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Prostituição como experiência decolonial

Lia D CastroForam mais de 700 homens que passaram nos últimos anos pela cama de Lia D Castro, sendo que, ao menos com 50 deles, ela construiu uma relação de troca. Juntos, eles leem textos de autores como Cida Bento, Frantz Fanon (1925-1961) e Achille Mbembe, intelectuais que ela cita com frequência. “O objeto central do meu trabalho, em relação à descolonização e à autodescolonização, é dialogar com o opositor”, conta Lia, em um sábado ensolarado, do 16º andar de seu recém-adquirido apartamento de frente para o mar na Praia Grande.

Desses diálogos, a maior parte com militares de batalhões próximos de onde ela vive, surgem muitas das pinturas recentemente expostas na mostra Em todo e nenhum lugar, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, vista entre julho e novembro de 2024. Lia chama os clientes de colaboradores, já que eles decidem desde como querem ser retratados até a paleta de cores, muitos assinando a própria tela, como é o caso de Davi, o mais presente deles. Mas as pinturas são apenas parte de um processo bastante complexo.

No final de março, ela abre uma nova mostra na galeria Martins & Montero com uma série recente, chamada Axs nossxs filhxs. Nela, pés de seus clientes, que foram criados apenas por mulheres, são sobrepostos a pinturas já existentes, de naturezas mortas. “Essa série começou durante a pandemia, quando precisei seguir trabalhando e um de meus clientes tinha sido criado apenas por babás, já que seus pais trabalhavam muito, o que o fazia uma espécie de órfão de pais vivos”, explica. 

Como o rapaz era surfista e o esporte foi central para curar uma depressão, ele sugeriu que apenas seus pés fossem retratados usando por base um quadro de rosas existente no ateliê de Lia, que ela pintou em 2005. Daí surgiu a série de pés sobre naturezas mortas, que fala tanto da ausência dos pais como de um gênero em geral não pintado por negros. As obras originais ainda são usadas de ponta cabeça, como a indicar a necessidade de uma outra ordem no sistema das artes. Tudo é complexo nas obras de Lia.

A artista, aliás, participa da primeira mesa do VIII Seminário Internacional Arte!brasileiros, cujo tema é
“Experiências da luta anticolonial no sistema das artes: por uma contraofensiva saudável, radical e com amor”. Se tem alguém que incorpora essa questão, como podemos perceber, é a própria Lia, que fala de suas estratégias anti-imperialistas na entrevista abaixo:

ARTE! – Podemos dizer que seu trabalho é baseado no prazer, já que o cerne dele parte de uma relação sexual que se transforma nas pinturas dos seus clientes?

Lia D Castro – Acho que a gente só não pode confundir o prazer sexual com o prazer do trabalho. Eu acho que são coisas um pouco diferentes. O prazer sexual está ainda muito ligado, porque somos colonizadas, ao prazer carnal. Mas o prazer que eu trago da prostituição, em relação ao corpo, é um prazer cognitivo de autoconhecimento. Para mim esse foi o cerne da minha descolonização, porque de início eu tinha ainda esse olhar do prazer carnal como um prazer colonial pelo fato de achar que o gozo só está na penetração. Mas a gente pode entender que o prazer está em outras partes do corpo. 

Na prostituição, me interessa a relação íntima porque nela a gente vive um momento muito primitivo. São toques, é lamber um a genitália do outro, é fazer coisas que, socialmente, não são consideradas higiênicas. Mas, no momento primitivo, a gente está abrindo mão daquilo que é um conhecimento extremamente violento, que é a colonização higienizadora. 

Também tem a questão cognitiva. A gente abre mão, quando a gente está em uma situação primitiva, daquilo que a gente acha que é verdade. Eu achava que, no início da minha carreira como prostituta, para poder dialogar com esses clientes, eu tinha que ter controle sobre tudo.  Mas se eu quero partir do princípio de um trabalho que dê prazer e eu esteja no controle, isso é muito egoísta. Então não seria um trabalho legítimo. 

Assim, meu trabalho parte do prazer, mas de um prazer que troca a prática sexual do gozo, da penetração, pelo prazer cognitivo. Para mim, essa foi minha maior descoberta, que é me descobrir pelo outro e o outro poder me descobrir. Com esse encontro cognitivo a gente entra em uma situação de descolonização radical, o que é uma ideia muito “fanoniana”.

É o que o Achille Mbembe diz no livro Práticas da Inimizade, que é o momento de o colonizado dizer não ao colonizador. Com isso, a gente vai além do prazer carnal e a prática sexual chega a um autoconhecimento tamanho que é possível repensar a sua prática social.

ARTE!A Ariela Azoulay Aïsha, no livro História Potencial, defende que a gente precisa desaprender o imperialismo, e para isso é preciso abandonar todas as táticas colonizadoras…

Lia D Castro – Sim, é preciso abrir mão daquilo que faz parte da nossa vida, da nossa vivência. Eu volto para Fanon que diz que colonizar e descolonizar é a mesma dor. O colonizador também passa por um processo de colônia, quando ele acredita que é um sujeito superior. Mentiram muito para ele porque tiraram o sujeito dele, como um sujeito único. O branco é considerado como um sujeito universal, né? Mas quando a gente começa a se autodescolonizar, é uma dor. É a dor de perceber que a gente pensava o prazer como um homem branco!

Toda nossa prática social e sexual é baseada na prática das pessoas brancas cis. E nem é da branca cis latina, mas da europeia. A gente aprendeu a amar, transar e odiar pelos olhos deles. E nem é de um homem contemporâneo, mas de um europeu do século 16, 17 ou 18 ainda! Então tem muito moralismo. Dói abrir mão daquilo que a gente acha que é verdade, mas essa precisa ser uma prática diária.

 Axs Nossxs Filhxs
Da série Axs Nossxs Filhxs, Natureza Morta, 2025

ARTE!E isso tem a ver com esse nicho, digamos assim, dos militares, que é um grupo com o qual você trabalha de forma constante? Eles são a maioria dos seus clientes, ao mesmo tempo em que são representam da opressão no Brasil, e muita gente se recusa a dialogar com eles. 

Lia D Castro – O objeto central do meu trabalho, em relação à descolonização e à autodescolonização, é dialogar com o opositor. Os militares são sujeitos violentos, mas, para poder conseguir trazer todas as informações que eles me trazem, é preciso entender que sujeitos são esses. E aí é preciso também entender o contexto deles.

Até 2019, segundo as informações da própria Polícia Militar, o governo do Estado de  São Paulo gastou mais de R$ 4 milhões por ano com indenizações de policiais acidentados ou suicidados. Então você percebe que é um grupo muito fragilizado. 

A gente não tem estatísticas no Brasil de quem são os profissionais que mais se matam, mas, aparentemente, são os policiais militares. Após a quarentena, houve um considerável aumento do índice de suicídio entre policiais militares. Inclusive, ontem, um policial vindo para cá, parou o carro e se matou dentro do carro na ponte de São Vicente, Praia Grande. 

Esse grupo fragilizado não são os opressores. Esses jovens que entram para a Polícia não têm ainda um sistema cognitivo de certo ou errado, de medo ou de poder. Só que o treinamento que eles fazem é muito reativo, não é um treino para acolher as pessoas, mas é um treino de desumanização, onde eles vão aprender a abordar as pessoas de forma violenta, claro que para se proteger também.

Mas não existe acolhimento pós-trauma, por exemplo. Imagina um policial jovem que fica um ano na academia, circula por dois anos em vários batalhões como praça até ficar fixo e, nesses três anos de experiência, ele trabalha com violência doméstica, com morte, com suicídio e ele não têm um acolhimento após tudo isso, não é atendido por um psicólogo!

Então, para mim, a importância de estar próxima desse grupo é entender a vulnerabilidade deles. E aí recorro de novo ao Mbembe, que diz que nosso corpo está cheio de gavetas, que não é a expressão exata dele, mas em algumas dessas gavetas há vulnerabilidade, portanto não-colonialidade. Então é preciso acolher essas fragilidades.

Mas não se trata de empatia por uma pessoa cis branca, porque eu não sei como é a dor dela. Muitas vezes a maior dor de um homem cis branco entre 20 e 25 anos é não ter um carro, enquanto para uma mulher trans entre 18 e 20 anos o maior problema é o abandono familiar. 

Dialogar com esse grupo não me faz igual a eles, nem faz com que eu ache que vá mudá-los, mas é entender que eles existem. Esse é um grupo que é suicidado e o maior número de praças que está no estado de São Paulo é de negros, então também sofre racismo e o cerne do meu trabalho é dialogar com quem pensa diferente de mim.

Axs Nossxs Filhxs
Da série Axs Nossxs Filhxs, Natureza Morta, 2025

ARTE!E você tem relato de mudanças de comportamento com eles? 

Lia D Castro – Tenho sim. Consegui, por exemplo, junto a um capitão, mudar um batalhão inteiro, que tem cinco ou seis companhias. Foi um movimento porque a polícia estava muito hostil comigo, com as pessoas trans. Então iniciei um diálogo por e-mail e fui ao batalhão. Eu comento muito com minhas amigas que quando a gente vai no SUS e sofre preconceito, a gente vai na Ouvidoria. Por que não fazer isso com a PM? Afinal, eles são prestadores de serviço.

Um cliente meu, que é tenente, que me disse que eu podia ir a um batalhão e conversar. Então, com 30 e pouco anos aprendi que eu podia ir dialogar e fui lá querer saber sobre o treinamento deles, como era o letramento e até como eles entendem, cientificamente, o que é uma pessoa trans. Porque se eles acham que é um homem que virou mulher, isso já é o maior desrespeito. 

Eu lembro que no governo Dória tinha um treinamento que era perguntar como a pessoa queria ser tratada. Mas isso não é o ideal, porque apaga a identidade visual. E como se pode identificar, então? Pedindo o documento. Se o documento causa dúvida, tem que perguntar se a pessoa quer ser chamada por aquele nome. O importante é reconhecer que mulher transexual é afirmação de gênero. A gente não quer confundir gênero, é para olhar e reconhecer.

E o capitão foi muito correto, porque ele disse que tudo que eu achasse que fosse importante, eu deveria passar a ele para ser repassado para tropa. E foi um movimento de manada. Chacoalhou o bairro inteiro e percebi que mudou o comportamento. Claro que alguns não mudaram, mas aí já não era falta de informação, porque o cara é transfóbico. E aí, a gente pode denunciar. Porque a corporação em si não é transfóbica e racista, mas tem elementos que são.

Graças ao diálogo, eu percebi mudanças generalizadas. E tenho certeza de que não estou viajando na maionese, porque não sou de passar pano, como você bem sabe.

ARTE!Foi assim aqui na Praia Grande?

Lia D Castro – Claro. Logo que eu cheguei, peguei meu cachorro e fui lá no batalhão e perguntei quem era o coronel e aí perguntei a ele como eles lidam com pessoas trans. Essa é minha estratégia de segurança: em todo lugar que eu chego, eu me apresento. Eu sempre quero saber se eles estão preparados para acolher pessoas como eu, o mínimo é o respeito. E não vejo nenhum problema da parte deles. 

ARTE!Isso também tem a ver com própria ideia do seminário que não é ser contra alguém, mas produzir diálogo. Estamos em um momento da sociedade que estamos todos divididos e em suas bolhas…

Lia D Castro – Então, eu vou na bolha da oposição. Eu não tinha esse lugar de pertencimento, e o batalhão não era um lugar que se podia entrar, mas eu converso muito com esses coronéis, esses capitães e digo se a gente não tivesse conversado, se ficasse em uma relação de ódio, daria muito errado.

 

Teatro demolido pela Prefeitura de SP realiza audiência na Assembleia Legislativa

Teatro Ventoforte demolido pela Prefeitura de SP. Foto: Jotabê Medeiros

Destruído no dia 13 de fevereiro pelos tratores da Prefeitura de São Paulo, o Teatro Ventoforte luta sem tréguas para se reerguer. No próximo dia 18, haverá uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo na qual serão debatidas as propostas e os encaminhamentos das soluções possíveis para a questão. É esperada mais de uma centena de participantes. A ideia unânime já desenhada parece ser a de reerguimento dos espaços demolidos no Parque do Povo (as salas de performance cênica, o teatro de bonecos e a Escola de Capoeira Angola Cruzeiro do Sul), na Zona Oeste de São Paulo, que abriga a experiência de meio século do Ventoforte, plano que já foi abraçado pelo governo federal, por intermédio do Ministério da Cultura e da Funarte, além de diversos vereadores e deputados estaduais e federais.

Cerca de 60 atores, atrizes, músicos, educadores, mestres da cultura, produtores e outras pessoas ligadas ao desenvolvimento histórico do Ventoforte, fundado em 1974 por Ilo Krugli e considerada uma experiência modelar de arte comunitária, devem apresentar na audiência pública o estatuto da novíssima Associação Memória Viva Ventoforte, constituída por todos os ativistas do legado produzido ali. Essa associação tem como objetivo criar uma entidade jurídica responsável que assumirá as tratativas com o poder público para a nova gestão do Ventoforte.

A destruição do Teatro Ventoforte causou uma forte reação da opinião pública, pela violência da ação, feita sem aviso e ao arrepio da lei. Objetos do acervo do teatro foram soterrados pelos escombros, e até um piano Fritz Dobbert foi destruído. O Parque do Povo é tombado, assim como a capoeira, expressão do patrimônio imaterial brasileiro. Além disso, a ação denota descaso para com uma experiência cultural de notório reconhecimento na cena teatral. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) soltou nota de repúdio no dia 19 de fevereiro, alertando “para o risco de grave dano a um patrimônio imaterial do País, haja vista a demolição dos imóveis ter se dado antes da retirada de documentos, fotografias, instrumentos e imagens sagradas” que compunham o acervo da Roda de Capoeira do reputado Mestre Meinha com cerca de 40 anos de atuação (cinco deles no Teatro Ventoforte).

O legado do Teatro Ventoforte está atavicamente relacionado à área onde ele funcionou, que era um território degradado e esquecido pelo poder público no início dos anos 1980, quando o grupo se instalou ali – estava inativo havia alguns meses. No ano passado, o grupo Casa Realejo de Teatro, de Francisco Morato, aprovou pela Lei Rouanet um projeto de montagem e circulação de “História de Lenços e Ventos”, o primeiro espetáculo cênico do VentoForte, incluindo uma exposição e oficinas baseados nos princípios desenvolvidos na companhia, “alicerçados na cultura popular, nas danças brasileiras e num teatro integrado à animação de objetos e intensa musicalidade”.

O teatro foi posto abaixo pela prefeitura com um argumento legalista, uma reclamação da associação de moradores do Itaim e uma ação de reintegração de posse. Essa suposta motivação demonstra total despreocupação do poder público com os aspectos culturais de um espaço que é público – o Parque do Povo é área de uso público, e o Teatro Ventoforte estava lá antes mesmo do local ser reformulado como área de lazer da população, em 2008. A Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, até agora, não manifestou sua posição acerca da questão.

Dezenas de artistas do País todo têm manifestado tristeza com o que aconteceu ao Ventoforte. De Nova York, o diretor de teatro Gerald Thomas gravou depoimento indignado. “O que fazer com o miserável que fez isso?”. Também divulgaram notas as atrizes Letícia Spiller, Marisa Orth, Letícia Spiller, Teresa Seiblitz, os atores Pascoal da Conceição e Marcello Airoldi, a diretora de teatro e atriz Sara Antunes, o cantor Chico César, e muitos outros. Para alguns observadores, a negligência para com a cultura de São Paulo tem crescido e preocupa – o “despejo” do acervo do poeta Haroldo de Campos do museu Casa das Rosas seria parte desse descompromisso militante com os destinos da arte e da cultura.

“Teatro não se derruba. Teatro é experiência da democracia, da política na arte”, discursou a presidenta da Funarte, Maria Marighella. “Esse é um patrimônio do teatro brasileiro, elo da relação do teatro com a cidade, com os públicos, com a cidadania. Estamos aqui para empreender um processo de reestruturação e levantamento desse equipamento. E concordamos em absoluto que cultivo e cultura se fazem no território. Elas nascem de um lugar. Não podem ser deslocadas arbitrariamente. Portanto, a ideia de transferência do teatro e da escola de capoeira para algum lugar também não pode ser uma ideia aceitável para quem sabe que cultura é cultivo, é território, é semente de um lugar”.

Made by human

Em 2023, o artista alemão Boris Eldagsen chegou a vencer a premiação Sony World Photography Awards por uma fotografia gerada com inteligência artificial; Eldagsen recusou a honraria
Em 2023, o artista alemão Boris Eldagsen chegou a vencer a premiação Sony World Photography Awards por uma fotografia gerada com inteligência artificial; Eldagsen recusou a honraria

Segundo o autor Frank Wynne, em seu livro Eu fui Vermeer, o falsário holandês Han van Meegeren pintava como Johannes Vermeer, mais de dois séculos após a morte do artista. Ainda segundo o romance, Meegeren havia nascido na época errada, e possuindo habilidades muito valorizadas na época do Renascimento, mas sem qualquer relevância na era dos Cubistas e Surrealistas, teria produzido obras no estilo Vermeer. Para tanto, usou a melhor técnica, habilidades e conhecimentos químicos, motivado especialmente pela oposição à um curador da época. Enriqueceu com as obras, mas se auto delatou após a Segunda Guerra Mundial, para não ser considerado colaborador do nazismo, provando que havia enganado o Reich quando lhe vendeu obras de Vermeer. As obras falsas são tão perfeitas em estilo e elementos químicos que, até hoje, especialistas mantém a suspeição sobre a verdadeira autoria de algumas obras no acervo de grandes museus.

Essa história ilustra perfeitamente o que está ocorrendo hoje com a produção de obras pela inteligência artificial. A diferença está no fato de que não se copia apenas um autor, nem é necessário um artista com formação super especializada. A IA generativa aprende com todas as obras disponíveis na rede e, a partir de comandos específicos, cria novas obras como se fosse determinado pelo autor original. Importante perceber que não é uma cópia idêntica ou quase idêntica, mas uma obra nova, feita a partir de todas as referências, estilo, técnica e maneirismos do autor copiado. Assim, é possível produzir pseudo novas obras de Picasso, Matisse ou Renoir sem qualquer participação dos respectivos autores.

Na época da avalanche de informações, não parece improvável, portanto, que uma obra criada pela IA seja “descoberta” como se do seu autor original fosse, siga os caminhos das obras falsas de Vermeer e acabe nas paredes de um museu. A questão é que, o que parecia romântico e sob controle – afinal para pintar como Vermeer, o plagiador precisava ser excepcional – pode agora ser escalado e credibilizado nas redes.

Além disso, a IA vem criando obras novas a partir da combinação ad infinitum das obras disponíveis nas redes. Neste caso, não são mais obras apresentadas como as de um autor específico, mas de autoria nova (de quem programou a IA?) feitas a partir de todas as obras criadas pelos mais diversos autores do Brasil e do mundo. A IA aprende, sem custo, com esses gênios humanos, e monetiza as obras resultantes. O tal aprendizado da IA não se confunde com o humano, seja pela escala de armazenamento, classificação e síntese, seja pelo fato que não contribui com compra de livros ou com pagamento de royalties, cursos e escolas. É uma atuação parasitária, e bastante lucrativa. São produções que não tem um autor, como o conhecemos até então.

O resultado atual, que muitos defendem será superado, ainda é muito superficial. Mas, a produção dessas obras pela IA será cada vez mais perfeita e sofisticada, e tem potencial claro de impactar o mercado de produção artística, entre outros pontos: circulando obra falsa como verdadeira; criando obras que remuneram o proprietário da tecnologia e não o autor e artista; sonegando o pagamento de direitos de autor e imagem das obras utilizadas pela IA; embaralhando a autoria e a figura do autor após série infinita de reconstruções.

Assim, as obras geradas pela IA serão a versão atual e tecnológica das obras de Vermeer, que seguem sem a certeza de sua autoria. Mas, com o agravante que serão produzidas em escala incontrolável, com uso e exploração da criação de terceiros e sem rastreio das redes. A saída para autores e artistas será chancelar o que é produção humana, como obra made in human. Mas, teremos tempo de preferir obras feitas por humanos?

*Cris Olivieri é advogada, diretora da Olivieri & Associados Advogados, especialista em direito da cultura, arte e entretenimento.

De volta a Inhotim para O Barco – Ato II, Grada Kilomba aprofunda o diálogo com o território mineiro

Grada Kilomba
Grada Kilomba. Foto: Leca Novo

Grada Kilomba é a artista mais feliz do mundo. Ao menos foi assim que se sentiu logo após a primeira performance de O Barco – Ato II, na tarde do dia 7 de fevereiro, no Inhotim. A apresentação, exclusiva para a equipe do museu e jornalistas, antecedeu as duas performances abertas ao público no fim de semana, dias 8 e 9 de fevereiro.

A artista portuguesa com origens em São Tomé e Príncipe e Angola, inaugurou, em abril de 2024, O Barco, obra que combina poema, instalação de grande escala e performance. No centro da obra, 134 blocos de madeira queimada estendem-se por 32 metros, compondo a estrutura que remete aos porões das embarcações que transportaram milhões de pessoas escravizadas durante séculos de tráfico transatlântico. “Durante centenas de anos a escravatura e o colonialismo foram o centro da nossa história global e uma das histórias mais longas e mais horríveis da humanidade, mas que não está representada e não está presente em lado nenhum”, afirma Grada.

Entre os blocos, os visitantes percorrem os versos de O Barco, gravados em tinta a óleo dourada. O poema foi traduzido para seis idiomas: Yorubá, Crioulo de Cabo Verde, Kimbundu, Português, Inglês e Árabe da Síria.

Violência e repetição são temas centrais no trabalho da artista. O barco que ela evoca não pertence apenas ao passado, ele também faz referência ao presente, em que migrações forçadas são recorrentes. “Eu trabalho sempre com a temporalidade. Não há passado, presente e futuro. O tempo coincide. Então é esse exercício de compreender que, se nós não compreendermos e contarmos a história devidamente, a sua barbaridade repete-se”.

Criada em 2021, a obra esteve em Portugal e na Inglaterra antes de ser recriada para o Brasil. Em vez de transportar os blocos, a equipe optou por produzi-los localmente. Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim, destaca que esse processo fortaleceu o vínculo da equipe com o trabalho. O museu possui ateliês dedicados a desenvolver projetos com os artistas, o que garante autonomia na manutenção da instalação. Caso uma peça precise ser substituída, há pleno domínio sobre sua recriação.

A escultura interage com três atos performáticos, apresentados ao longo do período de exibição. O primeiro, em abril de 2024, coincidiu com a inauguração no Brasil e contou com cantores de gospel e ópera, bailarinos clássicos e percussionistas, em sua maioria portugueses.

Para o Ato II, um novo grupo foi formado: 19 artistas, dos quais 12 brasileiros moradores de Minas Gerais. “As minhas peças de arte são, acima de tudo, objetos vivos. Então, não me interessa apenas trazer uma escultura imensa de 32 metros, mas criar um diálogo com o território”. Apesar de a nova formação aproximar a performance do Brasil, seja pelo sotaque dos artistas, seja pelo ritmo do trio de percussionistas, Grada não está interessada “nesses nacionalismos”. Para ela, a performance traz um vocabulário completamente diferente, um vocabulário diaspórico que ultrapassa essa construção artificial de nação.

Grada teve quatro dias de ensaio com o coletivo que ela nunca tinha visto ou ouvido ao vivo. “Depois desses quatro dias, o grande exercício é realmente construir essa humanidade e construir uma massa um organismo. Então eu diria que eu vejo mais do que Brasil, Portugal, Angola etc, eu vejo como os corpos fluem, como a arte permite que os corpos abandonem muitas destas construções que são muitas vezes extremamente violentas”.

Integrar a comunidade local à obra envolve responsabilidade histórica, distribuição de oportunidades e equidade. A felicidade de Grada vem dessas trocas. “É muito significativo, porque depois o ensemble estende-se por quilombos, comunidades, terreiros, passa por uma série de grupos diferentes que habitam este museu. Isso é extraordinário. Acho que eu sou a artista mais feliz do mundo”.

Para ela, a performance precisa ser vista e sentida várias vezes. Apesar de considerar um trabalho simples e minimalista, ele lida com temas dolorosos e complexos. “Eles [os artistas] estão a fazer esse enterro digno que nunca foi feito, esse luto digno, essa compreensão de trauma coletivo que nunca teve um lugar e um espaço para ser chorado”.

O impacto de O Barco transborda o espaço expositivo. As pessoas escrevem, enviam cartas e presentes a Grada. Naquela tarde, ela havia ganhado abacates.

Rádio Unaé

Trabalhando a informação e a formação, a estrutura da Rádio Unaé busca atender os 29 municípios do Cariri cearense através da difusão de conteúdos que fortaleçam a cultura, a ancestralidade, a natureza e a memória do Ceará, estreitando parcerias junto à veículos de comunicação, especialmente rádios comunitárias e universitárias da região.

Atua de forma intersetorial, interdisciplinar e transversal, articulando no trabalho políticas que promovam o exercício dos direitos culturais e de comunicação numa perspectiva cidadã. De nome Unaé, que na língua do povo Kariri significa sonhar, a rádio busca compreender como o sonho abarca os ritmos e sons deste território que passeia do repente ao slam, da zabumba à batida eletrônica.

Assim como em cada linguagem e campo de trabalho artístico e cultural, em suas dimensões sociais, econômicas e políticas.

Nuno Ramos: ‘Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca’

Nuno Ramos
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março
Obra do artista visual paulistano Nuno Ramos, produzida em 2024, a ser exposta na Albuquerque Contemporânea (Belo Horizonte, MG) a partir de março

Nuno Ramos, o curioso, o intrépido, com uma energia latente que traduz em matéria, volta a Belo Horizonte (MG) em março, em exposição na galeria Albuquerque Contemporânea, com mais de 15 obras realizadas durante 2024. E algumas novidades.

Nuno sempre esteve em movimento. Interessou-lhe desde muito jovem a literatura.  Escreve, pinta, cria instalações e performances motivadas pelas circunstâncias adversas pelas quais o Brasil passa. Jorra sua carga pictórica em objetos, lançando mão de grandes camadas de tinta e explorando a cor, uma de suas marcas registradas.

A arte!brasileiros falou com Nuno acerca de seu trabalho, suas inquietudes, referências e de seus projetos para 2025. Leia a seguir:

ARTE!✱ – O que você estava pensando quando começou a fazer essa série de obras, em 2024?

Nuno Ramos – Ela vai completar um ano certinho: comecei em fevereiro, esvaziando o meu ateliê, que estava insuportavelmente cheio. Tinha começado esse processo um ano antes. Mandamos para duas empresas de depósito mais de 3000 itens: árvores, barco, avião, coisas assim. Era um absurdo de coisas. E então ele estava vazio, e eu comecei a encher de novo. Foi uma coisa bacana de ver, o meu ateliê, que tem 600 metros quadrados, vazio. Foi uma sensação incrível. Tinha coisas e tenho, mais do que o normal.

Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca. Trabalho com pintura, com desenho, com escultura, com instalação. Eu escrevo. Fiz muita performance, teatro, alguns pequenos filmes até agora, uma coisa de dança. Uma chamava Os Desastres da Guerra, que era ali em cima das gravuras do Goya, onde  os atores liam uns textos das mães que perderam os filhos. Fizemos Marcha à Ré, em parceria com o Teatro da Vertigem, durante o governo anterior, realmente ali tentando falar de uma coisa que estava acontecendo. Agora fiz uma intervenção diferente, um concerto sinfônico inédito, criado a partir da trilha sonora do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, com a colaboração de Eduardo Climachauska. O canto de Maldoror: Terra em Transe em Transe. Laura Vinci na concepção cenográfica. Enfim, para dizer que a pintura talvez seja o leito mais constante e o único constante de tudo que eu fiz e de tudo o que eu faço. Eu comecei a fazer essas pinturas, com muita matéria, lá por volta de 1987, 1988. Os quadros pesam muito, e eu sempre que posso volto a eles.

A parte mais visual fica por conta dos desenhos. Desenhei muito, mas a pintura, ela tem um leito dela mesmo, algo que não sei definir. Claro que ela mudou muito. Por exemplo, ela começa, lá em 1980, como uma pintura de época, de pouco contraste tonal. Agora, ela está muito colorida. É isso que eu vi. É uma coisa que se faz histericamente colorida. E mudou muito. Mas de alguma forma eu estou dentro das regras pessoais básicas, que tecnicamente seria pintar no chão. Eu faço tudo no chão. E tem uma espécie de dripping (gotejamento) amalucado que vai recebendo o movimento. Eu sinto como se eu estivesse indo para o ateliê alimentar um bicho que está ali, deitado, esperando para eu trazer o alimento dele. E ele não tem dó. Obviamente não tem projeto, não tem nada parecido com isso. E eu acho que tem uma diferença com o resto do que eu faço. Acho que o horizonte do pessimismo, que atravessa muito do que eu faço, está um pouco ausente aqui. Não que seja otimismo, acho que é o contrário. Acho que existe um desespero pela alegria, pela felicidade, pela positividade, que não sinto tanto no resto de meus trabalhos. Esse contraste é forte. Há um contraste com as instalações mais sóbrias.

A pintura é uma coisa muito solta, chegando perto do exagerado, tem uma historieta da minha vida que eu sempre conto. Quando eu tinha 40 anos de idade, eu fiz uma retrospectiva. Veio me ver um curador inglês, não me lembro do nome, conversamos a tarde inteira. Na hora de ir embora, eu fui acompanha-lo até o táxi. Ele achou que as pinturas eram de outro artista. Eu nunca defini se isso é bom ou ruim: saber qual desses artistas é você, dentro, em cada momento.

ARTE!✱ – E o que você acha? Depende de seu estado de espírito?

Nuno Ramos – Todos nós temos períodos mais soturnos e períodos mais light. Mas eu faço tudo simultaneamente. Depende muito de minha agenda, do que proponho para mim, dos recursos que eu tenho, da própria pintura. Às vezes eu preciso que uma galeria ajude a pagar, porque elas são assim, caríssimas, de fazer. Não sei se é apenas um estado de espírito. Talvez seja alguma coisa mais pesada, mais trágica. Sei que a pintura reage com certo desespero apolíneo. Vamos falar assim.

Ao mesmo tempo sou muito calmo, mas o trabalho é muito, muito ansioso, muito identificado com muitas coisas o tempo todo, me pondo em situações de absurdo. Como agora, por exemplo, no concerto do Municipal. Só pra você fazer ideia, tinha um coro de 80 vozes. Era a orquestra inteira com 70 músicos. Então, você imagina, eu não sei nem ler música. Eu estou sempre em situações assim, meio limite. Rolou, e foi muito legal.

Mas na pintura eu sei quem é que procurou essa situação limite. Na pintura é como se fosse eu voltar para uma identidade, não pensada. Uma identidade sem roteiro. Não tem um script que domina.

Eu queria ser escritor antes de ser artista. Eu passei a adolescência querendo ser escritor. A pintura é sem palavra. Eu agora tenho dado título, mas a palavra não manda, enquanto que na escrita eu sinto que a palavra está o tempo todo operando.

ARTE!✱ – Frente à sua obra, lembro-me de Joseph Beuys, Anselm Kiefer…

Nuno Ramos – É, tem uma coisa de uma força que eu sinto como semelhante. No caso do Kiefer é diferente, porque ele está sempre trabalhando com uma perspectiva mais roteirizada, né? Ele tem toda uma teoria sobre aquilo , é um mundo espiritual etc., que está aí, sempre pairando. Tem uma coisa parecida. Ele foi um artista importante para mim no começo. A matéria dele tem a ver, sim, e os materiais que ele usa… uma espécie de lama. Porém mais simbolizada. Acho que se foi transformando numa espécie de teatralização do drama contemporâneo, de um ponto de vista que foi ficando cada vez mais conservador, na minha opinião, entendeu? Algo assim como se fosse um europeu culto, tomando um Petrus enquanto o mundo incendeia.

Há poucos anos, visitei o ateliê dele lá no sul da França, e achei um pouco isso. O que ele tem, que é muito impressionante: aquele chão, em perspectiva, rústico, feito de pintura e de paus queimados, e o próprio chão. O céu já não funciona tanto. Tem pontos de fuga, vai escapando.

Porém, acho que quando vi as banhas (graxas e gorduras animais que o artista utilizava nas suas obras) do Beuys, as pedras com azeite, isso tudo me pegou para sempre. Acho que é uma influência dessas que não sai, porque não é uma influência só de aparência, é uma influência poética mesmo. Incrível. Visceral. A primeira vez que eu vi as banhas foi uma coisa fortíssima que eu nunca me esqueci. Por outro lado, minhas pinturas são coloridas, tentando seduzir. Não sei a quem, tentando falar com não sei quem. São superloquazes, e eu sinto certo desespero. Essa coisa de hoje em dia. que é esse excesso de rede, de fala, de som, de ser, de sedução, de conexão.

ARTE!✱ – Em Beuys, a matéria que ele buscava ecoava um trauma. Como ecoa a sua, para você?

Nuno Ramos – Minhas pinturas não são austeras, nem recusam isso. Elas querem ecoar a si mesmas. Por outro lado, elas têm uma carga de matéria tal, que é extremamente penosa, é quase um corpo. Aquilo são toneladas de tinta que eu vou pondo, vou pondo.

Eu nunca usei de modo simbólico, muito menos biográfico, como o Beuys fazia. Eu, por exemplo, usei muita vaselina, não apenas de sabão e breu. Usei a areia. São só materiais que eu usei em quantidades assim de tonelada. Mas a vaselina foi um material que me pegou muito. Algo intermediário entre o sólido e o líquido, é uma espécie de indecisão entre dois reinados. Acho que pertenço um pouco a isso. Esse corpo acrescido dá uma espécie de ética para mim, como se eu não pudesse mentir muito.

Quer dizer, quando você tem que cuidar da própria matéria, de ela ficar de pé, não cair numa taça e escorregar, não derreter. De lidar com ela, com as características físicas dela, parece que o trabalho ganha uma verdade, só nisso, independente da imagem, né? Quer dizer, para mim, há uma distinção entre a imagem, que, aliás, é o que me incomoda em geral: haver uma imagem resultante, e a matéria que faz a imagem que eu gostaria que fosse viva. Não que eu consiga, mas que pudesse respirar, que pudesse ser feita de fungos que crescessem, que fossem coisas autônomas. Então a matéria para mim é esse espaço de alguma coisa que eu não controlo, de que eu preciso ficar amigo, pedir licença e ver se ela fala nos meus termos. Atribuir a ela sua própria verdade. Deixá-la pesar, deixá-la suar, deixá-la respirar. Isso tudo é o que me atraiu nesses materiais, todos os que usei a vida toda.

ARTE!✱ – Então, além da tinta…

Nuno Ramos – Há 30 anos tem muito tecido e muito metal. Tem latão, tem alumínio, não tem objetos. Isso é importante. Não é uma colagem no sentido de pegar uma coisa do mundo. Eu construo a tinta. O material. Porque ela é uma lava, sim, você mistura o óleo com a encáustica nela quente. Trabalho com a tinta quente, pelando, muitas vezes com luva, outras vezes ainda no limite da mão, mas é quente. E então aquilo vira um grude, um negocinho que parece um pouco uma lava mesmo, um negocinho que você joga, uma areia quente, alguma coisa assim, e então aí elas vão surgindo.

ARTE!✱ – O que teremos na exposição além das pinturas?

Nuno Ramos – Inventei uma espécie de contramovimento. Ainda não temos imagens da obra que está sendo desenvolvida. Serão três pedras, e nós vamos fazer três quadros do Malevich. Três quadros do Malevich, de pó de mármore, não de pigmento colorido. Uma réplica de pó. Então o quadro tem, sei lá, oito cores. A gente usa oito. A gente faz uns modelos de papelão em computador. A gente separa as camadas, faz as camadas de papelão grosso e aí, com o pó, a gente refaz certinho, como uma mandala, uma mandala do Malevich. Então, se o quadro tem um metro e meio por um metro e vinte, a minha réplica de pó tem o mesmo tamanho. Colocamos em toda a extensão dele um rastelo, como uma vassoura mais dura, que vai andar três centímetros por dia.

Então, ao longo da exposição vou apagar o Malevich, digamos assim. Serão três apagamentos. Os meus quadros vão estar aí e o dele vai estar sendo meio que apagado. Vai ser um movimento meio de vida, de morte, de construção e desconstrução. Para fazer esse varrido, estou desenvolvendo um mecanismo lá em Minas. Num espaço onde Allen Roscoe trabalha, que faz muitos trabalhos para mim, um cara genial, um arquiteto incrível, um cara que fez muito, muitos trabalhos com Amilcar [de Castro].

ARTE!✱ – E por que escolher um quadro do Malevich

Nuno Ramos – Estou usando Malevich porque primeiro, ele está na raiz de toda a pintura do Século 20, cubismo, construtivismo ruso, dessas raízes a dele acho que foi a que mais entrou no nosso construtivismo, muito marcado pela influência russa, os contra-relevos do Helio Oiticica parecem retirados de um quadro dele. Os próprios bichos da Ligia Clark. Uma raíz mais solta, acho que está muito próxima de nós.

Então de um lado tem meus quadros quase que vomitando essa origem com 300k de tinta estertorando essa base e aquela origem sendo desfeita, apagada virando matéria de novo.

ARTE!✱ – Projetos? Depois de Belo Horizonte?

Nuno Ramos – Em junho eu inauguro exposições no MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul). É um espaço novo que estão abrindo em Porto Alegre, assim como em Curitiba.

Vamos fazer duas exposições, mas, curiosamente, uma delas é para refazer um projeto, o Morte das Casas, que eu fiz com a Flavia Albuquerque, em que eu enterrei as casas. Três casas, que chamei de Três Lamas. O museu quer um trabalho à luz das enchentes. Mas eu fui lá, logo depois de começarem, desci em Floripa, peguei um ônibus, não tinha aeroporto ainda em Porto Alegre, e o desastre era tamanho, numa escala e de uma violência, que não dava para fazer nada. Aí eu achei interessante refazer esse trabalho com essas casas afogadas, refeitas de materiais. Mas isso deixamos para ver e conversar mais para frente.

Práticas para dar lugar a outras histórias

Forgive Us Our Trespasses / Vergib uns unsere Schuld – Von (un)wirklichen Grenzen, (Un)Moral und anderen Überschreitungen, Haus der Kulturen der Welt (HKW) Berlin, 14.9.–8.12.2024
Por Maykson Cardoso

“Ó, abre alas, que eu quero passar”
“Laroyê” — saudei Exu ao passar por um altar dedicado ao orixá já na entrada da Haus der Kulturen der Welt, a “Casa das Culturas do Mundo”, conhecida, entre os berlinenses, pela sigla HKW — leia-se: “rá-cá-vê”. Era noite de uma sexta-feira, 13, o último dia da Berlin Art Week, evento que faz parte do calendário anual da cidade há mais de uma década. Abria-se, assim, com direito a padê para Exu, a exposição Forgive Us Our Trespasses/Vergib uns unsere Schuld, título composto pelo verso do Pai Nosso em inglês e alemão, que traduzimos como “perdoai as nossas ofensas”. Ao caminhar pela exposição, via, ainda, altares para outros orixás: Iansã, Ibeji, Iemanjá, Obaluaiê, Ogum, Oxóssi, Oxum… todos, ali, invocados por Babá Murah, brasileiro e fundador do Ilê Obá Silekê, o primeiro terreiro de candomblé de Berlim.

No auditório Miriam Makeba, o grupo de hip-hop afro-alemão BSMG cantava o refrão do hit dedicado a Jesse Owens — atleta, negro, estadunidense, que ganhou quatro medalhas de ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, em plena Alemanha nazista. “Wir haben gewonnen, Jesse Owens”, “Nós vencemos, Jesse Owens” — bradava o auditório lotado quando “Bona” — como insiders da art scene berlinense chamam Bonaventure — vestido, comme d’habitude, como um “dandy afrofuturista”, veio abrindo caminho pelo corredor central, dançando, em direção ao palco, com o punho cerrado em riste. Enquanto isso, o BSMG seguia: “Schweigen jetzt nicht mehr, wir/sind Teil der Geschichte hier”, “Jesse o, Jesse, die Geschichte neu geschrieben” — “Agora, não nos silenciamos mais/somos parte da história, aqui”, “Jesse o, Jesse, a história foi reescrita”.*

Camaronês de Yaoundé, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung é dono de um currículo nada ortodoxo: chegou à Alemanha em 1997 para estudar Tecnologia de Alimentos na Universidade Técnica de Berlim, realizou doutorado em biotecnologia pela Universidade Heinrich-Heine de Düsseldorf, e um pós-doutorado em biofísica pela Universidade de Montpellier. E, nesse “meio tempo”, fundou o SAVVY Contemporary: The Laboratory of Form-Ideas, em 2009 — um dos espaços experimentais de arte mais pulsantes de Berlim, responsável por uma virada crítica decolonial que contribuiu para redefinir os rumos da cena artística da cidade.

Em reconhecimento pelo seu trabalho à frente do SAVVY, Bonaventure recebeu a Ordem do Mérito de Berlim, a mais alta condecoração outorgada pelo senado berlinense, em 2020. E, embora isso, de algum modo, já conferisse a ele e ao próprio SAVVY certo caráter “oficializante”, nada se compara à oficialidade da posição que assumiria em 2023, quando foi nomeado diretor da Haus der Kulturen der Welt (HKW), uma das instituições mais prestigiadas do país, ligada, diretamente, aos Ministérios da Cultura e de Relações Exteriores. Em termos, digamos, “geopolíticos”, esta foi uma “promoção” tão significativa quanto desafiadora.

SAVVY — de dentro, para fora
Se o SAVVY sempre ocupou espaços em bairros ligados historicamente à classe trabalhadora e a comunidades de imigrantes em Berlim — sua primeira sede foi em Neukölln, as outras duas, em Wedding: dois distritos conhecidos, desde a República de Weimar, como Berliner Arbeiterviertel, os “bairros operários” —, a HKW está localizada no nobre Tiergarten, “abraçada” pelos seus “vizinhos de quintal”: bem aos fundos da Chancelaria Alemã, abaixo do Bundestag, o parlamento alemão, não muito distante do Palácio Bellevue, a residência presidencial. Isto é: de diretor artístico de um espaço experimental orientado por pensamentos e práticas decoloniais, Bonaventure, agora, havia se tornado um “embaixador da cultura” — bem no centro do poder.

No SAVVY, as práticas curatoriais de Bonaventure não só foram orientadas para alcançar seus vizinhos imediatos, como se deixaram orientar por essa convivência. Em seu livro Pidginization as Curatorial Method (2023), ele escreve sobre sua insistência “[em uma] prática curatorial como uma prática da hospitalidade e da convivialidade”. Na primeira sede do SAVVY na Richardstraße, em Neukölln, costumavam convidar vizinhes para trazerem seus próprios vinis, que podia ouvir enquanto cozinhavam e comiam juntes. Como “prática” de um espaço de arte, esta situação não deixava de gerar estranhamento, uma vez que frustrava a expectativa de quem chegava só para ver “arte na parede”.

Esse estranhamento era efeito da “bagunça conceitual” que orienta o método curatorial que Bonaventure nomeia “pidginization”, baseando-se no fenômeno linguístico do pidgin, uma “língua de contato” que surge da necessidade de comunicação entre falantes de duas comunidades linguísticas diferentes. Isto é, o pidgin surge como uma língua de improviso que marca a abertura de uma comunidade para a outra sem que seja necessário renunciarem a si mesmas, resultando, assim, em uma terceira comunidade que se funda na e para a diferença.

A necessidade é, portanto, o motor da invenção. Bonaventure escreve, por exemplo, que foi também “uma combinação de necessidade e escassez que levou o SAVVY a realizar suas performances nas ruas de Neukölln”. Pequeno demais para comportar artistas de performance e o público, o jeito foi levar as performances de dentro para fora, tomando as calçadas do bairro. Como lembra Bonaventure, esta necessidade deu lugar a outro tipo de relação entre o SAVVY e a vizinhança, que agora podia trazer suas cadeiras de casa e pegar uma cerveja na esquina para acompanhar aquele que se tornou o evento das tardes de sábado na rua.

Do SAVVY à HKW: de fora, para dentro
Certo é que outros lugares exigem outros approaches. Bonaventure afirma que o método curatorial da pidginization é o que levou o SAVVY a se constituir como uma “instituição por vir”. E explica: “Com isto, quero dizer: o ato de colocar coisas no lugar, o ato de ser em fluxo, de ser dinâmico/não-estático, de cultivar a variação de formas-ideias como método”.
No entanto, criar uma instituição “do zero”, como o SAVVY, não se compara a assumir a direção de uma instituição como a HKW, fundada e consolidada há décadas, e ligada à dinossáurica maquinaria do estado alemão — com suas idiossincrasias históricas, culturais e econômicas tão complexas, sem contar seus dogmas e tabus.

De sorte que, se o dinamismo, a fluidez, a variabilidade constituía o motor do SAVVY como uma instituição em permanente construção — tal é a marca de seu modus operandi decolonial —, na HKW, pelo contrário, como instituição que representa um estado colonizador, seria necessário instituir a desconstrução como princípio.

Re/nomear para ressignificar
Neste sentido, pode-se atribuir certo esforço de desconstrução a um dos primeiros atos de Bonaventure ao abrir seus trabalhos como diretor da instituição, ao re/nomear seções do prédio histórico da HKW homenageando “mulheres que contribuíram para a melhoraria de mundos”. Sim, “mundos”, no plural, foi também um modo de inscrever a instituição na perspectiva da “pluriversalidade” em detrimento da suposta “universalidade” ocidental, referindo-se a ela, agora, como Casa das Culturas de Mundos. Entre as homenageadas que deram nome a espaços do prédio, encontram-se brasileiras como a psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999), a ativista, historiadora e poeta Beatriz Nascimento (1942-1995), e a ativista e vereadora Marielle Franco (1979-2018).

Quilombo > “quilombismo” > “quilombar”
“Exu | tu que és o senhor dos | caminhos da libertação do teu povo | sabes daqueles que | empunharam | teus ferros em brasa | contra a injustiça e a opressão | Zumbi Luiza Mahin | Luiz Gama Cosme Isidoro João Cândido | sabes que em cada coração negro | há um quilombo pulsando” — escreve Abdias do Nascimento em seu Padê de Exu Libertador. De algum modo, o poema de Nascimento fala da mesma força de nomeação que Bonaventure reivindicou a fim de ressignificar os espaços do prédio da HKW; lá, como cá, honra-se a história daqueles que lutaram “contra a injustiça e a opressão”, daqueles que lutaram contra a ordem colonial, em nome da liberdade e da emancipação de seu povo.

O quilombo, que pulsa em cada coração negro, constitui o modelo de sociedade que Abdias do Nascimento reivindicava para os africanos e afro-americanos que ainda sofrem as consequências do projeto colonial: “os quilombos”, escreve Nascimento, “resultam [da] exigência vital dos africanos escravizados, no esforço de resgatar sua liberdade e dignidade através da fuga ao cativeiro e da organização de uma sociedade livre”. É esta “práxis afro-brasileira” — que funda uma unidade de “afirmação humana, étnica e cultural”, integrando “uma prática de libertação e assumindo o comando da própria história” —, que ele denominava “quilombismo”.

Performance de Steven Cohen, em Paris, 2013.

O Quilombismo é também o título que Bonaventure escolheu para a primeira grande exposição como diretor da HKW, em meados de 2023. Na ocasião, celebrava-se a reabertura sob sua direção e após os conturbados anos da pandemia de covid-19. Em seu statement curatorial, ele apresentava o conceito de Nascimento e o significado de “quilombo” para um público que desconhecia o termo. Central, em seu texto, era a ideia de uma democracia igualitária, tal como a que se viu em Palmares sob Zumbi, o Rei dos Quilombos, “que concebeu um espírito de radical emancipação cultural”. A exposição O Quilombismo se dava, em suas palavras, como convite “para quilombar — como um verbo”.
O Quilombismo, como primeira grande exposição, assim como o primeiro ato de renomear para ressignificar, “refundava” a HKW a partir do ponto de vista e das práticas decoloniais que já tinham lugar no SAVVY. A exposição demarcava a instituição como espaço de encontro entre mundos, como espaço onde a confusão das línguas não é só esperada, mas praticada como método para criação de outras formas de viver juntos, e na diferença.

Longe dos vizinhos dos bairros proletários e cheios de imigrantes — como já disse: bem no centro do poder estatal alemão —, Bonaventure colocava em marcha um lento e necessário projeto de desconstrução.

Não, a HKW não se tornou, nem se tornará, um “quilombo”, mas é agora um lugar para uma série de desconstruções simbólicas que abrem caminhos para ensaiar outras “formas-ideias”, tomando os quilombos como seu paradigma [est]ético, o “quilombismo” como episteme, o “quilombar” como método. Mais do que um fim em si, a arte é, assim, tomada como meio para integrar, criar e celebrar comunidades e subjetividades dissidentes, periféricas, contra-hegemônicas; isto é, um meio de desestabilizar, de dentro, a ordem ocidental/colonial que sempre se utilizou da violência para manter essas comunidades e subjetividades de fora, a fim de garantir a manutenção de sua supremacia no mundo — sim, aqui, o “mundo”, no singular!

Abdias do Nascimento se fazia presente não só nos termos conceituais sobre os quais se assentava a exposição O Quilombismo; sua obra pictórica — que se alimentou de, e hoje alimenta uma tradição visual afro-brasileira —, podia ser contemplada em diferentes espaços expositivos. Difícil saber ao certo quais fatores determinaram a paleta de cores da expografia, mas, de algum modo, estas se relacionavam com a própria paleta de cores de sua pintura. Entre os quadros expostos, encontrava-se Quilombismo (Exu e Ogum) — uma tela de 1974 que sobrepõe os “pontos cruzados” (símbolos) de Exu e Ogum: Exu, “senhor dos caminhos”, do movimento e da comunicação; Ogum, orixá da guerra, do trabalho, da transformação.

Bienal de São Paulo
Bonaventure foi apontado como curador geral da 36ª Bienal de São Paulo em abril de 2024. Sua atuação como diretor do SAVVY e da HKW dão mostras de seu interesse pela produção cultural do Brasil. Em outubro, divulgou-se o título: Nem todo viandante anda estradas: da humanidade como prática. A primeira parte do título é um verso da escritora mineira Conceição Evaristo — referência incontornável da literatura brasileira contemporânea; a segunda, “da humanidade como prática”, soa, a esta altura, um tanto “antropocêntrica”, justamente nesses tempos de falência decretada da nossa espécie.
Nos últimos dias, lembrava, porém, da justificativa de Israel para o massacre que tem promovido em Gaza — classificado, recentemente, como “genocídio” pela Anistia Internacional. Há cerca de um ano, vimos, na ONU, o enviado de Israel se referir a palestinos como “animais inumanos”… Uma estratégia de “guerra discursiva” que, como a história de tantos genocídios nos mostra, tem como objetivo desumanizar povos inteiros para justificar seu extermínio. A insistência nessa “humanidade”, portanto, talvez queira responder à exigência de fazer valer, na prática!, os Direitos Humanos que, no papel, se pretendem universais.

A ênfase na poesia, por outro lado, é uma estratégia que Bonaventure utiliza para evitar confrontos diretos. Em uma entrevista concedida a Lisette Lagnado para a Revista ZUM sobre sua atuação como curador na 12ª edição dos Encontros de Bamako, no Mali, Lisette lhe pergunta sobre sua estratégia para contornar a censura e a homofobia naquele contexto. Ao que ele responde: “Mali é um país islâmico e há certas coisas que não podemos exibir”. […] “Os tempos da provocação já foram. Não precisamos de frontalidade nem de cenas explícitas. Precisamos de poesia! […] Você pode decidir se quer mostrar o caráter queer de modo superficial, ter a exposição fechada, e não realizar nada”.

Essas palavras ressoam aquelas que disse ao divulgar a proposta curatorial da 36ª Bienal de São Paulo: “Esta Bienal nos oferece um convite para colocar a alegria, a beleza e suas poéticas no centro das forças gravitacionais que mantêm nossos mundos em seus eixos… pois a alegria e a beleza são políticas”. Embora sua concepção de poesia, aí, seja, por muitas razões, questionável, talvez esta tenha a ver com a estratégia adotada por artistas brasileiros que se utilizaram da metáfora e outros recursos poéticos para contornar a censura nos anos da ditadura militar. Resta-nos, por ora, esperar para ver de que modo a poesia será colocada em “prática” por Bonaventure, nesta que é a bienal mais importante do sul global, bem longe dos “abalos sísmicos” que questões geopolíticas têm provocado nas “plagas teutônicas” e no norte global nos últimos anos. ✱

Benítez faz poesia na extensão do Beaubourg

Estudos preliminares da sede do Pompidou em Foz do Iguaçu. Fotos: Divulgação/Escritório Solano Benítez

Nada é mais ancestral do que o barro, matéria-prima que tinge de vermelho o solo paranaense e que será o alicerce de um marco cultural inédito: a extensão do Centro Georges Pompidou (Beaubourg). Esse museu brasileiro será erguido em Foz do Iguaçu, no coração da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, com inauguração prevista para 2026. A iniciativa é da Secretaria de Cultura do Estado do Paraná, tendo à frente o governador Carlos Massa Ratinho Junior e a secretária da cultura Luciana Casagrande Pereira.

O projeto, assinado pelo renomado arquiteto paraguaio Solano Benítez, detentor de prêmios internacionais como o Leão de Ouro, da Bienal de Arquitetura de Veneza em 2016, rompe paradigmas ao valorizar o uso do barro, um material simples e primal, pouco associado a museus de prestígio. Em um cenário onde o concreto, o vidro e outros materiais sofisticados e caros predominam na arquitetura de grandes instituições culturais, a escolha do barro não apenas resgata a conexão com a terra e a identidade local, mas também propõe uma reflexão sobre sustentabilidade e acessibilidade na construção. Em entrevista à ARTE!Brasileiros, Benítez compartilha os conceitos que fundamentam este empreendimento desafiador, mostrando como a tradição pode se aliar à inovação para criar algo verdadeiramente único.

Inicio minha conversa com o arquiteto indagando como está o andamento do projeto. “Eu tenho uma fachada que ainda está em criação, portanto eu gostaria de falar sobre o contexto em que esse museu irá surgir de uma forma inédita.” Depois de um tempo de construções sofisticadas de museus de arte em todo o mundo, cada um mais arrojado do que o outro, parece que se está, agora, em momento de revisão. Benítez comenta que este empreendimento representa mais do que um simples edifício. Ele explora todas as possibilidades que sempre estiveram à nossa disposição para construir uma sociedade melhor. “Diferentemente de projetos que priorizam apenas rapidez e técnica, aqui há uma preocupação em revisar caminhos, questionar a direção que a arquitetura está tomando e, sobretudo, refletir sobre o papel do ser humano dentro dessas criações”, diz ele.

Arquiteto Solano Benítez trabalha com equipe na implantação do Museu de Arte em Foz de Iguaçú.
Fotos: Kraw Penas/SEEC

Benítez fala que o legado deste projeto transcende o desenho arquitetônico. “Ele abarca os materiais, os elementos e as histórias que compõem o museu, propondo uma experiência rica em significado.” Na verdade, ele está fazendo um convite para repensar o legado que será deixado para o futuro, tanto como profissionais quanto como sociedade. O arquiteto discorre sobre o privilégio dessa matéria-prima que tanto tem a nos dizer. “É fascinante perceber como o tijolo, talvez o material mais universal do mundo, tenha atravessado o tempo e todas as geografias. Pense no primeiro tijolo registrado, criado no Oriente Médio pelos babilônicos, quando começaram a imaginar os terraços-jardins.” Desde então, o tijolo percorreu o mundo inteiro.

Benítez lembra a resiliência e as adversidades vividas pelo material. “Mesmo em condições extremas, como no Polo Norte, o ser humano encontrou uma forma de adaptar esse conceito. Lá, o tijolo foi reinventado com água congelada, transformado em blocos de gelo para construir iglus e proteger-se das adversidades climáticas.” Essa capacidade de adaptação do material demonstra sua relevância histórica e cultural, conectando diferentes povos e períodos. Benítez lembra que, desde a construção do Panteão até os dias de hoje, a dimensão do tijolo permanece inalterada. “Ele segue um padrão universal, pensado para caber na palma da mão, mantendo sua praticidade e funcionalidade ao longo dos séculos.”
Benítez é um estudioso da história. “Uma coisa interessante é que a vida humana inicia na África sua grande aventura. É a primeira onda, a primeira volta que dá, eles vão pela África, sobem para o Norte, se dividem para o Oriente Médio, vão à Índia”, comenta. “E na Índia acontece uma coisa maravilhosa, tudo se mescla. E parte deles retorna e vai para a Europa, parte deles vai para a China.”

Depois, lembra ele, finalmente cruzam por Bering e começam a descer por toda a América. Sempre usando as bordas para ter relações de onde eles estão. Aquela relação com o mar, etc. “Então, finalmente, todo mundo cruza por aquele ponto na Colômbia, entre Colômbia e Panamá. E parte vai para o Atlântico, parte continua para o Pacífico. A parte que vai para o Pacífico vai até o final, o Chile. Aqueles que vão para o Atlântico chegam um pouquinho depois da Amazônia, continuam a viagem e alguns cruzam em diagonal e chegam até o meio do Continente.” Então, Benítez conclui que o meio do Continente e toda essa viagem foi feita compreendendo e buscando quais eram os recursos disponíveis, para transformá-los e melhorar a vida das pessoas. “Agora, essa viagem acaba em nós, os mais novos do mundo, aqueles que chegam por último naquela viagem maravilhosa, porque todo mundo fica na borda e alguém ingressa e descobre, na Tríplice Fronteira, o último lugar experiencial.”

O barro utilizado no museu será extraído da terra vermelha que caracteriza a região que une Brasil, Argentina e Paraguai. É um material intimamente ligado à identidade local. Sua escolha é emblemática, pois essa técnica milenar, que remonta a mais de 3.000 anos, carrega consigo um legado de sabedoria e tradição. “Embora a técnica de construção com tijolos seja amplamente conhecida e dominada, o grande desafio está em aplicá-la de maneira inovadora, gerando novos significados e consequências.” A terra da região foi considerada pelos jesuítas como uma das mais produtivas do mundo, graças à qualidade única. A riqueza natural sustenta a exuberante vegetação que cerca a Tríplice Fronteira, com a imponente reserva florestal de Iguaçu no Brasil, as Missões na Argentina, e os Saltos del Monday, no Paraguai. “Este conjunto de biomas reflete a vitalidade da Mata Atlântica, que se estende até o interior do continente, sendo capaz de enfrentar e superar os mais diversos desafios naturais.”

Benítez destaca que estamos presenciando uma crescente conscientização sobre a importância de se preservar o ecossistema. “Não se trata apenas de explorar os recursos do território para melhorar nossas vidas, mas reconstruir e devolver à Terra os elementos essenciais como fonte de vida para todo o planeta.” Ele propõe, ainda, abandonarmos a visão do território como mero repositório de recursos a serem extraídos. “Nós, seres humanos, somos também um recurso, uma parte indissociável da natureza”, conclui.
O nome de Benítez circula há anos entre os arquitetos do Brasil, especialmente devido à sua amizade com Paulo Mendes da Rocha, que o convidou para proferir uma palestra na FAU/USP em 2012. Hoje, ele expressa grande honra pelo convite dos brasileiros para assumir o projeto da extensão do Pompidou. “Foi um gesto de generosidade incrível, um convite ousado que será comentado por gerações. Isso demonstra, de maneira admirável, que o Brasil busca a união de nosso continente, dentro de uma mesma cultura”, afirma Benítez.

Durante o tempo em que trabalhou com Paulo Mendes da Rocha, Benítez costumava falar em guarani e pedia que Paulo o traduzisse. “E ele traduzia, inventando tudo. Era muito engraçado ver como conseguíamos nos comunicar”, conta Benítez, rindo da situação. Ele se diz contente em fazer parte da comunidade de arquitetos brasileiros. “Imagine estar na companhia de Lina, Reidy, Paulo e Oscar. Meu Deus! Eu ainda não consigo acreditar que tive a oportunidade de conversar com o Paulo sobre a necessidade de reconstruir e manter a Escola Experimental Paraguai, projetada por Eduardo Reidy, que foi uma prévia do que ele faria no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.”

A conversa se alonga e pergunto quando estará pronta a próxima fase do projeto. “Neste momento, a situação é a seguinte: a primeira parte foi entregue, e tenho até junho para concluir o processo. Estamos atualmente nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro, março, abril e maio. Ou seja, teremos mais de cinco ou seis meses de trabalho”, conclui Benítez. Considerando que o projeto foi contratado com o critério de inextinguibilidade, ele não pode ser descontinuado, o que impede a manutenção de uma parceria associada. Benítez assegura que tudo será desenvolvido com a mais alta qualidade técnica, em colaboração com o engenheiro Rui Furtado, professor da USP. “Pretendo apresentar um anteprojeto que possa ser utilizado em uma concorrência pública, para que a construção tenha início em 2025 e seja inaugurada antes do final de 2026.”

A área total do complexo na Foz do Iguaçu será de 25 mil metros quadrados, dos quais 10 mil metros serão destinados ao museu, com outros 5 mil reservados para logística, estacionamento e área de carga. “A proposta é que o museu funcione, inclusive, como uma espécie de sala de espera para os visitantes do aeroporto. A ideia é que os turistas, ao visitarem as Cataratas pela manhã ou à tarde, sigam para Itaipu e, ao retornar, encontrem um novo destino na região, prolongando sua estadia por mais um dia.” Benítez ressalta que o Museu na Foz tem como objetivo se tornar um verdadeiro centro cultural, não apenas um espaço de apreciação artística, mas também um catalisador de diversas formas culturais. O museu buscará enriquecer o conhecimento sobre a arte e, simultaneamente, promover a diversidade cultural, incluindo aspectos como gastronomia, vestimenta e outras manifestações culturais.

Quanto à fachada vazada, que cria a impressão de que o vento pode adentrar o museu, Benítez observa: “Devemos aprender a respeitar e entender nossa proximidade com a natureza, que não é idílica como os jardins de Luxemburgo imaginados para Maria Antonieta. Na Foz, a realidade é bem distinta, com a possibilidade de encontrarmos cobras, aranhas e diversos outros elementos naturais com os quais precisamos aprender a conviver, desenvolvendo estratégias para isso.”

Benítez também ressalta que há grande preocupação com o projeto paisagístico. “Até o momento, minha abordagem tem sido seguir o exemplo de Deus: não interferir, permitir que a natureza encontre seu próprio caminho.” Este conceito se alinha com a visão do urbanista e paisagista Roberto Burle Marx, que defendia a integração harmoniosa entre o ambiente construído e a natureza.

Ao fim de nossa conversa, Benítez prometeu me enviar uma palestra que ele proferiu em Boston, nos Estados Unidos. “Quem me apresentou naquele dia foi Hashim Sarkis, membro do júri do Prêmio Pritzker. Vou te enviar o texto para que você entenda como o mundo começa a odiar o que eu faço”, concluiu Benítez, com seu característico humor. ✱

Kentridge expõe processo criativo em obra-prima

episódio 1 da série documental Autorretrato como uma cafeteira (Self-Portrait as a Coffee Pot), com William Kentridge, em cartaz na plataforma MUBI Foto: Graded

Há décadas, o artista sul-africano Willian Kentridge retrata em suas produções seu processo criativo e seu trabalho no ateliê, tanto que foi o tema de sua mostra Fortuna, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2013. Mas ele chega agora a um formato quase épico com os noves episódios disponíveis no MUBI de Autorretrato como uma cafeteira (Self-Portrait as a Coffee Pot).

Lançados paralelamente à abertura da 60ª Bienal de Veneza, em abril passado, em um pequeno espaço que mimetizou seu estúdio e teve curadoria de Carolyn Christov-Bakargiev, os nove episódios estão disponíveis no MUBI desde outubro. São simplesmente maravilhosos, e olha que sempre evito adjetivos em meus textos, mas é incontornável.
“Estas obras são um hino à liberdade artística, revelando a falta de liberdade ameaçadora típica dos nossos espaços fechados na era digital. São exercícios para expandir e melhorar a inteligência humana na nossa era, em que a Inteligência Artifical (IA) e o uso crescente das redes sociais acabam por atrofiar as nossas capacidades cognitivas e emocionais”, escreveu Carolyn por conta da exposição em Veneza.

De fato, existe um processo um tanto analógico em seu processo criativo, afinal, no estúdio ele desenha, faz colagens, e os filmes são como animações em stop motion. Nada disso é mediado pelas telas do computador, e muito está relacionado ao princípio do cinema, com técnicas um tanto simples, mas bastante eficazes. Muitas vezes é mesmo mágico, como eram os filmes de George Meliès (1861-1938).

Diálogo interior
Entre estas técnicas está a possibilidade de uma mesma pessoa aparecer duas vezes no quadro, e Kentridge explora isso de maneira impressionante ao longo da série.
Esse princípio ocorre em parte porque o processo de produção teve início em 2020, durante os momentos de lockdown da pandemia, e o artista se retratava isolado em seu ateliê, conversando assim consigo mesmo, divagando e delirando sobre várias questões existenciais, como muitos de nós ficamos naquele período.

Pois Kentridge fez desse confinamento um das obras que melhor retrata o momento – há muitas referências, ao longo dos episódios, sobre a quantidade de contaminados na África do Sul, de mortes, de vacinados – sem, contudo, levar-se pela depressão que a Covid-19 provocava em todos os lugares.

Autorretrato é mesmo divertido, especialmente por conta dos embates entre o dois personagens assumidos por Kentridge, um mais ranzinza, outro otimista. Às vezes um terceiro surge para pacificar a situação. Mas não se trata de diletantismo, boa parte das questões giram em torno do contexto do artista, filho de um advogado militante dos direitos humanos engajado na luta contra o regime do apartheid.

Nesse contexto, o debate sobre colonialismo é um tema sempre presente, e a história de Joanesburgo é revista especialmente no episódio três, quando Kentridge conta como o museu de arte da cidade foi construído a partir de doações das famílias que exploravam o país, e, em uma animação, destrói o espaço que surgiu em um gesto imperialista, como se associando ao movimento que prega a destruição dos monumentos de figuras colonialistas.
Para o próprio Kentridge, em um sintético depoimento sobre a série, disponível no YouTube, a exposição de seu duplo é uma maneira de falar sobre a confusão que existe dentro de cada um, sobre a permanente existência de dúvidas que nos movem. Dessa forma, ele evita posicionamentos categóricos, em geral tão arrogantes, para expor a dúvida como processo, como potência.

Cafeteira
O título da série também é sugestivo no sentido de banalizar a própria noção de autorretrato, um dos gêneros mais recorrentes na história da arte. Ao se comparar a uma cafeteira, Kentridge se iguala a um objeto cotidiano e banal, ao mesmo tempo em que aponta como o processo no estúdio é que pode defini-lo.

Na entrevista sobre a série, ele comenta: “Pode-se dizer que os trabalhos que você desenha ao longo de sua vida tornam-se outra forma de se descrever, e neste caso, não interessa muito o que você está desenhando, tanto faz se é uma árvore, um rosto, uma casa ou uma cafeteira, que no fim o que se revela é quem você é. Então, Autorretrato como uma Cafeteira poderia ser Autorretrato como um Rinoceronte, que dá no mesmo.” Coincidentemente, mas nem tanto, cafeteiras são retratadas de forma constante ao longo da série, assim como também são os rinocerontes.

É fato, contudo, que Kentridge é um ótimo ator, o que ele revela ter sido um de seus objetivos no início de sua carreira, há 40 anos, quando ele chegou a ir estudar dramaturgia em Paris, mas acabou desistindo da profissão e se dedicando às artes visuais. No entanto, seu trabalho é de fato performático, e muito da série é sobre o embate do corpo do artista em seu ateliê, sobre o gestual para desenhar, sobre maneiras de interpretar.

Conforme a série avança, e o confinamento reflui, mais pessoas participam dos episódios. Se a música sempre teve papel importante em sua obra, em Autorretrato ela faz parte de sua construção, assim como tema em alguns momentos. No episódio quatro, por exemplo, ele apresenta uma criação de 2019, para o Teatro de Ópera de Roma, chamada Waiting for the Sibyl, e aqui alguns artistas da montagem também aparecem em seu estúdio cantando. A ópera tinha várias projeções suas no palco, entre elas uma espécie de flip-book – novamente aqui um ação analógica – muito semelhante ao que ele fez com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando esteve no Brasil.

Boa parte dos desenhos feitos pelo artista em seu estúdio são com carvão, o que também revela outra faceta sobre suas questões em relação à própria história da arte. Enquanto as pinturas a óleo possuem uma história recente e quase concomitante ao imperialismo europeu (são cerca de 500 anos), o carvão, ou seja, a madeira queimada, muito mais simples de produzir, tem uma história de cerca de 40 mil anos, portanto muito mais ampla, e não conectada diretamente ao colonialismo.

Detalhes assim atestam como a política para Kentridge surge não apenas no conteúdo, mas especialmente na forma. A técnica brechtiana de seus trabalhos, ou seja, de deixar claro que ele está produzindo linguagem, e, portanto, não precisa enganar ou iludir o espectador, revela outro lado desta faceta.

Contudo, o resultado é sempre fascinante. Autorretrato como uma Cafeteira é dessas obras-primas que apontam como é possível falar de tempos difíceis, atravessando até mesmo uma pandemia, de forma altamente poética. Eu diria ainda que sua obra é uma arte potencial, já que faz uma “rejeição do aparato conceitual do imperialismo como um todo”, na definição de Ariela Aïsha Azoulay. Como os filmes no MUBI não costumam estar disponíveis muito tempo, corra para assistir porque são imperdíveis. ✱

‘O estilo é a alegria do mercado, mas a morte do artista’

Cildo Meireles
Trabalho da série Inserções em circuitos ideológicos, Projeto Coca-Cola (1970).

O arremate por US$ 6,2 milhões, num leilão da Sotheby’s, de Comedian (2019) – a banana afixada à parede com uma fita adesiva concebida pelo italiano Maurizio Cattelan –, não causou estranheza ao artista multimídia Cildo Meireles (1948). Ainda que o caráter provocador seja denominador comum da arte conceitual de Cattelan e Meireles, criador de obras como as garrafas de Coca-Cola com frase subversivas da série Inserções em circuitos ideológicos (1970), há uma diferença crucial entre os dois gestos artísticos.

Para Cildo, “o escândalo maior” do episódio não parece ter a ver “com a fita, uma silver tape, que é um produto industrial, nem uma banana, que é um fruto da natureza, mas o valor, o dinheiro envolvido”, diz. O artista cita uma entrevista que leu há muito tempo, ainda na adolescência, com o estilista Pierre Cardin.

“A certa altura, o jornalista perguntava para ele, ‘vem cá, o senhor não acha absurdo vender um vestido a 20 mil dólares?’ Ele respondeu ‘ não, eu acho absurdo alguém comprar por 20 mil dólares um vestido’”, relembra. “O Catellan sempre foi um artista provocador, com esse aspecto da arte conceitual. Acho essa cadeia de fatos interessante para a história da arte conceitual em geral, porque vem enfatizar seu caráter polêmico e libertário dela. O caráter extremamente democrático, que te permite fazer não importa o quê. É um exercício altamente positivo para a história da arte”.

Cildo ressalta que a obra de Cattelan, no entanto, tampouco se trata de algo completamente inédito. “Já havia acontecido na década de 1910, com os ready-made em geral, mas sobretudo com Marcel Duchamp [1887-1968], com a A fonte [1917], que não passava de um urinol”, afirma. Em relação às suas garrafas de Coca-Cola, ele prossegue, há a diferença óbvia da mercantilização da obra de arte conceitual.

“Desde o início, eu decidi que nunca lucraria financeiramente com esse trabalho. Nunca vendi uma Inserção. Já dei para alguns amigos, e, quando algum museu me pede, às vezes eu faço uma doação, mas nunca coloquei à venda. Nem as notas”, salienta. “De vez em quando, aparece no mercado uma ou outra, mas eu não tenho nada a ver com isso. Foram feitas, vamos chamar educadamente, por uns pilantras, que tentaram industrializar a produção disso, no começo dos anos 2000”.

Após um hiato de cinco anos, São Paulo recebeu, entre outubro e novembro, duas exposições simultâneas de Cildo Meireles. Uma e algumas cadeiras/Camuflagens, montada na Galeria Luisa Strina, apresentou algumas obras inéditas, o que acontecera pela última vez em 2019, na panorâmica Entrevendo, levada ao Sesc Pompeia. A mostra destacou trabalhos envolvendo questões espaciais, elementos caros à sua prática artística. Caso das épuras – na geometria, representações de figuras tridimensionais em um plano –, com que o artista retratou cadeiras.

Simultaneamente, a Galatea apresentou a mostra Cildo Meireles: desenhos, 1964-1977, que destacou uma prática do artista considerada menos conhecida. No texto crítico feito para ambas exposições, o curador Diego Matos ressaltava que a seleção de desenhos tornava “visível e acessível a prática mais onipresente em sua trajetória de mais de 60 anos. Prática, aliás, indissociável de sua produção tridimensional.” O conjunto trazia experimentações abstratas, entre campos de cor e formas orgânicas, assim como desenhos figurativos, com cenas domésticas, mobiliários, críticas ao regime militar e exercícios que lidam com espacialidade, escala e arquitetura.

Para Luisa Strina, Cildo Meireles é “o artista brasileiro vivo mais importante”. Ela ressalta que, quando sua galeria começou a representá-lo, em 1981, o carioca era pouco conhecido no Brasil, mas já famoso no circuito internacional. Em 1970, o multiartista havia participado da coletiva Information, no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, ao lado de outros grandes nomes da arte conceitual como ele, a exemplo de John Baldessari, Joseph Kosuth, Helio Oiticica e Daniel Buren, entre outros.

No MoMA, Cildo havia apresentado justamente a série Inserções em circuitos ideológicos, com inscrições de cunho político em cédulas de cruzeiro. No ano anterior, o artista tinha participado da coletiva Salão da Bússola, uma panorâmica da produção de arte conceitual brasileira, montada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A mostra lhe rendeu como prêmio uma viagem para Nova York, onde morou até 1973. À época, conta Cildo, ele estava desiludido com as artes plásticas, que considerava “um jogo de cartas marcadas”. Incomodova-lhe também, ele diz, uma excessiva “verbalização” da cena.

“Para qualquer trabalho ou exposição, sobretudo de arte conceitual, você passava muito tempo lendo texto, texto de qualidade duvidosa, às vezes, da própria crítica, o que deriva, por exemplo, de uma frustração da poesia, da literatura”, pondera. “Eu fui tomando um ranço dessa verborragia. Assim como eu sempre tive uma espécie de ojeriza da chamada arte panfletária”.

Vale lembrar que a política sempre atravessou a produção de Cildo Meireles. Cinco anos depois de exibir suas Inserções no MoMA, ele estamparia numa nota de Cr$1 a pergunta Quem matou Herzog?, em referência ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelo regime militar no Brasil. Em 2018, Meireles carimbou o rosto da vereadora Marielle Franco, também vítima de crime político, em notas de real. E uma de suas primeiras instalações, Desvio para o vermelho (1967-1984), exibido em caráter permanente desde 2006 no Instituto Inhotim, é frequentemente associada à violência do período militar. Mas o artista argumenta:

“Você pode até tratar de temas políticos. Mas, para mim, é interessante quando tem uma questão de linguagem, uma questão estrutural, uma questão formal envolvida, e que não fique só na superficialidade do discurso imediato”, reflete. “O importante é não se limitar a um único aspecto que normalmente é externo, epidérmico quase. Quando, na verdade, você está sempre esperando que haja com o público um diálogo, uma comunicação mais profunda do que simplesmente esse contato, vamos dizer, de pele”.
Cildo destaca que, na série Inserções, ele se posicionava sempre como “o indivíduo se dirigindo a uma macroestrutura: industrial, no caso da Coca-Cola, ou institucional, no caso do dinheiro”. Em seguida, ele explica, viriam “peças em grande escala e instalações, coisas fisicamente muito grandes’, como Desvio para o vermelho, Eureka (1975), Através (1983-1989) e Fontes (1992-2008), entre outras. São trabalhos em que o artista provoca e até desafia os sentidos dos espectadores, por meio de estímulos sonoros, táteis etc.

A mudança de rumo em sua prática também era consequência de seu desencanto, “não apenas com a arte conceitual, mas as artes visuais como um todo”. Aos 20 e poucos anos, ele conta que poderia ter escolhido um caminho mais imediato para “fazer dinheiro”.
“Mas seu sempre me propus, é claro que você não consegue o tempo todo, fazer de cada trabalho uma experiência nova. O artista morre quando vira uma linha de produção de si mesmo, o que antigamente era chamado de coerência ou domínio”, pondera. “Mas eu sempre achei que o estilo é a alegria do mercado, mas a morte do artista”. ✱