseis apontados para todo lado, isso tudo que está acontecendo. De uma hora para outra, nós viramos uma espécie assim de Guerra nas Estrelas de novo, com ameaças de se atravessar os continentes, bombardear. Não é brincadeira o que tá rolando agora.
ARTE! BRASILEIROS: Essa coisa dos Estados Unidos fazendo manobras na Venezuela.
KRENAK: Aqui na nossa beirada aqui e também na Rússia, na China, na Índia. Eles todos, e o Brasil também, se sentindo bolinado pelo Trump, a irritação que está no ambiente. A gente não está muito longe daquele relógio do fim do mundo, né? Aquela imagem do relógio do fim do mundo, de que a gente estava assim a alguns minutos do fim do mundo e o ponteirinho deu mais uns pulos para a frente agora, e está bem encostando. Desde o Ronald Reagan que a gente não escutava coisas como “estamos prontos para um confronto global”, que foi o que o Putin falou. E os outros também, repetindo o mesmo refrão, parece que nós estamos num concurso de quem tem o míssil mais grande. O Ziraldo ia fazer uma boa piada com ele. Um bom cartum. Mostra o seu míssil que eu mostro o meu! Os grandes homens do mundo estão querendo medir quem tem o míssil mais comprido. Então é uma desgraça. Ao invés da gente “aprender a pisar suavemente na terra”, os caras estão tentando descobrir como roubar sem largar rastro. Eles não entenderam nada. E essa entrevista nossa já ficou parecendo aquelas entrevistas do Pasquim (risos).
Nem todo viandante anda estradas – da Humanidade como prática, a 36ª Bienal de São Paulo, aberta ao público em 6 de setembro, tem graves problemas de comunicação. É muito difícil identificar os 125 artistas espalhados ao longo dos 30 mil m2 do pavilhão, o que gera um grande desconforto. Em parte, isso ocorre por uma decisão conceitual. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador geral da mostra, explicou em entrevista coletiva que a intenção de não dar informações próximas às obras era para que os visitantes tivessem uma experiência direta, sem precisar de explicações.
Ocorre que, em arte contemporânea, o contexto é essencial. Além do mais, torna-se falta de respeito com os artistas que as informações estejam distantes a ponto de muitas vezes impossibilitar a identificação. Quando a curadoria sonega informações sobre as obras e os artistas, ela está reforçando a própria curadoria, o que é um contrassenso. Descontextualizar e desistoricizar é praticamente um ato colonialista.
Isso poderia ser aliviado se ao menos o mapa estivesse disponível, mas, ao menos entre os dias 9 e 12 de setembro, estavam esgotados, uma falha no planejamento para a semana de abertura. Tampouco os mediadores estavam devidamente informados sobre obras e artistas. Muitos não sabiam quem eram os autores e autoras dos trabalhos que eles estavam ao lado e tampouco possuíam informações sobre eles. As fichas, quando encontradas, davam apenas dados técnicos, o que, por ser obvio demais, chega a ser irrelevante.
Há informações mais detalhadas em algumas colunas, com textos longos e em formato circular, mas como estão distantes das obras, e aí em excesso, acabam por manter o enigma sobre os trabalhos. Em síntese, há pouca generosidade com o público.
O próprio catálogo, que em edições anteriores costumava ser denso e uma referência teórica, na 36ªBienal é como um guia com informações sucintas. Tão sucintas, que sequer alguns artistas aparecem com suas nacionalidades. Um caso exemplar aqui é o da palestina Noor Abed. Ela não tem sua origem explicitada na mostra e no site oficial da ediçao foi identificada meramente como sendo de Jerusalém. Em um post nas redes sociais, a artista Graziela Kunsch definiu o caso como uma “violência”.
“Aprendi uma vez, com a própria Noor, que muitas pessoas não compreendem o que é um regime de apartheid e acabam imaginando que, de um lado, está Israel e, de outro, a Palestina. E não que tudo está imbricado e que é essa violência maior, que obriga palestinos a serem constantemente escaneados, vigiados, obrigados pelo constrangimento de passar por diversas catracas, mesmo em sua terra”, escreveu Kunsch. Por aí vê-se como informação é essencial.
Seis capítulos
Como se fosse um livro, essa Bienal é dividida em seis capítulos, e seu começo é bem empolgante: a imensa instalação de Precious Okoyomon, que leva o ecossistema do cerrado brasileiro para dentro do pavilhão, como a dar continuidade do próprio parque, cria uma atmosfera simpática e acolhedora, enquanto Gê Viana, logo em seguida, traz as imensas radiolas do Maranhão, com o som das batidas de reggae e tambores dos terreiros, em meio às típicas imagens da artista que desconstrói narrativas colonialistas.
Natureza e cultura se complementam nesse portal de entrada, em uma bienal que tem um título longo e um tanto confuso ao impor a humanidade como figura chave – ignorando outras formas vivas, com práticas, aliás, mais exemplares que da própria humanidade, como autores indígenas e quilombolas costumam apontar, entre eles Ailton Krenak, Davi Kopenawa e Nêgo Bispo (1959 – 2023). “Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”, dizia Bispo.
Apesar dessa escorregada conceitual, o primeiro capítulo da 36ª Bienal, que inclui em sua equipe Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza, Keyna Eleison, Henriette Gallus, André Pitol e Leonardo Matsuhei, segue forte com obras de impacto, onde há uma interação entre humanidade e natureza. É o caso de Nádia Taquary com a instalação Ìrókó: a árvore cósmica, obra comissionada pela mostra – este procedimento, aliás, é um dos pontos altos dessa edição, já que cerca de metade de suas obras foram criadas para ela.
A obra de Taquary parte da cosmovisão africana que coloca o Baobá, árvore milenar que testemunha o tempo, com seres escultóricos meio-mulher, meio-pássaro, das imagens mais marcantes da mostra.
Perto dela estão obras de Mademe Zo (1960 – 2020), de Madagascar, uma artista têxtil que produz a partir de materiais descartados como fitas magnéticas. Ela também pode ser vista no segundo andar, na área refrigerada. Trabalhos manuais como os de Madame Zo são uma das importantes vertentes desta bienal, como as produções da brasileira Sallisa Rosa e da francesa Carla Gueye.
Também neste primeiro capítulo, intitulado Frequências de Chegadas e Pertencimentos, está o Sertão Negro, um espaço cultural multiuso em Goiânia, fundado por Ceiça Ferreira e Dalton Paula, com uma perspectiva muito voltada ao estímulo da produção no território. É outro dos pontos altos desta bienal, ao dar visibilidade ao trabalho coletivo com o espírito “faça amigos e não arte” da última Documenta.
Já o segundo Capítulo, no térreo do pavilhão, dedica-se às Gramáticas das Insurgências. É onde estão trabalhos mais militantes, como a videoinstalação do Forensic Architecture/Forensis, um grupo especializado em utilizar ferramentas de investigação criminal para tratar de histórias reais de violência e exploração, mas que na Bienal se coloca em um lugar de passagem, onde é difícil de conseguir a concentração necessária. Melhor alocada está Ouro Negro é gente, de Aline Baiana,sobre uma comunidade da Ilha da Maré, na Bahia de Todos os Santos, que defende seu ecossistema local. É ainda neste capítulo que estão dois filmes da palestina Noor Abed, trabalhos delicados sobre corpo, memória e som.
O empolgamento inicial vai se dissolvendo ao longo da mostra, com obras às vezes muito distantes uma das outras, às vezes amontoadas, caso do mato-grossense Gervane de Paula, que recentemente teve uma excelente individual na Pinacoteca do Estado e, na Bienal, aparece com as obras bastantes espremidas. Sua obra, contudo, é essencial em um momento de expansão do agronegócio, tema que ele aborda de forma sarcástica há décadas.
No mesmo piso, outro destaque brasileiro é a paraibana Marlene Almeida, tanto pela sua obra, como pela forma como está disposta. Sua imensa instalação Terra Viva traz rochas e pinturas com tintas orgânicas realizadas a partir de uma meticulosa pesquisa de décadas, que é revelada em forma de arquivo ao lado da obra. São centenas de materiais coletados, cópias de cadernos de pesquisa, com paletas de cores que surgem a partir da natureza.
Se aqui a obra cresce com o arquivo, o contrário ocorre quase no final da mostra com Alberto Pitta. Há décadas responsável por estampas e figurinos para o carnaval baiano, na Bienal ele é visto com uma réplica de sua loja-ateliê em Salvador. Seus tecidos são de estampas fantásticas, mas ao manter seu espaço de criação vazio, a impressão é de abandono.
A 36ª Bienal contou com quatro encontros internacionais, chamados Invocações, em Marraquexe, Guadalupe, Zamzibar e Tóquio. Não há vestígio desses encontros na mostra, algo estranho e que, novamente, demonstra falta de respeito com o contexto local. Qual o sentido de deslocamentos para lugares tão distantes se eles não se refletem na mostra, nem mesmo em textos dos catálogos ou obras?
O título “Nem todo viandante anda estradas – da Humanidade como prática” é retirado de uma estrofe do poema Da Calma e do silêncio, de Conceição Evaristo. A homenagem é justa e necessária. A Bienal de São Paulo por décadas ignorou curadores e autores afrobrasileiros. Esta edição, apesar de marcar no catálogo que “não é sobre identidades e suas políticas, não é sobre diversidade nem inclusão, não é sobre migração nem democracia e suas falhas”, acaba se revelando sobre tudo isso, mas sem assumir de fato. É preciso entender os motivos dessa autocensura, afinal não estamos na Alemanha, onde vive Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, e a situação lá, especialmente no campo das artes, é mais difícil que aqui, a Documenta que o diga. Mas a falta de contexto nesta Bienal ainda precisa ser melhor investigada.
Entre colegas: a avaliação de Pedro Mendes da Rocha
O projeto de Solano Benítez para a sede brasileira do Centre Pompidou nos faz refletir sobre a expressão e a essência da arquitetura, sua tectônica, seus espaços e sua inserção no território, refutando a ideia de um edifício que se afirme apenas pela aparência. Ao mesmo tempo que retoma materiais consagrados na história das edificações, que recuperam nossa reflexão sobre ancestralidade e universalidade e que rejeita a linha de Tordesilhas, que se deformou para impor a um vasto território e uma só nação, três nomes diferentes que dividiram, desastradamente, o que era uno. O trígono dos rios, o encontro das águas que justamente afirmam essa fluidez e que caminham para a mescla, a mistura, a síntese.
A proposta de Benítez funde uma construção que se mostra etérea no início e vai ganhando corpo em direção ao núcleo, sempre afirmando a sua condição vegetal, nascido da terra, feito de terra, daquela terra e que nasce plantado com suas raízes e galhos que ganham potência, robustez e densidade. Impõe, não só, perguntas de como tomar posse do território, marcar um lugar sem ser alheio a ele e, ao mesmo tempo, ser universal. A dimensão tectônica da obra exalta uma técnica que adota materiais milenares (ou melhor, um material milenar) aggiornada com recursos modernos que expressam o desnudamento dos procedimentos adotados e, desta forma, se contrapõe ao formalismo gratuito que esconde a sinceridade de materiais e processos e, mais além, os mascara, em recursos mirabolantes resultando em obras com orçamentos estratosféricos e sem verdade construtiva.
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A implantação do novo museu sugere uma materialização de seus braços de terra a partir da vegetação densa e exuberante do entorno e do céu que ganha corpo nos vazios de seus galhos, com energia centrípeta e, ao mesmo tempo, em sentido oposto, a explosão desses braços, originados em volumes que se desmaterializam evocando a energia centrífuga, da expansão de uma planta em crescimento.
Assim, se instala o conjunto: aos poucos, vamos percebendo seus tentáculos na mata, um mimetismo com o chão de terra, as árvores com o adensamento de suas folhas e galhos, natureza que quer ser prédio, prédio que quer ser natureza.
Esse manifesto de diálogo em continuumcom a natureza, num momento de súplica pela emergencial salvação do planeta, nos faz refletir sobre a condição humana e, sobretudo, a apropriação de sua crosta no âmago da monumental, e emblemática, mata atlântica.
Como o vigoroso edifício de Frank Lloyd Wright, de 1939, defronte ao Central Park – para o Guggenheim Museum –, uma flor incrustrada na imensa e regular quadrícula de Manhattan e o Centre Georges Pompidou de Paris, de Piano e Rogers, no coração de Les Halles, Solano Benítez plantou sua flor na mata atlântica junto ao tríplice encontro das águas que promoverá o encontro de todos os povos do mundo.
O projeto final do Centre Pompidou Paraná, assinado pelo arquiteto Solano Benítez, foi apresentado na sexta-feira última, em evento em Foz do Iguaçu, sob tendas improvisadas, no terreno de 24 mil metros quadrados, onde o museu será construído, bem próximo ao aeroporto.
Benítez, premiado com o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2016, revelou um projeto que vai além da arquitetura: um manifesto de simplicidade, sustentabilidade e pertencimento. O barro valoriza a ligação com a terra e a identidade local, enquanto o tijolo representa as soluções práticas e ambientalmente responsáveis. “Vivemos em um mundo que precisa redefinir a relação entre pessoas e natureza, entre cultura e meio ambiente, colocando o ser humano no centro como agente da construção desse futuro. É transformar e ser transformado.” Benítez entende a arquitetura como um espaço de ideias, não apenas de formas. “O que importa é a mensagem das construções.” As alamedas vazadas, nesse contexto, oferecem ventilação natural e conforto aos visitantes nos dias quentes.
De um lado, o arquiteto paraguaio celebra a conexão com o território; do outro, a sede francesa projeta o espaço cultural para o mundo. O presidente do Centre Pompidou, Laurent Le Bon, voltou a reforçar que a instituição parisiense pretende ceder obras de sua coleção para exposições na unidade paranaense. Atualmente, o Pompidou mantém filiais em Málaga, na Espanha, e em Xangai, na China. E ainda estão previstas mais inaugurações em Jersey City (EUA), Seul (Coreia do Sul) e Bruxelas (Bélgica). O projeto no Paraná será o primeiro na América Latina.
Em todos esses espaços já erguidos, controlar umidade e temperatura é essencial. Le Bon destaca que em Foz do Iguaçu é o desafio crucial para proteger as obras de arte. Benítez explica que “os biomas do projeto refletem a força da Mata Atlântica, resistente aos desafios da natureza”.
Confiante na parceria, ele afirma que a população pode esperar um espaço cultural de grande relevância e reforça: “Esse projeto faz parte da amizade entre Brasil e França; não é uma aventura. Nós nascemos juntos”.
O governador do Paraná, Ratinho Júnior, agradeceu a Le Bon pela confiança e destacou que o Pompidou Paraná vai consolidar uma nova rota de turismo em Foz do Iguaçu. “Além do apelo natural das Cataratas, a cidade passa a oferecer também o turismo cultural.” Segundo ele, o projeto deve atrair ainda mais visitantes de todo o mundo, gerar empregos, movimentar a economia e aproximar crianças e jovens de obras de arte de relevância histórica e contemporânea, antes só vistas pela maioria por meio de livros, televisão e internet.
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O investimento previsto, segundo o governador, é de R$ 250 milhões, financiado pela Fundação Cultural do Paraná e pela Secretaria da Cultura. “Após a entrega dos estudos de engenharia, prevista para outubro, será aberta licitação nacional ou internacional, para a execução das obras.”
Nome importante no projeto, Luciana Casagrande Pereira, secretária de Cultura do Paraná, trabalha há cinco anos para ajudar a entregar um museu de referência, capaz de atrair moradores da região e visitantes do mundo todo. Na cerimônia de lançamento foi realizada uma oficina de confecção de tijolos que serão utilizados na construção do museu. O evento envolveu crianças da rede municipal de ensino em um gesto simbólico de construção do satélite do Pompidou nas Américas. “Essas ações mostram que o museu nasce coletivo, aberto e conectado à sua região”, afirma a secretária.
Especialistas da Tríplice Fronteira comentam o projeto, destacando impactos culturais, arquitetônicos e urbanos da região.
A brasileira Aracy Amaral destaca que “o projeto concebido por Solano Benítez para o Centre Pompidou Paraná, cuja inauguração está prevista para 2028, surge como um audacioso projeto de luz para todo o continente. “Combinando técnicas construtivas ousadas, com a terra do nosso solo, exibirá obras do acervo do Pompidou e da América Latina, unindo a experiência cultural da França com a esperança de novos tempos.”
A crítica Adriana Almada está otimista: “Do Paraguai, celebramos a futura instalação do Centre Pompidou Paraná, o primeiro satélite do Pompidou na América Latina. Este projeto representa não apenas uma mudança na geopolítica cultural da região, mas também a oportunidade de consolidar Foz do Iguaçu como um polo de arte contemporânea. O museu poderá se tornar um ponto irradiador de cultura com alcance para Brasil, Paraguai e Argentina, valorizando a diversidade local e incorporando as múltiplas camadas migratórias às culturas originárias”.
O crítico argentino Fernando Farina analisa o projeto em duas frentes. Por um lado, destaca o potencial do Pompidou Paraná de transformar o ecossistema cultural latino-americano, criando um espaço de circulação regional que aproxime obras, público e artistas de vários países, descentralizando o acesso à arte e oferecendo maior visibilidade para talentos locais. Por outro, aponta desafios importantes: o risco de impor um modelo eurocêntrico, concentrar recursos em uma iniciativa estrangeira em detrimento de instituições locais e gerar uma dependência simbólica de marcas globais. Segundo Farina, o verdadeiro teste será fazer do museu um ponto de diálogo que valorize a diversidade e a memória cultural da América Latina, e não apenas uma vitrine periférica do cânone europeu.
A fotógrafa Luiza Segulem não se limita a registrar corpos em movimento: ela desafia a lógica do olhar em um conjunto de imagens que integra a coletiva 34ª edição do Programa de Exposições do CCSP, inaugurada neste sábado (23), no Centro Cultural São Paulo.
Após um acidente, durante um treino de escalada na academia, sua vida tomou outro rumo. “Comecei este projeto em março do ano passado, quase como uma desculpa para voltar a sair e circular pela cidade. Com a mobilidade reduzida e vivendo em uma São Paulo hostil nesse aspecto, encontrei forças para ocupar os espaços públicos, sentir novamente a cidade pulsando e retomar a fotografia, algo que não praticava há muito tempo”.
Sua ideia era explorar escalas e perspectivas. Foi daí que surgiu o projeto de retratos, mas não retratos tradicionais. Ela se espelhou na história da arte, em como o retrato sempre refletiu status, gestos e posturas ligadas ao poder ou à classe social. “Hoje, vemos padrões semelhantes nos retratos na internet ou nas revistas, sempre reproduzindo corpos, gestos e pontos de vista específicos. Eu queria questionar isso”. Então Luiza cria um “estúdio fotográfico”, uma espécie de fundo infinito adaptado, abaixo da altura convencional, à altura de seu olhar quando sentada na cadeira de rodas, com cerca de 1,40 m. Circulando por pontos diferentes da cidade ela passou a convidar quem passava para interagir e posar para ela, respeitando os limites e possibilidades de cada corpo. “Meu propósito, era um convite para pensar o que consideramos natural na circulação e na presença dos corpos no espaço urbano”.
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Foto: Luiza Sigulem
Foto: Luiza Sigulem
Tudo começou há cinco anos, pouco antes do início da pandemia, literalmente um mês antes de o mundo se fechar. “Era o período da Covid, foi então que a fotografia voltou a se impor em meu cotidiano”. Confinada em casa, Luiza passou a registrar as pessoas que a visitavam. Esses retratos tornaram-se mais do que simples imagens: eram tentativas de preservar fragmentos de presença em um período marcado pela suspensão do tempo e pela fragilidade da memória.
Após anos de afastamento, quando abandonou a fotojornalismo para se dedicar à psicanálise, ela reencontrou na fotografia não apenas um ofício, mas uma forma de elaborar o vivido, de transformar a ausência em vestígio e o instante em permanência.
Em suas fotografias, Luiza tensiona o corpo, o espaço urbano e o gesto cotidiano. Sua prática não se reduz ao simples ato de registrar; é antes de tudo um exercício crítico, em que a fotografia se torna reflexão sobre os limites da norma, sobre o enquadramento social dos corpos e sobre a potência de reinventar o visível.
Com o forte perfil de fotojornalista, com passagem por jornais como a Folha de S.Paulo e revistas como Brasileiros e ARTE!Brasileiros, Luiza quis voltar a fotografar. “Por ter feito muito retrato, minha ideia era desconstruir os padrões e pensar um jeito diferente de olhar para o mundo e as pessoas. Minha perspectiva era também que eu pudesse criar uma questão com isso”. Luiza foi convidando as pessoas que circulavam para interagirem e posar para ela, mas sempre pensando nesse limite, cada um controlando a extensão de seu corpo.
A presença do projeto nas praças é estimulante, porque provoca vivências fragmentadas que ela vê também, como performances. “Algumas pessoas criam situações que têm um pouco de dança, têm algo talvez de escultura, a partir do que eu vou propondo”. Conceitualmente é isso, mas do ponto de vista prático é mais complexo, ela depende de pessoas que a ajudam no deslocamento.
Ao expandir seu trabalho por diferentes territórios, ela não perde de vista a questão entre o público e o privado. “O primeiro local que atuei foi a Praça da República, pensando em pontos de grande circulação. Depois, cheguei à Guarapiranga, à Zona Norte, ao Parque do Trote, à feira do Bixiga, fui me deslocando para outras regiões, até chegar à Oscar Freire e ao Iguatemi”. Em cada bairro ela vivenciou atuações e posturas diferentes. Os personagens retratados são sempre passantes, todos em constante movimento. “Há também aqueles que apenas atravessam o local, vindos de outro lugar e que não permanecem, se dissolvem na multidão e se fundem a outros corpos”.
O projeto como um todo, tem a ver com a psicanálise, segundo Luiza. “A minha ideia era também que as pessoas experimentassem o próprio corpo e sentissem os seus limites. Propus algo que as pessoas, em geral, não fazem”. Ela mesma confessa que não sabe toparia participar.
As diversas cenas registradas por Luiza me lembram Merleau-Ponty, numa frase que não é textual, mas traz a ideia de que “o corpo é o veículo do ser no mundo”.
Equipe conceitural 36ª Bienal de São Paulo. Footo: João Medeiros
Começam a definir-se com mais precisão os contornos da 36ª Bienal de São Paulo, que abre as portas para o público em 6 de setembro. Em meio a um intenso processo de montagem, vai tomando forma um projeto colaborativo, construído a partir de intenso diálogo entre os membros da equipe curatorial. Na semana passada, os cocuradores Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Keyna Eleison e Thiago de Paula Souza, conversaram com a Arte!Brasileiros sobre as linhas gerais deste trabalho, seus principais desafios, metodologias e descobertas.
Entre as várias metáforas que serviram de guia durante essa jornada, destaca-se aquela que compara a equipe a pássaros migratórios, que se deslocam com uma compreensão expandida de tempos e espaços, para em seguida retornar ao grupo, trocando e ressignificando sugestões e descobertas e configurando – ao longo desses encontros – famílias de trabalhos, com pensamentos e poéticas em comum. “Cada um de nós percorreu diferentes rotas, mas fomos pássaros muito comunicativos”, explicou Alya Sebti. “Todo artista que entrou na nossa lista foi escolhido por cada um de nós cinco, não temos nenhum artista que não tenhamos encontrado, discutido o trabalho”, acrescentou Keyna Eleison. Segundo Anna Roberta Goetz, as rotas de voo traçadas por eles procuraram, propositalmente, evitar aqueles caminhos já esquematizados. Os brasileiros Keyna Eleison e Thiago de Paula Souza, por exemplo, não “sobrevoaram” o País, o que não quer dizer que não tenham sugerido nomes nacionais importantes, derivados de suas pesquisas anteriores. “Procuramos somar histórias que já conhecíamos a novas vozes, sempre em busca de pontos de conexão”, acrescentou a pesquisadora, radicada na Suíça (seu país natal) e no México. Até chegar à lista dos 120 artistas, anunciada há poucos meses, foram muitas idas e vindas.
Os curadores alertam que em nenhum momento houve a intenção de propor um panorama da produção contemporânea, mas sim de traçar narrativas horizontais e intergeracionais, criando agrupamentos, a partir de afinidades de diversos tipos: formais, existenciais, temáticas ou poéticas. Um exemplo de núcleo potente é aquele que reúne mulheres negras, trabalhadoras, que de forma autodidata encontram na arte uma maneira de se afirmar no mundo, como Maria Auxiliadora, Chaïbia Talal e Hessie. Outro fio condutor que pode ser apreendido a partir da observação da lista de convidados é o interesse primordial pela memória, pela busca de novas formas de contar histórias esquecidas ou invisibilizadas. Ou ainda um resgate importante de artistas situados à margem dos centros hegemônicos, que desenvolveram sua poética em sintonia (e também em tensão) com os modelos eurocêntricos de vanguarda.
No campo da produção mais contemporânea, a lista também surpreende, sobretudo pela presença massiva de trabalhos comissionados, feitos especialmente para a Bienal– mais de 50% das produções se enquadram nessa categoria. E também por refletirem (da mesma forma que as seleções mais históricas) uma visão bastante ampliada do mundo. De Teerã ao Haiti, de Alepo a Dakar, a mostra espraia-se por regiões muito menos investigadas internacionalmente, com um olhar atento à produção africana, resultado não apenas da metodologia curatorial adotada – como a organização de “Invocações” em diferentes continentes –, mas também pelo fato de dois dos curadores responsáveis serem africanos: o curador geral Bonaventure Soh Ndikung é de Camarões, e Alya Sebti, do Marrocos.
Ainda preservando informações relativas aos trabalhos que comporão a mostra e os contornos finais da complexa expografia, os curadores adiantam que a montagem da exposição se guia pelo pensamento do pavilhão como um estuário (outra das fortes metáforas que guiaram o processo) e articula algumas mudanças no uso tradicional do espaço, como a criação de algumas conexões verticalizadas num espaço tão marcado pela linearidade dos pisos horizontais. Não teremos mais, por exemplo, o vão como espaço isolado, ocupado por uma obra em destaque. “Sempre será o prédio do Niemeyer, não estamos brigando com isso”, diz Keyna. “É como se dançássemos com o prédio”, acrescenta Alya.
A música e a dança, formas de expressão que haviam sido elencadas como fundamentais para o projeto curatorial, fazem-se presentes seja como linguagem –por meio de criadores como Leonel Vásquez e Cevdet Erek – quanto alegoria desse processo coletivo. “Música é ritmo, pensamos a música como um elemento de inspiração”, afirma Thiago de Paula Souza, lembrando quão fundamental ela é na obra de Heitor dos Prazeres, outro brasileiro histórico da seleção que, além de ter sido premiado na primeira Bienal, em 1951, tinha profunda conexão – não apenas como tema – com o universo do samba. Mas convivem também com muita fotografia, vídeo e pintura, numa mostra em que a diversidade de meios, técnicas e poéticas parece ser fundamental.
A presença de dissonâncias, a convivência de diferentes vozes e a incontornável presença de trabalhos combativos (temas como colonialismo, opressão, violação de direitos, debacle ambiental estão bastante presentes) não significa, para Thiago, que estamos diante de uma mostra militante. “A maioria das exposições mostrando como o mundo está queimando fracassaram”, diz ele. O fato de não se assemelhar a um manifesto não significa, para Anna, que a 36ª Bienal não seja política. “É uma mostra muito política. Não no sentido de comentar ou mostrar o que está acontecendo, mas sim por meio da experiência dos artistas. Há muitos trabalhos que falam de experiências concretas e há uma abertura nessa concretude, um convite para que diferentes pessoas olhem para si”, diz ela.
Finalista do Prêmio Governador do Estado em 2018, o Teatro de Contêiner Mungunzá saiu subitamente da condição de homenageado pelo poder público para a de alvo do poder público. Na última terça-feira, 19, o teatro foi violentamente invadido pela Guarda Civil Metropolitana e seus artistas retirados à força das suas instalações, com uso de spray de pimenta e imobilização física. O que é no mínimo um contrassenso: o teatro da Cia. Mungunzá de Teatro tem sido, desde sua fundação, em 2017, uma ilha de acolhimento, delicadeza e excelência cultural no Centro mais complicado de São Paulo.
Em 2020, durante a pandemia, o Teatro de Contêiner manteve as portas abertas para moradores em situação de rua, para ajudar com questões de higiene pessoal, além de ter sido ponto logístico da organização de ajuda humanitária Médicos sem Fronteiras (que atuou em dois locais no centro da capital paulista). Abrigou ações de coletivos ativistas do Centro (relacionados à saúde e a assistência social), tornou-se ponto de coleta e distribuição de doações e ajudou a distribuir 40 mil refeições (500 por dia) para a população de rua naquela ocasião.
Um ano antes, em 2019, o Teatro de Contêiner organizou a mostra O Fluxo Expõe – A Arte da Cracolândia, com trabalhos dos artistas Clayton Dentinho, Ed Peixoto, Fábio Rodrigues, Índio Badarós, Jaick MC, Rogério Roque, Wesley Marciano e Yóri Felipe Ken. Os 8 artistas produziam em situação de grande vulnerabilidade social no Fluxo (fluxo era o nome utilizado para designar a localidade próxima à Estação da Luz na capital, na qual havia então uma grande concentração de usuários de crack e de pessoas em situação de rua).
O amplo ateliê de costura que funciona no espaço dos fundos do Teatro de Contêiner Mungunzá, da Cia. Mungunzá de Teatro, estava em plena atividade nesta sexta-feira. Instalado após um investimento de 65 mil reais, o espaço (como todo o complexo, construído com contêineres marítimos, um de 12 metros e outros dois de seis metros) é a sede do Coletivo Tem Sentimento, que desenvolve um projeto de geração de renda com e para mulheres que vivem ali naquela região do Centro de São Paulo.
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Teatro de Contêiner. Foto: Jotabê Medeiros
Teatro de Contêiner. Foto: Jotabê Medeiros
Teatro de Contêiner. Foto: Jotabê Medeiros
Teatro de Contêiner. Foto: Jotabê Medeiros
Teatro de Contêiner. Foto: Jotabê Medeiros
A arquitetura do teatro, dessa forma, além de se caracterizar como Habitação de Interesse Social, um espectro que deve ser protegido pelo Estado, não significa apenas uma intervenção de um grupo de teatro em uma região urbana, mas tornou-se um caso de desenvolvimento da própria linguagem do teatro dentro das conformações de uma pulsão urbanística. A Cia Mungunzá de Teatro deu um depoimento sobre essa relação. “Acabamos por apresentar novas vias de atuação. Novos formatos de políticas públicas. O nosso espaço se relaciona diretamente com a cidade e com os moradores do centro, seja por meio da arquitetura ou da dinâmica que criamos sem divisões”, explicou o ator Marcos Felipe.
Segundo informou a Agência Brasil, a Justiça de São Paulo concedeu nesta quinta-feira uma liminar que garante a permanência, pelos próximos 180 dias, do Teatro de Contêiner Mungunzá e do Coletivo Tem Sentimento no imóvel (que pertencente à prefeitura de São Paulo). A liminar da juíza Nandra Martins da Silva Machado, da 5ª Vara da Fazenda Pública, impede ações de desocupação e incursões da Guarda Civil Metropolitana e de outros órgãos como a que foi tentada na noite de terça. A juíza justificou que o teatro é composto por 15 estruturas de contêineres marítimos interligados, paredes de vidro, cobertura acústica, iluminação, além de um acervo artístico e cultural e que, por isso, a desocupação do imóvel não seria um processo simples e exigiria um “planejamento técnico e logístico para sua desmontagem, transporte e reestruturação”.
Outro motivo alegado pela Justiça é que o teatro tem programação confirmada até dezembro deste ano, e “cuja interrupção acarretaria prejuízos não apenas para o Teatro de Contêiner, mas para toda a sociedade e para os inúmeros artistas, educadores e públicos diretamente envolvidos”. Em nota publicada na manhã desta sexta-feira (22) em seu site oficial, a prefeitura informou que pretende revitalizar a região e construir um prédio de habitação de interesse social no terreno onde está o Contêiner. A administração municipal alegou ainda que já havia oferecido três áreas legalizadas para o Teatro de Contêiner Mungunzá, “que não cumpriu três ofícios para saída do terreno municipal ocupado irregularmente”. Ainda nesta quinta-feira, 21, a presidente da Funarte, Maria Marighella, disse que enviou ofício ao prefeito Ricardo Nunes para tentar trocar o terreno alvo do projeto da Prefeitura por outro do governo federal, caso seja possível, e manter o Contêiner em sua área de atuação.
Após uma violenta invasão na tarde desta terça-feira, 19, pela Guarda Civil Metropolitana (GCM), polícia subordinada à Prefeitura de São Paulo, artistas, produtores, técnicos, encenadores e frequentadores do Teatro de Contêiner Mungunzá estão promovendo neste momento uma ocupação pacífica e permanente do complexo cultural e social independente (localizado no centro da cidade de São Paulo, na região da Luz). Os ocupantes querem impedir a demolição do complexo, considerado um dos mais notáveis esforços de recuperação de uma área urbana degradada (foram mais de 4 mil atividades artístico-sociais realizadas nos últimos 9 anos).
A ação policial foi truculenta. Segundo Lucas Beda, co-criador do coletivo do Contêiner, o enfrentamento se deu porque a prefeitura queria montar uma estrutura para receber o prefeito, Ricardo Nunes, e o governador, Tarcísio de Freitas, em uma cerimônia. Essa montagem poderia comprometer a integridade do teatro, o que colocaria em risco os frequentadores e equipes de serviço. Alegando ordem judicial, a polícia manteve equipes e membros da ONG Tem Sentimento (baseada no local) sitiados no prédio, impedindo o acesso aos objetos pessoais dos trabalhadores da cultura, e depois fazendo uso até de spray de pimenta e força física.
Os gestores do teatro rebatiam, mostrando que há um inquérito em curso no Ministério Público que visa responsabilizar autoridades e impedir a ação, que pode ser irreversível se levada a cabo. E nesta quinta-feira, 21, acaba o prazo judicial para que os artistas desocupem o espaço. “Vocês não têm vergonha de se prestar a esse papel?”, afirmou uma atriz que a GCM tentava retirar do espaço. A prefeitura ambiciona desapropriar a área com a justificativa de querer implantar ali um programa habitacional.
A ação da Prefeitura de São Paulo é a segunda movimentação arbitrária e truculenta contra espaços de artes cênicas da capital paulista. Em fevereiro, a administração municipal mandou demolir, de forma acintosa (com tratores invadindo o espaço) e ao arrepio da legislação de patrimônio, o tradicional Teatro Vento Forte e a escola de capoeira Angola Cruzeiro do Sul, no Parque do Povo, no Itaim Bibi. O ato violento desta terça-feira ocorreu justamente quando os artistas celebravam o Dia do Artista de Teatro.
Após a demolição do Vento Forte, o secretário de Cultura do prefeito Ricardo Nunes, Totó Parente, chegou a se comprometer publicamente com a reconstrução do complexo do Parque do Povo. Até hoje, entretanto, nada avançou. Os gestores do Teatro do Contêiner desconfiam do mesmo intento em relação à ação desta terça – primeiro, tornar irreversível a intervenção e, segundo, criar um falso espaço de diálogo com a classe artística. A maior preocupação que a prefeitura demonstra tem sido em atuar para satisfazer empreendimentos imobiliários privados e seus planos de investimentos nas áreas de usufruto coletivo e de promoção da cidadania. Não há registro, mesmo no auge da ditadura militar, de uma administração pública que tivesse investido com tal sanha destruidora contra espaços culturais.
“O Teatro de Contêiner precisa ser replicado como política pública, e não aniquilado”, protestou o ator Mateus Solano. “A prefeitura de SP quer ‘revitalizar’ expulsando cultura! O despejo do Teatro de Contêiner Mungunzá é mais um ataque ao povo: em vez de somar moradia + cultura, escolhem o autoritarismo. A prefeitura prova que não sabe governar para gente, só para concreto”, afirmou o vereador Jilmar Tatto, da oposição a Ricardo Nunes.
O Ministério da Cultura e a Funarte, organismos do governo federal, emitiram nota de repúdio à ação policial empreendida pela prefeitura de São Paulo. “Em ofício, até agora sem resposta, enviado ao prefeito Ricardo Nunes pela ministra da Cultura Margareth Menezes e pela presidenta da Funarte Maria Marighella, foi solicitada a ampliação do prazo dado pela Prefeitura para o despejo do coletivo artístico de sua sede, de modo a permitir que os entendimentos iniciados junto à Superintendência do Patrimônio da União para a busca de um novo terreno pudessem resultar positivamente”, diz a nota. “Lamentamos que o uso da força tenha substituído a continuidade do diálogo em prol da arte e da cultura, que cumprem papel relevante junto à comunidade do centro da capital paulista por meio da atuação do Teatro de Contêiner, da Cia Mungunzá e da ONG Tem Sentimento. Reforçamos nosso apelo para que o prazo seja ampliado e a negociação pacífica retomada com a maior brevidade possível”.