Foram mais de 700 homens que passaram nos últimos anos pela cama de Lia D Castro, sendo que, ao menos com 50 deles, ela construiu uma relação de troca. Juntos, eles leem textos de autores como Cida Bento, Frantz Fanon (1925-1961) e Achille Mbembe, intelectuais que ela cita com frequência. “O objeto central do meu trabalho, em relação à descolonização e à autodescolonização, é dialogar com o opositor”, conta Lia, em um sábado ensolarado, do 16º andar de seu recém-adquirido apartamento de frente para o mar na Praia Grande.
Desses diálogos, a maior parte com militares de batalhões próximos de onde ela vive, surgem muitas das pinturas recentemente expostas na mostra Em todo e nenhum lugar, no Museu de Arte de São Paulo, o Masp, vista entre julho e novembro de 2024. Lia chama os clientes de colaboradores, já que eles decidem desde como querem ser retratados até a paleta de cores, muitos assinando a própria tela, como é o caso de Davi, o mais presente deles. Mas as pinturas são apenas parte de um processo bastante complexo.
No final de março, ela abre uma nova mostra na galeria Martins & Montero com uma série recente, chamada Axs nossxs filhxs. Nela, pés de seus clientes, que foram criados apenas por mulheres, são sobrepostos a pinturas já existentes, de naturezas mortas. “Essa série começou durante a pandemia, quando precisei seguir trabalhando e um de meus clientes tinha sido criado apenas por babás, já que seus pais trabalhavam muito, o que o fazia uma espécie de órfão de pais vivos”, explica.
Como o rapaz era surfista e o esporte foi central para curar uma depressão, ele sugeriu que apenas seus pés fossem retratados usando por base um quadro de rosas existente no ateliê de Lia, que ela pintou em 2005. Daí surgiu a série de pés sobre naturezas mortas, que fala tanto da ausência dos pais como de um gênero em geral não pintado por negros. As obras originais ainda são usadas de ponta cabeça, como a indicar a necessidade de uma outra ordem no sistema das artes. Tudo é complexo nas obras de Lia.
A artista, aliás, participa da primeira mesa do VIII Seminário Internacional Arte!brasileiros, cujo tema é
“Experiências da luta anticolonial no sistema das artes: por uma contraofensiva saudável, radical e com amor”. Se tem alguém que incorpora essa questão, como podemos perceber, é a própria Lia, que fala de suas estratégias anti-imperialistas na entrevista abaixo:
ARTE!✱ – Podemos dizer que seu trabalho é baseado no prazer, já que o cerne dele parte de uma relação sexual que se transforma nas pinturas dos seus clientes?
Lia D Castro – Acho que a gente só não pode confundir o prazer sexual com o prazer do trabalho. Eu acho que são coisas um pouco diferentes. O prazer sexual está ainda muito ligado, porque somos colonizadas, ao prazer carnal. Mas o prazer que eu trago da prostituição, em relação ao corpo, é um prazer cognitivo de autoconhecimento. Para mim esse foi o cerne da minha descolonização, porque de início eu tinha ainda esse olhar do prazer carnal como um prazer colonial pelo fato de achar que o gozo só está na penetração. Mas a gente pode entender que o prazer está em outras partes do corpo.
Na prostituição, me interessa a relação íntima porque nela a gente vive um momento muito primitivo. São toques, é lamber um a genitália do outro, é fazer coisas que, socialmente, não são consideradas higiênicas. Mas, no momento primitivo, a gente está abrindo mão daquilo que é um conhecimento extremamente violento, que é a colonização higienizadora.
Também tem a questão cognitiva. A gente abre mão, quando a gente está em uma situação primitiva, daquilo que a gente acha que é verdade. Eu achava que, no início da minha carreira como prostituta, para poder dialogar com esses clientes, eu tinha que ter controle sobre tudo. Mas se eu quero partir do princípio de um trabalho que dê prazer e eu esteja no controle, isso é muito egoísta. Então não seria um trabalho legítimo.
Assim, meu trabalho parte do prazer, mas de um prazer que troca a prática sexual do gozo, da penetração, pelo prazer cognitivo. Para mim, essa foi minha maior descoberta, que é me descobrir pelo outro e o outro poder me descobrir. Com esse encontro cognitivo a gente entra em uma situação de descolonização radical, o que é uma ideia muito “fanoniana”.
É o que o Achille Mbembe diz no livro Práticas da Inimizade, que é o momento de o colonizado dizer não ao colonizador. Com isso, a gente vai além do prazer carnal e a prática sexual chega a um autoconhecimento tamanho que é possível repensar a sua prática social.
ARTE!✱ – A Ariela Azoulay Aïsha, no livro História Potencial, defende que a gente precisa desaprender o imperialismo, e para isso é preciso abandonar todas as táticas colonizadoras…
Lia D Castro – Sim, é preciso abrir mão daquilo que faz parte da nossa vida, da nossa vivência. Eu volto para Fanon que diz que colonizar e descolonizar é a mesma dor. O colonizador também passa por um processo de colônia, quando ele acredita que é um sujeito superior. Mentiram muito para ele porque tiraram o sujeito dele, como um sujeito único. O branco é considerado como um sujeito universal, né? Mas quando a gente começa a se autodescolonizar, é uma dor. É a dor de perceber que a gente pensava o prazer como um homem branco!
Toda nossa prática social e sexual é baseada na prática das pessoas brancas cis. E nem é da branca cis latina, mas da europeia. A gente aprendeu a amar, transar e odiar pelos olhos deles. E nem é de um homem contemporâneo, mas de um europeu do século 16, 17 ou 18 ainda! Então tem muito moralismo. Dói abrir mão daquilo que a gente acha que é verdade, mas essa precisa ser uma prática diária.

ARTE!✱ – E isso tem a ver com esse nicho, digamos assim, dos militares, que é um grupo com o qual você trabalha de forma constante? Eles são a maioria dos seus clientes, ao mesmo tempo em que são representam da opressão no Brasil, e muita gente se recusa a dialogar com eles.
Lia D Castro – O objeto central do meu trabalho, em relação à descolonização e à autodescolonização, é dialogar com o opositor. Os militares são sujeitos violentos, mas, para poder conseguir trazer todas as informações que eles me trazem, é preciso entender que sujeitos são esses. E aí é preciso também entender o contexto deles.
Até 2019, segundo as informações da própria Polícia Militar, o governo do Estado de São Paulo gastou mais de R$ 4 milhões por ano com indenizações de policiais acidentados ou suicidados. Então você percebe que é um grupo muito fragilizado.
A gente não tem estatísticas no Brasil de quem são os profissionais que mais se matam, mas, aparentemente, são os policiais militares. Após a quarentena, houve um considerável aumento do índice de suicídio entre policiais militares. Inclusive, ontem, um policial vindo para cá, parou o carro e se matou dentro do carro na ponte de São Vicente, Praia Grande.
Esse grupo fragilizado não são os opressores. Esses jovens que entram para a Polícia não têm ainda um sistema cognitivo de certo ou errado, de medo ou de poder. Só que o treinamento que eles fazem é muito reativo, não é um treino para acolher as pessoas, mas é um treino de desumanização, onde eles vão aprender a abordar as pessoas de forma violenta, claro que para se proteger também.
Mas não existe acolhimento pós-trauma, por exemplo. Imagina um policial jovem que fica um ano na academia, circula por dois anos em vários batalhões como praça até ficar fixo e, nesses três anos de experiência, ele trabalha com violência doméstica, com morte, com suicídio e ele não têm um acolhimento após tudo isso, não é atendido por um psicólogo!
Então, para mim, a importância de estar próxima desse grupo é entender a vulnerabilidade deles. E aí recorro de novo ao Mbembe, que diz que nosso corpo está cheio de gavetas, que não é a expressão exata dele, mas em algumas dessas gavetas há vulnerabilidade, portanto não-colonialidade. Então é preciso acolher essas fragilidades.
Mas não se trata de empatia por uma pessoa cis branca, porque eu não sei como é a dor dela. Muitas vezes a maior dor de um homem cis branco entre 20 e 25 anos é não ter um carro, enquanto para uma mulher trans entre 18 e 20 anos o maior problema é o abandono familiar.
Dialogar com esse grupo não me faz igual a eles, nem faz com que eu ache que vá mudá-los, mas é entender que eles existem. Esse é um grupo que é suicidado e o maior número de praças que está no estado de São Paulo é de negros, então também sofre racismo e o cerne do meu trabalho é dialogar com quem pensa diferente de mim.

ARTE!✱ – E você tem relato de mudanças de comportamento com eles?
Lia D Castro – Tenho sim. Consegui, por exemplo, junto a um capitão, mudar um batalhão inteiro, que tem cinco ou seis companhias. Foi um movimento porque a polícia estava muito hostil comigo, com as pessoas trans. Então iniciei um diálogo por e-mail e fui ao batalhão. Eu comento muito com minhas amigas que quando a gente vai no SUS e sofre preconceito, a gente vai na Ouvidoria. Por que não fazer isso com a PM? Afinal, eles são prestadores de serviço.
Um cliente meu, que é tenente, que me disse que eu podia ir a um batalhão e conversar. Então, com 30 e pouco anos aprendi que eu podia ir dialogar e fui lá querer saber sobre o treinamento deles, como era o letramento e até como eles entendem, cientificamente, o que é uma pessoa trans. Porque se eles acham que é um homem que virou mulher, isso já é o maior desrespeito.
Eu lembro que no governo Dória tinha um treinamento que era perguntar como a pessoa queria ser tratada. Mas isso não é o ideal, porque apaga a identidade visual. E como se pode identificar, então? Pedindo o documento. Se o documento causa dúvida, tem que perguntar se a pessoa quer ser chamada por aquele nome. O importante é reconhecer que mulher transexual é afirmação de gênero. A gente não quer confundir gênero, é para olhar e reconhecer.
E o capitão foi muito correto, porque ele disse que tudo que eu achasse que fosse importante, eu deveria passar a ele para ser repassado para tropa. E foi um movimento de manada. Chacoalhou o bairro inteiro e percebi que mudou o comportamento. Claro que alguns não mudaram, mas aí já não era falta de informação, porque o cara é transfóbico. E aí, a gente pode denunciar. Porque a corporação em si não é transfóbica e racista, mas tem elementos que são.
Graças ao diálogo, eu percebi mudanças generalizadas. E tenho certeza de que não estou viajando na maionese, porque não sou de passar pano, como você bem sabe.
ARTE!✱ – Foi assim aqui na Praia Grande?
Lia D Castro – Claro. Logo que eu cheguei, peguei meu cachorro e fui lá no batalhão e perguntei quem era o coronel e aí perguntei a ele como eles lidam com pessoas trans. Essa é minha estratégia de segurança: em todo lugar que eu chego, eu me apresento. Eu sempre quero saber se eles estão preparados para acolher pessoas como eu, o mínimo é o respeito. E não vejo nenhum problema da parte deles.
ARTE!✱ – Isso também tem a ver com própria ideia do seminário que não é ser contra alguém, mas produzir diálogo. Estamos em um momento da sociedade que estamos todos divididos e em suas bolhas…
Lia D Castro – Então, eu vou na bolha da oposição. Eu não tinha esse lugar de pertencimento, e o batalhão não era um lugar que se podia entrar, mas eu converso muito com esses coronéis, esses capitães e digo se a gente não tivesse conversado, se ficasse em uma relação de ódio, daria muito errado. ✱