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A imagem em curto-circuito

Helena Almeida
Parte da obra de Helena Almeida, Estudo para um enriquecimento interior, 1977-1978. Acrílica sobre fotografia, políptico de seis, 53 x 42 cm (cada), Coleção Altice, Lisboa

Helena Almeida (1934-2018), artista portuguesa cuja obra é revisitada em ampla antologia no Instituto Moreira Salles, percorreu ao longo de mais de 50 anos uma investigação ao mesmo tempo diversa e renitente, que tem sua própria imagem como eixo central e a fotografia como principal meio de expressão. Surpreendentemente fiel a um leque restrito de procedimentos, temas e indagações, ela toca de forma cirúrgica em algumas das questões que mais mobilizaram a arte a partir a partir do final da década de 1960, como a autorrepresentação e a discussão acerca da expansão dos limites e possibilidades das várias linguagens artísticas.

Partindo quase sempre de sua própria imagem, de forma fragmentada ou integral, sozinha ou interagindo com elementos provocadores como fios, pinceladas ou uma perna masculina à qual a sua está atada, Helena coloca-se como corpo concreto, presença incontornável que sustenta e ao mesmo tempo provoca um curto-circuito dos códigos da imagem. É evidente a relação entre o trabalho de Helena Almeida e movimentos dominantes       nos anos 1960, como o minimalismo e a arte conceitual. O que ela nos oferece, sintetiza a curadora Isabel Carlos, é a “presença reiterada de si mesma”. “A imagem do meu corpo não é a minha imagem, não estou a fazer espetáculo”, dizia a própria Helena.

O ato de posar sempre lhe foi familiar, pois desde menina servia de modelo para o pai, também artista, o escultor Leopoldo de Almeida. Talvez esse tempo de espera, a imobilidade alargada no tempo e no espaço do ateliê, expliquem algumas peculiaridades de sua produção, tão próxima e ao mesmo tempo avessa ao caráter teatral dos happenings e performances que tanto marcaram a cena artística nos anos iniciais de sua carreira. A artista verbalizava claramente que lhe interessava não a ação em si, o confronto entre criador e público, mas o registro, a captação daquele momento preciso que parece condensar a força do gesto, tal qual um still de cinema. Ou uma sucessão de fotogramas, que remetem à lógica dos quadrinhos, criando uma linha temporal, explorada em algumas das séries em exposição, a exemplo de Tela habitada, de 1976.

Seu trabalho é sutil e provocativo, combina uma elegância nostálgica com um desejo permanente de subverter relações e hierarquias, lançando mão muitas vezes de uma ironia fina. A artista anula fronteiras entre os gêneros, questiona os limites tênues entre o plano e o volume, entre o real e o representado. E usa a fotografia não por sua excelência técnica ou exatidão mimética. Não à toa é seu marido, o arquiteto Artur Rosa, que faz a maior parte desses registros. “Eu quero uma fotografia tosca, expressiva, como registro de uma vivência, de uma ação”, explicou ela em entrevista concedida à curadora e relembrada no catálogo da exposição. 

Tela rosa para vestir, obra de 1969, que serve de capítulo inaugural da mostra do IMS, é uma espécie de síntese do trabalho que será desenvolvido nas décadas a seguir. Ao vestir, literalmente, um quadro, Helena se aproxima daquilo que vinham fazendo outros artistas interessados em anular a distância entre corpo e obra. Além disso, brinca com essa ideia de superioridade da pintura e se debruça sobre o gesto de pintar e de um de seus principais atributos, a cor, provocativamente presente apenas no título, já que a imagem é em branco e preto. Nas mãos de Helena, a cor assume um aspecto curioso e fundamental, já que pontua de forma magnética suas construções visuais. Ela surge de forma intensa, contracenando com a artista, seja na mancha azul que é devorada, exalada ou guardada no bolso, na nódoa vermelha que tinge seu pé fazendo vibrar a escala de cinzas ao redor, ou ainda no negro intenso com que ela se funde em Negro exterior.

O desenho, o outro elemento constitutivo da construção pictórica, é também explorado com maestria por Helena, que nos apresenta uma série de investigações em que o traço se transforma em nexo real, físico. Seja na forma de um incômodo, como em Sente-me, ou elemento que se quer livre, como em Saída negra, um livro em branco do qual as palavras, refeitas em forma de linha, parecem escapar. Mais uma vez, nota-se um reiterado anseio em buscar a autonomia: do risco, do gesto, do corpo.

Outro aspecto ecoa com intensidade na obra da artista portuguesa: seu ponto de partida, como mulher trabalhando em um país submetido por décadas à ditadura salazarista e apartado do centro da produção contemporânea – que ela vivencia intensamente em uma longa permanência em Paris no início dos anos 1970. O verbo habitar é recorrente em sua trajetória, está presente nos títulos dos trabalhos e é reiterado no nome escolhido para a mostra por Isabel Carlos. A casa/ateliê é o espaço em que sua arte se desenvolve, sempre. Espaço protegido, às vezes claustrofóbico, às vezes ampliado por meio de espelhamentos, aberturas. São poucas, mas muito concretas as referências arquitetônicas incorporadas nas imagens, a ponto de a curadora sugerir que, para ela, “o rodapé é o ponto de encontro entre pintura, arquitetura e fotografia”. Na entrevista já mencionada, Helena dá a pista dessa confluência de elementos, que permite a passagem da experiência individual para o caráter universal que toda obra potente parece perseguir: “O que me interessa é sempre o mesmo: o espaço, a casa, o teto, o canto, o chão; depois, o espaço físico da tela, mas o que eu quero é tratar de emoções”.

Essa relação entre experimentação conceitual, poética e vivencial garante à obra de Helena Almeida uma familiaridade comovente com outras artistas que trilharam a mesma seara no mesmo período. São muitos os ecos entre sua produção e uma série de artistas brasileiras e latino-americanas, que, como ela, dedicaram-se a investigar a relação entre imagem e corpo, fotografia e identidade. Podemos citar, por exemplo, Lygia Pape, Lenora de Barros, Liliana Potter e até mesmo Iole de Freitas, que têm um recorte de sua obra dos anos 1970 – mais cortante e experimental – sendo exibido atualmente no mesmo IMS.

Não fosse europeia, ela estaria perfeitamente integrada a propostas de revisão da arte feminista latino-americana, como a pesquisa Mulheres radicais, mostrada em 2018 na Pinacoteca do Estado. Essa sintonia torna ainda mais surpreendente o fato de que tenha sido necessário esperar tanto tempo (sua única participação de destaque em mostra no país foi na 28ª Bienal de São Paulo) para que uma artista portuguesa de renome em seu país, com uma vasta produção e uma afinidade intensa com um tipo de arte frequentemente desenvolvido no Brasil, tivesse uma primeira exposição individual no país. ✱

Arte épica no coração secreto do Brasil

O banquete de migalhas
Instalação O banquete de migalhas, Marcos Zacariades, 2014. Fotos: Rafael Martins
Por Paulo Herkenhoff

Conheci o trabalho de Marcos Zacariades, em 2019, na Art Rio e fiquei muito impressionado. Na época, eu não tinha noção do que mais havia do pensamento dele e hoje vejo que foi apenas a ponta do iceberg. Mesmo em meio ao corre-corre da feira, imediatamente achei que aquele trabalho faria muito bem ao acervo do MAR (Museu de Arte do Rio), e generosamente Marcos aceitou doar, mas não entregou a peça. Fiquei com medo, afinal peça doada e não recolhida pode vir a ser peça não recebida. Depois compreendi se tratar de um excesso de rigor, disse que estava insatisfeito com alguns elementos, que precisava repensar e refazer algumas questões. Então, ali, já tive uma noção inteira de que era um artista rigoroso em termos de forma.

Depois tivemos mais um encontro no Rio e tive acesso a outras imagens do seu trabalho e pensei em escrever sobre ele, conversamos sobre sua obra, a exposição, o livro e, finalmente, fui visitar sua mostra O tempo espelhado, em exibição na cave subterrânea da Vinícola UVVA, na cidade de Mucugê, em plena Chapada Diamantina. Para mim foi uma grande revelação encontrar aquela exposição, naquele lugar, com aquela força. Tenho dito que, embora não tenha visto tudo o que se expôs este ano no Brasil, mas vi bastante, eu acho difícil que tenha uma exposição que supere em rigor formal, em vigor político e intelectual a mostra que hoje temos naquela galeria. O trabalho do Marcos tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É o que eu acho que é uma obra épica.

O susto começou logo no primeiro dia e se seguiu depois, com a visita a Igatu, pequena vila a poucos quilômetros de Mucugê, onde Marcos Zacariades vive e, desde 2002, mantém a Galeria Arte & Memória. Igatu é uma cidade de pedras, e cada pedra tem uma história que vai se desenrolando. Essas pedras são marcos de vida. Eu me lembrava o tempo todo do poema de Drummond – “no meio do caminho tinha uma pedra” –, que podia ser uma pedra que exigia suor, que causava dor, perdas, mas também podia ser aquela pedra que seria valiosa e que sua venda daria para garantir o requeijão na mesa do garimpeiro.

Não digo que foi uma aventura, foi uma descoberta de que talvez cada um de nós brasileiros pertença àquela história. Aquela história se desenrola dentro de cada um de nós brasileiros porque ali, dentro daquela usina de pensamento, surgem dramas, surge poesia, surge a questão do trabalho. É o que eu chamo de diagrama de alteridade, de sociabilidade, uma arte que pensa na devolução à sociedade, pensa no outro, incorpora o outro no trabalho e como sujeito econômico da obra. Acho que o que existe em Igatu e na galeria da Vinícola UVVA é uma gema ainda não trazida à luz, em termos do olhar brasileiro.

Essa é uma questão primeira. A outra questão foi encontrar naquela vastidão a experiência da UVVA e da Fazenda Progresso. A atuação da Família Borré é ímpar, exemplar, um paradigma. Para além do agronegócio e da cultura do vinho, ali existe arte. A vinícola ostenta uma arquitetura espetacular, com um mobiliário de designers brasileiros como Sergio Rodrigues. Há um processo de valorização da cultura brasileira. E, quando se trata de uma galeria de arte que se mistura às barricas, que mostra o solo da Chapada Diamantina com suas camadas, nós estamos falando de uma totalidade de percepção do mundo, da geografia humana, da geografia cultural e dessa correlação entre culturas.

Quando vejo essa revelação, o que posso dizer é que Fabiano Borré é um empresário moderno que entende que o capital financeiro também deve ser convertido em capital simbólico. Isso eu digo por que acho que ele está ao lado de grandes empresários modernos, como foi Ivoncy Ioschpe, como é a família Setúbal com o Itaú Cultural, como foi Julio Landmann na condução da Bienal de São Paulo, e outros que fazem essa conversão de capital financeiro em capital simbólico, como uma forma de devolução à sociedade de parte do que afere com o trabalho coletivo.

Igatu é um lugar de mulheres modernas. Digo moderna no sentido da mulher que não tem medo de trabalhar para sobreviver. Lá eu conheci figuras inspiradoras como Nívia, diretora de uma escola e também grande doceira, e Dona Zelita, com seus quase 90 anos, ainda cuidando da casa, do seu pé de araçá. É a mulher que melhor sabe arear uma bacia em Igatu e tem a máxima de que aquilo que “se precisa, se preserva”, que dá nome a uma das obras de Zacariades. Tudo é muito entrelaçado, a tradição de Igatu é também a sua modernidade. Através de Marcos, Igatu pensa uma modernidade que se finca na tradição do diamante, do cascalho de Herberto Sales, na inovação de Kátia, da Pipoca Moderna, um carrinho de pipoca adaptado que fica na praça e na escola com livros à disposição das crianças.

Então o que fica para mim é que Marcos Zacariades produz algo absolutamente inesperado. Uma exposição que é um grande argumento em favor da recondução da civilização brasileira, que é capaz de lançar um grito contra todo tipo de violência, todo tipo de destruição, todo tipo daquilo que faz mal à sociedade, que faz mal aos corpos. É uma exposição que diz que é possível um diálogo entre as diferenças, um diálogo que vem do mais profundo rincão, que é um centro exemplar do mundo também. O centro do mundo é sempre onde está um grande artista. Para mim o grande desafio agora é dar conta dessa complexidade. Será que é possível reduzir essa exposição a palavras? ✱

I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação

Vivenciamos, de 15 anos para cá, uma importante mobilização pública, internacional, em defesa de lutas anti-hegemônicas, para a conscientização e profunda compreensão da existência de um racismo estrutural e a necessidade de sua definitiva abolição; para a defesa e o respeito à escolha ou mudança de gênero; a defesa do reconhecimento dos povos originários, aqueles que, no caso da maioria dos países colonizados foram usurpados de suas terras, culturas e religião. É fato que este movimento obrigou a que governos e instituições de países colonizadores começassem a se reposicionar sobre os espólios retirados de suas ex-colônias. Inúmero/as pesquisadores, como Anne Lafont, Bénédicte Savoy e, Felwine Sarr estudaram especialmente o perverso apagamento de mulheres e homens negros em obras exibidas em museus europeus e americanos, assim como lançaram luz sobre a necessidade de devolver obras usurpadas ao longo de anos aos países de origem, com o propósito de rever políticas de relacionamento e ética internacional. A maioria das matérias e dos artigos desta edição reflete o impacto deste debate e a importância que alcançou.

arte!brasileiros acompanha, desde seu lugar de atuação, de forma genuína, todo este movimento, e vem realizando uma serie de encontros internacionais. Dentre os mais recentes, aquele organizado em 2021, o VI Seminário; Em Defesa da Cultura e da Natureza, em parceria com o Goethe Institut, e, no ano passado, o VII Seminário Internacional: Cultura, Democracia e Reparação, junto ao Sesc SP.

Aprofundano-nos no debate, lançamos agora o I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação, que tem por objetivo dar início a uma efetiva troca de reflexões sobre a nossa história colonial como continente e que pretende debater o impacto que essas novas narrativas contra-hegemônicas têm tido no sistema da cultura e da arte contemporânea em diferentes partes do mundo e, mais especificamente, na América Latina.

Desta vez em parceria com BIENALSUR23, a Bienal Internacional de Arte Contemporânea do Sul, nascida na cidade de Buenos Aires, Argentina, que em sua quarta edição inaugura várias mostras em diferentes cidades do país,  a arte!brasileiros abre mais um espaço na busca por diluir fronteiras, e se junta, com parte da sua equipe, a renomados curadores, acadêmicos, artistas, historiadores e profissionais da cultura, de diferentes partes da América Latina e da Europa para apresentar, durante os dias 3 e 4 de agosto de 2023, entre as 18h e 21h, em quatro mesas, questões sobre democracia e reparação, a decolonização na prática, o lugar do relato, da memória, as narrativas, a ficção e o real.

O encontro, que se realizará no Auditorio Sede Rectorado Juncal de la Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), Juncal 1319, Ciudad de Buenos Aires, Argentina, receberá a catedrática de História da Arte Moderna e Contemporânea, da Universidad Complutense de Madrid, e curadora independente Estrella de Diego, nascida em Madri. Estrella também faz parte da Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Espanha. O curador e diretor da Fundação Nabuco em Recife, Moacir dos Anjos, atual Coordenador-geral do Museu do Homem do Nordeste. Foi curador da 29ª Bienal de São Paulo (2010) e do pavilhão brasileiro na 54ª Bienal de Veneza (2011). A investigadora, professora e curadora do Palais de Glace, em Buenos Aires, Federica Baeza, doutora em História e Teoria das Artes na Faculdade de Filosofía y Letras da Universidade de Buenos Aires. A antropóloga feminista Rita Laura Segato, escritora argentina residente entre Brasília, Tilcara e Buenos Aires, especialmente reconhecida por suas investigações, junto aos povos indígenas e às comunidades latino-americanas, sobre violência de gênero, racismo e colonialidade. Ana Gonçalves Magalhães, historiadora da arte, Professora Livre-docente, curadora e, atualmente, diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP, 2020-2024). Ana Maria foi coordenadora editorial e assistente curatorial da Fundação Bienal de São Paulo entre 2001 e 2008. Nicolas Soares, artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória, Espírito Santo. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo – MAES (Secult-ES). Aline Motta, artista brasileira que nasceu em Niterói (RJ) e combina diferentes técnicas e práticas artísticas em seu trabalho, como fotografia, vídeo, instalação, performance e colagem. De modo crítico, suas obras reconfiguram memórias, em especial as afro-atlânticas, e constroem novas narrativas que invocam uma ideia não linear do tempo. O coletivo de investigação e produção artística Declinación Magnética (Aimar Arriola, Jose Manuel Bueso, Diego del Pozo, Eduardo Galvagni, Sally Gutiérrez, Julia Morandeira e Silvia Zayas), fundado em 2013, na Espanha, formado por artistas visuais, teóricos e curadores cujo trabalho partem da tomada de consciência dos estudos pós-coloniais e decoloniais. O italiano Eugenio Viola, curador-chefe do Museo de Arte Moderno de Bogotá (MAMBO). Florencia Battiti, curadora, crítica de arte e docente de arte contemporânea. Diretora executiva do Parque de la Memoria, Florencia obteve, em 2013, a bolsa Trabucco com um projeto de investigação sobre a irrupção da memória política na arte argentina durante os anos 1990. Por último, para debater o cruzamento entre a filosofia e a tecnologia, Tomás Balmaceda, doutor em filosofia e professor na UBA y UdeSA, fundador e integrante do GIFT (Grupo de Inteligencia Artificial, Filosofía y Tecnología), parte de IIF/SADAF CONICET. E o psicanalista e professor da USP Christian Dunker.

O Seminário será transmitido via streaming pelos websites institucionais da BIENALSUR e da arte!brasileiros, com tradução simultânea (espanhol-português, português-espanhol). O encontro será gravado na íntegra e posteriormente editado para a sua livre reprodução em canais e instituições parceiros e apoiadores.

Nesta 63ª edição, a revista estabelece alguns diálogos com o I Seminário Latino-americano: Relatos, memória e reparação por meio de alguns de seus textos, a exemplo do artigo Concreto, em que Nicolas Soares discorre sobre a reestruturação sociocultural que vem ocorrendo sobretudo na arte; na reportagem sobre a exposição de Sheroanawe Hakihiiwe, um artista ianomâmi que faz uma espécie de arquivo pictórico do cotidiano e do imaginário de seu povo; sobre as emergências culturais nas instituições e entre artistas, numa entrevista com o antropólogo argentino Néstor García Canclini; sobre o diálogo com sexodissidências em destaque na 35ª Bienal de São Paulo; na matéria de capa, com Antonio Obá, que traz na poesia e brutalidade da sua obra a essência da memória contra a segregação racialBoa leitura e bom encontro! Esperamos por vocês presencial ou virtualmente! ✱

Ecletismo marca coleção Cerruti

Lo Studio

É bastante particular a história de uma das coleções mais impressionantes da Europa. Francesco Federici Cerruti (1922-2015) foi um dos mais ricos empresários do ramo gráfico – ele imprimia listas telefônicas e com elas fez fortuna. Apesar disso, tinha uma vida quase monástica. Vivia em um apartamento modesto em Turim, perto da empresa. Não casou nem teve histórias públicas com amantes. Seu passatempo era colecionar, tanto livros raros, como móveis e arte, o que reunia em uma casa de campo em Rivoli, construída para seus pais, nos anos 1960, mas que se recusaram a morar a lá. Por fora, ela tem um desenho modernista, mas por dentro é como um palácio do século XVIII ou XIX em miniatura.

Nesta casa, Cerruti dormiu apenas uma vez. Mas era nesse ambiente que ele passava os domingos lendo jornais e apreciando suas obras, que datam do século XIV à arte contemporânea, cujo nome mais célebre é Andy Warhol. No total, ela abriga 300 pinturas e esculturas, 300 móveis e 200 livros raros.
Em vida, Cerruti criou uma fundação para manter seu acervo – já que ele não teve herdeiros –, e o Castello di Rivoli foi escolhido para administrar o museu-casa. Foram quase quatro anos, entre 2016 e 2019, que Carolyn Christov-Bakarkiev se dedicou a organizar o acervo.

“A ideia foi manter as obras de arte como estavam na casa, mas, ao mesmo tempo, garantir as condições de segurança e clima de um museu”, explica. Apesar de ser uma casa, a curadora aponta um caráter dramático em sua constituição. “Esta casa foi uma espécie de teatro para o Cerruti, ele nunca viveu lá, não havia sequer gás na cozinha. Independentemente do período, que vai de 1300 até o século XX, as obras eram exibidas em um ambiente doméstico”, explica a diretora.

E esse “espírito doméstico” foi mantido para evitar o cubo branco dominante nos espaços expositivos típicos do século XX. “O museu de arte moderna criou um espaço branco que gera valor para o trabalho, mas que também o distancia de sua função que é elaborar a vida por meio do simbólico, para usar um termo lacaniano. Então busquei manter esse espírito doméstico”, diz ainda Carolyn.

Ela compara a casa de Cerruti a outro espaço organizado pelo escritor turco Orhan Pamuk, em Istambul, um museu ficcional criado junto com o livro O Museu da inocência. A diferença obvia é que enquanto no museu de Pamuk os personagens que ele aborda são de fato ficcionais, Cerruti, apesar de todo o mistério em torno de sua história, foi ele mesmo que reuniu toda a coleção, comprando as obras especialmente em galerias e leilões. O próprio Castello di Rivoli, lembra a curadora, também possui história semelhante, já que foi uma residência da família Savoy. “Cerruti me ajuda a olhar o Castello di Rivoli de forma renovada”, diz Carolyn.

O acervo é bastante eclético, com um tom bastante internacional, sem buscar assim refletir a produção italiana, especialmente do movimento Arte Povera, que tinha muitos artistas vivendo na região. Assim, nomes estelares como Francis Bacon e o próprio Warhol, são alguns dos contemporâneos mais proeminentes, mas os modernistas são imensa maioria na coleção, entre eles Kandinsky, Miró, Renoir, Chagall, Egon Schiele, Giacometti, Magritte e Picasso. Claro, italianos de renome também foram incluídos, caso de Morandi, Giorgio de Chirico, Lucia Fontana, Giacomo Balla e Modigliani. A última aquisição de Cerruti ocorreu em 1914, cinco anos antes de sua morte, em um leilão da Sotheby’s, uma pintura de Renoir, Jovem mulher com rosas, de 1897.

Enquanto museus devem se preocupar em constituir acervos que tratem da história da arte de uma forma ampla e inclusiva, coleções como a de Cerruti refletem a mente de um colecionador, e visitar a casa é como adentrá-la. ✱

Uma conversa com Antonio Obá

Revoada
Detalhe da instalação Revoada, de Antonio Obá, 2023

Escutar Antonio Obá, numa conversa demorada, pausada, reflexiva, falando de sua infância, da construção de sua carreira, de seus encontros traz, primeiramente, muita calma e, ao final, a certeza de o quanto suas memórias se refletem diretamente na sua obra.

Em Revoada, a exposição aberta em junho deste ano, na recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, em São Paulo, Antonio Obá desenvolveu um trabalho em diálogo com o edifício e a história do novo museu, que foi uma instituição de ensino construída nos anos 1950 e atribuída a Ramos de Azevedo, engenheiro e arquiteto responsável pelos projetos, entre outros, do Teatro Municipal e da própria Pinacoteca do Estado.

Na instalação, mãos suspensas, moldadas com silicone nos corpos de crianças e jovens que frequentaram as oficinas na Ocupação 9 de Julho do MSTC e no ateliê da Pinacoteca Contemporânea, entre março e abril de 2023, e depois forjadas em gesso branco, evocam, segundo ele, “mãos livres em pleno voo; mãos – o próprio ideal de sustento e liberdade presentes no ofício ao qual se dedicam. Mãos antes acorrentadas, hoje quase sem peso ou pesar, mas cientes de todos os traumas, como um ex-voto. [1]

Não é por acaso que Obá transcende a pintura, a escultura e as instalações em imagens de corpos ou crianças suspensas e, às vezes, fantasmagóricas. Ele se lembra que aos 8 anos se deparou com um salão de ex-votos na histórica igreja de Trindade, inaugurada em 1912, como o primeiro Santuário do Divino Pai Eterno, popularmente denominado Santuário Velho ou Igreja Matriz, em Goiás. Um cenário de que se recorda fotograficamente e que lhe trouxe uma enorme sensação de abismo, em que ficou “parado, suspenso”, entre “fascinado e seduzido por um mistério”.

Wade in the water
Wade in the water (after Adriana Varejão), 2019

A mesma impressão, comentará mais tarde, voltou a ter quase 20 anos depois quando se defrontou com obras do artista inglês Francis Bacon, uma de suas referências na pintura e cuja potência e visualidade o capturaram, como se ele estivesse diante de um “buraco”, algo que estava ausente e o fascinava também.

O educador

Obá nasceu em 1983, em Ceilândia, no Distrito Federal, onde mora e trabalha até hoje. Desde sempre desenhou e pintou, mas cresceu como educador.

Trabalhou como professor no Centro Educacional 15 de Ceilândia, lecionou sobre arte e processos criativos, como professor do ensino médio, no Centro de Desenvolvimento de Potencial Criativo (CRIAR), para crianças e adultos em Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Sempre lhe interessou o lugar que a arte e a comunicação ocupam como motivadores da autonomia, da curiosidade e do conhecimento. Como um lugar de disrupção na aprendizagem. Para ele, o campo das artes visuais “passa pela contribuição para o desenvolvimento socioeducativo humano”.

Uma das características do começo de seu percurso é ter estado muito à margem do circuito tradicional de arte, mesmo durante o período em que participou de uma coletiva no Centro Cultural Renato Russo, em 2013, em Brasília.

Um momento determinante na sua carreira foi quando decidiu trancar sua matrícula na faculdade de publicidade e optou por estudar artes visuais na UNB. Ao mesmo tempo, frequentou o Centro Cultural Elefante, uma casa de artistas criada em 2013 pela gestora paulistana Flavia Gimenes e o artista plástico carioca Matias Mesquita que, recém-chegados a Brasília, construíram na Asa Norte da capital federal um espaço de experimentação de desenho, escultura, gravura e modelagem. É aí quando começou a ter contato com a produção de artistas nacionais e internacionais. Viajou para Inhotim, conheceu o trabalho de Adriana Varejão, que lhe serviu de inspiração para a sua obra Wade in the water (After Adriana Varejão), de 2019.

A pesquisa de Obá

Alguns significantes perpassam a obra de Obá: crianças, suspensão, ambiguidade. Suas crianças têm rostos marcados, quase adultos. “Elas figuram como agentes do tempo que parecem ter a consciência que lhes é própria, mas sem nenhuma inocência. São crianças que sabem, crianças que lembram”, dizem Yuri Quevedo e Ana Maria Maia, no texto especialmente escrito para o catálogo da exposição Revoada.

Para Obá, “são como ibejis”, referindo-se às figuras simbólicas da cultura iorubá que, de forma geral, dentro dos contextos culturais do continente africano, chama de Ibeji a um orixá-criança que nomeia duas entidades infantis gêmeas. Por serem gêmeos, são associados a um princípio da dualidade humana: sorte e azar. Por serem crianças, são ligados a tudo que se inicia e brota: à nascente de um rio, ao nascimento dos seres humanos, ao germinar das plantas etc. Elas possuem um quê de leveza que lhes permite flutuar. “Mas têm que ser cuidadosos porque, caso contrário, podem atrapalhar o trabalho. […] São a criança que há dentro de nós”, diz Obá.

Suas obras trazem histórias de segregação da raça negra, de episódios de injustiças cometidas em diferentes épocas, em lugares distintos do mundo, contra negros ou negras. Em Os Banhistas n. 3 – Espreita, 2020, cujo detalhe ilustra nossa capa, Obá faz referência a uma história ocorrida em 1964, num estabelecimento ainda à época reservado a brancos, em Saint Augustine, na Flórida (EUA).

Naquela ocasião, no hotel Motor Lodge, o líder do movimento antissegracionista Martin Luther King Jr. haveria tentado almoçar e foi impedido. Ao insistir, foi preso. Dias depois, um grupo de manifestantes mergulhou na piscina em sinal de protesto, e o gerente do hotel chegou a despejar um galão de ácido muriático na água. Na obra, crianças nadam tranquilas, mas na espreita, junto de um crocodilo que alude à época em que crianças escravizadas eram usadas como iscas.

Na trilogia Strange Fruit (fruto estranho), Obá evoca a canção homônima de Billie Holiday e do poeta Abel Meeropol, que escreveram sobre o linchamento de dois homens negros em 1930 no estado norte-americano de Indiana. O horror do caso foi retratado pelo fotógrafo Lawrence Beitler: os corpos, pendendo de árvores, eram observados pela multidão branca.

A ideia de corpos suspensos está sempre presente, também nas crianças pintadas sobre linhos brancos. Em Chandelier – Crianças suspensas, elas também são elevadas, como santificadas. 

O reconhecimento do público

“Cresci vendo meus dois pais trabalhando e criando relações afetivas, isso foi formador […] Sempre foi importante produzir com um tempo ao meu sabor […], sem presa, […] mas passei dez anos sem tirar férias”, diz, acerca da pressão que envolve um artista, quando passa a ser mais reconhecido e solicitado por compromissos ligados a exposições individuais e mostras coletivas.

Para Obá, o trabalho e os encontros são fundamentais durante a carreira. Um deles foi com Flavia Gimenez, no Elefante, e outro, em 2015, com Renato Silva, da galeria Mendes Wood DM, onde realizou em 2016 a sua primeira exposição, Antonio Obá. A partir daí realizou várias mostras com a galeria, dentre elas Pele de Dentro (Mendes Wood DM, Nova York, EUA, 2018) e Outros Ofícios (Mendes Wood DM, Bruxelas, Bélgica, 
2021).

Antonio Obá participou de várias coletivas nacionais e internacionais, com destaque para o 36º Panorama da Arte Brasileira, MAM, São Paulo, Brasil
 (2018), a Enciclopédia Negra, Pinacoteca, São Paulo (2021), Tuymans / Cahn / Oba (Bourse de Commerce (2021/2022) e a 12ª Bienal de Liverpool, Inglaterra, Reino Unido (2023), entre outras.

Suas obras estão presentes em várias coleções de relevo, a exemplo do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, do Museu de Arte do Rio, da
 Pinacoteca do Estado de São Paulo, da Pinault Collection, do 
Pérez Art Museum Miami 
e do 
Jumex Museo, do México, para citar apenas alguns.

Atualmente, prepara uma próxima exposição, a ser aberta no fim de 2023 na sede paulista da galeria. Desde 2016 vem ganhando amplíssimo reconhecimento institucional, nacional e internacional. Ao final da conversa, outra certeza: a de que o Ibeji, em Obá, vem aflorando num crescendo, na ambiguidade da leveza e da contundência, atento e forte, como é preciso. ✱


 

[1] Texto de Antonio Obá, presente no catálogo da exposição Revoada

Síntese cosmológica

Sheroanawe Hakihiiwe
Sheroanawe Hakihiiwe, Tudo isso somos nós. Foto: Isabella Matheus

Na década de 1990, Juan Bosco Hakihiiwe, ianomâmi da Amazônia venezuelana, desenvolveu, junto à artista mexicana Laura Anderson Barbata, técnicas de produção de papel com fibras vegetais – de cana-de-açúcar, banana, milho, amoreira etc. – que passou a usar como suporte para seus desenhos. Neles, buscava traduzir, por meio de elementos mínimos e repetidos, não somente a paisagem, como o imaginário de sua comunidade.

Cerca de 30 anos depois, o Masp apresenta a exposição Sheroanawe Hakihiiwe: tudo isso somos nós, individual que reúne mais de uma centena de desenhos, monotipos e pinturas do artista, que passou a assinar com o nome derivado de Sheroana, a comunidade onde nasceu no município de Alto Orinoco. O conjunto – vindo de sua galeria, a ABRA, em Caracas, e de colecionadores brasileiros – cobre cerca de duas décadas de sua produção – de 2015 a 2022 – e permite ao público observar, entre outros aspectos, a recente ampliação do leque de cores de que Sheroanawe lança mão.

Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu
Sheroanawe Hakihiiwe, Hema ahu [Teia de aranha com orvalho pela manhã] [Spider Web with Dew in the Morning], 2021. Acrílica sobre papel de algodão, 51.2 x 69.2 cm, Coleção Galería ABRA, Caracas, Venezuela. Foto: Cortesia Galería ABRA/María Teresa Hamon
“Muito da produção inicial do Sheroanawe tinha, não vou dizer um limite da cor, mas sempre a referência ao preto e ao vermelho. Que é justamente uma conexão que o artista faz com as pinturas corporais e faciais da sua comunidade e de seu entorno. A gente encontra, por exemplo, sempre o preto, vermelho e branco fazendo referência à cobra coral”, conta André Mesquita, curador da exposição.

“Mas Sheroanawe expandiu a sua paleta de uns três anos para cá. Ele tem utilizado azul e amarelo, por exemplo, além de ter pintado também em tecido. Embora esses procedimentos, de alguma forma, tenham se modificado ao longo do tempo, claro que os temas de que ele tem tratado permanecem. É quase a criação de uma catalogação ou de um arquivo mesmo. Uma memória daquilo que ele encontra nos aspectos ritualísticos de sua comunidade, no fazer cotidiano, nos utensílios, bem como um registro da fauna e da flora que cerca a vida na floresta”.

David Ribeiro, assistente curatorial da mostra, destaca que a produção de Sheroanawe está muito “relacionada aos períodos em que ele fica na floresta, com as pessoas do seu povo”. Momentos em que ele recolhe referências diversas da “cosmo ecologia” de sua comunidade, “uma relação com o ambiente, com o cosmos, mais profunda e complexa”. Segundo Ribeiro, Sheroanawe observa os padrões que são utilizados na pintura facial, na pintura corporal ou na produção da cestaria, detalhes de animai, plantas, pedras.

“E é um olhar bastante minucioso que ele lança sobre o entorno, sobre as pessoas, sobre o ambiente onde ele vive. E do qual ele vai extraindo sínteses”, diz. “Numa floresta, nessa confusão de elementos, Sheroanawe busca as unidades mínimas dessa grandiosidade, pequenos símbolos, que ele transpõe para o papel, que são representações dessa complexidade. Como a Laura Barbata afirma, o trabalho dele é mais do que abstração simples ou minimalismo, é um mapa bastante complexo de uma infinidade de significados que ele apreende a partir de sua observação”.

Mesquita comenta que, inicialmente, ao observar a produção de Sheroanawe, uma relação com o minimalismo veio à sua cabeça, um pouco por causa da sua formação “como pesquisador, muito interessado, já há muitos anos, nas práticas da arte conceitual”. Em algum momento, afirma o curador, aparecem na prática de Sheroanawe “processos como a serialização a repetição”, que já vimos em diversos trabalhos de artistas norte-americanos, europeus ou brasileiros.

“Mas a gente não faz essa leitura da obra do Sheroanawe e nem tenta canonizá-lo, no sentido de trazer sua produção para uma leitura ocidental”, pondera o curador. “O que eu acho, muitas vezes, é que o trabalho dele se encontra com todos esses trabalhos tidos como conceituais, minimalistas, mas ele tem uma natureza diferente. De alguma maneira, a presença dele subverte um pouco esse cânone, aquilo com que a gente está tão acostumado. O trabalho dele traz essas fricções, essas tensões”.

Para Mesquita, a escolha de Sheroanawe pela repetição, serialização ou minimalismo se dá “em referência às pinturas corporais da comunidade, numa busca por preencher todos os espaços possíveis, numa folha de papel, com um mesmo símbolo, que é um pouco dessa prática que a comunidade tem da pintura corporal de preencher todo o corpo com o mesmo desenho”, conclui.

Por fim, Ribeiro ressalta também como Sheroanawe tem um olhar muito sensível para a floresta e atribui uma grandiosidade para coisas às quais a gente mal dá importância, a exemplo de uma gota de orvalho numa teia de aranha pela manhã. Ele salienta, ainda, que o artista coloca tudo em pé de igualdade, seja a pintura facial, uma pata de animal, uma folha, tentando nos dizer que tudo isso é a mesma coisa.

“E não à toa esse foi o título que ele sugeriu para a exposição, tudo isso somos nós. Tudo aquilo constitui o povo ianomâmi. Não existe diferença entre o que é humano, o que é animal, o que é vegetal e o que é mineral. Tudo isso precisa ser conservado em conjunto, cuidado em conjunto. É um conceito de meio ambiente de uma sofisticação muito grande”. ✱

Colaboradores da edição #63

EDUARDO SIMÕES é jornalista de cultura, com passagens por O Globo e Folha de S.Paulo, na cobertura de cinema e literatura. Foi editor da arte!brasileiros, em 2015, e de diversos títulos de lifestyle. Ele assina os textos sobre Sheronawe Hakihiiwe, a 17ª edição da Verbo e uma entrevista com o antropólogo Néstor Canclini.

FABIO CYPRIANO, crítico de arte e jornalista, é diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP e faz parte do conselho editorial da arte!brasileiros. Neste número, entrevista a curadora Carolyn Christov-Bakargiev e escreve sobre o projeto Art of the Treasure Hunt, na Toscana, Itália.

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria se debruça sobre a individual Fotografia Habitada, de Helena Almeida, em cartaz no IMS Paulista.

NICOLAS SOARES é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre a revisão histórica impulsionada a partir do Sul Global.

PAULO HERKENHOFF é curador e crítico de arte. Autor de diversos livros, Herkenhoff também dirigiu diversas instituições de arte. Foi, entre outros, curador-chefe do MAM Rio e curador geral da 24ª Bienal de São Paulo. Herkenhoff escreve sobre O tempo espelhado, mostra de Marcos Zacariades, “uma obra épica”, em suas palavras.

Fotos: arquivo pessoal

Colaboradores da edição #62

BITU CASSUNDÉ foi curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e coordenou o Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema das Artes. Integrou a equipe curatorial do projeto À Nordeste, no Sesc 24 de Maio (SP). Vive e trabalha no Crato (CE), no Centro Cultural do Cariri. Nesta edição, escreve sobre o pintor Chico da Silva.


JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo, editor-assistente da Veja SP, editor na TV Gazeta e Carta Capital. Faz um raio X das mudanças no MinC, além de entrevistas com os novos presidentes do Iphan (Leandro Grass) e Ibram (Fernanda Castro).

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Para este número, Maria escreve sobre a recém-inaugurada Pinacoteca Contemporânea, de São Paulo.



TADEU CHIARELLI é curador, crítico de arte e professor titular no curso de Artes Visuais da USP. Foi diretor da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Também já atuou como curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Para esta edição, assina um artigo sobre o 8 de janeiro de 2023.


THEO MONTEIRO é bacharel em História e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. Atuou, de 2016 a 2020, como curador assistente no Instituto Tomie Ohtake e hoje trabalha na equipe curatorial da Galeria Nara Roesler. É de sua autoria o texto sobre o pintor José Antônio da Silva.

Fotos: arquivo pessoal

Processo de discussão pública do Plano Diretor foi uma ‘espécie de encenação’, diz Raquel Rolnik

Avenida Rebouças, eixo de transporte em São Paulo que vem passando por intensa verticalização. Crédito: Reprodução/Google Earth
Avenida Rebouças, eixo de transporte em São Paulo que vem passando por intensa verticalização. Crédito: Reprodução/Google Earth

A segunda votação da revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE), que estava marcada para acontecer nesta sexta-feira (23/6), na Câmara Municipal, foi novamente adiada, para 26/6. Se passar pelo Legislativo municipal, o texto substitutivo – que tem recebido duras críticas de urbanistas e entidades de classe, por ser considerado altamente desequilibrado em favor das forças do mercado imobiliário – seguirá para aprovação do prefeito Ricardo Nunes, que tem poder de veto. A arte!brasileiros conversou a respeito do assunto com Raquel Rolnik, arquiteta, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik. Cortesia do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAU USP
A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik. Cortesia do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da FAU USP

ARTE!✱ – Uma das principais críticas feitas em relação ao texto substitutivo do PDE é o completo descarte das diversas sugestões apresentadas à Câmara durante o processo de audiências públicas que antecederam a primeira votação do documento.

Raquel Rolnik – A aprovação desse substitutivo em primeira votação, por uma ampla maioria de vereadores, surpreendeu a todos porque boa parte do seu conteúdo não havia aparecido em textos anteriores. Depois descobriu-se que na verdade 70% do conteúdo do substitutivo vinha de uma proposta da ABRAINC, a Associação Brasileira de Incorporadores, ou seja, do setor imobiliário, que encaminhou formalmente as suas propostas para a Comissão de Política Urbana na Câmara. É totalmente legítimo um segmento econômico da cidade encaminhar suas propostas. Entretanto, é muito preocupante o fato de que, depois de um processo em que houve inúmeras manifestações em várias audiências, colocando necessidades de revisão do Plano Diretor aprovado em 2014, isso simplesmente não aparece, nesse substitutivo. O que mostra que todo esse processo de discussão pública é uma espécie de encenação, de performance.

O processo real decisório sobre o destino da cidade está sendo debatido num outro âmbito, que não é o da esfera pública. Acho que isso é um dos elementos que caracteriza a crise da nossa democracia. E eu posso assegurar que tem uma quantidade muito grande de vereadores que sequer leu o projeto do substitutivo, até porque ele é longuíssimo, complexo, dificílimo de entender. O que está definindo o destino da cidade sequer é uma opção consciente sobre o conteúdo desse projeto.

ARTE!✱ – Muitos urbanistas reclamam que a versão do PDE que chega agora à segunda votação nada traz sobre eventuais impactos ambientais e sociais, por exemplo. Estamos navegando no escuro?

Rolnik – O Plano Diretor em vigor desde 2014 foi sendo aplicado, e vários estudos já fizeram análises dos seus impactos. Foi a partir deles que várias propostas de mudança e revisão foram feitas. Ele, por exemplo, apostou muito numa estratégia de concentrar a população, por meio da construção de prédios mais altos, com mais gente morando em volta de estações de metrô e corredores de ônibus. A ideia era de que ali iriam viver as pessoas que usam transporte coletivo e que hoje tem menos acesso a boas localizações na cidade. Essa era a tese. Só que na aplicação concreta desses mecanismos, o que acabou acontecendo em boa parte desses chamados eixos foi uma distorção desta estratégia. Ali apareceram o metro quadrado mais caro da cidade de São Paulo, com a criação de micro-apartamentos de 20 a 25 metros quadrados, que nada têm a ver com moradia de interesse social. E também usaram todos os mecanismos, todas as formas de filigranas de interpretações do PDE, para não dizer fraudes, de modo a viabilizar apartamentos maiores e com mais vagas de garagem, portanto, para uma classe média e alta, o que não era a intenção do plano.

Além disso, o modelo de ocupação foi muito homogêneo, com prédios altos, e esse tipo de morfologia homogênea foi caindo em lugares muito diferentes da cidade, com características ambientais e culturais, por exemplo, distintas. As pessoas foram percebendo que seu local de morada estava absolutamente sendo destruído, descaracterizado, e elas estavam se sentindo expulsas. Isso precisa ser corrigido, de modo que em cada bairro possa se fazer uma avaliação do impacto de vizinhança, uma mudança na morfologia, para que ela não seja homogênea em diferentes bairros. O substitutivo, em vez de incorporar essas propostas que surgiram tão fortemente no debate a partir de estudos, vai ampliar de 600 metros para mil quilômetros a área liberada para construção. E no projeto original tinha uma limitação maior de verticalização nos chamados miolos de bairro. A nova versão também libera total essas áreas. É uma coisa que não só despreza a avaliação de impacto que foi feito, como também contraria completamente o resultado dessas avaliações.

ARTE!✱ – O objetivo do Plano Diretor aprovado em 2014 era aumentar a verticalização, mas com maior adensamento populacional nesses eixos de transporte, por exemplo. Isso, no entanto, acabou não acontecendo. Essa distorção parece ser ainda mais ensejada no substitutivo, não?

Rolnik – O que está sendo posto é uma verticalização generalizada, com um modelo único de produto imobiliário, que é aquilo que o mercado gosta e quer fazer na cidade, sem levar minimamente em consideração para quem, nem onde, quem está sendo incluído, quem está sendo expulso e qual é o impacto disso na conformação e na configuração da cidade.

ARTE!✱ – Para essa nova versão, havia de início uma proposta de não se incentivar a criação de mais vagas de garagem, mas isso também foi descartado, correto? 

Rolnik – Tem uma novela em relação a essa vaga de garagem: a proposta original, lá atrás, quando foi lançado o plano, era que esses essas novas unidades residenciais, junto aos eixos de transporte, não teriam garagem. No processo público isso absolutamente não se viabilizou e acabaram ficando com uma vaga de garagem. O setor imobiliário conseguiu inserir no plano que poderia haver até duas vagas de garagem durante três anos. Agora, no debate público, a prefeitura mandou para a câmara uma proposta de revisão que mudava o cálculo de quantas garagens e ampliava a possibilidade de fazer mais garagens. O substitutivo que o vereador Rodrigo Goulart apresentou, esse de que estamos falando, ele piora ainda mais porque ele defin. uma garagem para cada 60 metros quadrados de área construída. Ao fazer isso, ele estimula que se construa muito mais garagens do que hoje é permitido.

ARTE!✱ – Há uma proposta também de mudança nos mecanismos de contrapartida financeira do mercado imobiliário, a chamada outorga onerosa, paga quando uma incorporadora pretende construir acima do permitido em determinado lugar. Os recursos iriam para o recursos para o Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), para realizar investimentos em prol de objetivos, diretrizes, planos, programas e projetos urbanísticos e ambientais integrantes ou decorrentes do Plano Diretor. Isso também mudaria com a nova versão do PDE, correto?

Rolnik – Hoje, para você construir acima do coeficiente básico na cidade, que varia de um até quatro vezes a área do terreno, paga-se a outorga onerosa e os recursos são aplicados pelo FUNDURB, na produção de habitação de interesse social, no restauro e na preservação de patrimônio histórico, em áreas verdes e na mobilidade ativa. Nesse substitutivo do plano diretor existe a possibilidade dos incorporadores, em vez de pagarem esses recursos da outorga para esse fundo, fazerem eles mesmos as obras. Mas que obras? Onde? Isso não é definido. Está completamente vago, completamente na mão das próprias incorporadoras, tirando a dimensão pública, o interesse público desse processo.

ARTE!✱ – Em que medida o substitutivo se distancia das boas práticas de planejamento urbano em curso mundo afora? 

Rolnik – Hoje nós temos uma discussão super importante que tem a ver com a mudança climática, com a questão ambiental. Ela exige que a gente repense esse modelo de organização do espaço urbano no sentido da renaturalização, de maior respeito às águas e à forma como elas se comportam na cidade, por exemplo. Isso exige uma reflexão sobre as formas de ocupação predominantes que foram concebidas, digamos, no século passado, esse modelo de verticalização. E exige também a questão social: como a gente enfrenta um modelo absolutamente excludente de cidade, que faz com que o destino da cidade seja definido pelas possibilidades de rentabilidade do solo urbano para os investidores e não pelas necessidades da população? Sou professora de planejamento urbano há décadas, e uma das primeiras coisas que eu ensino a meus alunos é que um bom plano parte das necessidades de quem está no território. estamos fazendo um caminho muito perigoso no nosso urbanismo, cada vez mais voltado para as oportunidades e rentabilidade dos investidores e menos para as necessidades da população.

ARTE!✱ – Quem trafega hoje em São Paulo por vias como a Avenida Rebouças já se surpreende com a quantidade de torres que vêm sendo erguidas, numa área já quase colapsada em termos de trânsito…

Rolnik – A destruição que nós estamos vendo na cidade hoje é o plano de 2014. Era um modelo de edifício sem garagem, para quem ia usar o transporte coletivo exclusivamente, mas isso não foi respeitado. O atual modelo do PDE permitiu esse monte de distorções. Uma coisa seria a Avenida Rebouças com usuários de transporte coletivo, que estão lá para usar o metrô e o corredor de ônibus. E outra coisa é cada uma daquelas unidades residenciais terem dois ou três automóveis. Isso precisa ser corrigido.

ARTE!✱ – Ao mesmo tempo em que vemos esse grande número de novos empreendimentos, sabemos que a classe média brasileira está empobrecida, algo que se acentuou com a pandemia. A quem, afinal, destina-se esse imenso volume de novas unidades? Estamos diante de uma especulação imobiliária exacerbada?

Rolnik – Essa é a pergunta que não quer calar. Na verdade, uma parte importante desses imóveis foram adquiridos por investidores ou fundos de investimento, que têm uma enorme quantidade de capital excedente financeiro e encontram no imobiliário, no tijolo, uma possibilidade de rentabilidade muito grande, com uma aposta de médio e longo prazo, não imediata. Por isso, uma parte daquilo que foi comprado para investir, sequer entrou no mercado nesse momento, seja para a venda, seja para aluguel. Uma outra parte vai para todo um setor, um novo setor financeiro estruturado em torno do aluguel, inclusive do aluguel de curta permanência. Para os chamados nômades urbanos ou mesmo turistas, e  que captura uma parte do mercado, é capaz de pagar muito mais por metro quadrado do que os moradores permanentes do bairro. Isso tem provocado na cidade um enorme aumento de valores de aluguel. Eu diria que boa parte, uma parte importante do que foi produzido está vazia e permanecerá vazia porque funciona como um ativo, na mão de grandes gestores de investimentos que incluem ativos imobiliários.

ARTE!✱ – Há dez anos, quando discutíamos o PDE aprovado em 2014, três aspectos do planejamento urbano da cidade vieram à tona com força: ocupação do espaço público, mobilidade e construções de uso misto. Como ficaram essas questões?

Rolnik – A aposta do plano de 2014 foi em transporte coletivo de massa e mobilidade ativa, que inclui andar a pé e bicicleta. Então, a ideia do uso misto, a ideia de você ter bairros que misturam residência e serviços, tinha o objetivo fomentar uma mobilidade de proximidade, portanto uma mobilidade a pé. Você poderia resolver o seu consumo no cotidiano, inclusive consumo cultural, sem ter que se deslocar, podendo fazer isso nas proximidades. Entretanto, aconteceram essas distorções da aplicação do plano, que acabaram reiterando o modelo do automóvel, através das garagens, e a gente vê como isso é forte. A pressão foi enorme em favor do carro e voltou agora nesse substitutivo também. Por exemplo, para que uma das áreas de investimento do FUNDURB seja o recapeamento de vias para o automóvel. Essa mudança deve ser profundamente rejeitada. Vamos pensar na transição climática, nos veículos a combustão, que são derivados de petróleo, assim como o asfalto é derivado de petróleo. Não há perspectiva desse modelo de cidade continuar no futuro. É absolutamente necessário fazer essa transição.

 

Fundação Getulio Vargas lança o I Seminário Acadêmico de Economia do Mercado da Arte

Em 2016, Paulo Tenani, há 20 anos professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, criou um grupo de estudos sobre a Economia do Mercado da Arte dentro do FGV Invest, centro de estudos da instituição. Dois anos depois, juntou-se a ele e ao grupo sua ex-colega de graduação na Universidade de São Paulo, Katya Hochleitner, cuja carreira acadêmica enveredou, após o bacharelado em Ciências Econômicas, para um mestrado em Estética e História da Arte e um doutorado em Estética e História da Arte, ambos na USP. Ao longo de sete anos, o grupo cresceu, abrigando hoje mais de 60 membros. Com a pandemia, expandiu suas fronteiras para fora, por meio dos encontros por videoconferência, atraindo participantes do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e dos EUA. Consolidado, o grupo realiza em 21 de setembro o I Seminário Acadêmico de Economia do Mercado da Arte, evento que até o dia 30/6 está aberto para propostas de trabalhos.

Segundo comunicado da FGV, o objetivo do evento é “gerar um espaço de discussão para acadêmicos, pesquisadores e profissionais do mercado da arte, promovendo e divulgando pesquisas científicas e aplicadas relacionadas à economia do mercado da arte”. Para Tenani, o seminário é um desenvolvimento natural do grupo de estudos, que buscou cobrir toda a literatura existente acerca do tema. “Até 2020 tentamos descobrir quem eram os profissionais, onde estavam e quais as publicações já existentes. A partir daí surgiram as primeiras teses. Vieram também vários cursos ligados ao tema na escola, primeiro na graduação, em que o estudante acrescenta a cultura aos seus estudos de mercado. E, em seguida, veio um MBA na área. O momento agora é de expandir as fronteiras do conhecimento por meio do seminário”, diz o professor. Já Hochleitner destaca que o evento “é uma celebração de nosso grupo de estudos, que se abre para o mundo, com o objetivo de reduzir a falta de transparência do mercado”.

A falta de transparência, ressalta Hochleitner, é um dos obstáculos para o crescimento do mercado de arte no Brasil. Segundo ela, a chamada assimetria informacional, ou seja, a desigualdade no nível de informação entre diferentes agentes do mercado – galerias de arte, marchands, casas de leilão etc. –, pode ocasionar preços altos artificiais e favorecer, por exemplo, a comercialização de obras falsificadas, aspectos de ordem econômica que impedem a expansão do mercado.

Tenani compara o mercado de arte brasileiro ao financeiro, nos anos 1980, “quando ele vivia sob o domínio de Naji Nahas”, empresário libanês radicado no país, que atuou como especulador e em 1989 foi acusado como responsável pela quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. “As pessoas tinham medo de entrar. O mercado financeiro criou instituições para superar isso. O mercado da arte também tem tentado e, se um dia conseguir superar, talvez ele possa crescer como o financeiro cresceu. Ver outros casos para entender melhor o que se passa na arte é fundamental”, afirma Tenani. O economista argumenta que, ainda que a comparação não seja bem-vinda para muitas pessoas do segmento, o mercado de luxo pode dar lições ao da arte. “Ambos têm o mesmo tipo de consumidor, entre outras características em comum”.

Hochleitner lamenta a falta de estudos periódicos sobre o mercado, como o The Art Market, realizado anualmente pela Art Basel e pelo banco UBS, e em que o Brasil aparece apenas no contexto regional da América Latina. Até 2018, a Associação Brasileira de Arte Contemporânea divulgava uma pesquisa setorial, mas o trabalho foi pausado. “Foi o melhor que a gente teve no Brasil, até aquele ano. Mas esse relatório da Abact se limitava somente às galerias associadas e não tinha um enfoque quantitativo de vendas tão detalhado”, diz a professora.

Acerca do estado do mercado de arte no Brasil, Hochleitner argumenta que sua economia está diretamente ligada à do país. Quando a economia brasileira esteve bem, o mercado de arte seguiu a tendência, com as feiras nacionais recebendo diversas galerias estrangeiras de peso, como White Cube e Gagosian, entre outras. “Em 2013, o Brasil era a bola da vez, segundo o The Art Market, que hoje em dia aponta seu foco para a China, a África e já destacou também o mercado russo. Naquele início dos anos 2010, o Brasil aparecia na capa da revista britânica The Economist como país em ascensão, com o Cristo Redentor subindo como um foguete. A partir do momento em que a China explodiu e se internacionalizou, nosso mercado se voltou para dentro, mesmo. E quem compra arte, no Brasil, são os poucos colecionadores de sempre”, conclui.