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Marcos Valle aberto para balanço

O cantor e compositor carioca Marcos Valle.
O cantor e compositor carioca Marcos Valle. Foto: Divulgação / Far Out Recordings

Em 1959, o lançamento do álbum Chega de Saudade, a estreia luminar de João Gilberto, foi como um renascimento para a música popular brasileira. Os estatutos de João, defendidos com a força de seu violão, seu canto sussurrado e o lirismo econômico de suas canções e de Vinicius de Moraes passaram a nortear a produção daquele início de anos 1960. Na virada de uma década encerrada com a modernidade desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, uma transição sem precedentes também acontecia em nossa música popular. Saíam de cena a dramaticidade herdada do bolero, o romantismo exacerbado das letras passionais e o recorrente histrionismo vocal para dar lugar ao despojamento temático e à sofisticação harmônica da bossa nova. Logo público e mercado acolheriam novos compositores, como Tom Jobim, João Donato, Roberto Menescal, Johnny Alf e Carlos Lyra.

Foi nesse ambiente prolífero e estimulante que o jovem compositor Marcos Valle iniciou sua carreira profissional aos 20 anos de idade. Um dos artífices da chamada segunda geração de bossanovistas, escoltado pelo irmão e inseparável letrista, Paulo Sergio Valle, o cantor, compositor, pianista e violonista carioca debutou em registro fonográfico em 1963, como um discípulo ortodoxo de João Gilberto, com o álbum Samba Demais. Artista plural, sua carreira logo se desdobrou em vertentes marcadas pelo hibridismo de gêneros musicais. Defendendo um som universal análogo às propostas do tropicalismo, mas sem fazer disso uma questão panfletária, a bossa de Marcos Valle ganhou acentos de baião, funk, soul, jazz, rock e até tango.

É o que deixa evidenciar a recém-lançada caixa Valle Tudo, que compila em 11 CDs a produção completa do compositor para a gravadora Odeon (hoje, EMI). Reunindo todos os títulos lançados pelo músico entre 1963 e 1974, Valle Tudoainda traz um disco inédito, que ganhou o nome The Lost Sessions, resgatado por Charles Gavin nos arquivos da gravadora. Seria o terceiro disco de carreira de Marcos, mas foi engavetado logo após a segunda ida do artista aos Estados Unidos, em 1966, motivada pelo grande sucesso de Samba de Verão.

Somados ao CD Estática, lançado em 2010 pela Far Out Recordings, selo inglês que representa o cantor desde 1997, os 12 títulos motivam uma revisão da importância da obra dos irmãos Valle e também dos rumos tomados pela MPB nos anos 1960 e 1970. Ao longo de duas horas, conversamos com o cantor, compositor e arranjador, que reside no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, e havia completado 68 anos na véspera da entrevista a seguir.

Brasileiros – Você, quando criança, era louco por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Como é que um garoto carioca, de Copacabana, foi se interessar por essa música tão nordestina?
Marcos Valle – Meu pai gostava muito de música popular e não perdia um disco do Gonzagão, do Jackson e do Dorival Caymmi. Papai se chamava Eurico Paulo Valle – era advogado, morreu há 19 anos – e era muito aberto à música produzida no Norte e no Nordeste, pois, com exceção de meu avô materno – que veio da Alemanha, mas também foi morar em Belém, onde conheceu minha avó – toda minha família é do Pará. Além do baião, chegava o Carnaval e eu ficava louco com as marchinhas e os sambas. Essa força da música popular mexeu muito com minha cabeça de criança, mas ao mesmo tempo havia a influência erudita da minha avó materna, Alice, que tocava piano clássico. Mamãe, que se chamava Liselotte, ia frequentemente à casa da minha avó para tocar piano, e lembro que eu ficava fascinado ao ouvir as duas tocarem. Comecei a mostrar interesse pelo instrumento, vez ou outra dedilhava o piano, até que as duas passaram a suspeitar que eu tinha alguma inclinação para a música. Quando eu estava prestes a completar 6 anos, resolveram me levar a um conservatório, em Ipanema, para as professoras avaliarem se eu tinha mesmo alguma vocação ou se era apenas um deslumbramento de mãe e de avó. Fiz alguns testes, concluíram que eu tinha grande vocação e me aconselharam a começar estudar, imediatamente.

Tempos depois você se também se interessou pelo acordeom.
Estudei piano clássico por quase oito anos, e o acordeom, que já estava há muito tempo na minha cabeça por causa do Gonzagão, surgiu por conta de uma festa na casa de meu avô paterno, Eurico de Freitas Valle, que chegou a ser governador do Pará. Vovô Eurico tinha uma casa na Tijuca, um daqueles casarões bonitos, antigos, e um belo dia ele decidiu dar uma grande festa de aniversário para a minha avó. Eu tinha por volta de 12 anos, e ele convidou um conjunto musical para animar a noite. Havia um acordeonista fantástico, Chiquinho do Acordeom, tocando com eles. Fiquei maluco quando vi o Chiquinho tocando. Para mim, a festa acabou ali. Percebendo que não tirei os olhos dele um minuto, ele chegou para minha mãe e disse: “Liselotte, teu filho, pelo visto, é vidrado em música”. Ela disse que sim, que eu estudava piano clássico, e eu, mais que rápido, interrompi os dois para dizer a ela: “Mãe, quero muito aprender a tocar isso!”. O Chiquinho me incentivou, disse que eu deveria mesmo estudar o acordeom, pois ele me daria ainda mais possibilidades musicais, uma vez que eu também gostava de música popular. Comecei a fazer as primeiras aulas e foi algo muito fácil. O professor logo veio me dizer que eu não precisava estudar mais. Tinha 12 para 13 anos. Quando veio essa paixão pelo acordeom fui me desviando cada vez mais para a música popular – para desespero de minha avó e da professora de música clássica –, mas a soma desses elementos foi extremamente importante para mim. Estudava Ravel, Debussy, Chopin, com o mesmo interesse que ouvia um bom baião.

E o violão? Quando você decidiu passar para as cordas? 
O violão veio um pouco depois, com a paixão por João Gilberto e a bossa nova. Ouvi o João, já em 1959, bem no calor do lançamento do Chega de Saudade, e conclui que precisava aprender violão urgentemente. Tive umas três ou quatro aulas com um professor chamado Paulinho Bertazzo e, logo depois, entrei na academia do Roberto Menescal e do Carlinhos Lyra. Em poucos dias de aula os dois, em comum acordo, também chegaram para mim e disseram: “Cara, sinto muito, mas acho que você já sabe tudo. Não tem mais o que estudar!”. Eu tinha toda aquela base do piano e bastava dominar a parte digital e as batidas do violão, porque eu já tinha os conceitos musicais com muita força, assimilava tudo muito rápido. Em meus trabalhos, acabei utilizando muito mais o piano do que o violão e o acordeom . Hoje uso também um instrumento muito próximo do acordeom, a escaleta, que é tocada com sopro.

Marcos Valle agachado, em pé logo acima Macaco,Geraldinho Dutra e Marcelo
Marcos Valle agachado, em pé logo acima Macaco,Geraldinho Dutra e Marcelo

E quando é que você começou a escrever as primeiras composições?
Comecei a esboçar as primeiras músicas no acordeom. Fazia canções ingênuas, para a namorada, para agradar as menininhas, tocava algumas delas em festinhas e até fiz um conjuntinho. Tocávamos em troca de sanduíches e refrigerantes. Minha primeira música séria foi Desejo de Mar, mas não foi a primeira gravada. Tempos depois o Johnny Alf fez um belo registro dela, mas minha primeira gravação foi Sonho de Maria, registrada pelo Tamba Trio. Foi também minha primeira parceria com o Paulo Sergio. A letra, na verdade, era uma poesia que ele tinha escrito e veio me perguntar se daria para musicar. Algo muito difícil, porque tinha uma métrica variada, o que me obrigou a escrever quatro partes para a música, e foi um desafio muito bom, enriqueceu a composição.

Antecipando o assunto, como é que pode haver tamanha sinergia entre vocês dois? Ouvindo as dezenas de músicas que vocês fizeram, a impressão que se tem é que tudo foi feito por uma só pessoa…
Acho que nosso grande trunfo em produzir tantas canções bem resolvidas vem, primeiramente, do fato de sermos irmãos tão próximos. Paulo é três anos mais velho do que eu e somos muito unidos. Ele sempre procurou entender o que eu quis dizer, em cada uma das músicas que compus. Sabe da minha personalidade e das minhas emoções. Muitas vezes eu ficava horas tocando no piano e ele lá distante, só ouvindo a melodia, até que chegava e trazia as letras para ver o que eu achava. Em outras ocasiões, em um estalo, ele vinha com ideias praticamente definitiva. Então, acho que o fato de sermos, além de irmãos, dois caras que são tão amigos, nos deu essa vantagem de fazer coisas que parecem feitas por uma pessoa só.

Em seu primeiro álbum, aos 20 anos, você já surge escoltado por músicos e maestros de primeiro time. Como é que você se aproximou dessa turma?
Uma longa história, que começa por volta de meus 11 anos, quando estudei no colégio Santo Inácio e conheci o Edu Lobo. Éramos da mesma classe e amigos e, um belo dia, uns oito anos mais tarde, entrei em um ônibus em Ipanema e dei de cara com o Edu, que não via havia muito tempo. Nos reconhecemos, ele estava com um violão, e logo perguntei: “Pô, você agora está ligado em música, Edu?”. Ele disse: “Sim, na verdade sempre estive, meu pai é o Fernando Lobo, compositor, sou também muito amigo do Dori Caymmi e tocamos juntos”. Ele me perguntou: “Por que, Marcos? Você também está ligado em música?”. Disse a ele: “Minha vida é música, Edu. Minha família quer que eu seja advogado, mas eu bem sei que de advogado não tenho nada”. Ele ficou muito entusiasmado e propôs um encontro para tocarmos juntos. Trocamos telefones antes dele saltar e nos encontramos, dias depois, quando ele me apresentou ao Dori. Foi tudo perfeito: o mesmo papo e as mesmas intenções musicais. Fizemos um trio, que não chegou a ter nome, mas com ele tocamos em alguns programas de televisão, como os do Sérgio Porto, do próprio Fernando Lobo, pai do Edu, e um programa do Lúcio Alves, que era na TV Rio. Esse trio durou pouco, mas me abriu muitas possibilidades, porque o Dori e o Edu viviam nas rodas da bossa nova e comecei a frequentar esses mesmos ambientes. O primeiro convite foi uma reunião na casa do Ary Barroso, um pouco antes dele falecer. Lá estava toda a turma da bossa: Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, Lúcio Rangel, uma turma da pesada, e confesso que fiquei muito inibido. A essa altura eu já tinha escrito seis ou sete músicas – seis das quais acabaria gravando em meu primeiro álbum, Samba Demais -, mas não tive coragem de mostrá-las, estava ali de tiete.

E quando é que veio essa coragem?
Só em um segundo encontro, na casa do Vinicius de Moraes, no Parque Guinle, bem no final da noite, é que tive coragem de pegar um violão e tocar minhas músicas, foi então que conheci um cara chamado Lula Freire, ele era letrista, super ligado em música, e tinha um belo apartamento em Ipanema, onde acontecia a maioria das reuniões da turma da bossa. Lula ouviu minhas músicas e me convidou a ir até lá para mostrá-las. Uma semana depois, ele marcou uma reunião e pediu que eu e o pessoal do Tamba Trio chegássemos um pouco antes para que eu mostrasse a eles Sonho de Maria. Terminei de tocar e eles me pediram a música. A noite ainda revelou outras boas surpresas. Foram chegando os outros convidados e conheci João Donato e Tom Jobim, que também adoraram minhas músicas. Uma noite belíssima. Dias depois, o Menescal resolveu me levar para conhecer Os Cariocas, que já era um grupo famoso, e mostrei a eles minhas seis músicas. Os Cariocas queriam gravar todas elas e o Menescal me chamou de lado e aconselhou: ‘Não faça isso, Marcos! Você está maluco?! Dê, no máximo, duas canções para cada artista’. Eles escolheram uma música minha com o Paulo Sergio, chamada Amor De Nada, e outra que eu tinha feito com o Edu, chamada Vamos Amar. Foram as duas primeiras músicas minhas gravadas por eles. Depois eles gravaram várias outras. Com isso, as portas realmente se abriram para mim.

Com Sylvia Telles, Tom Jobim e Roberto Menescal. Foto- Arquivo pessoal
Com Sylvia Telles, Tom Jobim e Roberto Menescal. Foto: Arquivo pessoal

E tudo isso aconteceu em 1962, às vésperas de lançar o Samba Demais?
Sim, em 1962. Tudo aconteceu muito rápido. O Menescal e uma cantora chamada Tita, cunhada do Edu, que até hoje é casada com o Edson Lobo, me incentivou a ir até a Odeon para mostrar minha músicas, porque eles estavam acolhendo muito bem aquela produção inicial da bossa, tinham contratado o João Gilberto, o Wilson Simonal fazia grande sucesso cantando bossa, Elizeth, Dóris Monteiro, Pery Ribeiro, todo mundo gravando pela Odeon e lá fui eu, acompanhado do Menescal e da Tita, para mostrar minhas músicas. Entrei no escritório dos diretores artísticos, entre eles o Milton Miranda, e o Simonal também estava presente. Muito intimidado, toquei seis músicas e, quando terminei, observei que eles estavam conversando miudinho. Um dos diretores olhou para mim e disse: “Olha, Marcos, ninguém vai gravar música tua aqui, não”. Pensei: “Me dei mal, não agradei”. Na sequência, ele emendou: “Ninguém vai gravar música tua aqui, porque quem vai fazer isso é você. Vamos imediatamente fazer um disco seu”. Saí dali contratado por cinco anos.

Você já conhecia o Eumir Deodato? Partiu de você o convite para ele escrever os arranjos de Samba Demais?
O Eumir entrou nessa história porque quem iria fazer os arranjos do disco seria o Tom Jobim, mas o Tom era muito lento, tinha uma coisa de ele ter que ir trabalhar no sítio dele e, com isso, ele demorava muito para produzir. Com essa expectativa de atraso, o Milton Miranda chegou para mim e disse: “Marcos, nosso prazo é curto e sei que com o Tom não vai dar certo, mas vou te apresentar um cara muito novo, da tua idade, que é um craque, ele toca com o Menescal e é um tremendo arranjador. Tenho certeza que vocês vão se entender muito bem. Fui à casa do Eumir e percebi logo de cara que tínhamos muito a ver. Eumir escreveu arranjos belíssimos para o disco e somos grandes amigos até hoje.

Samba Demais é muito ligado a temática inicial da bossa, bebe muito da tríade amor, sorriso e flor, mas já em O Cantor e Compositor, começam a surgir canções de protesto, como Gente e, ironicamente, uma canção que critica essa nova tomada de direções, A Resposta.
Quando lancei o Samba Demais, em 1963, vivíamos os últimos dias de Brasil democrático. Ainda havia aquele espírito de um Brasil moderno, herdado do Juscelino, e a expectativa de transformações ainda maiores com o Jango. Tudo acontecia de bonito no cinema, no teatro, na música, e eu, tipicamente bossa nova, só falava de coisas boas, do amor, da natureza, aquele espírito contemplativo, só que chegamos a 1964 e tudo isso mudou completamente. Essa transformação foi um baque para mim e para outros compositores, porque meu mundo era a música, o que eu queria eram acordes, notas, quando sentava ao piano ou empunhava um violão entrava em um mundo de sonhos, pleno de sons e emoções, onde só cabia a música, não pensava em outras questões, como o letrista. Quando chegou a ditadura começou a haver uma obrigação de posicionamento, porque o momento exigia isso. Nossa liberdade estava cerceada e a gente tinha, de alguma maneira, que combater aquilo tudo. No início, isso se tornou um grande problema para mim, pois havia essa espécie de obrigação, e quem não assumisse uma posição era tachado de alienado. Começou a haver certa divisão entre alienados – Menescal, Tom e outros ligados a bossa, que eram mais líricos – e outros compositores – Edu Lobo, Ruy Guerra, Geraldo Vandré – que eram os participantes, havia até o termo “canção de participação”. Essa divisão, e essa quase obrigação, fizeram a gente escrever A Resposta. Por que tem que se cantar a miséria? O povo já sofre com a fome e a gente ainda vai fazê-lo cantar a fome? O cara vive em frente ao mar, de costas para o morro, e vai ficar falando do morro? Quando passamos a frequentar encontros de artistas – não só de música, mas de teatro, de cinema – e entendemos a gravidade do momento, é que realmente concordamos com a necessidade de dizer tudo aquilo. Começavam a surgir as primeiras histórias de tortura, de desaparecimentos e mortes, e não dava para ficar a indiferente.

Então, A Resposta veio um pouco antes dessa tomada de consciência e acabou indo parar no mesmo álbum…
Sim, um pouco antes e, como o disco toma um certo tempo para ser concluído, acabei compondo coisas, como Gente, que diz: “Gente na vida que não deve dar / Porque nunca na vida sofreu por não ter“. Ambas estão no mesmo disco, e é engraçado, porque parece uma contradição. Pouco depois, fizemos também Terra de Ninguém, lançada com grande sucesso pela Elis Regina, em 1965. Em um primeiro momento, tomamos esse rumo da crítica social, mas depois, em outros trabalhos, enveredamos para uma crítica mais comportamental, como fizemos em Mustang Cor de Sangue, que tem uma carga muito consistente de crítica à sociedade industrial.

Nos Estados Undios, em visita ao compositor e maestro Henry Mancini. Foto- Arquivo pessoal
Nos Estados Undios, em visita ao compositor e maestro Henry Mancini. Foto: Arquivo pessoal

Há quem atribua à chegada da canção de protesto e à jovem guarda, muito rudimentares harmonicamente, uma antecipação precoce da perda do interesse pela bossa. Você concorda com essa análise?
Acho que foi algo inevitável, que tinha que acontecer, porque logo na sequência evoluímos para o tropicalismo, algo muito forte, e intimamente ligado a uma transformação de comportamento, de muito impacto cênico, com aquele aparato todo de cenografia, as roupas, as guitarras. O tropicalismo chega com um impacto que não havia na bossa nova, que era muito contemplativa, música suave, bonita, sem essa força de palco, você tem que entrar em um estado de tranquilidade para ouvir a bossa nova. Já o tropicalismo não, ele chegou para arrasar, chegou chutando a porta. O fato da turma da bossa começar a adotar letras de protesto não combinava com as intenções da bossa. Você pega o que o Vandré produziu e conclui que não tem nada a ver com bossa, mas pega uma música minha como Gente e, se tirar a letra, ela é um bossa nova, isso é inquestionável. Acho que o que fez a bossa perder prestígio foi uma coisa de espírito de época mesmo. Gente nova chegando com uma forte convergência de ideias. As intenções políticas das letras de protesto também pediam uma música mais veemente, e talvez a bossa nova não tivesse esse mesmo cunho. Com relação ao meu trabalho, posso dizer que tive grande influência da bossa, mas, mesmo antes de sua chegada, eu já tinha outros interesses: o baião, as marchinhas, o samba canção, o jazz, o rock, a música pop, a música negra norte-americana. Meu primeiro disco é estritamente bossa nova, sobre o impacto do João Gilberto, mas já no segundo disco, essas outras influências começam a aparecer.

Seu terceiro álbum ficou inacabado, foi interrompido para o lançamento do LP Braziliance, nos Estados Unidos, em decorrência do sucesso de Samba de Verão
O primeiro convite que tive para ir aos Estados Unidos foi em 1964. O Sergio Mendes queria que eu fosse com ele e a Wanda Sá e decidi não ir, porque ainda estava consolidando minha carreira por aqui. Foram ele, Wanda, Jorge Ben – que fez um sucesso estrondoso com Mas,Que Nada! e Chove, Chuva -, e a violonista Rosinha de Valença. No ano seguinte, o Sérgio me fez um novo convite, insistiu muito e acabei indo. Ele queria que eu ficasse e integrasse o grupo dele, o Brazil 65′, mas fui como convidado especial, dentro do show dele, e não quis ficar. Decidi voltar não só para retomar minha carreira no Brasil, mas também por uma enorme saudade daqui. Era muito garoto para ficar longe da minha família e dos meus amigos. Quando voltei, no início de 1966, tive boas surpresas, pois Samba de Verão e Preciso Aprender a Ser Só, de meu segundo disco, que estava recém-lançado, causaram grande impacto e ganhamos vários prêmios de música do ano. Decidi voltar para cá em um momento muito feliz,com todas essas boas novas.

Como é que o Walter Wanderley (organista brasileiro, ex-marido de Isaurinha Garcia, que fez carreira de grande sucesso nos Estados Unidos) decidiu gravar Samba de Verão pela Verve? Vocês já se conheciam?
Sim, eu já conhecia o Walter, pois vi muitos shows dele em São Paulo. Gostava muito do balanço dele, mas não sabia que ele tinha lançado a faixa nos Estados Unidos. Soube do enorme sucesso, tempos depois.

A propósito, você já tocava Hammond B-3 (modelo do instrumento tocado por Walter, presente em vários discos de Marcos) nesse período?
Não, eu comecei a tocar Hammond mais tarde, no Previsão do Tempo, em 1973.

Antes disso, no Samba 68′ e no Mustang Cor de Sangue, em 1969, você já escreve arranjos para Hammond, não?
Sim, você está certo! No Mustang e no Samba 68′ já tem Hammond. Um instrumento que eu adoro e o Walter era um craque do B-3. Gravei várias músicas com ele nos Estados Unidos e tocar um violão acompanhando aquele balanço incrível do Walter no órgão era demais. Uma formação de trio instrumental que só tocava música brasileira chegar aos primeiros lugares da Billboard e vender como ele vendeu foi realmente um grande feito para aquela época.

De volta ao Brasil, você começa a compor para esse terceiro disco que ficaria inacabado, mas o compacto duplo dele tem dois temas seus regravados por muita gente, Os Grilos e Batucada Surgiu.
Logo que voltei ao Brasil comecei a preparar meu terceiro disco. Fiz todas as bases, orquestrei, coloquei vozes em quatro faixas, registrei e lancei esse compacto duplo com Os GrilosBatucada SurgiuAmor é Chama e É preciso Cantar, só que com o estouro de Samba de Verão na versão do Walter, o Ray Gilbert, que era o empresário e letrista do Tom nos Estados Unidos, pediu a ele que nos apresentasse, porque ele estava ligadíssimo no que eu estava fazendo. Decidi seguir os passos do Tom e fui fazer os programas de TV americanos de costa à costa. A essa altura, Samba de Verão já estava sendo gravada por vários outros artistas, com letra em inglês, do Norman Gimble, o mesmo que verteu Garota de Ipanema para o Tom. A Odeon e o Milton Miranda foram muito legais comigo e me liberaram para partir novamente. Lembro do Milton dizendo “Vai embora, rapaz, tua hora é agora e você não pode perder isso!”. Interrompi o terceiro disco para gravarmos o Braziliance, um álbum instrumental, especialmente feito para o mercado americano – tinha que chegar lá fora com novidade. Gravamos no Rio e concluímos o álbum nos Estados Unidos. Fiquei um ano por lá e ainda recebi o convite da Verve para lançar outro disco, o Samba 68′, que fez grande sucesso, só que, mais uma vez, bateu aquela saudade enorme e insuportável do Brasil e decidi voltar.

Samba 68′ é muito é cultuado entre os álbuns de brasileiros na Verve, fez grande sucesso no mercado americano e europeu…
Esse disco se tornou um clássico da minha carreira. Teve uma importância muito grande naquele momento do mercado americano, mas também foi fundamental, anos mais tarde, para a redescoberta de meu trabalho com o público jovem da Europa, que passou a pesquisar e ir atrás de meus outros discos. A partir do Samba 68′ novamente se abriu um novo mercado na Europa para mim.

Esse álbum que acabou de ser redescoberto, a principal novidade da caixa, acabou sendo “engolido” pelo Braziliance e o Samba 68′?
Quando voltei para os Estados Unidos, com a repercussão do Braziliance, esse terceiro disco ficou esquecido. Voltei depois de ter feito o Samba 68′ ,e quando cheguei aqui a barra estava pesadíssima. Estávamos às vésperas do AI-5 e eu, morrendo de saudade, às vezes me pegava sozinho, angustiado, chorando só de pensar no Brasil. Decidi voltar mesmo assim. Logo que cheguei houve uma festa para me receber na casa do Tom, que convidou o Milton Nascimento especialmente para me apresentar a ele. Milton era meu fã e queria me conhecer. Ficamos muito amigos e, por dois anos, trabalhamos juntos, em estúdio e em shows. Reencontrei também o Edu Lobo, conheci o Novelli e o Ruy Guerra, e me reaproximei do Ronaldo Bastos, que já era meu amigo, de Friburgo. Fiz composições com os cinco, e todo esse novo contexto levou minha cabeça para um disco completamente diferente. A própria Odeon não forçou uma retomada. Viu que o momento era outro e acabei fazendo o Viola Enluarada, que foi marcado por grande força política. Esqueci completamente desse disco abandonado até o dia em que o Charles topou com ele nos arquivos da gravadora e decidiu recuperá-lo. Confesso que fiquei fascinado de ver aquilo que eu não tinha terminado virar um CD.

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Ao piano, nos anos 1960. Foto: Arquivo pessoa

As questões conceituais e musicais do Viola Enluaradaparecem chegar ao ápice em Mustang Cor de Sangue ou Corcel Cor de Mel…
Concordo. A partir do Mustang, além da força crescente nas letras do Paulo Sergio, minhas influências musicais começam a ficar ainda mais evidentes. O que seria o meu estilo nasce no Mustang. Nele, estão elementos que persigo até hoje. Em termos de letra, vivíamos o milagre econômico e o Paulo começou a migrar seu olhar para as transformações comportamentais dessa sociedade industrial que crescia por aqui com hábitos de consumo cada vez mais frenéticos. Mais adiante, ele escreveu coisas como “não confio em ninguém com mais de 30 anos”, provocações que não são mais, tão somente, políticas. Acho que, a partir do Mustang, ele foi ganhando ainda mais personalidade como letrista. Paulo sabia como poucos o que andava pela minha cabeça.

Nessas duas viagens aos Estados Unidos ele esteve contigo?
Não, ele ficou por aqui tratando das coisas dele. Paulo é aviador e sempre manteve essa paixão. Chegou a trabalhar na aviação comercial, por influência primeira de meu avô e, depois, de papai, ambos foram diretores da companhia Cruzeiro do Sul. Meu pai era advogado, mas por conta de sua paixão por aviação, acabou se especializando em direito aeronáutico. Um ambiente muito adequado para estimular o Paulo a se interessar por aviação. Ele pilotou, deu aulas, fez acrobacias, e até hoje voa de ultra-leve. Nesses períodos em que eu fiquei fora ele se dedicou ainda mais intensamente a aviação.

E você chegou a estudar Direito?
Até ingressei na faculdade, mas não completei nem sequer o primeiro ano. Queria dar essa alegria ao meu pai, mas a música falou mais alto. Apesar de papai também ser apaixonado por música, ele tinha certeza que financeiramente ela não me levaria a lugar nenhum. Na metade do primeiro ano de curso, fui convidado para tocar em São Paulo no Juão Sebastião Bar e fiquei louco, pois só tocavam craques por lá. O dono da casa, um grande sujeito que se chamava Paulo Cotrim, veio até o Rio exclusivamente para me convencer a fazer uma temporada no bar. O problema é que era uma longa temporada. Tocaria de quinta a domingo durante dois meses e, para fazer isso, teria que abandonar a faculdade. Paulo foi em casa, me fez essa proposta e, para desgosto de meu pai, resolvi aceitar. Minha mãe, que já sabia há muito tempo que eu não seria advogado coisíssima nenhuma, disse: “Paulo, não tem jeito, deixa o menino ir!”. Fui para São Paulo, fiz uma temporada e nunca mais voltei para a faculdade. Quando voltei ao Rio, passei a fazer shows no Beco das Garrafas e conclui que eu não tinha nada a ver com essa coisa de direito.

E como era o Beco nesses dias?
Incrível! No Little Club tocava a Elis; no Bottles, o Simonal. Meu show, no Barcará, reunia eu, Dóris Monteiro, Edison Machado, na bateria, e Sérgio Barroso, no contra-baixo. Eu tocava piano na maioria das músicas, em outras tocava violão e assumia o piano o Tenório Jr. Mais adiante houve duas mudanças: saiu o Tenório e entrou o Dom Salvador; depois saiu a Dóris para entrar a Leny Andrade! Um pessoal da pesada e um período sensacional da música feita ali. Fizemos esse show no Beco por um tempão.

Logo depois do Mustang você lançou o disco de 1970, um álbum bem mais arejado, aparentemente, sem grandes preocupações conceituais.
Gosto muito desse álbum de 1970, porque, musicalmente, abri muitas portas com ele. O disco tem participações do pessoal do Som Imaginário (grupo liderado por Zé Rodrix), que conheci logo na minha volta, e esse encontro me influenciou muito a experimentar outras sonoridades. Foi um momento muito interessante, de grande amadurecimento. O Garra e o Previsão do Tempo, que viriam logo depois, também têm essa característica forte de experimentação por conta da minha parceria com o Azymuth.

Você sempre deu muita liberdade para os seus músicos?
Gosto até hoje de experimentar coisa novas com pessoas que me identifico. A sonoridade trazida por outros é muito importante. Tanto é que compus, nesse álbum de 1970, o tema Suite Imaginária, como influência direta de meu convívio com o Som Imaginario. A aproximação com o O Terço também mudou direções, a característica forte do rock que eles tinham também me levou a outras possibilidades em Vento Sul. No caso do O Terço, foram eles que me procuraram. Eu ia pro Midem (festival francês de música, na Grécia), junto com a Maria Bethânia, eles sabiam disso e se ofereceram para ir com a gente, se dispondo inclusive a pagarem suas próprias passagens e despesas somente pelo interesse de me acompanhar. Pensei “por que não?” e cheguei a conclusão de que seria perfeito. Fizemos três músicas iniciais e acabamos tocando juntos no Vento Sul, de 1972. Um disco bem comunitário, bem hippie. Ficamos mais de dois meses em uma pequena vila de Búzios. Alugamos duas casas de pescadores e colocamos uma placa em frente a uma das delas, escrita “vento sul”, foi por isso que demos esse nome ao disco.

Depois disso, você passa a tocar com o Azymuth…
O Azymuth sempre teve muito a ver comigo. Sempre fui louco por Rhodes (clássico modelo de piano elétrico fabricado pela Fender) e o Bertrami (o líder do Azymuth, José Roberto Bertrami) também era. Conheci o trio em uma hora perfeita, porque eu estava tocando muito Rhodes e chamei o Bertrami para tocar Hammond e ARP (um dos primeiros modelos de sintetizador analógico) comigo no Previsão do Tempo. Havia muita afinidade entre a gente, tanto que logo depois o Azymuth passa a ser a minha banda. Viajamos muito juntos.

Você fez com eles outro álbum bastante cultuado, O Fabuloso Fittipaldi, a trilha do filme sobre o Emerson…
Essa trilha do Fittipaldi foi uma delícia de fazer. Foi daí que saiu o nome Azymuth. O filme foi dirigido pelo Roberto Farias e o Hector Babenco e não me lembro qual dos dois, mas sei que um deles insistiu muito para que eu usasse minha música Azymuth, que foi trilha de uma novela chamada Véu de Noiva – era o tema do Claudio Marzo, que fazia um piloto na novela. Fizemos uma nova versão, porque a abertura do filme era mais extensa e a trilha saiu pela Phillips. O produtor do disco foi o Armando Pittilgliani, que convidou essa moçada – o Bertrami, o Alex Malheiros, e o Ivan “Mamão” Conti – para gravar comigo. Eles já tocavam como um trio, mas ainda não tinham um nome. Além de gravar o disco com eles, o Bertrami também trabalhou comigo em alguns arranjos. Ele tinha um bom conhecimento de orquestração e foi tudo perfeito. Como eu era da Odeon e o álbum sairia pela Philips, não pude colocar meu nome como artista, somente como compositor. Na hora de dar um nome, ficou a dúvida “a quem vamos atribuir isso?”. O Armando foi quem sugeriu “que tal a gente colocar Conjunto Azymuth?”. Fiz essa música em parceria com o Novelli, que naturalmente não se importou em ceder o nome, e acabei me tornando essa espécie de padrinho do Azymuth.

O álbum de 1974, o último da caixa, fecha um ciclo de sua obra e vida, e é também um trabalho reflexivo e denso. Pouco depois, você parte de novo para os Estados Unidos e fica lá por mais de cinco anos…
Chamei o Tavito para fazer os arranjos vocais desse disco de 1974. Ele é um mestre nessa arte. Caímos muito nessas sonoridades grandiosas, mas ao mesmo tempo o disco tem mesmo essa densidade, porque sofríamos muito com a censura. Era uma época terrível, de ter de ir aos censores explicar música por música. Esse disco é triste porque realmente não havia como não falar daquelas coisas tristes. É um disco é carregado de melancolia. Logo depois decidi voltar para os Estados Unidos e fiquei lá por mais cinco anos. Esse disco tem elementos vibrantes, essa coisa meio épica dos vocais, e o considero muito marcante, um disco de despedida temporária do Brasil.

Com o irmão e letrista Paulo Sergio Valle, no Festival Midem, na Grécia, em 1972
Com o irmão e letrista Paulo Sergio Valle, no Festival Midem, na Grécia, em 1972

E como foi esse período mais longo afastado do País?

Cheguei aos Estados Unidos em uma condição bem diferente das outras vezes, quando fui a convite do Sérgio Mendes e por conta do sucesso de Samba de Verão. Desta vez fui por conta própria, muito chateado com todas essas coisas terríveis que aconteciam no Brasil. Não sabia ao certo quanto tempo iria ficar e, em princípio, fui para Nova York porque o Eumir Deodato morava lá e queria que eu ficasse próximo dele. Me hospedei em um hotel chamado Adams Hotel e até fiz uma música chamada Adams Hotel, que o Eumir acabou gravando no disco dele chamado First Cuckoo e fez grande sucesso. O Adams era um hotel bem antigo, próximo ao Central Park, um dos prediletos do Tom, e fiquei lá em um período que cheguei a ter vários encontros com o Tom. Íamos juntos ao Central Park bater papo. Tempos depois, aluguei um apartamento perto do Eumir, mas, embora eu adore Nova York, como tenho essa ligação forte com a natureza, sol e praia, vi que ali não era o meu lugar e decidi ir para Los Angeles, nessa base do vamos ver no qua vai dar.

E como é que você se aproximou da Sarah Vaughan?
Assim que cheguei a Los Angeles, a Sarah Vaughan estava gravando um disco chamado Songs of The Beatles, com arranjos e produção do Marty Paich, que foi o grande orquestrador do Sinatra, do Ray Charles e do Sammy Davis Jr., Marty fez vários discos que eu adorava e trabalhava agora nesse novo disco da Sarah com seu filho, David Paich. Os dois queriam um toque brasileiro em uma das faixas – que era Something, do George Harrison – e através do Sergio Mendes chegaram a mim. Logicamente achei o convite maravilhoso, voltei para casa, bolei um arranjo e fiz uma letra em português, muito fiel a original do Harrison, mas bem balançada, com aquele acento brasileiro. À primeira audição eles acharam a versão maravilhosa. Fiquei muito amigo da Sarah e ela quis gravar duas músicas minhas, Preciso Aprender a Ser Só e Seu Encanto, que virou The Face I Love. Sugeri a ela que gravasse um disco só com música brasileira, ela adorou a ideia e acabou fazendo dois: I Love Brazil e Brazilian Romance. Fui ficando por lá, e um belo dia conheci o pessoal do Chicago, grupo que eu gostava muito, porque tinha aquela mistura de rock, jazz, funk e latinidades. Meu amigo, Laudir de Oliveira, grande percussionista, tocava com eles e o pessoal da banda, sabendo que eu estava em Los Angeles, pediu ao Laudir que me apresentasse a eles. Fui visitá-los em um ensaio e levei o O Fabuloso Fittipaldi para eles ouvirem. Eles ficaram loucos pelo disco. Quando falei que tinha gravado tudo em quatro canais disseram que eu estava de sacanagem. Me pediram uma música e decidi escrever um novo tema com o Laudir, especialmente para eles. O Laudir não compunha e falei para ele: “Tú nunca fez música, tá mais do que na hora!”. Saiu Life is What It Is, que está no álbum Chicago 13. Uma mistura de samba com rock.

E como é que você conheceu o Leon Ware?
Logo em seguida o Robert Lamm, que é um dos grandes compositores do Chicago, fez letra para uma música minha chamada Love is a Simple Thing, e essa música foi mostrada para o Leon Ware, que adorou a gravação e também quis me conhecer. Fui a um estúdio encontrá-lo e eu, vidrado em música negra e no Marvin Gaye como sou, de repente estava ali ouvindo o maior parceiro musical do Marvin gravando aquela versão linda da minha música. Que maravilha! Conversamos depois da gravação e ele se revelou um grande fã do meu trabalho. Conhecia a maioria de minhas músicas e propôs que fizéssemos algo juntos. Fizemos várias músicas, gravadas pelo Leon, e cheguei a integrar o grupo dele. Só eu lá de branco lá no meio daquele monte de negrões e ele dizia para mim “Você pensa que você é branco, rapaz… de branco você tem só a pele e esse cabelo louro, mas você é negrão!”. Fui ficando por lá, sem pensar no Brasil, logo depois, o Airto Moreira me convidou para fazer os arranjos do disco dele Touching You… Touching Me. Quando me dei conta já havia se passado cinco anos. Foi então que decidi voltar para o Brasil e comecei a preparar o disco Vontade de Rever Você, que inclusive tem duas faixas acompanhadas pelo Chicago. Na verdade, o que aconteceu é que vim passar férias aquie, mas quando revi o Rio de Janeiro, em um fim de tarde absolutamente lindo no Arpoador, pensei “meu deus do céu, eu tenho que voltar para essa terra”. Paulo Sergio, percebendo isso, falou: “Cara, tá na hora de você voltar!”. Ele foi até a Som Livre e eles disseram: “Porra, se teu irmão voltar a gente contrata ele, imediatamente!”.

E a Som Livre não se deu nada mal, pois logo depois você fez um tremendo sucesso com Estrelar
Foi muito inusitado esse sucesso de Estrelar, uma das últimas músicas que fiz com o Leon, mas ela não tinha letra. Quando voltei e gravei o primeiro disco nem cheguei a mostrá-la. Chegou o momento de gravar o segundo e o Max Pierre, produtor da Som Livre, sugeriu convidar o Lincoln Olivetti para escrever os arranjos, pois ele era um grande fã do meu trabalho. Eu também adorava as coisas que o Lincoln tinha feito e topei na hora. Lembro que mostrei essa demo para os dois e a gravação era puro suingue, mas estava sem melodia definida, tinha apenas uma frase de guitarra que sugeria uma melodia. O Lincoln e o Max ficaram loucos com a base, e decidimos que dali sairia uma nova música. Resolvemos reproduzir aquilo e fizemos tudo exatamente igual ao arranjo que escrevi com o Leon, mas a questão é que o disco estava chegando ao fim e a letra não saia. Colocamos a gravação para tocar na maior altura, repetidas vezes, até que o Paulo Sergio veio me perguntar qual poderia ser um ponto de partida para a letra, e eu falei para ele “cara não sei, só sei que essa música tem uma energia absurda”. Ele teve um estalo e associou energia à ginástica, a exercícios físicos e à preocupação crescente das pessoas em manter a forma com a chegada do verão. Peguei a divisão daquela frase de guitarra, picotei para adequar a métrica e pronto! Era para ser só uma brincadeira com essa paranóia de ter que ficar forma, mas a música explodiu. Lembro que eu saia na rua e as crianças vinham falar comigo, senhoras vinham contar entusiasmadas: “Meu filho, graças a você criei coragem e fui fazer ginástica!”.

Depois desse grande sucesso Tempo da Gente é lançado em 1986 e você entra em outro longo hiato, só é encerrado quando você é redescoberto na Europa e é convidado para gravar, em Londres, o Nova Bossa Nova, em 1997…
Decidi dar esse tempo, mas no fim da década de 1980 alguns DJ’s de Londres, partindo do Samba 68, começaram a redescobrir minha música e foram atrás dos outros álbuns. Eu nem desconfiava, mas comecei a entrar no campo de interesses de uma turma nova que gostava de música dançante de qualidade, usavam como base para suas músicas Dave Brubeck, Stevie Wonder, Ray Charles. O negócio deles era a coisa suingada, mas com improviso e boas melodias. Estava por fora disso tudo até que, em 1994, a Joyce, que começou a fazer alguns shows na Europa, por consequência desse novo circuito que vinha sendo criado, começou a me contar essas histórias e achei maravilhoso. Lembro que ela disse: “Então, se você está gostando, Marcos, se prepare, porque os empresários vão te procurar. Seus discos já estão sendo até pirateados e entrando em compilações por aqui. Tenho certeza que vai se abrir um novo mercado para você. Inclusive, querem que a gente faça shows juntos. Vou te indicar uma gravadora, a Far Out Recordings, que é de um DJ chamado Joe Davis, um cara muito jovem. Se você puder encontrá-lo aí no Rio, vai gostar muito dele”. De fato as gravadoras começaram a me procurar e o Joe veio ao Brasil. Fui jantar com ele e gostei demais do jeito meio doido dele, Joe sabe de tudo o que eu fiz. Decidi assinar com a Far Out e estou lá, até hoje. Fui à Londres fazer meu primeiro show em um lugar badalado chamado Jazz Café e dei de cara com esse novo grupo de fãs que eu nem sequer imaginava que existia.

Por aqui não havia convites para você gravar?
Por aqui o mercado estava muito parado. O que eu tinha eram convites para fazer discos com convidados, regravando meus sucessos, e eu não estava nenhum pouco interessado nesse tipo de trabalho. Respeito muito quem o faça, mas não é a minha cara. Essa redescoberta veio em hora muito oportuna.

Em 1978, no período em que residiu em Los Angeles. Foto- Arquivo pessoal
Em 1978, no período em que residiu em Los Angeles. Foto: Arquivo pessoal

Com a democratização da internet e o acesso à música feita no mundo todo você certamente conquistou ainda mais fãs na última década…
Realmente, o interesse por meu trabalho deu um salto ainda maior nesses últimos anos. Quando tudo começou a acontecer, no final dos anos 1990, esse público de Londres acabou se espalhando por toda a Europa. Tenho muitos fãs na Itália, na França. E o pessoal, naturalmente, esperava que eu lançasse um disco novo. Fique pensando: “Mas será que eles vão gostar de um novo trabalho? Esse pessoal está apaixonado pela magia de um cara que está lá no passado”. Tive sorte, pois lancei o Nova Bossa Nova, o primeiro álbum dessa nova fase e ele fez um tremendo sucesso. De lá para cá meu público só aumentou.

E o que você pensa das consequências negativas dessa revolução da internet, como, por exemplo, a perda de direitos autorais?
Como quase tudo, a internet é uma questão que tem prós e contras. Os contras, naturalmente, estão ligados a incapacidade de se receber pela criação artística. Hoje, em termos de vendagem de disco, ninguém mais vai ficar rico. Essa fase já era. Mas o conceito do álbum ainda é muito importante, porque é ele que motiva os shows, os novos encontros musicais, e o download gratuito abre um leque infinito de divulgação. Algo muito difícil de fazer com tamanho alcance, se não fosse com os avanços da internet. A Mallu Magalhães, por exemplo, namorada do Marcelo Camelo, se beneficiou amplamente disso. O artista não depende mais da gravadora para chegar ao público. Eu, particularmente, assisti de perto a tudo isso. Veja o que aconteceu comigo na Europa, do final dos anos 1990 para cá… Teve de tudo: disco pirata, compilação pirata, download gratuito de toda minha obra, mas foi tudo isso que motivou a minha volta. É algo inevitável e positivo. É a linguagem desse pessoal mais jovem e desses novos tempos. Quem sofre mesmo é o cara que é apenas compositor ou é só letrista, que não ganha dinheiro no palco.

E como foi produzir Estática, esse álbum mais recente lançado junto com a caixa?
Gostei muito do resultado. O Estática também foi muito elogiado lá fora (o álbum foi lançado com o título Esphere pela Far Out em 2010). Chegou a entrar em algumas listas como um dos dez álbuns do ano, ganhou cinco estrelas do guia All Music e está sendo muito importante para consolidar essa minha retomada. Alguns críticos até exageraram, dizendo que há no Estática a força de um primeiro álbum. Engraçado porque também acabo sendo muito influenciado por esse processo de redescoberta. É algo que me norteia e me ajuda a continuar produzindo. Comparo o Estática com os álbuns da caixa, por exemplo, e vejo como há nele muitas semelhanças com as coisas que fiz no passado. Esse pessoal mais jovem fez por mim algo muito importante, me colocou em permanente contato com a minha própria música.

Prelúdio da consagração mundial do compositor e arranjador Eumir Deodato

O pianista, compositor e arranjador Eumir Deodato em foto do encarte de Deodato 2, segundo álbum do artista brasileiro nos EUA. Foto- Duane Michals : CTI Records
O pianista, compositor e arranjador Eumir Deodato em foto do encarte de "Deodato 2", segundo álbum do artista brasileiro nos EUA. Foto: Duane Michals / CTI Records

Àqueles que desconhecem a dimensão da importância do carioca Eumir Deodato, alguns fatos: ele havia acabado de completar 18 anos quando um certo Antônio Carlos Jobim encomendou seus préstimos para orquestrar canções de um de seus álbuns inaugurais. Precoce e solícito, Eumir também ajudou a formar outro grande arranjador brasileiro, o pianista Cesar Camargo Mariano, antes de lançar Prelude (tema de hoje em Quintessência), álbum de estreia de Eumir Deodato feito a convite do manda-chuva da CTI, Creed Taylor (daí o nome do selo: as iniciais acrescidas do “incorported”), Deodato, no entanto, antes de debutar exuberante, via CTI, já havia escrito arranjos para dois de seus ídolos, o guitarrista Wes Montgomery e Frank “The Voice” Sinatra.

Mas Eumir Deodato de Almeida, nome de batismo do menino prodígio, é muito mais do que isso. De “catedrático” do samba-jazz, liderando o grupo de nome acadêmico, a “Embaixador do Funk”, epíteto atribuído a ele nos EUA, Deodato é dos talentos mais completos a surgir naquele inspirado Brasil do início dos anos 1960. Como compositor, arranjador, produtor e músico, conquistou o mundo. Vendeu mais de 25 milhões de álbuns e tornou-se artista dos mais requisitados na indústria fonográfica mundial. Até mesmo a cantora Bjork, de seara musical completamente adversa, requisitou os préstimos de arranjador de Deodato nos álbuns Homogenic, Post eTelegram.

Capa do álbum Prelude. Foto- Divulgação : CTI Records
Capa do álbum “Prelude”. Foto: Divulgação / CTI Records

O primeiro capítulo dessa consolidação global foi escrito com Prelude. Como o título sugere, o LP foi só a preliminar de uma carreira impecável. Impulsionado pelo arranjo de Deodato para Also Sprach ZarathustraPrelude vendeu milhões de cópias e chegou ao terceiro posto da parada Pop da Billboard. O segredo? A apropriação ímpar e funky do tema de Richard Strauss a partir da versão de Karl Bohm e Orquestra Filarmônica de Berlim que está presente na trilha sonora de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick.

Produzido por Creed Taylor e gravado entre os dias 12 e 14 de setembro de 1972 no legendário estúdio do produtor Rudy Van Gelder, engenheiro de som do LP,  o LP foi lançado em janeiro de 1973. Se o produtor e o engenheiro de som eram mais que insuspeitos, o que dizer do time de músicos reunidos para as sessões de estúdio?

Tome fôlego, caro leitor: Ron Carter e Stanley Clarke (contrabaixo); Ray Barreto (congas); Billy Cobham (bateria); Hubert Laws. Phil Bodner,  Romeo Penque e George Marge (flautas); Jay Berliner e John Tropea (guitarras); Airto Moreira (percussão, leia post de Quintessência sobre o álbum Fingers); Charles McCracken, Seymour Barab e Harvey Shapiro (cellos); Peter Gordon e Jim Buffington (french horn); Garnett Brown, George Starkey, Paul Faulise e Wayne Andre (trombones); John Frosk, Mark Markowitz, Marvin Stamm e Joe Shepley (trompetes); Emanuel Vardi e Al Brown (violas); Elliot Rossoff, Emanuel Green, Gene Orloff, Harry Lookosfsy, Paul Gershman, Max Ellen e David Nadien (violinos).

Quanto a Deodato coube a ele pilotar dois instrumentos com sua usual maestria: piano acústico e piano elétrico, no caso deste último, o legendário Fender Rhodes Mark I. Os arranjos também são todos do carioca. E impressionam pela destreza em transformar tradições sem cometer heresias. Com a mesma reverência presente na releitura de Strauss, Deodato também subverteu a obra de um dos compositores mais influentes para a bossa nova, Claude Debussy, em Prelude To Afternoon of a Faun. E fez o mesmo com um standard da canção norte-americana, Baubles, Bangles and Beads, de George Forrest e Robert Wright, dupla que também deu ao o mundo o clássico Strangers in Paradise.

E o que dizer das composições do próprio Deodato? Carly & CaroleSpirit of Summer (tema que foi surrupiado na trilha do filme O Exorcista) e September 13(escrita em parceria com o baterista Billy Cobham no segundo dia de registros do álbum, daí o nome) são irresistíveis, à primeira audição – a despeito dos outros temas, mais afeitos a arranjos eruditos, exigirem dedicação maior do ouvinte, na velha e saudável lógica do álbum que cresce a cada nova escuta.

Prelude foi seguido por outra obra-prima, Deodato 2, e abriu caminho para uma série de álbuns norte-americanos, todos impregnados da sofisticada arte de criação e reinterpretação de Eumir Deodato. Àqueles que desconhecem sua discografia, sobretudo os álbuns feitos anteriormente por ele, no Brasil, bom conselho é: corra já atrás deles!

Mais

Ouça o álbum Prelude na íntegra

Veja Eumir Deodato e orquestra em apresentação na TV italiana RAI

Pelas frestas da Trienal de Arte de Sorocaba

Frestas – Trienal de Artes se insere no fenômeno da descentralização da arte e reforça seu propósito de espaço aberto para livre expressão. Idealizada pelo Sesc de Sorocaba, chega a sua segunda edição com obras ativistas, colaborativas e urbanas que profanam a ordem estabelecida da cidade paulista, situada a 90 quilômetros da capital. Os 58 artistas contemporâneos, de 13 países, reforçam a relação dialética entre a arte e a realidade social, provocam o pensamento local e provam que a arte pode ser também um espaço de jogo. Há um movimento sucessivo e sistemático em toda grande mostra em busca do novo, e ele se depara com forças antagônicas entre a ruptura e a continuidade. A curadora Daniela Labra acerta no tema Entre Pós-Verdades e Acontecimento ao colocar em xeque as duvidosas verdades midiáticas que incendeiam as redes sociais.

Na cerimônia de abertura, depois das falas oficiais, o artista Gustavo Speridião surpreende o público com uma cantora executando, à capela, o hino A Internacional Comunista, numa crítica pertinente à situação precária dos trabalhadores de hoje. Enquanto isso Panmela Castro, autora do grafite que enfureceu um bispo da cidade por considerá-lo pornográfico, se prepara para apresentar a performance Femme Maison, um alerta sobre o papel desigual da mulher na sociedade. Espalhado pelo espaço um grupo performático faz chuva de papel com fotos de políticos e a tarja “golpistas”. Apesar do pequeno porte, Frestas mostra personalidade com pontos cortantes que rasgam a superfície tranquila e o cinza do cotidiano da cidade.

A concepção de uma arte participativa, colaborativa e desmaterializante se espalha por vários locais nos quais algumas obras são efêmeras. O grafiteiro Nunca, ao “tatuar” índios brasileiros na lateral de um prédio no centro da cidade, transforma sua obra em alerta contra a extinção de um povo em extinção.

Em termos de comunicação, Frestas forma uma cultura visual em mosaico, substituindo a cultura linear, se abre ao desconhecido para encontrar o novo, mas equilibrando artistas emergentes com as complexas junções conceituais dos nomes já consagrados. Raul Mourão faz um exercício de exteriorizar e interiorizar a presença humana na potente instalação realizada com grades e balanços. Sob o título Passagem, a instalação se abre para a participação do público, como se reforçasse a ideia de que não se pode simular a liberdade, como fala Ritkrit Tirabanija. Há nessa obra inesgotáveis sugestões de uso do corpo e seus efeitos comportamentais.

A confluência de esforços dos artistas vindos de regiões diferentes, cujos trabalhos são realizados praticamente ao mesmo tempo, reforça a ideia de que exposições dessa natureza são mesmo laboratórios experimentais. Daniel Senise, expoente da Geração 80 resgata parte do período de fausto da cidade, com fotos do antigo refeitório da Estrada de Ferro Sorocabana, antes um orgulho do País. Sobre belas imagens incorpora e fixa objetos e resíduos retirados do próprio local, numa dissolução visual do sujeito e revoltante lembrança do desmonte das malhas ferroviárias do Brasil. A intervenção Vazio Pleno, de Maria Thereza Alves, tem encontro marcado com Sorocaba para desvendar a presença indígena na cidade, uma contribuição no campo antropológico, reproduzindo quinze réplicas de uma urna indígena encontrada num museu da cidade. Ao enterrar as cópias em vários pontos da cidade, ela desloca a discussão sobre a condição dos povos indígenas de um campo protegido para as ruas, permitindo uma reflexão mais ampla.

Frestas tem obras singulares e o esforço para constituir a mostra num campo aberto, sem censura, é o seu grande feito. Dias & Riedweg foram às profundezas para trazer à tona uma obra inédita, Esperando um Cliente paradigma do universo underground. Uma videoinstalação sobre o acervo do fotógrafo norte-americano Charles Hovland exibe as fantasias sexuais de mais de três mil pessoas que responderam a ele por meio de anúncio em jornais nova-iorquinos entre 1970 e 1980. Dias & Riedweg são autores de obras seminais da arte contemporânea.

A violência já deu vida a milhares de trabalhos de todos as matizes e parece que o público é atraído por categorias bem definidas, de significado provocante, como o trabalho da artista e médica legista mexicana Teresa Margolles que dá sua contribuição com uma coleção de joias em ouro 18K confeccionadas com estilhaços de bala ou vidro retirados de corpos de vítimas da guerra do narcotráfico em seu país.

Sob o olhar de um estrangeiro, o alemão Michael Wesely, as imagens captadas nas manifestações de rua, favoráveis e contra o impeachment de Dilma Rousseff, exibidas na parede, transformam-se em plataforma de polêmica diante das quais alguns visitantes cerram os dentes, enquanto outros apenas sorriem. O artista parece perguntar qual é o fundo real das divergências entre a esquerda e a direita brasileiras. Ou qual a sua importância não verbal, mas real?

Às vezes o homem é colocado em relação direta ao ambiente que o cerca, como por exemplo, o cubano Reyner Leiva Novo. Em uma imensa parede ele exibe centenas de escovas de dente usadas, que ele trocou por novas com os habitantes de Sorocaba, compondo uma história intima e local.

O coletivo norte-americano Guerrilla Girls é o porta voz de uma nova consciência feminista que denuncia a segregação das mulheres dentro do Art System, dominado majoritariamente por homens. Na verdade, o que criticam é que poucas coisas mudaram na relação homem/mulher dentro do circuito de arte que insiste em repetir, sob formas disfarçadas, o comportamento conservador do mercado de outras décadas. O coletivo traz também o Departamento de Reclamações, já realizado no ano passado na Tate Modern, em Londres. Uma imensa lousa com giz se abre para o público deixar seus protestos. O grupo mantém o anonimato e só se apresenta com máscaras de gorila, em atitudes de dominação, ameaça, gozação, uma resposta ao universo restrito, árido e domesticado da arte.

O desfecho fica para Yango Hernandéz, o jovem artista cubano consagrado em exposições internacionais que, numa simples e potente instalação, aperfeiçoa a engenharia da imagem política. Uma cadeira com apenas três pernas se equilibra sobre um “palco”, girando em torno de si mesma, dentro de um círculo de madeira recortada. Falamos de um objeto fraturado, frágil e cotidiano, que trafega pelo tempo por meio da memória e pode nos remeter ao desiquilíbrio econômico, político, social, intelectual de todo o planeta.

Já pensando na terceira edição, Frestas Trienal de Artes de Sorocaba poderia se inspirar na Bienal de Lyon que em suas primeiras edições faz carreira solo para depois contaminar outras instituições importantes da cidade. A partir dessa expansão torna-se mais potente e internacional.

Fela made in Brasil

(Foto- Reprodução) Fela Kuti
(Foto: Reprodução)

Do big beat ao hip-hop; do hip-hop ao soul-jazz e o funk; do funk aos ritmos africanos, com uma passagem obrigatória pela irrepreensível obra do nigeriano Fela Kuti: em resumo, a trajetória inicial do pesquisador musical Frédéric Thiphagne, pode ser, assim, reconstituída. Em 2008, o francês de Lyon, que viveu de 2009 a 2011 em Paris, deu início ao blog Les Mains Noires (em tradução livre As Mãos Negras: lesmainsnoires.blogspot.com). Nele, Thiphagne explora seus dois maiores interesses: compartilhar preciosidades de seu garimpo musical e publicar entrevistas de outros pesquisadores, quando tem a possibilidade de produzir retratos desses personagens em seus hábitats.

Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti
Reprodução do LP “Sorrow, Tears and Blood”, de Fela Kuti

Ao chegar ao Brasil, no final de 2011, e se deparar com o elevado custo das reedições de históricos LPs e compactos importados, Thiphagne decidiu abrir um selo de distribuição, o Goma Gringa, para importar obras de gravadoras europeias e americanas. Ao lidar com os impasses burocráticos e tributários da alfândega brasileira, concluiu que, por mais nobre que fosse sua missão, ela seria enterrada na vala comum da inviabilidade comercial. “No Brasil, constatei que as reedições custavam três, quatro vezes o valor praticado na Europa. Algo que me deixou chocado, pois disco é cultura e o Brasil sempre soube disso, tanto é que havia essa frase estampada na contracapa dos álbuns lançados aqui. Para mim, produtos culturais têm de ter o preço mais acessível possível. Na Etiópia, penso eu, os discos deveriam ser gratuitos. É um povo que tem uma cultura musical das mais ricas, mas que, ironicamente, não pode consumir a própria cultura.”

Com o declínio dos planos de importação e a chegada de um novo sócio, o Goma Gringa começou a vislumbrar outros horizontes. Thiphagne juntou-se a seu primeiro cliente no País, o conterrâneo e músico Matthieu Hebrard, radicado no Brasil há 12 anos. Formado em violoncelo e contrabaixo acústico, em Paris, Hebrard consolidou parcerias com brasileiros e se prepara, agora, para lançar um álbum com o projeto Quebrante, no qual toca baixo, canta e divide composições com Thiago França, Marcelo Cabral e o DJ Will Robinson. A afinidade entre Thiphagne e Hebrard logo apontou caminhos mais longevos para o selo, com uma decisão aparentemente simples: se importar os discos elevariam tanto o custo, por que não produzi-los por aqui? E a concretização de tal ideia é um marco zero em grande estilo. Depois de negociar com a família do músico (morto em 1997), o Goma Gringa será o primeiro selo a produzir no Brasil um álbum do pai do afrobeat, Fela Kuti, o emblemático Sorrow, Tears and Blood, lançado originalmente em 1971, pelo selo Kalakuta Records.

A reedição reproduz a arte original e traz duas boas surpresas: um pôster encartado e o registro da faixa que dá título ao disco, com um arranjo de 16 minutos (a original tem 10’16”). A gravação foi especialmente concedida pela família de Fela. Outra boa nova é que a Goma Gringa pretende estabelecer via de mão dupla e lançar artistas brasileiros pelos selos que aqui representa. É o caso do germânico Analog Africa, que encomendou a Thiphagne uma coletânea dupla em LP com o melhor da produção setentista do carimbó, gênero paraense eternizado por artistas como o patrono Mestre Verequete e Pinduca. Em tempo: apesar de o francês conhecer a gíria “goma” (que significa casa) o nome do selo é a soma de goma-laca, matéria-prima dos extintos compactos de 78 rpm, e a origem das obras que se propõe a lançar.

“Temos que aprender a ser índios antes que seja tarde”, diz antropólogo

Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”
Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”

Temos que aprender a ser índios, antes que seja tarde. Foi essa a principal mensagem dada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro na mesa “Tristes Trópicos”, realizada na Festa Literária Internacional de Paraty de 2014. Segundo o pesquisador, neste momento em que o planeta passa por uma situação de “catástrofe climática” e está sendo transformado em um “lugar irrespirável”, devemos aprender com os povos indígenas “como viver em um país sem destruí-lo, como viver em um mundo sem arrasá-lo e como ser feliz sem precisar de cartão de crédito”. “O encontro com o mundo índio nos leva para o futuro, não para o passado”, disse ele.

“Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca.

Viveiros de Castro dividiu a mesa com o também antropólogo Beto Ricardo, fundador do Instituto Socioambiental (ISA), e com a mediadora Eliane Brum. Em discurso afinado, os dois denunciaram a dura realidade vivida pelos índios brasileiros atualmente e disseram haver uma “campanha” em voga no Congresso para retirar os direitos que estes povos conquistaram com a Constituição de 1988. “Hoje os índios estão mais visíveis do que nunca, mas mais vulneráveis do que nunca. O Congresso tem uma maioria de proprietários de terra em uma ofensiva final contra os índios”, disse Viveiros de Castro, que também criticou o governo federal pelo trabalho quase nulo na demarcação de terras.

O antropólogo, célebre mundialmente por sua teoria do perspectivismo ameríndio, comparou a situação dos índios no Mato Grosso do Sul com a dos palestinos na Faixa de Gaza. Segundo ele, os guaranis do Estado vivem ou nas beiras de estrada ou confinados em reservas mínimas, das quais são frequentemente expulsos pelas pressões do agronegócio: “O Mato Grosso foi transformado em um nada, a custa de que se possa plantar ali soja, cana e botar gado para exportação, para alimentar os países capitalistas centrais. Devia chamar Mato Morto, ou ex-Mato”. E continuou: “Os índios estão vendo o céu cair em suas cabeças. Mas dessa vez vai ser na cabeça de nós todos.”

Beto Ricardo criticou também a cobertura dada pela imprensa à questões como essa no País. “Quantos nomes de grupos indígenas você conseguiria pronunciar de memória? A imprensa brasileira consegue pronunciar pouquíssimos. Fala em um índio genérico”, disse ele. Ao apresentar a série de publicações intitulada Povos Indígenas no Brasil, o antropólogo aproveitou para cutucar inclusive o público: “Quem quiser não só decorar os nomes das capitais do Brasil, mas os nomes dos povos, pode ler esses livros”. “Os índios tem muito a colaborar para um país mais democrático e diverso”, concluiu.

A última intervenção de Viveiros de Castro, após as perguntas do público, foi talvez a que mais chamou atenção pela dureza e aparente pessimismo, mas foi muito aplaudida. O antropólogo disse sentir vergonha de ser brasileiro quando vê o que se fez com os povos originários dessa terra, ou ainda quando lembra que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão (com exceção da Mauritânia). Para ele, no entanto, o sentimento de vergonha deve ser preservado, já que é também o que gera o sentimento de intimidade com o país: “Se eu fosse francês, teria vergonha do que a França fez na Argélia, na Indochina, na África. Ou seja, ser brasileiro não é especialmente vergonhoso. Ser de qualquer país é vergonhoso, porque todo país é construído em cima da destruição de povos”, explicou.

Livro de Cabeceira

Na tradicional mesa de encerramento da Flip intitulada “Livro de Cabeceira”, Viveiros de Castro esteve mais uma vez entre os participantes, e fechou com brilho sua passagem pela festa literária. Ao lado de alguns dos convidados de maior destaque do evento, como Andrew Solomon, Fernanda Torres e Juan Villoro, o antropólogo escolheu ler o trecho de um sermão de Padre Antonio Vieira em que o religioso ressaltava a dificuldade de conversão dos índios brasileiros: “Como diz o Vieira: ‘A gente dessa terra é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, a mais trabalhosa de ensinar de quantas há no mundo. Outros gentios, outros pagãos, são incrédulos até crer. Os Brasis, ainda depois de crer, continuam incrédulos.’” E Viveiros de Castro concluiu: “Ou seja, esse tema, a ideia de que os índios tem uma inconstância essencial, passou a ser uma espécie de traço definidor do caráter ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do nosso imaginário nacional. A saber, o imaginário do índio mal convertido, que à primeira oportunidade manda deus, a enxada e as roupas ao diabo e retorna feliz à selva. E eu diria, para concluir, que é graças a isso que os índios continuam a salvo dos seus salvadores”.

De volta aos manicômios? SUS retoma debate sobre hospitais psiquiátricos no Brasil

(Foto: Davide Contenti/ Picssr)
(Foto: Davide Contenti/ Picssr)

No primeiros dia do último mês de setembro, o Sistema Único de Saúde (SUS) anunciou  que voltará a debater a expansão de leitos em hospitais psiquiátricos no País. A iniciativa, que vai na contramão da reforma psiquiátrica vigente há mais de 15 anos, foi defendida por representantes de secretarias municipais e estaduais de saúde e sugerida pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), em reunião com o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

Desde 1987, setores da saúde mental lutam pelo fim dos manicômios no País. Não é por menos: o maior deles, o Hospital Colônia, de Barbacena (MG), matou mais de 60 mil pessoas e vendia os corpos para faculdades de medicina do País – tema do livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex. Além disso, a primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos foi de uma violência seguida de morte ocorrida dentro de uma instituição psiquiátrica, a Casa de Repouso Guararapes, no Ceará. Violações de direitos foram constatadas nos manicômios e pacientes acometidos com transtornos mentais ficaram isolados por até 30 anos nesses palcos de atrocidades.

Nessas três décadas de luta antimanicomial, surgiu a rede substitutiva, formada por novos lugares públicos voltados ao cuidado dessas pessoas, com tratamentos humanos e que garantem liberdade, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e as residências terapêuticas. Além disso, foi sancionada a Lei da Reforma Psiquiátrica, em 2001, que coloca a internação como último recurso e registra os direitos e a proteção às pessoas acometidas de transtorno mental.

Mesmo assim, ainda hoje, há 159 manicômios no Brasil. O movimento, no entanto, é contrário: nos últimos 11 anos a oferta de leitos psiquiátricos no SUS diminuiu quase 40% e desde 1989 foram fechados quase 100 mil leitos desse tipo.

“Temos uma história no País de uma reforma psiquiátrica que responde aos princípios internacionais do bom cuidado na saúde mental”, explica Lumena Almeida, psicóloga, ex-secretária nacional de Atenção à Saúde, que já foi também secretária adjunta de Saúde em São Bernardo do Campo e secretária de Saúde de Mauá, além de trabalhar no SUS há mais de 30 anos.

Em conversa com o páginaB!, Lumena elenca quatro motivos pelos quais a medida é considerada um retrocesso:

1) Há muitos anos, o Brasil vem experimentando o cuidado em liberdade. E vem mostrando que o cuidado em liberdade é muito mais efetivo do que o cuidado fechado em hospício, em hospital psiquiátrico. Não é mais uma aposta, a gente vivencia isso, a gente tem casos disso.  A política nacional de reforma psiquiátrica está implantada em vários municípios.

2) A política nacional vem fazendo um forte investimento na rede substitutiva. Se o Ministério avalia que tem problemas no cuidado, nos CAPS, ele tem que qualificar esse cuidado.

3) Nós já conseguimos fechar 30 mil leitos de moradores de hospitais psiquiátricos, pessoas que ficaram presas 26, 30 anos, só pelo fato de terem um diagnóstico de transtorno mental. Nem a pena máxima no Brasil chega a essa duração. Então o Brasil já estava saldando sua dívida histórica com essas pessoas, construindo uma rede de moradia para que elas pudessem morar em liberdade. Ou seja, agora voltar para o hospital psiquiátrico como um espaço de cuidado é retroceder, ir pelo caminho inverso que o País vem fazendo de resgatar a dignidade das pessoas que moraram durante grande parte da sua vida em hospitais psiquiátricos.

4) Todos os municípios brasileiros que implantaram uma rede com qualidade prescindiram do leito em hospital psiquiátrico. Porque a gente mostrou que é possível cuidar com essa rede que está prevista na política, que é CAPS, unidade básica, consultório de rua, residência terapêutica, unidade de acolhimento e leito em hospital geral. Então não está se sentindo necessidade desse leito, ele não faz sentido mais no processo de cuidado que vinha sendo implantado.

Caminhos possíveis

Lumena Almeida traz também ideias de caminhos que o governo federal pode percorrer se tem o intuito de fomentar a política de saúde mental do País, sem esconder a reação que a notícia recente gerou:

É com muito espanto que os setores que há mais de 30 anos no Brasil tem trabalhado na reforma psiquiátrica, na política nacional de saúde mental, ouvem essa fala do Ministério da Saúde, do Conass e do Conasems. Toda política nacional para ser implantada também tem problemas, fragilidades. Por exemplo, o Ministério da Saúde ajudaria muito mais se ele liberasse o recurso para todos os serviços novos que foram criados e ainda não foram financiados pelo Ministério nos últimos períodos. Isso sim é uma questão que teria que ser discutida. Ou que ele retomasse, por exemplo, o Percurso Formativo, que é um processo de formação que o Ministério da Saúde fazia com a rede de saúde mental, muito potente, para poder qualificar o cuidado na rede dos CAPS. Esse é o papel que o governo federal tem para poder qualificar a política. E não ter um retrocesso de proposta que é a ampliação dos leitos psiquiátricos.

Formação, informação e deformação

Sebastião Salgado - Church Gate Station Bombay Índia - 145x200cm-1995

Em 1781 Immanuel Kant publicou “A Critica da Razão Pura”, que rapidamente tornou-se um marco para a teoria do conhecimento ao definir as condições pelas quais a ciência separa-se da metafísica. Com isso ele criava novos critérios para distinguir o que é uma opinião, relativa, subjetiva e interessada do saber que aspira universalidade, objetividade e imparcialidade e que na origem é o que chamávamos de verdade. Ao mesmo tempo ele reinventava um método que comportava sua própria reatualização: o método crítico. Separava-se assim o conhecimento, resultado da comparação entre conceitos e fenômenos e crítica do conhecimento, o exame do processo, dos pressupostos, das condições ou dos pontos de vista pelo qual este conhecimento se realiza.

Toda informação depende, portanto, de uma formação. Formação tem aqui dois sentidos diferentes: produção de fatos, dados e acontecimentos, mas também educação de sujeitos, usuários, leitores, cidadãos ou consumidores, para os quais o conhecimento será útil, válido ou relevante. Portanto, a crítica incide duas vezes neste processo, examinando as deformações causadas no curso da construção dos fatos e também desfazendo as deformações inerentes aos processos educativos do sujeito: seus preconceitos históricos, crenças particulares e interesses individuais. Comprimindo muito o assunto, poderíamos dizer que este modelo de crítica determinou fronteiras importantes até hoje: ciência ou política, fatos ou interpretações, Estado ou família, leis gerais e valores particulares. Foi este modelo que implantou também o sentimento social de respeito pela razão, fonte e origem da autoridade que estamos dispostos a reconhecer.

Disse que em 1781 Kant publicou a “Crítica da Razão Pura” e você, caro leitor, deve ter pensado em coisas como “isso é antigo demais”, afinal “quem foi Kant?” ou “este texto vai ser chato, universitário e elitista demais”. Legendas mentais como: “esquerdismo vermelho” e “chega de crítica, precisamos de ideias positivas, práticas e resolutivas” podem ter piscado no canto esquerdo de seu cérebro. Quando usei palavras quase técnicas como “ciência” e “metafísica” perdi metade dos leitores para a máxima: “não complica o que não existe” e mais um terço para “legal, mas muito difícil para quem está no corre da vida real”.  Mas duvido que alguém tenha pensado que o ponto mais problemático do parágrafo anterior esteja em sua quarta palavra, ou seja: publicou. Kant publicou, ou seja, tornou público através de um livro, composto por tipos móveis impressos em folhas de papel.

Suas ideias foram lidas, primeiramente por alunos de universidades que falavam alemão, começando pela pequena cidade prussiana chamada Königsberg, onde o rio cruzado por sete pontes. Dali ele tornou-se inspiração para os teóricos ingleses da moral, para o entendimento do que foi a revolução francesa, para formação das instituições americanas, para os modelos de educação, cultura e ciência no mundo. Portanto, tudo o que afirmei acima e todo o legado de Kant, também chamado de o debate das luzes, depende deste acontecimento que tornou possível o acontecimento Kant, que é a existência de um espaço público. É tão somente pelo uso da razão no espaço público que alcançamos maioridade, autonomia e liberdade, os meios e os fins de como queremos ser reconhecidos. É no espaço público que os interesses se cruzam formando conflitos, nele acontece a disputa de ideias e de palavras que caracteriza a política em sentido moderno, é nele também que se formam discursos e narrativas pelos quais nos fazemos reconhecer e podemos reconhecer os outros. O trabalho da crítica, neste contexto, é o de denunciar deformações, zelando pela pureza do processo, mais do que pelas teses vitoriosas ou perdedoras a cada rodada. Por isso o afeto fundamental da crítica clássica é a culpa. Culpa por ter corrompido a pureza da lei com interesses e inclinações.

Disso decorre um problema crucial: o que acontece quando o espaço público se deforma? Se ele é condição para o exercício da crítica, como fazemos quando ele passa a ser controlado de tal maneira que, em vez de comportar tendencialmente a participação de mais pessoas, generalizando a inclusão de vozes e sujeitos, que quiseram ou puderam se emancipar de suas minoridades, ele passa a ser organizado, reversamente, por regras de exclusão? É o caso, por exemplo, das políticas públicas que retiram investimentos da educação (criando tetos de aplicação de receitas), ou que desprezam a importância da ciência (cortando bolsas de estudo), ou que desfazem do papel da cultura (extinguindo ministérios). Quando se diz que isso está a serviço da redução do tamanho do Estado, outros objetarão que está em curso uma identificação equívoca entre Estado e espaço público.

Ciência, arte e educação são justamente meios decisivos para formação qualificada de novos habitantes para o espaço público. Pode-se contra argumentar aqui que tais práticas habilitam apenas formalmente alguém a participar do jogo. Se a economia não permitir, não haverá expansão do espaço público. Não há espaço público para pessoas passando fome, morando na rua ou desempregadas no que restou de suas casas. Por isso muitas políticas públicas percebem tais “ocupantes indevidos” do espaço público (ruas, pontes e regiões centrais de grandes cidades) como um obstáculo a ser removido e não como um sintoma provocado pela própria contração do espaço público (redução de serviços de suporte social, saúde e políticas de emprego, habitação e circulação de pessoas). Muitos intervirão dizendo que o fato fundamental é que não há dinheiro para tudo e que em situação de falência precisamos primeiro arrumar a casa da economia para depois pensar na educação ou na saúde, afinal os bens materiais são condição para os bens simbólicos.  Contra isso outros argumentarão que talvez a falência não seja tão profunda assim, que a crise esteja sendo fabricada ou exagerada para produzir e justificar a conveniência dos “remédios” anti-crise.

Ora, o que o leitor encontrou no parágrafo acima, parece apenas uma recapitulação bem comportada e genericamente civilizada do debate entre esquerda e direita que se encontrará em versões mais ou menos tendenciosas nos grandes jornais e na imprensa brasileira. A forma debate é um dos aspectos assumidos pelo uso da razão em espaço público. Debater presume argumentos e argumentos dependem de fatos, mas também, como vimos de interpretações e de interesses. O debate tem por isso uma dupla função, ele exerce e cria condições para novas formas jurídicas e deliberações políticas, mas ele também é uma experiência formativa, ou seja, ele educa, ele ensina como falar e como lidar o outro por meio da linguagem e da razão. Outra palavra chave para entender a noção de debate é a ideia de reflexão. Refletir implica suspender a ação e o juízo, examinar o que se apresenta diante de nós, reconstruir o processo de formação do que se apresenta diante de nós, seja isso um fato, seja isso uma interpretação.

Refletir significa ainda sair de si mesmo, deixar a sua posição e assumir a conjectura da pertinência e existência de outro lugar. Finalmente, refletir é fletir novamente, ou seja, retornar a si, mas agora transformado pela jornada da reflexão. Se a reflexão funciona bem o outro também se transforma ao participar de nossa reflexão. E ela é melhor ainda se implica consequência e responsabilidade. Ora, a urgente necessidade de reconstruir o debate público no Brasil não é uma operação de legislativa, feita apenas de novas e melhores leis, da radicalização de atitudes morais, ela é uma tarefa urgente. Uma reforma da reflexão, uma reforma da crítica, uma reforma das instâncias que deveriam ter cuidado do debate e do espaço público e que não o fizeram durante os anos 2013 a 2017. Tudo isso precisa ocorrer junto com a reforma política. É preciso refundar a crítica, e como toda crítica ela começa pela auto-crítica. Isso implica rever o papel daqueles que tem por ofício cuidar da conversa assim como participar dela. Aqueles que funcionam como os representantes das “regras do jogo”, e estes representantes classicamente são a universidade e os intelectuais (Kant volta aqui mais uma vez), a imprensa e o sistema da cultura, a educação e o judiciário. É curioso como todas estas funções foram convocadas e parasitadas no interior do debate que evoluiu para não-debate em 2016, culminando na suspensão organizada da lógica da conversa e assunção da lógica do golpe, da pós-verdade e da  pós-política. Esquerda e direita estão agora juntas e envergonhadas, ainda que por motivos distintos. A operação limpeza moral, baseada na purificação do mal, parou no ridículo golpe dentro do golpe que mantém um corrupto no poder “por motivos práticos”, assim como teria retirado uma corrupta do poder “por motivos igualmente práticos”. Afinal, que racionalidade é esta senão a vitória da deformação sobre a formação e a informação? Como tão poucos conseguiram enganar tantos com razões tão deformadas?  Aqueles que repudiam professores, intelectuais e artistas, que desmerecem o espaço público, aqueles que se aproveitaram do ressentimento social para suspender o debate, aqueles que usaram a retórica da limpeza para contrariar a “razão pura”, aqueles que ganharam muito com a emergência do novo irracionalismo brasileiro, estão agora quietos, indiferentes e envergonhados. É o momento de refundar a crítica, sem tripudiar deste engano, mas entendendo como ele se tornou possível.

Quando identificamos espaço público com Estado, quando confundimos interesse público com bens públicos, quando reduzimos bens públicos aos recursos e responsabilidades do Estado, estaríamos deixando de enfrentar a pergunta realmente crucial, ou seja, a redução do Estado não seria um artifício para melhor controlá-lo em favor de interesses particulares? Aqui o problema da deformação do espaço público encontra outra versão. Neste caso não é que ele se contraia, diminuindo seu tamanho, excluindo pessoas, por exemplo, pobres e analfabetos ou negros e mulheres, mas ele muda de dono, ele deixa de ser de todos e passa a ser de alguns, por exemplo, daqueles que estão representando as pessoas e que usualmente chamamos de políticos. A rigor, político não é o que assume isso como uma profissão ou carreira parlamentar, mas todo aquele que fala e age em espaço público. É apenas por uma destas deformações, típicas da redução do espaço público a uma lógica de condomínio, que ressurge esta tendência anti-política, expressa, por exemplo, pela recusa ou desleixo com o voto. Ainda que baseado em atitude crítica, (note o retorno da palavra crítica mais uma vez), a atitude anti-política é no fundo uma política suicidária. Ela afirma garbosamente que os políticos lá em Brasília estão destruindo o Brasil (e estão mesmo), mas não se dá conta de que ao dizer isso, preguiçosamente, se está a afirmar ao mesmo tempo: “eu sou uma criança infantil, que não tenho interesse em participar disso, ou seja, do espaço público, pois ele é cheio de interesses, sujeiras e negociatas. Ademais quem se mete com isso torna-se imediatamente suspeito”. Tudo verdade. Uma verdade tão verdade que habilita os “não políticos” os “homens de ação e obras” a praticar a pior das políticas, a saber, aquele que consagra-se a reduzir o espaço público, econômica e formativamente e aquela que serve aos particulares amigos no melhor dos mundos possíveis para os negócios, ou seja, o negócio que é supervisionado pelo Estado em favor de uns e não de outros. Um negócio que não e um verdadeiro capitalismo, mas um uso do Estado para fazer bons negócios com minha família, amigos ou protegidos.

Ocorre que a crise da crítica brasileira envolveu um elemento novo, a formação de uma geração de atores políticos em uma nova linguagem, cujo suporte é a internet, e uma nova gramática de reconhecimento, cujo suporte são as experiências de sofrimento, de classe, de raça, de gênero, combinadas com processos de inclusão-exclusão social quanto a bens simbólicos, como educação, saúde, habitação e circulação.  Nossa geografia clássica, formada por fronteiras claras e distintas entre o público e o privado, cuja violação era percebida como deformativa, passou por uma mutação. Redes sociais são espaços nos quais não é mais o ator que define seu posicionamento, nem mesmo seu lugar de fala, enquanto identidade, mas é o próprio discurso que alterna interesse público e razões privadas. Isso se choca brutamente com o razão baseada em instâncias, que divide administrativamente os problemas e suas funções, as autoridades e suas prerrogativas. Uma crítica baseada em áreas ou especialidades, em autoridades constituídas e reputações firmadas, tem que se haver com um espaço que subitamente pode se tornar horizontal, onde todos falam de igual para igual. Mas este espaço pode, em seguida, ser extinto ou transformado em um deserto de indiferença ou irrelevância.

Rapidamente, o mesmo espaço anódino pode ser reocupado por um discurso vertical de uso, posse e propriedade da razão. A crítica deixa assim de confiar em seus representantes legais constituídos e passa a depender de eventos locais, de reviravoltas cuja característica mais interessante é que ela não é prontamente organizada ao modo de um mercado nem de uma garantia de autoridade. Ora, esta novidade promissora corroeu grandes impérios de informação, criando outros em seu lugar. Ocorre que a produção de informação relevante assim como a de formação qualificada custa muito caro, ao passo que a disponibilidade de informação segue a curva histórica de barateamento. Essa nova linguagem se torna disponível, para um contingente expressivos de brasileiros, no exato momento em que a tensão social se aprofunda. Ou seja, no ponto em que precisaríamos agudamente do trabalho da crítica ela teve que ser, por assim dizer, reinventada às pressas. Esta reinvenção prática da crítica obviamente produziu novas fórmulas e novos espaços de fala, no entanto, criou também o que se poderia chamar de uma reação regressiva baseada na anti-crítica, no obscurantismo e na reaparição de fórmulas pré-kantianas de pensar o espaço público. A pós-verdade é um nome muito novo para designar um fenômeno muito antigo.  A renovação da crítica não se dará pela adesão ao ponto neutro e angelical, uma purificação teológico-política, na qual os verdadeiros eleitos deverão nos guiar ao paraíso. Ela também não virá pela exaustão da culpa e da denúncia de impostores, mas talvez da reformulação da experiência com a vergonha por ser enganado, e com a humildade pelo reconhecimento da extensão do problema.

Jesse Owens e a supremacia branca

Em Nova York, Owens teve de usar elevador de serviço para chegar à recepção em sua homenagem (Foto- Reprodução)
Em Nova York, Owens teve de usar elevador de serviço para chegar à recepção em sua homenagem (Foto: Reprodução)

Do alto de uma tribuna especial, o líder nazista Adolf Hitler comemorava as vitórias alemãs nas Olimpíadas de Berlim de forma quase histérica. Era agosto de 1936. Para evitar um boicote internacional, nos meses anteriores ele havia ordenado uma faxina que eliminou dos espaços públicos todas as referências racistas do regime. Não passava de jogo para a plateia.

Na verdade, Hitler planejava acompanhar a consagração de seu regime no estádio olímpico de Berlim. Cada vitória alemã o aproximava da meta. Até surgir o americano Jesse Owens, o velocista negro que arrebanhou quatro medalhas de ouro naqueles Jogos. Ovacionado no estádio, Owens logo se transformou em símbolo internacional da luta contra o racismo.

Dali em diante, também conviveu com a lenda de que Hitler teria se recusado a cumprimentá-lo pela vitória. Na verdade, o líder nazista já havia parado de parabenizar os atletas quando Owen disparou rumo à consagração olímpica. Hitler mudou de atitude pouco antes de outro atleta negro, o americano Cornelius Johnson, ganhar o ouro no salto em altura.

O fato de ter se tornado um símbolo mundial do combate ao racismo não amenizou em nada o cotidiano de Owens nos Estados Unidos. Para participar de uma recepção em sua própria homenagem no Waldorf Astoria Hotel, em Nova York, teve de subir pelo elevador de serviço, como conta na autobiografia “The Jesse Owens Story”, lembrando que, naqueles tempos, negros não podiam usar elevadores sociais.

“Quando eu voltei para o meu país, com todas aquelas histórias sobre Hitler, eu não podia andar na parte da frente do ônibus, tinha que ir para a parte de trás”, escreveu Owens. “Eu não fui convidado para trocar um aperto de mão com Hitler, mas eu também não fui convidado para cumprimentar o presidente na Casa Branca”, completou, referindo-se a Franklin Delano Roosevelt.

A morte de Fidel Castro, para além do reducionismo de opiniões polarizadas

Morte de Fidel Castro e os diferentes estilos de pêsames globais (Foto: Acervo EBC)

Aos 90 anos de idade morreu Fidel Castro, em meados de 2016. Sua morte foi anunciada pela televisão estatal de Cuba por  Raul Castro, seu irmão e presidente do país caribenho:

“Querido pueblo de Cuba: Con profundo dolor comparezco para informar a nuestro pueblo, a los amigos de nostra América e del mundo, que hoy 25 de novembre del 2016, a las 10 e 29 horas de la noche, falleció el Comandante en jJefe de la Revolucion Cubana, Fidel Castro Ruz. En cumplimiento de la voluntad expresa del compañero Fidel, sus restos serán cremados”.

Fidel há tempos estava doente. Sua última aparição em público havia acontecido em agosto do ano passado, quando completou 90 anos.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, divulgou, através de sua assessoria, nota bastante protocolar e cuidadosa até porque trabalhou muito pela aproximação com Cuba:

“Neste momento do passamento de Fidel Castro, estendemos uma mão amiga ao povo de Cuba. Nós sabemos que este momento enche cubanos – em Cuba e nos Estados Unidos – de fortes emoções, relembrando os incontáveis caminhos em que Fidel Castro alterou o curso das vidas de indivíduos, de famílias e da nação cubana. A história vai registrar e julgar o enorme impacto de sua singular figura no povo e no mundo a sua volta”.

Já o presidente eleito, Donald Trump, não teve nenhum cuidado. Foi direto:

“Hoje, o mundo assiste a morte de um ditador brutal que oprimiu seu povo por cerca de seis décadas. O legado de Fidel Castro é o de pelotões de fuzilamento, roubos, sofrimentos inimagináveis, pobreza e negação dos direitos humanos fundamentais.”

Na mesma linha, o senador republicano pela Florida, o cubano-americano, Marco Rubio, que foi candidato a presidência, também foi direto:

”Por seis décadas, milhões de cubanos foram forçados a abandonar seu próprio país, e aqueles acusados de fazerem oposição ao regime eram rotineiramente presos e até mortos. Infelizmente a morte de Fidel Castro não significa a liberdade do povo de Cuba ou a justiça para os ativistas da democracia, os líderes religiosos e os opositores políticos que ele e seu irmão prenderam e perseguiram. O ditador morreu mas a ditadura continua”.

Enquanto Obama foi cuidadoso, Trump e os republicanos foram diretos. Diretos no fígado.

Vale ler o texto de Eduardo Galeano, do livro Espelhos, uma História Quase Universal, com tradução de Eric Nepomuceno. que está circulando pela internet:

“Seus inimigos dizem que foi rei sem coroa e que confundia a unidade com a unanimidade. E nisso seus inimigos têm razão. Seus inimigos dizem que, se Napoleão tivesse tido um jornal como o Granma, nenhum francês ficaria sabendo do desastre de Waterloo. E nisso seus inimigos têm razão. Seus inimigos dizem que exerceu o poder falando muito e escutando pouco, porque estava mais acostumado aos ecos que às vozes.

E nisso seus inimigos têm razão. Mas seus inimigos não dizem que não foi para posar para a História que abriu o peito para as balas quando veio a invasão, que enfrentou os furacões de igual pra igual, de furacão a furacão, que sobreviveu a 637 atentados, que sua contagiosa energia foi decisiva para transformar uma colônia em pátria e que não foi nem por feitiço de mandinga nem por milagre de Deus que essa nova pátria conseguiu sobreviver a dez presidentes dos Estados Unidos, que já estavam com o guardanapo no pescoço para almoçá-la de faca e garfo.

E seus inimigos não dizem que Cuba é um raro país que não compete na Copa Mundial do Capacho. E não dizem que essa revolução, crescida no castigo, é o que pôde ser e não o que quis ser. Nem dizem que em grande medida o muro entre o desejo e a realidade foi se fazendo mais alto e mais largo graças ao bloqueio imperial, que afogou o desenvolvimento da democracia à la cubana, obrigou a militarização da sociedade e outorgou à burocracia – que para cada solução tem um problema –, os argumentos que necessitava para se justificar e perpetuar.

E não dizem que apesar de todos os pesares, apesar das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta. E seus inimigos não dizem que essa façanha foi obra do sacrifício de seu povo, mas também foi obra da pertinaz vontade e do antiquado sentido de honra desse cavalheiro que sempre se bateu pelos perdedores, como um certo Dom Quixote, seu famoso colega dos campos de batalha. “

Aqui no Brasil, com seu habitual e consistente equilíbrio, o filósofo Renato Janine Ribeiro lembrou as ambiguidades do regime e postou em sua página no Facebook várias análises. Opiniões contrárias e opiniões favoráveis a Fidel Castro.

O filósofo também manifestou sua indignação no seguinte texto:

“Você tenta entender Fidel, sua ambiguidade: um revolucionário nacionalista com forte preocupação social que os EUA bloquearam, tentaram matar, praticamente jogaram nos braços do comunismo e que com isso puniram um povo todo. E o outro lado, o ditador, a repressão, muitas coisas, mas também ambíguas, porque foi o exército cubano que salvou Angola da invasão racista sul-africana. Um personagem ambíguo. Aí, retardados começam a dizer que foi apenas um assassino, do mal, que os verdadeiros cubanos estão em Miami, – e que eu estou defendendo Fidel. Pensar faz bem, sabem? Quem não gosta de pensar vá aos blogueiros e publicações apropriados.”

Falta de água e de saneamento afeta mais as mulheres ao redor do mundo

O percurso de busca à água muitas vezes é longo, podendo apresentar riscos a essas pessoas. FOTO: Fotos Públicas

O acesso à água segura e ao saneamento sanitário não está disponível da mesma forma para homens, mulheres e outras identidades de gênero. É o que mostra estudo da Organização das Nações Unidas (ONU), coordenado pelo pesquisador brasileiro Léo Heller, que é relator especial sobre os dois temas na instituição.

Segundo Heller, que também coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Saneamento da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, em quase todas as localidades onde há falta ou má distribuição de serviços de saneamento, são as mulheres que coletam que coletam água para manter a higiene doméstica.

“A situação mais usual é que, quando não há água nas proximidades da residência, as mulheres e meninas são, na maioria das vezes, encarregadas de buscá-la em algum lugar, o que demanda tempo.”

Ele ressalta que essa situação reforça a dependência econômica delas de seus companheiros, já que não são remuneradas por esse trabalho. O  percurso de busca à água muitas vezes é longo, podendo apresentar riscos a essas pessoas de sofrerem ataques de todas as espécies, como de animais selvagens e violência sexual.

Sem acesso a banheiros, essas mulheres se valem de espaços abertos para fazerem suas necessidades, o que as deixa mais vulneráveis ainda.

A inadequação de espaços públicos atinge também a vida de mulheres transgêneros. Estudos feitos na Índia revelam que as transexuais enfrentam dificuldade em encontrar casas para morar, sendo forçadas a viver em favelas e áreas remotas, com sérios problemas de esgoto e distribuição de água.

Outro grupo atingido é a população em situação de rua. Em Belo Horizonte, Minas Gerais, uma pesquisa coordenada por Heller mostra que os albergues e as unidades de acolhimento não são em número suficiente para a quantidade de pessoas sem moradia.

Heller ressalta que o estudo é importante para orientar políticas públicas voltadas para serviços de água e esgoto. “Às vezes, a legislação e as políticas públicas, quando são neutras em relação a essa questão, acabam favorecendo os homens.”

O estudo sugere ainda que os governos criem um sistema de indicadores de gênero para melhorar a coleta de dados desagregados por sexo e outros fatores relevantes que são necessários para avaliar o impacto e a efetividade das políticas que visão a igualdade de gênero.