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Construindo e desconstruindo

No interessante filme “A vida em preto e branco” (1998), do diretor Gary Ross, é pelo canal da TV que uma dupla de jovens regride da década de 1990 para a de 1950, incluindo-se na cotidianidade de uma pacata cidade e no recorte da moralidade da época. O diretor usa inteligentemente o preto-e-branco e a cor como referências do imaginário social existente. A filmagem está inicialmente em branco e preto e os elementos vão se colorindo na medida em que o erotismo vai se fazendo presente; mas o que quero ressaltar é que a bicromia serve fundamentalmente para mostrar os lugares dos homens e das mulheres estabelecidos e petrificados pela regulação social: as mulheres do lar que esperam o marido em casa com um sorriso na boca e o jantar pronto, enquanto os homens do espaço público retornam no fim do dia de trabalho, certos de que a cena se repetirá diariamente.

Não encontrar a mulher em casa um dia, porque foi para um “espaço colorido”, provoca um desequilíbrio na organização do lar que se estende para a cidade e que faz com que os homens se juntem no intuito de devolver a tranqüilidade à polis. Sendo que uma das regulações que se reafirmam é a de que as únicas cores permitidas são o preto e o branco, esta movimentação toda se faz para evitar uma fantasia que os aterroriza: “imaginem se chegar o dia em que as mulheres voltem à noite do trabalho e encontram os homens em casa cuidando dos filhos!”. Ou seja, imaginem se os lugares de gênero se deslocam…

O psicanalista Jean Laplanche valeu-se também das referências preto-e-branco/colorido para tratar dos conceitos de “diferença” e “diversidade”. A diferença implica uma polaridade e se coloca sempre entre dois termos, enquanto que a diversidade pode ser entre dois termos mas também entre muitos. Por exemplo a diversidade das cores, que é infinita pois sempre se pode inventar outra nova. Se há uma convenção que reduza a uma bicromia, como no filme mencionado, neste caso o que não é branco é preto. Mas se não for  assim, o que não é branco pode ser de qualquer outra cor.

Agora, uma cor é um atributo que adjudicamos a um sujeito como “qualidade” ou como “insígnia”, ou seja, qualidade como cor que o pinta – e neste caso não há contrários – ou como insígnia, por exemplo quando se trata de times esportivos, onde dizer “os verdes” ou “os azuis” é criar dois campos, que são campos de valor, opostos e contraditórios. Neste caso a cor não designa a imagem da coisa, mas “é a insígnia que cria aquilo que simboliza”, ou seja cria o campo político e social. Alguém é portador do verde, ou verde e o azul não são contrários, mas como insígnia passam a sê-lo. Passa-se assim da diversidade das cores à diferença dos campos: campos de contrários, de oposições e às vezes de ódio. Durante muito tempo a concepção binária da sexualidade, com atribuições de lugares cronificados, vem estabelecendo relações de valor e desvalor, com desigualdades e hierarquias.

As narrativas que permearam o imaginário da modernidade, construídas com base nos mitos do amor romântico, da mulher só mãe e da passividade erótica, criaram subjetividades de mulheres dóceis

A partir da revolução francesa e de seus lemas de igualdade, liberdade e fraternidade, as mulheres começaram a reivindicar seus direitos, mas se passou muito tempo para que transformações significativas acontecessem. Mostra disto é que no final do século XIX imperava a dupla moral vitoriana, consequência da organização patriarcal que dividia o lugar das mulheres entre “mães” e “vulgares”, esvaziando de erotismo o imaginário das primeiras e separando o espaço público como lugar de saber e poder para os homens, deixando o lugar privado do lar dos afetos e dos cuidados para as mulheres.

As narrativas que permearam o imaginário da modernidade, construídas com base nos mitos do amor romântico, da mulher só mãe e da passividade erótica, criaram subjetividades de mulheres dóceis, passivas ainda quando rainhas do lar, e de homens fortes, violentos, heróis e ativamente dominadores. Subjetividades que não foram reconhecidas como feitas a partir dos lugares instituídos e sim tomadas como essências universais e imutáveis: na modernidade, no seio da organização patriarcal, os lugares do feminino e do masculino foram pensados como categorias identitárias, enlaçando sexo, gênero, escolha de objeto e prática sexual.

Foi no final do século XIX que Freud tratou as histéricas de sua época e a partir desta clínica construiu os alicerces de sua teoria: os conceitos de pulsão, desejo, inconsciente, identificação, mas ao mesmo tempo com elas pode reconhecer o lugar do feminino no mal-estar cultural do momento. Freud localizou no sufocamento da sexualidade, consequência da moral repressora da época, um determinante importante do surgimento das neuroses. Moral repressora que criara indivíduos mais medrosos para a vida e mais angustiados com a morte, mas que atingia mais fortemente as mulheres, já que a sociedade exigia delas inocência e ignorância para mantê-las longe da “tentação”, já que a sexualidade só lhes era permitida dentro do casamento.

Nos dias de hoje, assistimos transformações importantes dos imaginários sociais, de suas práticas, narrativas, subjetividades e corporeidades, assim como das “lógicas coletivas sobre as sexualidades”. Muito escutamos falar hoje das lógicas das diversidades, mas não teríamos chegado até aqui sem passar por todo o processo de desnaturalização e dessencialização que os movimentos feministas e os grupos de estudos sobre o lugar das mulheres instituíram desde a década de 1960, com importantes reflexões, polêmicas e práxis que questionaram o supostamente “natural”. Estes grupos e movimentos agiram, na concepção do pensador grego-francês Cornelius Castoriadis no “instituído”, para abrirem brechas “instituintes” e narrativas inéditas. O pensamento de Castoriadis foi fonte importante para aqueles que, desde a segunda metade do século passado, vem trabalhando no sentido da desnaturalização das subjetividades e das sexualidades.

Castoriadis, que foi um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século XX, nos ofereceu um conceito muito fértil para pensar tanto a criação da instituição social, como suas mudanças, descontinuidades e rupturas: o conceito de “imaginário social”. Na tentativa de limitar o avanço de pensamentos demasiadamente estruturalistas ou deterministas de sua época, pensou na realidade da sociedade como uma criação, não porque não existam determinações mas porque, como criações que são, em cada momento da história podem ser substituídas por outras novas.

Como o autor o afirma, não daria certo pensar a filosofia ou a psicanálise sem levar em conta a história, assim como não seria possível pensar uma existência psíquica que não seja construída no interior do processo de inserção na cultura

O imaginário do qual o autor trata não é entendido como especular, não é “imagem de”, e sim criação incessante, social e psíquica, de figuras, imagens, formas, é um “magma” de significações imaginárias que determinam as formas de sentir, pensar e desejar dos indivíduos. Isto faz com que a vinculação entre os indivíduos se dê nesse fluxo de formas que podem, por sua vez, ser transformadas pelas práticas individual e coletiva, criando um estilo de viver, amar, sofrer e morrer, e que por sua vez constroem subjetividades.

O imaginário se encarna nas instituições, que através de seus discursos tanto possibilita quanto restringe as ações dos sujeitos, tendo portanto efeitos práticos. As falas e fazeres provenientes das práxis individuais e coletivas constituem redes de significação, sendo exemplos de significações sociais o homem, a mulher, a criança… tais como especificados numa sociedade. As instituições são realidades fluidas que não podem ser entendidas pela lógica conjuntista-identitária e que estabelecem uma dinâmica permanente entre o instituído e instituinte, permitindo alterar o existente e fazer surgir o inédito.

Como o autor o afirma, não daria certo pensar a filosofia ou a psicanálise sem levar em conta a história, assim como não seria possível pensar uma existência psíquica que não seja construída no interior do processo de inserção na cultura, o que aproxima seu pensamento do fundador da psicanálise Sigmund Freud – que mais de uma vez afirmou que não se pode dissociar o individual do social e que o psiquismo se constrói na história singular, mas inserida num “mal-estar cultural” próprio do momento.

Será também na segunda metade do século XX que os movimentos feministas questionarão a opressão patriarcal sobre a sexualidade das mulheres, e que os avanços nas técnicas anticoncepcionais começarão a desvincular a sexualidade da procriação, com efeitos importantes nas subjetividades. As mulheres vão ocupando novos espaços e se encarregam de mostrar que os lugares fixos não eram da essência feminina e sim dos valores da época.

O imaginário feminino se alarga, o que traz consequências para os caminhos pulsionais e identificatórios na história de uma construção singular.

Na década de 1980, começam a ser questionados os efeitos do patriarcado na construção das masculinidades e surgem propostas sobre as “novas masculinidades”, que incluem os homens em práticas e lugares que antes não ocupavam e que incluem nos homens e suas subjetividades aspectos antes excluídos e que os enriquecem: a sensibilidade, a afetividade, a capacidade de cuidar, etc.

Desde a realidade dos corpos e das vidas surgem novas imagens e vivências que se incluem no fluxo do imaginário social

Os avanços científicos seguem em ritmo acelerado, a separação entre sexualidade e procriação, a partir dos anticoncepcionais, só se acentua com as técnicas de inseminação artificial e fecundação in vitro. Nas predições dos estudiosos, a possibilidade da procriação inteiramente fora do corpo da mulher acena no horizonte, apesar das pesadas críticas dos conselhos de ética. Os métodos de Reprodução Assistida, as cirurgias para adequação do corpo ao gênero e outros avanços ampliam o “corpo erógeno”, solicitando trabalho psíquico e acompanhamento dos efeitos inconscientes produzidos.

Desde a realidade dos corpos e das vidas surgem novas imagens e vivências que se incluem no fluxo do imaginário social. As novas realidades interrogam os vínculos de parentesco, as mudanças dos lugares de gênero mudam as organizações familiares; os corpos mudam e solicitam transformações do simbólico. Novos mitos imperam: o corpo perfeito, a juventude eterna, o amor efêmero.

Nos últimos anos passa-se a entender que não basta se questionar a desigualdade e a hierarquização entre homens e mulheres, é necessário pensar também nas desigualdades que se estabeleceram entre as sexualidades que seguem o modelo heteronormativo e as outras sexualidades que ficam patologizadas, desvalorizadas.

O pensamento binário sobre a sexualidade é posto em cheque; mais do que isto, é a chave identitária que está sendo questionada. É necessário pensar as sexualidades em chave identitária? Aquilo que é da ordem do estar com, a escolha do parceiro, ou de uma pratica sexual, tem que ser transformado em algo da ordem do ser? Há que se pensar em categorias ou podemos pensar em processos identificatórios complexos e permanentes que resultem em combinatórias singulares?

A realidade sempre nos interroga, mas talvez com maior força nos momentos nos quais no imaginário social o instituinte abrange um espaço muito grande; nos momentos de muita transformação ética, estética e política.

Em um mundo em que se constroem muitos muros, alguns de tijolos e outros de preconceitos, para evitar o contato com os diferentes, também estão se desconstruindo alguns; alguns corpos cobram visibilidade que não tinham, algumas subjetividades atravessam fronteiras antes intransponíveis, sujeitos contemporâneos incorporando algum nomadismo transitam por territórios diferentes e os pesquisadores tentam abrir as fronteiras entre saberes, não para perderem sua especificidade mas para que a complexidade não lhes escape. Entre avanços e retrocessos, aberturas e fechamentos, fragilizações da organização patriarcal e retornos violentos da mesma, vamos caminhando…

* Psicanalista, Silvia Alonso é supervisora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do grupo de pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. Ela é uma das colunistas do páginaB!.

REFERÊNCIAS

Castoriadis, C. La institución imaginaria de la sociedad. Buenos Aires: Tusquets, 2007.
Fernandes, A. Las lógicas sexuales: amor, política y violências. Buenos Aires: Nueva Vision, 2012.
Laplanche, J. Problemáticas II: Castração – simbolizações. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
A vida em preto e branco. Direção e Produção: Gary Ross, 1998, DVD (124 min).

Dória ignora um dos vértices do Hip-Hop

Grafite da dupla Os Gêmeos em homenagem ao álbum Hip-Hop Cultura de Rua, coletânea, lançada em 1988, que ajudou a difundir o movimento no País ao dar voz a pioneiros como Thaíde e DJ Hum, MC Jack e Código 13. Foto: Reprodução / Facebook

Na penúltima edição da Bienal Internacional Grafitti Fine Art, realizada em São Paulo, em janeiro de 2013, um dos convidados para a série de debates promovidos pelo evento foi Paulo Mendes da Rocha, arquiteto e urbanista brasileiro de prestígio internacional. Questionado sobre o que pensava sobre o grafite, Mendes da Rocha, na época com 84 anos, afirmou: “Me parece a voz mais candente, hoje, das artes gráficas em geral”.

Ao lembrar que há milhões de anos o homem já deixava nas cavernas evidências visuais de sua passagem pela Terra, o arquiteto concluiu: “A grande novidade foi a invasão do espaço público pelas camadas mais populares de todas as cidades do mundo. Portanto, para mim, salve o grafite!”.

A difusão global do grafite destacada por Mendes da Rocha é um fenômeno iniciado nos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1970, graças ao surgimento, em cidades como Nova York e Los Angeles, de expressões artísticas que convergiram para estabelecer os três elementos do Hip-Hop: o rap (sigla para “música e poesia”), composto pelo DJ e o MC; os b-boys e b-girls, garotos e garotas que dançam ao som do rap; e o próprio grafite.

Respeitada mundialmente como porta-voz da juventude segregada em regiões periféricas das grandes urbes, a tríade de linguagens que consolidou o Hip-Hop como uma das mais importantes manifestações culturais do século XX encontra na São Paulo de 2017, no entanto, um ambiente hostil, graças à cruzada higienista decretada pelo recém-empossado prefeito João Dória Jr. (PSDB-SP).

Ao anunciar a criação do programa Cidade Linda, no dia 30 de dezembro, Dória antecipou que destinaria tolerância zero a pichadores, e informou também que pretende desenvolver um programa de formação de grafiteiros, chamado Arte Urbana, além de criar na cidade um “grafitódromo”.

Segundo Dória, o projeto será coordenado pelo muralista Eduardo Kobra. Conhecido, dentro e fora do País, pelos retratos multicoloridos de grandes personalidades sobrepostos por temas geométricos, Kobra, no entanto, afirmou que desconhecia a iniciativa e que, devido a uma demanda de 28 painéis que produzirá em Nova York até novembro deste ano, não vai colaborar com o programa da prefeitura.

Garoto propaganda do Cidade Linda, Dória foi flagrado, no último sábado (14), trajando um uniforme laranja e cobrindo um grafite na avenida 23 de Maio, no centro da cidade, com um jato de tinta cinza. Na operação anunciou também que determinará oito espaços reservados para o grafite naquela via pública e que extinguirá as pinturas que ilustram os chamados “Arcos do Jânio”, instalados no início da 23 de maio, avenida que liga as zonas norte e sul da cidade.

 

Em sua página pessoal no Twitter, João Dória Jr. divulga ação do programa Cidade Linda. Na imagem anexada, o prefeito de São Paulo apaga um grafite na avenida 23 de Maio. Foto: Reprodução / Twitter

Ao defender o grafite como alternativa artística ao picho, Dória, em contrapartida, ignora quatro décadas de importância histórica da expressão visual para o Hip-Hop. Apagar compulsoriamente muros e muros da cidade impregnando as paredes de cinza e querer determinar espaços exclusivos para a prática do grafite é também desconsiderar a autonomia de uma expressão que sempre foi livre e sempre possibilitou manifestações legítimas das camadas menos visíveis de sociedades desiguais, como a nossa.

A ausência de diálogo com a comunidade do Hip-Hop, presente em São Paulo desde o início dos anos 1980, evidencia, neste caso, um comportamento arbitrário da nova gestão municipal. Querer gerenciar a produção de grafite na cidade é como querer intervir na capoeira e tirar da roda o berimbau, não faz o menor sentido.

No comunicado oficial sobre o projeto Cidade Linda publicado no site da Prefeitura, chama atenção o trecho a seguir: “O principal objetivo é a melhora na zeladoria urbana e o resgate da autoestima do paulistano, em ação integrada entre poder público, iniciativa privada, ONGs e cidadãos”.

Parcerias a parte, como gestor da maior cidade da América Latina, João Dória devia saber o quanto o Hip-Hop elevou – e continuará a elevar – a autoestima da juventude periférica de São Paulo. Negar a livre manifestação dessa camada expressiva de nossa sociedade é também negar a cidade em sua essência.

Vale lembrar, por fim, que os mutirões de assepsia, bem-vindos no aspecto de manutenção dos espaços públicos, provavelmente terão efeito temporário com relação ao grafite. Afinal, a proliferação de muros cinzas em São Paulo é também um convite aberto a novas intervenções. Como diz uma provocação replicada em vários pontos da cidade: “Eu picho e você pinta / Vamos ver quem tem mais tinta”.

MAIS
Na tarde desta segunda-feira (16), o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) publicou em sua página oficial no Facebook a foto abaixo de seu gabinete, recém-grafitado pela artista Mari Mats. No post, também divulgou a seguinte mensagem: “O grafite é uma forma de arte original, de rua, inclusiva e democrática. Rejeita restrições e regras fixas, incentiva a participação popular. Transformou-se em uma cultura de resistência à segregação social e urbana. Eu estimulo essa importante manifestação cultural e artística, destinando uma das paredes de meu gabinete à obra da artista Mari Mats”.

O vereador Eduardo Suplicy (PT-SP) apresenta o grafite recém-pintado em seu gabinete. Foto: Reprodução / Facebook

CONTEÚDO!Brasileiros
– Leia entrevista com Paulo Mendes da Rocha, capa de nossa edição 108, de julho de 2016.
– Leia também a reportagem No Fio da Navalha, de Leonor Amarante, ex-editora da revista ARTE!Brasileiros, sobre a ascensão do grafite como expressão artística.

Fela made in Brasil

Do big beat ao hip-hop; do hip-hop ao soul-jazz e o funk; do funk aos ritmos africanos, com uma passagem obrigatória pela irrepreensível obra do nigeriano Fela Kuti: em resumo, a trajetória inicial do pesquisador musical Frédéric Thiphagne, pode ser, assim, reconstituída. Em 2008, o francês de Lyon, que viveu de 2009 a 2011 em Paris, deu início ao blog Les Mains Noires (em tradução livre As Mãos Negras: lesmainsnoires.blogspot.com). Nele, Thiphagne explora seus dois maiores interesses: compartilhar preciosidades de seu garimpo musical e publicar entrevistas de outros pesquisadores, quando tem a possibilidade de produzir retratos desses personagens em seus hábitats.

Ao chegar ao Brasil, no final de 2011, e se deparar com o elevado custo das reedições de históricos LPs e compactos importados, Thiphagne decidiu abrir um selo de distribuição, o Goma Gringa, para importar obras de gravadoras europeias e americanas. Ao lidar com os impasses burocráticos e tributários da alfândega brasileira, concluiu que, por mais nobre que fosse sua missão, ela seria enterrada na vala comum da inviabilidade comercial. “No Brasil, constatei que as reedições custavam três, quatro vezes o valor praticado na Europa. Algo que me deixou chocado, pois disco é cultura e o Brasil sempre soube disso, tanto é que havia essa frase estampada na contracapa dos álbuns lançados aqui. Para mim, produtos culturais têm de ter o preço mais acessível possível. Na Etiópia, penso eu, os discos deveriam ser gratuitos. É um povo que tem uma cultura musical das mais ricas, mas que, ironicamente, não pode consumir a própria cultura.”

Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti
Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti

Com o declínio dos planos de importação e a chegada de um novo sócio, o Goma Gringa começou a vislumbrar outros horizontes. Thiphagne juntou-se a seu primeiro cliente no País, o conterrâneo e músico Matthieu Hebrard, radicado no Brasil há 12 anos. Formado em violoncelo e contrabaixo acústico, em Paris, Hebrard consolidou parcerias com brasileiros e se prepara, agora, para lançar um álbum com o projeto Quebrante, no qual toca baixo, canta e divide composições com Thiago França, Marcelo Cabral e o DJ Will Robinson. A afinidade entre Thiphagne e Hebrard logo apontou caminhos mais longevos para o selo, com uma decisão aparentemente simples: se importar os discos elevariam tanto o custo, por que não produzi-los por aqui? E a concretização de tal ideia é um marco zero em grande estilo. Depois de negociar com a família do músico (morto em 1997), o Goma Gringa será o primeiro selo a produzir no Brasil um álbum do pai do afrobeat, Fela Kuti, o emblemático Sorrow, Tears and Blood, lançado originalmente em 1971, pelo selo Kalakuta Records (o disco pode ser comprado no portal www.gomagringa.com).

A reedição reproduz a arte original e traz duas boas surpresas: um pôster encartado e o registro da faixa que dá título ao disco, com um arranjo de 16 minutos (a original tem 10’16”). A gravação foi especialmente concedida pela família de Fela. Outra boa nova é que a Goma Gringa pretende estabelecer via de mão dupla e lançar artistas brasileiros pelos selos que aqui representa. É o caso do germânico Analog Africa, que encomendou a Thiphagne uma coletânea dupla em LP com o melhor da produção setentista do carimbó, gênero paraense eternizado por artistas como o patrono Mestre Verequete e Pinduca. Em tempo: apesar de o francês conhecer a gíria “goma” (que significa casa) o nome do selo é a soma de goma-laca, matéria-prima dos extintos compactos de 78 rpm, e a origem das obras que se propõe a lançar.

Prelúdio da consagração mundial do compositor e arranjador Eumir Deodato

queles que desconhecem a dimensão da importância do carioca Eumir Deodato, alguns fatos: ele havia acabado de completar 18 anos quando um certo Antônio Carlos Jobim encomendou seus préstimos para orquestrar canções; precoce e solícito, também ajudou a formar outro grande arranjador, o pianista Cesar Camargo Mariano; antes de lançar Prelude (tema de hoje em Quintessência) a convite do manda-chuva da CTI, Creed Taylor (daí o nome do selo: as iniciais acrescidas do “incorported”), Deodato já havia escrito arranjos para dois de seus ídolos, o guitarrista Wes Montgomery e Frank “The Voice” Sinatra.

Mas Eumir Deodato de Almeida, nome de batismo do menino prodígio, é muito mais do que isso. De “catedrático” do samba-jazz, liderando o grupo de nome acadêmico, a “Embaixador do Funk”, epíteto atribuído a ele nos EUA, Deodato é dos talentos mais completos a surgir naquele inspirado Brasil do início dos anos 1960. Como compositor, arranjador, produtor e músico, conquistou o mundo. Vendeu mais de 25 milhões de álbuns e tornou-se artista dos mais requisitados na indústria fonográfica mundial. Até mesmo a cantora Bjork, de seara musical completamente adversa, requisitou os préstimos de arranjador de Deodato nos álbuns Homogenic, Post eTelegram.

Capa do álbum “Prelude”. Foto: Divulgação / CTI Records

O primeiro capítulo dessa consolidação global foi escrito com Prelude. Como o título sugere, o LP foi só a preliminar de uma carreira impecável. Impulsionado pelo arranjo de Deodato para Also Sprach ZarathustraPrelude vendeu milhões de cópias e chegou ao terceiro posto da parada Pop da Billboard. O segredo? A apropriação ímpar e funky do tema de Richard Strauss a partir da versão de Karl Bohm e Orquestra Filarmônica de Berlim que está presente na trilha sonora de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.

Produzido por Creed Taylor e gravado entre os dias 12 e 14 de setembro de 1972 no legendário estúdio do produtor Rudy Van Gelder, engenheiro de som do LP,  o LP foi lançado em janeiro de 1973. Se o produtor e o engenheiro de som eram mais que insuspeitos, o que dizer do time de músicos reunidos para as sessões de estúdio?

Tome fôlego, caro leitor: Ron Carter e Stanley Clarke (contrabaixo); Ray Barreto (congas); Billy Cobham (bateria); Hubert Laws. Phil Bodner,  Romeo Penque e George Marge (flautas); Jay Berliner e John Tropea (guitarras); Airto Moreira (percussão, leia post de Quintessência sobre o álbum Fingers); Charles McCracken, Seymour Barab e Harvey Shapiro (cellos); Peter Gordon e Jim Buffington (french horn); Garnett Brown, George Starkey, Paul Faulise e Wayne Andre (trombones); John Frosk, Mark Markowitz, Marvin Stamm e Joe Shepley (trompetes); Emanuel Vardi e Al Brown (violas); Elliot Rossoff, Emanuel Green, Gene Orloff, Harry Lookosfsy, Paul Gershman, Max Ellen e David Nadien (violinos).

Quanto a Deodato coube a ele pilotar dois instrumentos com sua usual maestria: piano acústico e piano elétrico, no caso deste último, o legendário Fender Rhodes Mark I. Os arranjos também são todos do carioca. E impressionam pela destreza em transformar tradições sem cometer heresias. Com a mesma reverência presente na releitura de Strauss, Deodato também subverteu a obra de um dos compositores mais influentes para a bossa nova, Claude Debussy, em Prelude To Afternoon of a Faun. E fez o mesmo com um standard da canção norte-americana, Baubles, Bangles and Beads, de George Forrest e Robert Wright, dupla que também deu ao o mundo o clássico Strangers in Paradise.

E o que dizer das composições do próprio Deodato? Carly & CaroleSpirit of Summer (tema que foi surrupiado na trilha do filme O Exorcista) e September 13 (escrita em parceria com o baterista Billy Cobham no segundo dia de registros do álbum, daí o nome) são irresistíveis, à primeira audição – a despeito dos outros temas, mais afeitos a arranjos eruditos, exigirem dedicação maior do ouvinte, na velha e saudável lógica do álbum que cresce a cada nova escuta.

Prelude foi seguido por outra obra-prima, Deodato 2, e abriu caminho para uma série de álbuns norte-americanos, todos impregnados da sofisticada arte de criação e reinterpretação de Eumir Deodato. Àqueles que desconhecem sua discografia, sobretudo os álbuns feitos anteriormente por ele, no Brasil, bom conselho é: corra já atrás deles!

MAIS 

Ouça o álbum Prelude na íntegra

Veja Eumir Deodato e orquestra em apresentação na TV italiana RAI

Renato Costa – O artista de rua

Paulistano do Jd. Iporanga, zona sul da capital, Renato trabalha desde os 8 anos de idade para ajudar na renda familiar. Mas, foi aos 18, pelas festas raves, que teve o primeiro contato com o circo e os malabares. A partir daí, passou a fabricar suas próprias claves e a comercializar algumas para os amigos. Viajou para o Chile e Argentina três vezes, na missão de vender materiais circenses, até que assaltaram sua oficina. Renato foi para as ruas, encontrou um bom ponto no farol da Rua Estados Unidos com a Av. 9 de Julho, no Jardim América, e lá está há mais de 7 anos. De cima de um monociclo de 3 metros de altura que ele próprio fez, Renato cria seus números e performances de farol inspirados em temas do cotidiano. No vermelho que consegue arranjar o seu ganha pão. Em dias ruins, tira em torno de 50 reais. Em bons, chega a tirar até 200, mas tudo depende do trabalho que apresenta, do tempo em que permanece no farol e da sua vibração do dia. É um misto de ator, diretor, produtor e circense. Ele ainda sobrevive do circo e sonha, um dia, chegar nas ruas da Europa para propagar sua arte.

Andressa Faiad – A estilista sustentável

Ela nasceu em Brasília, em uma família árabe tradicional, viveu entre o concreto modernista da cidade e as cachoeiras místicas da Chapada dos Veadeiros. Passou no curso de moda da Faculdade Santa Marcelina em São Paulo, mas sua mãe, por medo da cidade, não deixou que ela fosse viver lá. Então, como na época ainda não existia curso superior de moda na capital federal, Andressa foi cursar comunicação em publicidade. Há 6 anos, ainda na universidade, criou sua oficina Callicore. Escolheu o nome por ser uma espécie de borboleta com diversas variações de cores. Depois de desenvolver um pouco de seu trabalho de estilista artesanal em Brasília, ela foi tentar, há um ano, a vida em São Paulo. Com suas oficinas, tenta capacitar pessoas de comunidades carentes a produzir e reciclar a própria moda. E, aos poucos, em sua casa/ateliê, na Vila Mariana, ela desenvolve sozinha suas coleções com peças únicas e retalhos reaproveitados das sobras têxteis de grandes indústrias.

Naaliel Garzola – O taxista aprendiz

Naaliel é taxista por profissão e curioso por vocação. Sempre teve muito interesse pelos mais variados assuntos. Costuma ler de tudo e nem a agitada rotina impede sua fome por conhecimento. No intervalo entre uma corrida e outra, sempre arranja um tempo para bisbilhotar um livro. Em seus 48 anos de vida já fez um pouco de tudo, porém não lembra de ter sido tão feliz profissionalmente como quando ingressou na UTI de um hospital como atendente de enfermagem. Em uma rasteira da vida, seu cargo foi extinto e Naaliel viu se agravar um problema que sempre lhe atormentou: o alcoolismo. Em dois anos perdeu tudo, até sua esposa. Felizmente, venceu a doença e tem orgulho em dizer que não bebe há seis anos. Para dar um descanso ao pai, assumiu a função de taxista há pouco tempo em um ponto próximo a PUC-SP, onde tem prazer redobrado em trabalhar, já que frequentemente bate papos acadêmicos com os alunos. Com dois filhos já casados, pensa em retomar os estudos em breve e, quem sabe, retornar à área da saúde.

Fávio Zarza – O afinador de pianos

Há mais de 10 anos, o grafiteiro e ativista Mundano colocou no centro de seu trabalho a vida dos catadores de material reciclável. Pintando carroças e amplificando as vozes dos principais responsáveis pela reciclagem de produtos no Brasil, o artista se tornou referência na defesa dos catadores. Hoje ele atua na ONG Pimp My Carroça, que produz atividades ao lado de carroçeiros de todo o país.

Georges Henry – Multimaestro

A música na vida de George Henry sempre teve idas e vindas, mas nunca deixou de fazer parte. Nascido em Paris na década de 1920, estudou música desde muito cedo. Na juventude, George encantou-se pelo jazz e começou a tocar trompete inspirado por Louis Armstrong, seu ídolo e que mais tarde se tornaria um amigo. Durante a Segunda Guerra mundial, Henry saiu da França contratado pela Orquestra Cubana. Viveu em Buenos Aires, foi amigo do músico e compositor Henry Salvador, mas foi no Brasil que se fixou, primeiro como cantor no Cassino Copacabana e depois, com a sua própria orquestra, ficou em São Paulo como diretor musical da antiga TV Tupi. Foi quem levou, pela primeira vez, a música clássica para a televisão brasileira. Hoje, George, aos 89 anos, pode ter perdido o fôlego para o trompete e as cantorias, mas não para viver. Hoje dá aulas de espanhol, francês e inglês entre Amparo e São Paulo, indo e voltando semanalmente.

Renata Sbrighi – A sanfoneira

Renata Naccarato Sbrighi Oggiam carrega o extenso nome de família italiana. Seus avós foram dos primeiros a imigrarem para o bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo. O avô fundou o primeiro posto de gasolina e a primeira pizzaria do bairro. O pai, jogador de futebol, fez parte do primeiro time do Palestra Itália e deixou a ela o gosto pelo esporte. Renata já foi da Seleção Paulista de Vôlei. Sob influência da mãe acordeonista, Renata começou a tocar piano aos 6 anos. Fundou o Conservatório Musical da Lapa, que funcionou até 1986 e depois se tornou Escola Livre de Música, hoje localizada em sua casa, no coração da Lapa. Em meio aos animais, à sanfona cor-de-rosa e aos muitos alunos, músicos, filhos e parentes, Renata dá aulas de piano, acordeom e teclado para crianças, adultos e senhoras. Em paralelo, mantém a Orquestra Sanfônica de São Paulo. Há dois anos, a acordeonista fez suas primeiras tatuagens, uma clave de Sol e uma de Fá. A música está em todos os detalhes de sua alegre casa.