Instalação de Elisa Bracher, com varais de ferro dos quais pendem seus desenhos. Foto: Eduardo Simões
Vinte e cinco anos após realizar sua primeira individual na Pinacoteca de São Paulo, Elisa Bracher cria um diálogo com o espaço expositivo, marca de sua obra, por meio de três instalações, de madeira, papel e chumbo, que constituem a mostra Formas vivas, em cartaz na Pina Estação. Com curadoria de Pollyana Quintella, Elisa retoma outros aspectos caros à sua produção, nomeadamente as questões de peso, equilíbrio e composição.
Em seu texto curatorial, Pollyanna destaca “a capacidade [de Elisa] de se engajar intimamente com os materiais e suas qualidades. Depois, seu modo de lidar com o próprio corpo da instituição como matéria de trabalho. Para Bracher, não há obra antes do espaço, só há obra a partir do espaço, em resposta a ele”, escreve. A artista corrobora a visão da curadora: “Toda exposição que eu faço é muito moldada e determinada pelo espaço. Fico trabalhando no ateliê, mas preciso, na finalização, me relacionar com o ambiente, criar diálogos possíveis”, afirma, em entrevista à arte!brasileiros.
Alguns dos trabalhos em exibição, feitos especialmente para Formas vivas, vieram, por sua vez, de investigações artísticas que Elisa já fizera em seu ateliê, na Vila Leopoldina, em São Paulo. Novo corpo, uma instalação com madeira e pedra, por exemplo, partiu de uma experiência exibida no ano passado na Galeria Estação, na mostra Terra de ninguém. O trabalho inédito, no entanto, tem dimensões expressivamente maiores. E a elas foram acrescentadas fotografias em preto e branco, superposições da densa vegetação da Serra da Mantiqueira, feitas por Elisa em São Bento do Sapucaí, no interior do estado.
“As fotografias criam um contraponto com a instalação, remetem a um antes e um depois, à madeira e à questão de onde ela vem e o que ela vira”, comenta Elisa, lembrando que mostrara fotografias de sua autoria somente uma vez em sua carreira, quando lançou em 2008 o livro e exposição A cidade e suas margens, no Museu da Casa Brasileira.
Na instalação, Elisa usa madeiras de demolição, compradas ou recolhidas em fazendas antigas do interior de São Paulo, misturadas a pedaços de antigos trabalhos, num processo de acumulação iniciado desde o começo de sua trajetória. As pedras são também sobras de obras anteriores e haviam sido compradas em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Nesse longo processo de acumulação, os materiais ficam no ateliê de Elisa, até que surjam conexões como as que vemos agora na Pina Estação. Para a artista, ainda que remeta a um processo destruidor e violento, Novo corpo “mostra que há composições possíveis, é um trabalho otimista, eu diria”.
Noutra sala, Elisa exibe um varal de barras de ferro – a estrutura foi levada do ateliê para o espaço expositivo – de onde pendem, para secagem, desenhos que nunca haviam sido mostrados daquele jeito, formando um “corpo escultural”, como descreve comunicado de imprensa da Pina. Nos desenhos, há uma mescla bastante orgânica de contornos e áreas preenchidas, em tons vermelhos, amarelos e negros. Como contraponto, a artista apresenta dois vídeos que aludem aos desenhos, e em que se observa um fluxo de líquidos dentro de uma tripa, encapsulada por um vidro.
“O filme nasceu há cerca de oito anos, dos desenhos, numa tentativa de materializá-los, como se a materialidade própria deles já não fosse suficiente para mim”, conta Elisa. O vidro, explica ela, havia sido descartado de outra série de trabalhos. Por sua vez, as tripas, de boi, foram compradas há cerca de 20 anos, no Mercado de Pinheiros. “Juntei, repentinamente, as ideias. Chamei um amigo para filmar, para termos enfim um produto, e não somente uma prática de ateliê”, explica. A própria Elisa impulsionou no recipiente uma mistura de pigmento e óleo dentro da tripa, e, fora dela, uma combinação com óleo, novamente, e ainda uma tinta branca e água, “para criar esses elementos que não conversam entre si”.
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Elisa Bracher, instalação com folhas de chumbo, exibidas na mostra "Formas vivas", na Pina Estação. Foto: Christina Ruffato
Elisa Bracher, instalação com varais de ferro e desenhos, exibidos na mostra "Formas vivas", na Pina Estação. Foto: Christina Ruffato
Elisa Bracher, vídeo presente na exposição "Formas vivas", na Pina Estação. Foto: Christina Ruffato
Elisa Bracher, instalação "Novo Corpo", em exibição na mostra "Formas vivas", na Estação Pina. Foto: Christina Ruffato
Elisa Bracher, instalação "Novo Corpo", em exibição na mostra "Formas vivas", na Estação Pina. Foto: Christina Ruffato
Na terceira sala expositiva da Pina Estação, Elisa explorou a maleabilidade de folhas de chumbo, sustentadas por cabos de aço. Primeiramente, ela abriu os rolos e foi batendo com um martelo de borracha. Depois, as folhas foram novamente novamente enroladas para poderem ser levadas aos andaimes.
“Mudamos diversas vezes a composição, até chegar ao resultado agora apresentado”, conta a artista. “Vieram à tona questões como a espessura das folhas, se elas seriam penduradas ou não, como deformá-las, enfim, um diálogo que eu adoro fazer, porque gosto de trabalhar com a indústria. Na concepção da expografia, estamos, em uma conversa, a sala de exposição, a indústria e eu, discutindo até chegar a uma solução satisfatória desse trabalho que é coletivo”.
SERVIÇO Formas vivas, de Elisa Bracher
Curadoria: Pollyana Quintella
Até 17/09
Pina Estação – Largo General Osório, 66, São Paulo – SP
Visitação: de quarta a segunda-feira, das 10h às 18h
Entrada gratuita
Regina Parra, "Deserto-pano de cena" (2022-2023), obra da exposição "Pagã", na Pina Estacão. Foto: Christina Ruffato
Em cartaz no segundo andar da Pina Estação, a mostra Pagã, de Regina Parra, é multirreferencial como a própria artista, que, de 2000 a 2003, foi assistente de direção de Antunes Filho (1929-2019), uma das figuras mais importantes na história da dramaturgia brasileira, antes de iniciar sua trajetória nas artes visuais. Para materializar em pintura, escultura, neon, vídeo e performances a ideia da jornada de autodescoberta de uma mulher, ela partiu de um lastro literário – A paixão segundo G.H., romance de 1964 de Clarice Lispector – e de outro, imagético, nomeadamente a Vila dos Mistérios, soterrada pelas cinzas do vulcão Vesúvio, em Pompeia, no século 2 a. C. Na exposição, Regina Parra mescla artes plásticas e cênicas.
Na Vila dos Mistérios, fonte de inspiração constante de Regina no universo da mitologia greco-romana, há uma série de afrescos que “contam a história de uma jovem que ultrapassa o portal dos sátiros e se oferece a Dionísio, deus do teatro, do vinho, da fertilidade, da natureza”, segundo descrição da curadora Ana Maria Maia, no catálogo da mostra. “O caminho dessa jovem envolve descer ao nível animal, literalmente cair ao chão […], deseducando-se do repertório até então adquirido. Só depois disso ela estará apta a voltar à forma humana e renascer como bacante”, escreve a curadora.
Partindo do arquétipo dessa jovem, Regina, cuja obra The sinful (2022) foi capa da edição 61 da arte!brasileiros, criou a personagem Pagã, que dá nome à exposição. E o resultado de sua inquietante investigação artística é uma síntese de teatro e artes plásticas, dividida em nove cenas, que não necessariamente obedecem a um percurso expositivo engessado, propondo, antes, uma circulação labiríntica, numa alusão também ao mito de Ariadne, a princesa de Creta que ajuda o herói ateniense Teseu a escapar do Minotauro, uma criatura parte homem, parte touro que habita uma construção de caminhos intrincados, para a proteção da população.
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Regina Parra, "Pagã I, II e III" (2021-2022). Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "O gosto do vivo" (2023). Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "Sátiro I e II" (2022). Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "O chamado" (2023). Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "Daemon" (2022). Foto: Christina Ruffato
Regina Parra, "Adereços-próteses-vestíveis" (2023). Foto: Christina Ruffato
A GÊNESE DO PROJETO
Pagã não nasceu de uma proposta da própria Pinacoteca de São Paulo a Regina Parra. Sua gênese se deu ao longo de alguns anos. A artista conta que, logo após a morte de Antunes, em 2019, ela fez um “exercício de olhar para trás”, pensando no “grande mestre” que ele havia sido para ela, e percebeu que muito de seus processos criativos vinham dessa experiência no teatro. Algo que, no entanto, ela não “abraçava ou assumia” para si mesma.
Em 2018, Regina havia iniciado sequência de residências, todas em Nova York: naquele ano, com um prêmio da SP-Arte, fizera a Residency Unlimited, no Brooklyn; depois, no Annex_b, em 2019; e, por fim, no The Watermill Center Residency Program, Watermill, em 2020. Em tempo: essa última residência acontece num laboratório interdisciplinar fundado em 1992 pelo diretor norte-americano Robert Wilson, nome de relevo no teatro experimental mundial.
“Fui para essa terceira residência com o objetivo de resgatar esse lado teatral que estava debaixo do tapete e de integrar mais tudo o que eu fazia”, conta Regina. “Após a morte de Antunes, em 2019, fiz um exercício de olhar para trás, pensando no grande mestre que ele havia sido, e percebi que muito de meus processos criativos vinham dessa experiência. Algo que, no entanto, eu não abraçava, não assumia”.
Em 2021, terminada a sua passagem por Watermill, Regina emendou outra residência, dessa vez na Monira Foundation, em Nova Jersey. À época, Regina fez algumas das primeiras pinturas que vemos agora em sua mostra: as dos sátiros e o tríptico da Pagã. Também já estava esboçando uma maneira de levar aquelas criações para um espaço, deslocando-as de paredes. Fez maquetes e experiências com cerâmica, “tentando entender o que seria aquele projeto”. Naquele período, leu também A paixão segundo G.H.
De início, fez breves anotações, mas, ao avançar na leitura, o livro passou a “repercutir com muita força” junto às suas ideias. Ao terminar o romance, Regina decidiu que o projeto também deveria ser estruturado a partir do livro, mas não como uma representação do texto em forma de exposição, e sim a narrativa da jornada de uma mulher, como Clarice fizera em seu texto, uma personagem que mergulha “na vida e na sua materialidade a partir do contato com uma barata”, diz.
De volta ao Brasil no começo de 2022, Regina apresentou seu projeto de uma “peça de teatro desmembrada” a Ana Maria Maia, sua ex-colega de mestrado, e a Jochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca. Ambos abraçaram as propostas, materializadas agora na mostra, cuja expografia é também um elemento-chave em sua concepção.
“No meu ateliê, as coisas acontecem justamente de maneira integrada. Nunca houve separação entre as referências”, conta. “Mas, no momento de se levar os resultados a uma exposição, acontecia algo de que não gosto: a pintura se limitava a um quadro pendurado na parede, num clima de reverência que me incomodava. Entendi que queria mudar tudo isso em termos do ambiente que abriga as obras, daí a ideia de peça desmembrada”.
Pagã traz trechos de A paixão segundo G.H. que não “aparecem como literatura, mas um pouco como as falas de um personagem”, explica Regina. A exposição é então dividida em cenas: em Prelúdio, uma primeira passagem do romance de Clarice: “Era uma mulher que vivia bem”; em seguida, no Chamado, a personagem, “abandonando sua vida”, põe-se “calmamente de quatro”, e inicia sua jornada, protegida pelos sátiros, “por uma sabedoria da carne”, como indica o subtítulo da mostra.
Seguem-se, então, outras oito cenas: Horas de perdição; Segredo; Minotaura; O canto da cabra; Deserto; Se eu der o grito de alarme de estar viva, em mudez e dureza me arrastarão; Mistério e O gosto do vivo ou a visão de uma carne infinita. As cenas apresentadas por meio de instalações sonoras, neons, manequins, pinturas, vídeos. Para ressaltar o caráter teatral, Regina criou peças de cerâmica, intituladas Adereços-próteses-vestíveis, a serem vestidos pelos visitantes.
“A ideia é que o público possa usá-los enquanto visitam a exposição”, explica Regina. “Um deles é uma espécie de chifre, que se veste pelo pescoço; tem ainda um colete, um rabo, e uma pata, para ser colocada sobre o pé. São peças pesadas de propósito, e não encaixam muito bem no corpo, para não serem meros enfeites. Elas trazem a ideia de que, no teatro, você tem a oportunidade de se livrar de si mesmo e ser uma coisa coisa ou pessoa. O adereço muda seu modo de andar e sua postura, muda a nossa maneira de estar no mundo”.
TRAJETÓRIA
Nascida em 1984, em São Paulo, Regina Parra iniciou sua trajetória profissional nas artes cênicas, no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), tornando-se posteriormente assistente de direção de Antunes Filho. Em seguida, formou-se em Belas Artes, na Faap, e fez um mestrado em História da Arte, na Faculdade Santa Marcelina (FASM), tendo como orientadora a curadora e crítica Lisette Lagnado.
Desde o início de sua carreira em artes visuais, Regina atuou de modo interdisciplinar, trabalhando com suportes diversos: fotografia, vídeo, performances, pintura e instalação. Imigração e feminilidade são alguns dos temas sobre os quais se debruça. Assim como em Pagã, o corpo feminino é recorrente em suas criações, a exemplo das séries Libidinosa (2018) e A Perigosa (2019), parte da exposição Bacante (2019), apresentada na Galeria Millan, em São Paulo.
Fez suas primeiras exposições individuais ainda nos anos 2000, mas acelerou sua produção na década seguinte, com uma sequência prolífica de mostras, entre elas Eu me levanto, na Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA). Fora do Brasil, participou de coletivas na Argentina, Espanha, Itália, Suíça, em Portugal e nos Estados Unidos. No ano passado, estreou no circuito de feiras internacionais, com a galeria Jaqueline Martins, na Paris Internationale. Suas obras estão presentes em acervos nacionais relevantes, de instituições como o Masp, a Fundação Joaquim Nabuco, a Associação Cultural Videobrasil e a própria Pinacoteca de São Paulo, entre outras.
Regina acabou de lançar seu livro de artista Eis-me aqui, pela Familia Editions, vai apresentar uma nova sessão de performances ligadas a Pagã na Pina Estação, no dia 3 de junho e, no mês seguinte, parte para mais uma residência, de dois meses, no Maine, Estados Unidos. Prolífica, ela está também começando uma pesquisa para um projeto em parceria com a artista Ana Mazzei, chamado Histórias exemplares da carne. “Ainda estamos numa fase bem inicial do projeto, e a residência vai ser um momento para experimentar as primeiras ideias”, conclui.
Capa do livro de artista de Regina Parra, “Eis-me aqui” (Familia Editions, 2022)
SERVIÇO Pagã, de Regina Parra
Curadoria: Ana Maria Maia
Até 13/08
Pina Estação – Largo General Osório, 66, São Paulo – SP
Visitação: de quarta a segunda-feira, das 10h às 18h
Entrada gratuita
Vista da exposição "Terceiro Ato: Sortilégio" em Inhotim, com obras de Abdias Nascimento. Foto: Tiago Nunes
A relação de Abdias Nascimento com a pintura, forma de expressão que adota de maneira mais intensa a partir de 1968 e durante os 13 anos em que viveu no exílio, constitui o núcleo central do terceiro ato do ciclo organizado por Inhotim em torno dele no biênio 2021-2023. Com mais de 180 obras e documentos, a mostra, inaugurada no último dia 18 de março, traz a público a potência da expressão plástica de Abdias, explicita conexões pessoais e poéticas com diferentes interlocutores no Brasil, Estados Unidos e África e reafirma sua permanente valorização da cultura negra como forma de luta. Essa teia que amarra militância e expressão se apropria de uma ampla gama de referências associadas a crenças, símbolos e ideogramas de matriz africana, com especial interesse pelos orixás, tema frequente de suas telas.
“Sortilégio”, título escolhido para a exposição, deriva de uma peça homônima escrita por Nascimento em 1951 e retida pela censura até 1957, cuja trama trata de racismo e apropriação cultural, elaborando uma série de discussões em torno do Candomblé. O texto indica o processo por meio do qual Abdias inverte a visão preconceituosa em relação à crença, passando a usar esses elementos de grande potência identitária não mais como forma de exclusão, mas como arma de reafirmação cultural e de crítica ao mito da igualdade racial que grassava no Brasil. Para ele é como se os orixás estivessem vivos. São ao mesmo tempo cosmologia, psicologia, teologia, como afirma em texto de 1975 para uma exposição que realiza na Philadelphia (EUA). Representa-os em telas de intenso colorido e plenas de elementos iconográficos diversos – que vão das vestes e atributos associados a entidades a elementos do cotidiano como carros e a bandeira norte-americana. São como “os heróis e mártires da luta contra o racismo”, lembra Douglas de Freitas, curador de Inhotim e responsável pela realização desse grande mergulho no legado de Nascimento, em parceria com a equipe do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), organização criada em 1981, quando retorna do exílio, e que preserva seu acervo e missão.
Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e presidente do Ipeafro, relembra que as artes visuais não eram um campo novo na trajetória do ativista. Ele só começa a pintar na segunda metade da década de 1950, incentivado por Sebastião Januário, também presente com obras na exposição. Ainda em 1950 funda o Museu de Arte Negra, na esteira do trabalho que já vinha desenvolvendo no Teatro Experimental do Negro, e em 1960 lança o polêmico concurso em busca de uma representação de um Cristo negro. “Ele não considera jamais a arte pela arte. Não é só o cubo branco que ele desafia, ao buscar um conceito de arte que extrapola a condição museal”, alerta ela. E nesse contexto a teogonia afro-brasileira desempenha um papel fundamental.
“Um exu, filho de Oxum”, assim resume Douglas de Freitas para falar dessa intensa relação dele com os orixás e suas potências simbólicas, transformadoras e afirmativas. Como Exu, Abdias abre caminhos. Serve de guia para as ações antirracistas que ganharam grande reverberação nos últimos anos. Mas o faz sob o signo de Oxum, orixá do amor e da prosperidade, representado em uma das telas mais conhecidas de sua autoria. Para iluminar essa relação o próprio espaço expositivo é trabalhado para enfatizar essas referências, cromáticas e arquitetônicas, como a grande parede de intenso amarelo ao fundo.
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Abdias Nascimento, Exu Black Power n. 2 (Homenagem a Rubens Gerchman). Nova Iorque, EUA, 1969. Crédito: Museu de Arte Negra, Ipeafro.
Abdias Nascimento, Oxum em Êxtase. Búfalo, EUA, 1975. Crédito: Museu de Arte Negra, Ipeafro.
Abdias Nascimento, O Vale de Exu. Nova Iorque, EUA, 1969. Crédito: Museu de Arte Negra, Ipeafro.
“Sortilégio” reverbera no tempo e no espaço. Apresenta uma solução de continuidade em relação às outras exposições do ciclo: a primeira destacando sua relação com Tunga, artista de grande presença em Inhotim e cujo pai era grande amigo de Abdias; a segunda, mais documental, abordando as experiências do Teatro Experimental e do Museu do Negro; e a quarta, a ser aberta no próximo semestre, que realizará um apanhado da trajetória do político, ativista e pensador panafricanista. Mas também se espraia em outras iniciativas implementadas pela instituição mineira, reverberando diretamente em iniciativas como as mostras “O Mundo é o Teatro do Homem” e “Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro”, em cartaz até julho.
Culturas indígenas, Harald Schultz, Endandae ctemodit ium volenem rem quid ulparup tatur, quiamusam simus reperum
O fotógrafo Harald Schultz surgiu em um tempo em que o universo indígena não era totalmente revelado. Quase todo o saber sobre a cultura dos povos originários era transmitido por etnólogos, antropólogos e sertanistas “credenciados”. Schultz tinha profissão dupla, era etnólogo e fotógrafo, o que facilitou bastante o seu ir e vir entre a Universidade de São Paulo (USP) e o trabalho de campo nas aldeias. Hoje, o processo decolonial mudou o panorama, e indígenas de várias tribos brasileiras frequentam universidades, fazem filmes, vídeos, escrevem livros, e qualquer um deles tem também seu lugar de fala. Em resumo, eles são os porta-vozes deles mesmos.
Dentro do contexto de divulgar trabalhos e pesquisas essenciais, o Sesc Ipiranga lança o livro Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, organizado pela conservadora Ana Carolina Delgado Vieira e pela museóloga Marília Xavier Cury, que mantiveram conversa com os indígenas Gerolino José Cezar (terena) e Dirce Jorge (kaingang).
O livro chega em meio às discussões sobre a preservação da cultura indígena pelos museus não dirigidos por eles e ainda em confronto com a dúvida se coleções de fotografias sobre indígenas têm que ter a curadoria de um deles. A publicação reúne vários textos de Harald Schultz em seu campo ampliado de pesquisa, dando visibilidade a um universo expandido. As imagens trazem traços das imagens-pensamento, resultado da formação dele e de suas aulas de fotografia ministradas na USP.
Uma de suas contribuições para a fotografia no Brasil nasce das reflexões sobre os estudos das linguagens fotográficas e seus aspectos técnicos. Nessa perspectiva de inovação, ele acompanhou de perto as transformações singulares da fotografia dos anos 1960 e as transmitia aos alunos com o objetivo de formar uma nova geração de profissionais.
Seu trabalho relevante foi desenvolvido em aldeias com o objetivo de contribuir para a preservação das culturas de matrizes indígenas. Em alguns locais, Schultz chegou a coletar cerca de sete mil artefatos de vários usos, além de filmes e fotografias que captam o cotidiano das aldeias, que hoje fazem parte do arquivo de campo do MAE-USP (Museu de Arqueologia da USP). A coleção de Schultz, sob a guarda do museu, soma mais de mil diapositivos (slides) entre os anos de 1942 e 1965. Ele sempre explorou os elementos presentes naquele universo, indistintamente das afinidades adquiridas nas constantes visitas.
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Homem Makú
Harald Schultz e Vilma Chiara
acote com dardos
Vilma Chiara com os Aruanãs
A exposição do acervo do fotógrafo abre capítulos sobre museus e preservação de coleções indígenas. Considerado um fotógrafo importante na época, algumas de suas fotos são provas das técnicas inovadoras, cuja experiência perceptiva define-se na sobreposição de imagens e no uso de filtros e lentes especiais, um recurso novo naquele tempo.
Culturas Indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz, além de divulgar e fortalecer sua obra, também provoca reflexões sobre vários aspectos que envolvem os objetos coletados. Dividida em quatro partes, a primeira foca a trajetória do fotógrafo-etnólogo com alguns dados biográficos mais relevantes. Já a segunda coloca luz nas questões museológicas e reflete como introduzir políticas que respeitem os direitos de inclusão dos povos originários.
A terceira toca no tema dos estudos relacionados a coleções depositadas em museus, enquanto a última aborda a iconografia de 12 etnias contactadas por Schultz, além de uma coleção singular de fotografias dos objetos encontrados. O livro traz forte contribuição para o resgate do trabalho desenvolvido por Harald Schultz, tanto como fotógrafo quanto como etnólogo, além de abrir portas para outros estudos complementares. ✱
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
José Antonio da Silva Sem título, 1979. Óleo sobre tela
Por Theo Monteiro
Objeto da exposição Duas poéticas, na Galeria Estação, em que sua produção foi colocada em diálogo com a da pintora contemporânea Cristina Canale, José Antônio da Silva, em que pesem rótulos como “primitivo”, “naïf” e “ingênuo”, produziu obra de grande complexidade e que pode oferecer importantes chaves de leitura para que se compreenda um grande momento de virada na história do Brasil, tanto em termos socioambientais, quanto em termos artísticos e formais.
Para compreender melhor a obra desse singular pintor, é importante entender sua origem na cultura caipira. Nascido em 1909, em Sales de Oliveira, noroeste paulista, pertencia a uma família de trabalhadores rurais. Sem posses, os mesmos viviam se mudando de fazenda em fazenda, oferecendo sua força de trabalho para os latifundiários da região. Essa era a realidade de muitas famílias caipiras desse período. Conforme mostrou Antonio Candido em Parceiros do Rio Bonito, amplo estudo que realizou sobre a cultura caipira, a mesma foi formada ao longo do período colonial por sertanistas errantes que se estabeleceram em regiões remotas do sertão paulista. Vivendo em pequenos povoados ou ranchos, baseavam-se na agricultura de subsistência e caça/coleta. Com a expansão do latifúndio ao longo dos séculos 19 e 20, os mesmos foram gradualmente perdendo seu modo de vida e sendo subjugados ao trabalho nessas grandes propriedades. Assim, sua cultura foi progressivamente desaparecendo. Não apenas isso. A paisagem, antes marcada pela presença de florestas, cerrados e agriculturas de pequena escala, foi cedendo espaço para a monocultura e os rebanhos de gado.
José Antonio da Silva, Sem título, 1966. Óleo sobre tela.
A obra de José Antônio da Silva mostra exatamente essa mudança social e paisagística do interior do estado. A começar que suas pinturas nunca retratam uma natureza selvagem ou intocada. Por mais que a figura humana esteja por vezes ausente, sempre existe algum indicativo de ação antrópica: estradas, plantações, animais de criação etc. Em suas paisagens de monoculturas (algodoais, milharais, pastagens) estão representados sinais de devastação, como árvores mortas, caídas ou tocos de madeira. A presença de boiadas passando, pessoas se locomovendo ou trabalhando indica que nada ali está parado: tudo se move e se transforma o tempo todo, inclusive a vegetação, que foi recentemente alterada e teve sua configuração original destruída. Urubus são igualmente frequentes nas pinturas do artista, como se representassem a morte, que espreita a tudo e a todos. O artista nos narra, portanto, a transformação do campo brasileiro e a desagregação de um tipo de cultura nele existente.
A contribuição de Silva, contudo, não se restringe a um retrato social. Na história da arte brasileira, sua aparição e carreira se dão justamente em meio a um momento de profunda transformação. “Descoberto” pela crítica em 1946, presencia um momento em que o sistema da arte brasileiro começa a se institucionalizar: surgem os primeiros museus de arte moderna em São Paulo e no Rio de Janeiro, é criada a Bienal Internacional de São Paulo e se desenvolve um crescente mercado voltado para a arte moderna. Junto a essas transformações, desenvolvem-se no país as tendências de arte abstrata, que terminam por entrar em rota de colisão com a arte figurativa até então vigente, de viés expressionista e com temática voltada para o social.
Silva estabeleceu interessantes diálogos com esse debate estético vigente na arte brasileira desse período. Em um momento no qual o mundo vivia uma espécie de “ressaca” do pós-guerra, a temática socialmente engajada ganhou muito terreno no campo das artes e da cultura, influenciada por certo expressionismo, e que teve em artistas como Portinari e Goeldi importantes representantes. Grande defensor desse tipo de estética era o crítico Lourival Gomes Machado, que, não por acaso, tinha relação muito próxima com nosso Silva. Ainda que de maneira muito singular, o tom de denúncia social aparece com certa frequência na obra do pintor em questão. Cenas de trabalho, cotidiano e mesmo momentos de sofrimento e tragédia são recorrentes em suas pinturas, em geral com grande expressividade. A própria destruição da natureza pela monocultura é criticada nesses trabalhos, antecipando o debate ambiental em algumas décadas. Como forma de obter a expressividade e dramaticidade necessárias para suas composições, recorre a modelos da arte sacra, possivelmente oriundos de um determinado catolicismo popular. Algumas posições e estruturas compositivas são muito semelhantes, por exemplo, a pinturas de ex-votos. A própria arte sacra era tema também de nosso artista, e ele conta em depoimento que só teria começado a pintar depois de perceber que as imagens que via nas igrejas “eram feitas por mãos de pessoas”.
José Antonio da Silva, Sem título, 1955. Óleo sobre tela
Num segundo momento, o tema não perde a importância, mas Silva vai reduzindo os elementos pictóricos a pontos, pinceladas ou manchas serializadas, de modo a criar composições extremamente dinâmicas. Tal procedimento guarda muita semelhança com momentos da abstração geométrica (embora o mesmo jamais tenha abandonado por completo a figuração) e chegou a receber elogios de um dos principais representantes do concretismo, Waldemar Cordeiro. Essas escolhas pictóricas levaram ao rompimento de Silva com Gomes Machado, mas coincidem com sua aproximação com o crítico Theon Spanudis, defensor de uma arte construtiva bastante particular.
Ainda que lido como um ingênuo fora de seu tempo, Silva compreendeu perfeitamente não apenas sua época e as tendências nela discutidas, como trouxe uma contribuição absolutamente original para a mesma. ✱
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas
Tabatinga, no litoral sul do Estado da Paraíba, Brasil, preserva a bela toponímia de origem indígena que significa argila branca. Imagem de arenito com matriz de caulim e migração de ferro das suas falésias vivas
Na Paraíba, um espetáculo geológico revela-se fascinante com as argilas coloridas que afloram no litoral. Nascidas com texturas especiais e jogos tonais, as cores vão de um vermelho intenso, passando por amarelos, azuis, rosas. Elas seduzem. As falésias brasileiras deixam os estrangeiros extasiados, porque em alguns países, como a Inglaterra, elas são totalmente cinza, pela presença do chumbo. Definitivamente, o Brasil é colorido desde suas entranhas.
O território brasileiro tem grande reserva de utopias, e o paraibano abrange visões heterogêneas de saberes geológicos, artísticos e institucionais. Marlene Costa de Almeida, artista plástica e pesquisadora, conviveu com essa paisagem desde criança e nunca se cansou de admirá-la. Ao contrário, quando já formada em filosofia decidiu dedicar-se ao estudo e à pesquisa das argilas que afloram nas falésias vivas no leste do estado, e que o mar vai dragando muito lentamente. O Cabo Branco, o ponto mais setentrional do Brasil, já perdeu de 20 a 30 quilômetros desses paredões durante milhões de anos. Com ventos, sol a pino, calor excessivo e até chuviscos, Marlene já caminhou por vales, planícies, morros e até mesmo em beiras de estradas, sempre na busca de uma nova cor, do tom impossível, de um novo estudo sobre o território escolhido.
Seu trabalho pode ser entendido como sistemas provisórios que se transformam a cada expedição a campo. A artista plástica/pesquisadora começou atuando diretamente no litoral paraibano, na chamada Formação Barreiras, depósito sedimentar mais importante de sua pesquisa. “Com o passar do tempo, meu trabalho expandiu-se para o interior e depois para outros estados brasileiros”. Muitas áreas foram visitadas com a sua equipe, composta por José Rufino, geólogo e artista plástico (filho de Marlene) e por Antonio Augusto de Almeida, engenheiro, ex-professor de geologia na Escola Técnica (seu marido). Com esse grupo afinado ela vem pesquisando dezenas de locais, guiada pela riqueza policrômica de falésias coloridas que formam a unidade geológica que se estende desde o estado do Pará até o Rio de Janeiro. Sobre ela estão assentadas, entre outras cidades, João Pessoa, Olinda, Natal.
À maneira de um diário de viagem, Marlene, aos 80 anos, continua em campo, estudando cada vez mais e muito tranquila. Parece seguir a Internacional Situacionista, movimento de crítica social, cultural e política de esquerda, ativo na década de 1960, que aconselha seus adeptos a produzirem coisas que lhes deem prazer e não as que podem escravizá-los. Suas férias e as de José Rufino, muitas vezes, foram passadas nas expedições que resultaram em obras que problematizam a natureza e a condição física dos materiais encontrados. “Meu trabalho envolve geologia, química, cartografia porque, para se chegar a um resultado positivo, é preciso conhecer não só profundamente os materiais, mas também saber como devem ser manipulados, afinal cada um tem as suas especificidades”. Todo elemento coletado é classificado, manipulado e guardado em pequenos vidros em seu ateliê em João Pessoa que logo fará parte do museu Terras Brasileiras, que está sendo idealizado. Essa longa pesquisa conta com o apoio da Universidade Federal da Paraíba e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), e, ainda neste ano, será transformada em livro.
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Chaminés-de-fada geradas por erosão nos sedimentos das falésias do litoral sul da Paraíba
Minha terra, 2020-2021. Pigmentos, resinas e fibras naturais
Em seu ateliê, Marlene faz uma série de pinturas, algumas registram terras em erosão e vegetações locais, que se transformam em paisagens leves, mas críticas. Tais registros nascem a partir de um fluxo de imagens que mudam a partir de outras, até mesmo de galhos e folhagens presentes no ateliê. Nas esculturas seu trabalho diversifica-se, e vale citar a instalação Varas de sombra, composta de tubos de tecido de algodão cru, costurados e enchidos com argila. Como Marlene mesmo define, “essa instalação se reporta à primitiva forma de medir o tempo, com as sombras, modo anterior às clepsidras (relógio de água, um dos primeiros sistemas criados para medir o tempo) e às ampulhetas”. A areia colocada nos tubos fechados não escorrega pelas ampulhetas e alude a uma das vontades mais antigas do homem: parar o tempo. De caráter serialista, os tubos, que se repetem, podem ser produzidos com vários metros, o que impacta quando são instalados em grandes espaços, como aconteceu na Alemanha.
No campo da escultura há peças de grande porte realizadas com celulose e pigmentos naturais que ganham formas orgânicas. Uma série de placas de celulose circulares obtém protagonismo pela materialidade pictórica das densas camadas de pigmentos. Neste ano ela abriu uma galeria, o Escritório de Arte Costa e Almeida, localizada em Bananeiras, em um dos lugares históricos da cidade, onde ela nasceu, com uma exposição de seus últimos trabalhos. Sob o título Copaóba, reuniu obras de grandes dimensões com pinturas em têmpera. Ao visitar a mostra, o crítico Marcos Lontra escreveu: “Todas as paisagens construídas por Marlene têm por objetivo apresentar a cada um de nós a fisicalidade e a transcendência das terras do mundo e com isso dar sentido e beleza a esse sopro, a esse encantado e pequeno lapso de tempo que constitui a vida humana nesse planeta, nessa terra”.
Olhando pelo retrovisor, a artista não sabe precisar em que momento decidiu viver para essas empreitadas. “Não sei se eu estava no ateliê, olhando para uma tela em branco e pensei: eu não quero mais essas tintas, eu preciso ir a uma barreira buscar terra para fazer uma tinta especial. Ou se estava no Cabo Branco, onde vi uma terra linda e decidi levar para o ateliê e fazer uma tinta”. De qualquer maneira, o Cabo Branco, esse ponto mais setentrional do mapa brasileiro, é o marco afetivo de sua obra. Marlene não leu Lucy Lippard, a crítica de arte estadunidense, mas, como ela, enfatiza a necessidade de estabelecer relação singular com o entorno, para dar conta da imaginação geográfica.
O desejo insaciável de descobertas foi a força motriz para ampliar sua pesquisa, que ela só foi entender muito tempo depois. “Além de pesquisadora, esse trabalho me tornou colecionadora de terras”. Marlene fala do estudo das cores como algo muito amplo, e que começou com os filósofos da antiguidade. “Eles ao mesmo tempo estudavam medicina, farmácia, geologia, geografia. Esses cientistas anotavam não só uma cor no códice, mas também a receita de como prepará-la e, com o mesmo material, ainda registravam como fazer um remédio”. Essa mistura de ciência e cultura está no começo do estudo das cores que se move num campo muito vasto. “A química tem importância decisiva, porque temos que saber o que é o material e como aquele material se transforma”. Para ela a alquimia também tem seus encantos porque a ideia de transmutar as coisas, de transformá-las de um modo mais poético, é mágico. “Aristóteles falou das cores, assim como Vitrúvio, Plinio, o Velho, muito antes de Cristo. Para mim, a filosofia estrutura tudo na vida de uma pessoa.
Se hoje eu fosse recomeçar tudo, escolheria de novo a filosofia para poder ser artista e pesquisadora”. Marlene revela que sua estrutura ideológica também vem da filosofia. Ela sempre foi uma notória militante política de esquerda.
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Expedição Minas. A luminosidade da terra amarela de Pompéu, Minas
Gerais, Brasil.
Uma vista do atelier. Cantinho com pigmentos de cores variadas
A sabedoria ancestral dos indígenas é exaltada por ela ao lembrar que alguns povos originários trabalham com a argila onde estão assentados e nomeiam seu território pela cor do solo. “A argila da região de Tabatinga, que é um nome indígena, quer dizer terra branca. A de Tauá significa terra colorida e apresenta uma gama infinita de cores. Há muitos nomes de territórios decorrentes da coloração do solo”.
O museu que ela pretende criar em João Pessoa, com todos seus achados e estudos, será uma extensão do seu trabalho que agora se conecta com o resto do mundo. “Desde o início de minha pesquisa, contei com fontes maravilhosas. Hoje a internet potencializa ainda mais as minhas buscas”. Marlene cita grupos de estudos no Chile que fazem um estudo importante sobre as argilas. “Em Portugal também há pesquisadores com bons estudos de pigmentos. Atualmente temos a possibilidade de discutir o trabalho com um olhar muito mais amplo”.
Com todas as mudanças climáticas violentas, pergunto se as cores também foram modificadas nesses mais de 50 anos. “Não, porque 50 anos em geologia é um tempo muito curto. No início da década de 1980, na Chapada do Araripe, no Ceará, encontrei argilas verdes, muito difíceis de serem localizadas. Muito tempo depois voltei depois ao mesmo local e encontrei a mesma formação ainda com as argilas verdes que eu havia coletado 40 anos antes. O tempo geológico é lento, um tempo diferente”.
O ateliê de Marlene causa espanto a qualquer pessoa não familiarizada com a geologia e acostumada a pensar a terra com a cor marrom. Eu mesma conheci a coleção nos anos de 1980 e me impactei. Seu acervo de pigmentos colocados em frascos já passa dos milhares e ela não pretende parar. Cada vidro é uma janela para o mundo fascinante da geologia e da história da terra. As argilas que compõem a coleção foram formadas ao longo de milhões de anos pela ação do vento e das chuvas sobre as falésias e formações rochosas da Paraíba. Com o passar do tempo, os minerais presentes nas rochas foram se depositando na argila, conferindo a cada camada uma cor e textura únicas. Os gregos chamam de paradoxo o que nós chamamos de coisas que maravilham, os materiais coletados e classificados são, na maior parte, do Nordeste, mas há exemplares de argilas de todo o Brasil. O conjunto é fundamental não só pelo valor estético, mas pela fonte de conhecimento científico, uma vez que guardam em seu interior amostras únicas de argilas com tonalidades buscadas incessantemente, com muita pesquisa e paciência.
A ideia de Marlene é, futuramente, deixar esse material, que também tem caráter pedagógico, em algum espaço público, para ter finalidade mais coletiva. “Também para que as pessoas que o visitem, conheçam e imaginem uma terra. Uma terra diferente, para a gente olhar, sentir e, sobretudo amar, e assim estaremos livres para sonhar”. ✱
Na definição simples de “nação”, o Dicionário Houaiss fala em agrupamento político autônomo, que ocupa território com limites definidos, e cujos membros respeitam instituições compartidas (leis, constituição, governo). E, mais do que isso, que compartilha um mesmo idioma, raízes culturais, costumes, passado histórico.
No Brasil, estamos longe de poder ter uma definição de nação que alcance os indivíduos ou os cidadãos que nele convivem territorialmente. Para muitos, definitivamente, a ideia de nação está ligada à ideia de um patriotismo desenvolvido por uns, para si mesmos.
A nação dos brancos é fundamentalmente dos brancos, que acumularam dinheiro e poder baseados no capital predador. Tudo que veio à tona, nestes últimos meses – sobre as práticas do garimpo ilegal em comunidades indígenas, o ataque brutal às terras e aos rios amazônicos, assim como o resgate de inúmeros trabalhadores em condições análogas à escravidão, em fazendas agrícolas de várias regiões do país – desmente, definitivamente, que possamos definir o Brasil como nação.
É como se houvesse uma impossibilidade estrutural de nação. A Constituição Brasileira, que, por si só, também não seria uma salvaguarda dos cidadãos, é literalmente atirada ao fogo, e a realidade mostra o quão são frágeis as estruturas que a defendem.
Recorramos às palavras de Tadeu Chiarelli, no brilhante artigo desta edição O samba do branquelo doido (pág. 10): “Parte da classe média ‘branca’ brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina, como se fosse alemão, em São Paulo; como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que ‘deu certo’.
[…] Por essa necessidade de viver aqui, como se lá estivesse, é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o ‘nosso’ Marc Chagall; Portinari o ‘nosso’ Picasso, Fabio Assunção, ‘nosso’ Brad Pitt. A Avenida Paulista como a ‘nossa’ Quinta Avenida, e assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o ‘nosso’ Donald Trump.”
Por outro lado, aqueles entre nós que entendemos a necessidade de refundar a nação, pensando-a como inclusiva, desenvolvida e solidária, começamos por onde podemos.
A ideia de defender a criação de políticas públicas inclusivas, respeitosas ao outro, e a construção de ambientes capazes de proporcionar a liberdade, são comentados em texto de Fabio Cypriano, mostrando o quanto é possível fazer acenos a uma refundação dessas políticas no âmbito da cultura.
Alguns exemplos já estão acontecendo e, assim como Sandra Benites, curadora indígena, foi nomeada para a direção de artes visuais da Funarte, Ana Flávia Magalhães Pinto, professora da Universidade de Brasília, foi empossada como Diretora Geral do Arquivo Nacional. Trata-se da primeira mulher negra que assume o cargo de direção do órgão, em 185 anos. Um passo enorme no apoio à pesquisa, gestão e democratização de documentos e do acesso ao conhecimento.
Em São Paulo, a inauguração da Pinacoteca Contemporânea, um projeto desejado desde 2005, longe de meramente agregar mais um equipamento cultural à cidade, trouxe um ganho exponencial para sua cultura. Foi um sopro de ar, reconhecido por todos os presentes. Maria Hirszman conta, nesta edição, todos os detalhes do projeto.
O prédio, pensado como um museu aberto, ressignificou o Parque da Luz, no Bom Retiro, o mais antigo parque público do município, construído em 1825, e tombado pelo CONDEPHAAT em 1981. O novo espaço expositivo se coloca num diálogo amoroso com a Pinacoteca de São Paulo, a Pina Luz, propiciando um novo passeio para a cidade.
Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo desde 2017, ressaltou, em seu discurso de recepção aos convidados: “Como dizem os arquitetos Paula Zasnicoff e Carlos Alberto Maciel, responsáveis pelo projeto, o museu deve ser um ‘oásis’.
[…] A Pina Contemporânea não é apenas uma ampliação de área expositiva, mas a oferta de outras maneiras – contemporâneas – de contato do público com a arte e com a cultura. A biblioteca da Pinacoteca, uma das maiores especializadas em arte brasileira do país, está instalada ao nível do parque, com acesso direto para todas e todos.”
Na capa desta arte!brasileiros, os dragões do acreano Chico da Silva nos lembram que temos uma luta permanente a perseguir, e a arte nos ajuda nessa peleja. ✱
Jacob A. Chansley, o “viking” da invasão ao Capitólio, nos EUA, em 6 de janeiro de 2021.
O que ocorreu no dia 8 de janeiro deste ano na Praça dos Três Poderes, em Brasília – a ação em si e seus performers – já produziu várias reflexões, e estou certo de que muitas outras ainda serão realizadas. Afinal, aquele evento pode ser interpretado e adjetivado por vários pontos de vista que, mesmo somados, dificilmente darão a verdadeira dimensão do ocorrido.
O que se verificou no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal naquele dia pode (e deve) ser analisado em seu viés social e político como uma ação estratégica para criar condições para um novo golpe antidemocrático contra a sociedade brasileira, felizmente malogrado. Poder ser também um objeto de análises sociológicas e antropológicas, que busquem entender como e por que grupos aparentemente pacíficos da classe média brasileira – fundamentalmente “brancos” –, invadiram os Palácios da democracia do país como vândalos e como terroristas. [1]
Mas eu gostaria de atentar para aquele ocorrido por outra perspectiva. Gostaria de entendê-lo, e a seus atores, como um tipo de ópera bufa, uma paródia canhestra e cínica do que aconteceu em Washington, Estados Unidos, no dia 6 de janeiro de 2021, durante a invasão do Capitólio.
Homem travestido de ‘viking do Capitólio’, em Niterói (RJ), durante comemorações do 7 de Setembro, em 2021. Foto: Isabella Finholdt /Fotoarena/Folhapress
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Parte da classe média “branca” brasileira insiste em não se enxergar como integrante de uma sociedade definida por uma série de características e contradições, preferindo viver como se constituísse um grupo de exilados provenientes de outras sociedades e culturas. Vive no interior de Santa Catarina como se fosse alemão; em São Paulo, como se fosse italiano; em Goiás, como se vivesse no Texas. Mas o paraíso desse grupo tende a ser mesmo os Estados Unidos, a Flórida, Miami e Orlando – para seus integrantes, uma espécie de Brasil que “deu certo”.
Por essa necessidade de viver aqui como se lá estivesse é que essa classe acaba criando correspondentes locais ao que ela entende como sendo protótipos internacionais. Assim, Ismael Nery nunca é Ismael Nery. Para esse pessoal, Nery será sempre o “nosso” Marc Chagall; Portinari o “nosso” Picasso, Fabio Assunção, “nosso” Brad Pitt. A Avenida Paulista como a “nossa” Quinta Avenida, e, assim, até culminar na crença de que Jair Bolsonaro seria o “nosso” Donald Trump.
É neste sentido que o dia 8 de janeiro de 2023 foi o “nosso” 6 de janeiro de 2021; é neste sentido que a invasão dos palácios da Praça dos Três Poderes em Brasília, foi a “nossa” invasão do Capitólio.
Guardando a contundência de como a dimensão paródica daquele ato de 8 de janeiro de 2023 e entendendo tal dimensão como um drama, talvez possamos perceber que a conhecida frase proferida por Karl Marx pode assumir outros sentidos: se, para o filósofo alemão, a história acontece como tragédia e se repete como farsa, aqui na periferia, a farsa – e sua dimensão risível – é sempre trágica também, pois, afinal, a cópia – quando acompanhada da tentativa de apagamento simbólico do tempo e da história, (como veremos) – pode ser também profundamente dramática.
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Antes de entrar nas considerações sobre determinadas imagens da invasão propagadas pelas mídias, destaco alguns fatos ocorridos em janeiro de 2023 em Brasília para que não nos esqueçamos – e que fique bem gravado em nossas mentes – que aquilo tudo foi, em grande medida, um arremedo do ocorrido em Washington em 2021:
1 – O Capitólio – sede do Congresso norte-americano – foi concebido ainda no século 18 como um complexo de edifícios que, se por um lado faz referência a um passado greco-romano, ele se comporta como uma fortaleza, um bunker branco e inexpugnável. Já os palácios da Praça dos Três Poderes, criados no final dos anos 1950, embora tenham tido a arquitetura grega clássica como protótipo, comportam-se, antes de tudo, como locais vulneráveis, pensados a partir dos conceitos de acolhimento, integração e passagem.
2 – O Capitólio foi invadido e os palácios da Praça dos Três Poderes também. Porém, se o primeiro sofreu a invasão durante um dia de semana (sexta-feira), para tentar impedir a diplomação de John Biden (portanto, antes de ele assumir a presidência), os palácios brasileiros foram invadidos em um domingo à tarde, quando estavam vazios, alguns dias após Lula ter assumido a presidência.
3 – Donald Trump, antes da invasão do Capitólio, conclamou pública e pessoalmente seus correligionários a se dirigirem para aquela casa do Congresso, para rechaçar e impedir o ato que estava prestes a ocorrer. Jair Bolsonaro, por sua vez, sai do Brasil antes do término do seu mandato, parecendo ter delegado a seus apaniguados e sectários mais próximos o comando da operação do dia 8 de janeiro.
4 – Se após o pronunciamento de Donald Trump, seus partidários se dirigiram por livre e espontânea vontade rumo ao Capitólio, aqueles de Jair Bolsonaro foram conduzidos até a Esplanada dos Ministérios pela polícia local.
Assim, o que ocorreu em Washington tinha uma dimensão dramática, em grande parte orquestrada no calor da hora e da circunstância de um momento determinado da história norte-americana. Já o que ocorreu em Brasília, dois anos depois, foi um arremedo orquestrado para que o já ex-presidente Bolsonaro se tornasse o “nosso” Trump, um Trump de segunda ordem, é claro, mas tornado herói, o salvador da pátria.
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Obras de arte danificadas na invasão incluem telas de Di Cavalcanti, vasos centenários, o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808 e esculturas.
Foto: Valter Campanato Agência Brasil
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Uma figura que chamou a atenção durante a invasão do Capitólio foi um sujeito fantasiado de viking, pintado com as cores e as estrelas da bandeira norte-americana, como se estivesse pronto para a guerra. Por mais patético que aquele sujeito parecesse, algo em sua atitude precisa ser levado em consideração: fantasiado de viking, ele invocava – apenas para alguns norte-americanos, é claro – uma ascendência norte-europeia, um passado com um pé na origem etnográfica de alguns dos habitantes daquele país.
Pois nós também tivemos o “nosso” viking, surgido nas comemorações do 7 de setembro de 2021 em São Paulo, oito meses após o aparecimento do viking “original”, em Washington. Como uma espécie de prólogo do que ocorreria dois anos depois – ou como uma espécie de “abre-alas” de uma escola de samba que deu ruim –, nas comemorações bolsonaristas daquele dia 7 de setembro, o “nosso” viking refletia como um espelho distorcido o protótipo “deles”.
Porém, não podendo ser um viking, nem verdadeiro, e nem fake, (como o norte-americano), o viking canarinho optou por se transformar em um falso indígena. Um indígena com direito a pintura corporal verde e amarela, segurando uma placa com o nome do ex-deputado federal Daniel Silveira [2] e – pasmem! – um cocar branco, verde e amarelo nos moldes dos indígenas… apache! Sim dos apaches, aqueles dos bangue-bangues do cinema norte-americano.
Essa figura bizarra, o “nosso” viking – um falso indígena de pantomima –, ao encenar aquele episódio grotesco, simbolicamente anunciava o que viria a ocorrer na capital do país dois anos depois: o simulacro tupiniquim, a “nossa” invasão do Capitólio.
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É certo que o homem que destruiu o relógio do século XVII que D. João VI trouxe para o Brasil em 1808, realizou essa ação da mesma maneira que destruiu o móvel que sustentava a peça, a mesa e a cadeira que estavam ali por perto. No enredo de destruição geral que parecia governá-lo, nem o caráter precioso do relógio, tão raro, o fez parar ou o incentivou a destruí-lo especificamente. Não: ele acabava com tudo o que lhe aparecia à frente de forma “democrática”, nada parecia salvar-se de sua fúria.
No entanto, parece que existia naquele sujeito um vislumbre de consciência de que, de fato, aquele relógio não era – ou não deveria ser –, um objeto qualquer. E talvez tenha sido essa percepção que o levou a querer destruir a câmera de vigilância.
De qualquer maneira, ao arremessar o relógio de D. João VI ao chão, aquele homem buscou parar o tempo, transformando aquela invasão numa quebra, numa espécie de hiato.
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A galeria dos presidentes da República do Brasil foi brutalmente depredada.
Reprodução Internet
Se os invasores do Capitólio visavam impedir a diplomação de Biden, conquistando de novo o poder para seguir em frente, os “nossos” invasores tinham outra meta. O interesse ali não era dar continuidade ao processo histórico, invertendo seu rumo (como os invasores “deles”), o propósito era detê-lo. Era instituir um final, um grau zero para que, na sequência, a elite reacionária tomasse conta do país. Daí a importância simbólica do relógio que pertencera a D. João 6º.
Daí também a importância simbólica da destruição das peças da galeria de imagens dos presidentes e da presidenta que ornava uma área do Palácio do Planalto. Arruinar aquelas imagens complementava a alegoria em que se transformou aquela invasão: deter o tempo, mas, igualmente, romper e destruir a história, o passado brasileiro – sempre o maior desejo bolsonarista.
A questão não era destruir a imagem de todos os ex-presidentes e da presidenta, a questão era retirar, dessa espécie de cronologia iconográfica, a imagem do “mito”. Uma iconoclastia seletiva. A imagem do sujeito meio atônito, meio parvo, segurando a fotografia de Jair Bolsonaro em frente às outras imagens, destruídas, diz muito sobre o que desejava aquela turba quando invadiu os palácios de Brasília.
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Não me interessa expressar aqui meu lamento pelo vandalismo cometido contra as obras de Emiliano Di Cavalcanti e outros artistas tão significativos. Não me interessa porque não consegui perceber, nesses atos de ataque às obras de arte, nenhuma diferença com que os arruaceiros e arruaceiras do 8 de janeiro destruíram cadeiras, vitrines e outros equipamentos. Parece não ter havido, entre eles, a capacidade de distinguir um bem precioso e raro de outro mais trivial. O que parece ter imperado ali foi a fúria destrutiva, preservando apenas a imagem do “mito”.
Se os “nossos” vândalos destruíram objetos de arte e objetos comezinhos, se defecaram e urinaram nos palácios da democracia brasileira, os vândalos “deles” foram menos destruidores dos símbolos e, ao que se sabe, nem um pouco escatológicos. Não se trata aqui, é claro, de estabelecer uma hierarquia, afirmando que os manifestantes “deles” foram mais civilizados do que os nossos. Trata-se apenas de chamar a atenção para o fato de que a farsa pode ser ainda mais nefasta e dramática, quando tentam repetir (e calar) a história. ✱
Referências [1] Sim, terroristas. Quem toca o terror com rojões, barras de metal etc., e, ainda por cima, rouba armas do Gabinete de Segurança Institucional, é terrorista. [2] Sim, Daniel Silveira, aquele que, em público, ajudou a destruir uma placa em homenagem a Marielle Franco, vereadora executada com seu motorista na cidade do Rio de Janeiro já faz anos, sendo que até hoje não se sabe quem foi o mandante do crime.
De todas as instituições vinculadas ao Ministério da Cultura, uma das que vão recomeçar sua atuação sob a gestão de uma educadora de carreira é o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). A escolhida para a presidência do Ibram, no dia 7 de fevereiro, é Fernanda Santana Rabello de Castro, que atuou na área educacional do Museu da Chácara do Céu desde 2010. Formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com experiência na rede de educação básica do município de Teresópolis e do estado do Rio desde 2006, Fernanda estava exercendo o cargo de diretora substituta do Museu Histórico Nacional. Ela é especialista em História e Cultura da África e do Negro no Brasil pela Universidade Candido Mendes (UCAM), mestranda em Políticas e Instituições Educacionais na Universidade do Rio e Coordenadora do Grupo de Trabalho de publicações da Rede de Educadores de Museus do Rio. Fernanda terá um orçamento com R$ 21 milhões a mais do que aquele executado no ano passado para conduzir a política nacional de museus. Ela conversou com a reportagem da arte!brasileiros.
arte!✱ – O Ibram acaba de passar por uma gestão que chegou a impor notória ingerência de interesses religiosos, ideológicos, de aparelhamento político, em vez de priorização técnica. Houve inclusive a presença de grupos monarquistas em ação nos museus. Uma historiadora do Rio Grande do Sul chegou a recusar convite para assumir o Museu Histórico Nacional, por enxergar vícios no processo de nomeação para o cargo. Qual foi o prejuízo que a museologia nacional sofreu nesse período (inclusive com substancial perda de recursos) e o que está sendo feito para reconquistar o tempo e os esforços perdidos. Haverá um incremento no orçamento do Ibram (de quanto foi a perda progressiva nos últimos anos)?
Fernanda Santana Rabello de Castro – Em primeiro lugar, é importante considerar que essas afirmações poderiam ser feitas a respeito do governo anterior, mas não há evidências de que possam ser relacionadas diretamente à gestão do Ibram. A recusa da historiadora Doris Couto em assumir o cargo da direção do Museu Histórico Nacional se deu em consideração ao desrespeito ao processo seletivo e às normas que o regulavam. Assim como no caso das políticas culturais e das demais vinculadas ao então extinto Ministério da Cultura, o Ibram e o setor museal sofreram com cortes e contingenciamentos de recursos, reduzidos em até um terço se comparados a momentos anteriores, além de ter passado por desestruturação institucional no que diz respeito a sua estrutura organizacional, à realização de políticas públicas já consolidadas e à composição do quadro de servidores. O Ibram tem em 2023 um orçamento recorde, que chega a cerca de R$ 146 milhões. Esses recursos serão utilizados para a recomposição das políticas, para a reestruturação dos museus geridos pelo instituto, na perspectiva da participação e do cumprimento social do Ibram e dos museus brasileiros na retomada da democracia.
Qual é a principal orientação do novo Ministério da Cultura para a condução da política nacional nos museus da estrutura do Ibram?
O Ibram tem autonomia para gerir suas 30 unidades museológicas. No dia 2 de março) foi realizado o primeiro Seminário de Planejamento Estratégico do MinC, em que foram desenhados desafios e prioridades das políticas públicas de cultura, tendo em vista que a atuação de secretarias e vinculadas vai se dar num sentido comum. A principal orientação articulada neste Seminário foi a retomada da democracia, do diálogo e da participação social na construção das políticas públicas e da valorização da cultura.
Há museus em fase de reconstrução no país, como o Museu Nacional, cuja reabertura só está prevista para 2027. Como o Ibram vai atuar para entrar na coordenação dos esforços de reconstrução daquela instituição?
O Ibram não tem ingerência sobre museus que possuem gestão própria, como o caso do Museu Nacional, que é vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atuaremos como parceiros, atendendo às demandas apresentadas pela instituição, dentro das possibilidades institucionais.
Quais são as prioridades da nova gestão do Ibram – a atualização tecnológica, a reestruturação e modernização dos acervos, a inserção na nova ordem global: quais são suas prioridades?
Atuaremos em duas frentes principais: a reestruturação do Instituto e a retomada da participação social nas políticas públicas. Alguns dos desafios da reestruturação são a valorização do quadro de profissionais, a revisão da estrutura organizacional e do regimento interno do órgão, a estruturação tecnológica e a realização de obras e a implementação de planos de gestão de risco no patrimônio musealizado. No contexto da participação social, serão retomados mecanismos existentes de participação e ampliadas as possibilidades de atuação da sociedade civil na elaboração, implementação e no monitoramento das políticas setoriais.
Recentemente, a estrutura do Ibram transferiu um dos seus museus vinculados, o Museu de Biologia Professor Mello Leitão (MNPML), para a gestão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, na abrangência do Instituto Nacional da Mata Atlântica. Essa compreensão do escopo de cada instituição vai persistir em sua gestão ou haverá uma revisão da abrangência de cada museu com essas características (de biologia, por exemplo)?
Essa transferência foi realizada em 2014, tendo em vista tratativas políticas da época, considerando o perfil do museu e de sua gestão. O escopo do acervo e perfil dos museus do Ibram foi definido em gestões passadas. Quaisquer alterações que possam surgir no contexto atual serão alvo de debate entre as instituições, a gestão e sociedade, considerando aspectos técnicos e sociais. ✱
A Ministra da Cultura, Margareth Menezes, durante ato simbólico na reabertura da sede do MinC, em 24 de janeiro Foto: Filipe Araújo
A artista e curadora Naine Terena, que assinou a curadoria da pioneira mostra de arte indígena Véxoa: Nós sabemos, na Pinacoteca de São Paulo (em 2020, reunindo 23 artistas e coletivos), é a nova diretora de Educação e Formação Artística da Secretaria Nacional de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura. A cientista política Layanne Lisa coordena a diretoria de Articulação e Governança dos Comitês de Cultura do mesmo ministério. A socióloga Leticia Schwarz é a subsecretária de Gestão Estratégica. A antropóloga Raquel Dias Teixeira é a coordenadora do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do Iphan. A educadora Kelma Ferreira coordena o Apoio Administrativo do Ibram. A doutora em estudos étnicos e africanos Desiree Tozi é a nova diretora de Cooperação e Fomento do Iphan.
No novo Ministério da Cultura do Brasil de 2023, as mulheres não são apenas maioria, elas decidem. Em apenas dois meses e meio, Margareth Menezes mudou completamente os consagrados paradigmas de composição administrativa na cultura do Estado Brasileiro. No dia 3 de março, na Sala Cecília Meirelles, no Rio, Margareth deu posse à baiana Maria Marighella (neta de Carlos Marighella) na presidência da Fundação Nacional de Artes (Funarte) com um grande ato público no Rio de Janeiro, sonorizado pelo batuque ao vivo do grupo percussivo Tambores de Olokun, um rito que incorporou o antigo movimento #OcupaMinC, nascido em 2016, na resistência ao golpe de Estado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ao anunciar a nova diretoria colegiada da Funarte, Maria Marighella comunicou que estava priorizando a paridade de gênero e montando “uma Funarte com mulheres no centro das decisões, incidindo no modo como vemos e fazemos as políticas”.
As mudanças, que poderiam se situar predominantemente no território da representatividade, vão muito além do simbólico: no último dia 7, por meio de uma portaria, Margareth Menezes criou o novíssimo Comitê de Gênero, Raça e Diversidade no ministério, com o intuito de produzir diagnósticos de ações que possam potencializar políticas de transversalidade afirmativa (e criar ferramentas e mecanismos a serem incorporadas definitivamente pelo Estado brasileiro). Quatro outros ministérios do governo Lula já integram o Comitê de Margareth. “O Brasil será um país melhor na medida em que respeitar, acolher e incentivar o desenvolvimento de todas as mulheres”, afirmou a ministra.
No plano prático, o novo MinC está mantendo seu foco principal no destravamento da ação cultural no plano federal. Na metade de abril, acaba o prazo que a ministra deu para um grupo de trabalho regulamentar a nova Lei Paulo Gustavo, que vai destinar R$ 3,8 bilhões para estímulo à cultura nos Estados e Municípios. A transferência, a maior em volume de recursos da História do país, já poderá começar ainda em abril.
Para fazer frente a essa demanda, que será de controle e fiscalização, além de acompanhamento, o Ministério da Cultura começou a recompor sua equipe de experts em incentivo e legislação. O retorno de servidores experientes, com largo conhecimento histórico e técnico das regras e normas que dão segurança jurídica ao setor de incentivo, está sendo minucioso.
Há alguns dias, Margareth recontratou o primeiro servidor que tinha sido demitido na gestão Mario Frias por questões ideológicas, Odecir Luiz Prata da Costa, um dos maiores experts em leis de incentivo do país. Costa fora exonerado por Frias assim que este assumiu a Secretaria Especial de Cultura do governo federal, em julho de 2020, a mando da chamada “ala olavista” daquela gestão, para que o antigo governo mantivesse centralizada a decisão sobre fomento, com regras não raras de exceção ideológica e censura. Servidor desde 1988, de perfil técnico, Costa se opôs à sanha persecutória, extremista e negacionista na condução das leis de incentivo e foi afastado.
Outra servidora reposta em suas funções foi Teresa Cristina Rocha Azevedo de Oliveira, nomeada como Diretora do Departamento de Fomento Direto da Secretaria de Economia Criativa. Essa reestruturação é considerada essencial para o acionamento não apenas da Lei Rouanet, que se encontra atrofiada (e soterrada por prestações de contas antigas), mas também das novíssimas legislações de incentivo que estão a caminho, a Lei Paulo Gustavo e a Lei Aldir Blanc II, que destinarão cerca de R$ 7 bilhões para o setor.
Segundo o MinC, cinco milhões de pessoas trabalham na área cultural do país e geram cerca de 3% do PIB nacional. Um estímulo do tamanho do que se anuncia para 2023 e 2024 pode gerar milhares de empregos e acionar uma área econômica fundamental, que se encaixa na chamada soft economy (baseada na criatividade, no acesso, compartilhamento, na colaboração e confiança), sem os efeitos colaterais das indústrias pesadas e ambientalmente daninhas.
A Lei Rouanet será alvo de um novo decreto governamental, que deve sair até o final deste mês de março, com o intuito de fazer ajustes pontuais no texto – além do retorno dos planos plurianuais e anuais para instituições culturais, das ações continuadas e do fomento aos grupos artísticos estáveis, novos limites de valores para captação, gestão e cachês, será reativada a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC).
Parte do mapeamento do potencial brasileiro de cultura estará a cargo da mais recente inovação do governo: a Secretaria dos Comitês de Cultura. A escolhida para pilotar essa experiência foi a socióloga e educadora Roberta Martins, ex-diretora de diversidade cultural da Fundação de Arte de Niterói (FAN). A gestora, que já teve sob sua administração no município de Niterói o Theatro Municipal João Caetano, o Museu de Arte Contemporânea (MAC) e a Companhia de Ballet de Niterói, tem agora por responsabilidade articular o provável sucessor dos Pontos de Cultura na vanguarda das ações governamentais.
O conceito dos Comitês pressupõe a existência de um núcleo em cada unidade da federação, formado por artistas, intelectuais, trabalhadores e trabalhadoras da cultura locais, sem vínculo com o governo. Será a própria comunidade refletindo e propondo estratégias de enfrentamento para grandes temas da contemporaneidade brasileira e global. Esses comitês, acredita o governo, permitirão um conhecimento mais profundo das demandas e necessidades de cada rincão do país, driblando a tendência centralista histórica do governo. ✱