ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira
Esqueça tudo o que aprendeu sobre gênero masculino e feminino, identidade de gênero, sexualidade e comportamento. Se há algum tempo nascer com genitália feminina era suficiente para definir uma mulher por uma vida inteira, mesma condição aos nascidos em corpos masculinos, agora não é mais assim. Há mulheres que se identificam como homens, homens que se identificam como mulheres e ainda os que não se identificam com nada ou com tudo. Tem quem se submeta à cirurgia de readequação sexual, tem quem não. Tudo isso tem e não tem a ver com sexualidade. Entendeu?
Pois é, essas e outras formas de compreender a identidade de gênero e um jeito diferente de se apresentar ao mundo estão sendo pensados por algumas das cabeças mais brilhantes da atualidade. O debate já saiu das comunidades específicas e ganhou espaço nas universidades. Mas a questão não se resume apenas ao mundo intelectual. Famílias e escolas estão se confrontando com o assunto por causa da presença de crianças e adolescentes trans.
A transgeneridade é um termo abrangente. Engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos ou papéis convencionais do sexo biológico determinado no nascimento. São as travestis, as drag queens, os cross dresser, os transexuais. Os dados sobre essa população não são oficiais e variam muito. Mas calcula-se que o mundo abrigue entre 3,5% e 10% de transgêneros. As pessoas não transgênero são agora denominadas cisgênero ou cis, prefixo do latim que significa algo como “do mesmo lado”. Podem ser hétero ou não, mas se identificam com o sexo de nascimento.
Mas, afinal, o que é gênero? Para alguns, uma construção social, uma imposição de comportamentos. Portanto, o trânsito entre um e outro é uma possibilidade legítima. Outros apostam na hipótese das distinções cerebrais existentes no organismo feminino e masculino para explicar o que leva uma pessoa a desejar um corpo oposto ao do nascimento.
O assunto é sério para a filosofia. A americana Judith Butler, uma das defensoras da chamada teoria Queer – palavra inglesa que identificava homossexuais na década de 1970 –, traz a ideia de pensar a questão exatamente a partir das pessoas que desconstroem a coerência entre anatomia, identidade, desejo e prática, ampliando o conceito de gênero. O espanhol Paul B. Preciado, também filósofo e ele mesmo um homem trans, partilha da teoria. Em Manifesto Contrassexual, considerada uma das obras mais importantes deste século sobre o assunto, ele defende a ruptura dos estereótipos homem, mulher, homo, hétero, natural, artificial. As propostas de Butler e Preciado evidentemente estão longe de ser um consenso. O universo da transexualidade ainda espanta, surpreende e, não raro, desperta preconceitos.
A mulher transexual Assucena Assucena, 27 anos, não escapou do primeiro conflito: o familiar. Ela ainda se entristece quando conta as reações do pai ao perceber que algo de diferente acontecia com a filha. “Começamos dizendo que eu era gay, mas mesmo assim ele parou de falar comigo. Era como se eu fosse um pecado.”
Dados de abril divulgados pela Prefeitura de São Paulo explicam o impacto da perda do apoio familiar: até 8,9% da população em situação de rua da capital paulista pertence à comunidade LGBTT, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.
Assucena ainda usava o nome Filipe e era uma figura bastante andrógina quando trocou Vitória da Conquista, na Bahia, pelo curso de História da Universidade de São Paulo. Lá conheceu Rafael, 27 anos, gay, negro, com longas tranças louras e um talento musical impressionante. A grande empatia entre ambos propiciou um daqueles encontros de alma, com discussões profundas sobre história, feminismo, gênero e família que se transformaram em canções. “Enquanto saíam as letras e as músicas, foram saindo também a Assucena e a Raquel Virgínia”, conta Assucena. Em pouco tempo, tinham um disco pronto e a certeza de que era o momento de se assumirem como mulheres transexuais. Em novembro do ano passado, elas lançaram o álbum Mulher, o primeiro da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, com colegas da universidade, uma das mais atraentes novidades do cenário musical paulistano. Uma boa agenda de shows por capitais do País anuncia o futuro da dupla.
Negra, nascida e criada no Grajaú, bairro da zona sul paulistana, Raquel é presença forte. “Sou de uma realidade que os colegas da USP não frequentam e costumo ser a única travesti nos lugares aonde vou. Sou tratada como alguém exótico. Raramente passo uma semana sem ser incomodada por uma questão racial e de gênero.”
Em abril, Raquel foi agredida por um rapaz em um bar na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. “Ele deu em cima de mim, a gente conversou, se beijou e acabou. Mas, 15 minutos depois, voltou e disse que eu devia ter avisado que sou ‘homem’. Como poderia avisá-lo de algo que não sou? E ele tinha conversado comigo, me visto. Na vida de uma travesti, nada é simples. Um beijo pode virar um caso de morte, entende? Se eu não fosse cada vez mais focada e determinada, enlouqueceria.”
Gabriela Bertoletto, transgênero, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo
“A usp tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por isso, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Hoje não me incomodo”
“A visibilidade é uma área conflituosa. Ainda que a convivência com a temática da identidade de gênero esteja mais comum, trans ainda são vítimas de violência e machismo. A estudante de Filosofia da USP Gabriela Perini Bortoletto, de 22 anos, às vezes se esconde. “Na faculdade é mais tranquilo porque as pessoas têm uma consciência política forte. Mas há momentos em que não me sinto confortável em me expor como mulher, principalmente na rua, à noite.”
“Eu me sinto completamente vulnerável. Os caras me incomodam, não me deixam dançar, conversar. Tem os T-lovers, homem cis com fetiche por trans. Querem saber se fiz ou não a cirurgia de readequação sexual. Não, não fiz. Meu gênero flutua muito, não sigo estereótipos.”
Mesmo dentro da USP, Gabriela evita certos eventos. Não se arrisca, por exemplo, a participar de uma festa na Poli.
O mundo não tem bom facolhimento com os transgêneros. Entre 2008 e 2014, foram assassinadas 1.612 pessoas trans em 62 países, inclusive no Brasil, de acordo com a ONU. Irã, Mauritânia, Sudão, Iêmen e regiões da Nigéria e Somália ainda hoje punem atos homossexuais com a morte.
Gabriela incomoda e sabe que incomoda. “Eu dou um nó na cabeça das pessoas. A minha existência é uma perturbação.” Ciente disso, ela frequentemente faz performances por São Paulo. Em uma delas, ocupou sem permissão o Museu de Arte Contemporânea, o MAC, e cruzou diversas vezes os espaços do museu, caminhando o mais lentamente possível. “Minha ideia era mostrar o que é um corpo de uma pessoa trans dentro de um museu, perturbando a ordem de modo não autorizado.”
No dia a dia, Gabriela enfrenta impasses, como usar o banheiro público. “Já me incomodei com isso, principalmente porque na USP tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por um tempo, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Mas aprendi a não me incomodar.”
No Brasil, os banheiros atendem à divisão tradicional homem-mulher, e se isso aqui ainda passa despercebido, no mundo já é tema de disputa. Nos Estados Unidos, Barack Obama recentemente causou polêmica ao pedir banheiros compartilhados em escolas. A orientação é clara: os transgêneros podem usar banheiros que combinem com sua identidade de gênero, independentemente da anatomia. Os legisladores conservadores, claro, reagiram.
Força feminina
Assim como Assucena, Márcia Dailyn Oliveira da Silva, 38 anos, também se viu rejeitada pelo pai quando a adolescência fez aflorar sua identidade feminina. O clima ficou tão pesado que a mãe, Selma (ex-empregada doméstica que se tornou professora de aeróbica no final dos anos 1970), deu um basta no casamento. A família vivia em Jales, interior de São Paulo. “Devo muito à minha mãe. Nunca precisei me prostituir ou roubar. A coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada.” Além do apoio inestimável, Márcia guarda o orgulho de ser a primeira mulher trans a se formar em balé clássico na tradicional Escola de Dança de São Paulo, da Fundação Theatro Municipal. “Havia professores que me chamavam de Márcio. Alguns coreógrafos me encorajavam a participar de um casting, mas na hora me desprezavam. Falavam que eu era feia e pobre. Mas fui até o fim.”
Ela pretende seguir em frente. Desde 2011, frequenta o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde recebe tratamento hormonal e faz psicoterapia, dois pré-requisitos para a realização da operação de mudança de sexo. É o corolário de um processo de transformação que teve início aos 13 anos, quando começou a tomar pílulas anticoncepcionais por recomendação de transexuais mais velhas. “Aguardo a cirurgia com outras 17 pessoas. Porém o Hospital das Clínicas faz uma por mês. Agora é esperar.”
Enquanto isso, leva a vida entre seu trabalho em uma farmácia de manipulação, na região central da cidade, e sua paixão pelo tablado, hoje circunscrita às aulas que ministra no Núcleo de Dança Nice Leite Ilara Lopes, a sua participação na companhia de dança Uirapuru e aos ensaios de um espetáculo com canções da cantora Maysa, sua musa. “O mundo da arte é instável, ainda mais para mim, e preciso sobreviver.”
Márcia Daylin, bailarina formada pela Escola de Dança de São Paulo Foto: Luiza Sigulem /Brasileiros
“Devo muito à minha mãe. a coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada”
Marcia tem sorte. A busca por um lugar no mercado de trabalho regido pela CLT, a cada dia menor, é outra dificuldade para os transgêneros. Para interferir nesse cenário, a Prefeitura de São Paulo lançou, em janeiro do ano passado, o programa Transcidadania, elogiado em todo o mundo. A iniciativa prioriza a educação, com aulas de cidadania e de formação geral, e um incentivo para concluir os ensinos fundamental e médio. Passado um ano, o programa conseguiu empregar nove transexuais em empresas parceiras, dobrou o número de vagas (de 100 para 200) e reajustou o valor da bolsa concedida por dois anos a quem se compromete a estudar, que agora é de R$ 910.
O orçamento da pasta será também 130% maior do que no ano anterior, atingindo R$ 8,8 milhões. “Implantamos essa política no País que mais assassina travestis e homossexuais no mundo. É uma política pública séria, uma opção corajosa e arriscada, que pode mudar a vida das pessoas, servindo de exemplo para outros municípios e estados”, diz Alessandro Melchior, coordenador de Políticas Públicas LGBTT. Recentemente, a cidade de João Pessoa, na Paraíba, lançou um programa com o mesmo nome e já existem iniciativas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.
O sexo-alvo
Até 1997, as cirurgias de readequação sexual eram proibidas no Brasil. Quem queria se submeter ao processo precisava recorrer a clínicas clandestinas ou a médicos em países como Espanha, Tailândia e Marrocos. Em 2008, o governo brasileiro oficializou apenas a cirurgia de redesignação sexual de homens para mulheres. Em seis anos, até 2014, foram feitos 243 procedimentos cirúrgicos desse tipo em quatro serviços habilitados no SUS.
Há três anos, a rede pública começou também a oferecer a cirurgia de mulher para homem, que é bem mais complexa. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais, que incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, é 18 anos e para os cirúrgicos, 21 – nesse caso, é preciso ter o diagnóstico de transexualidade e um laudo psicológico/psiquiátrico favorável – um documento que é alvo de críticas e muitas discussões.
Léo Moreira Sá não revela a idade. Diz apenas ter mais de 50 anos. Parece menos. “Tenho meus truques.” No entanto, ele não esconde seu passado. “Eu fui a Lu, das Mercenárias, lembra?” De baterista de banda pós-punk a ator, lighting designer e jornalista ativista, Léo é dono de uma rica história de vida. Caçula de oito irmãos, mãe dona de casa e pai funcionário público, ele conta que percebeu sua identidade de gênero ainda criança, aos 7 anos, em São Simão, no interior de São Paulo, onde morava com a família.
Em 1980, Léo começou a cursar Ciências Sociais na USP e a frequentar o cenário musical paulistano. Foi na universidade que teve as primeiras informações teóricas sobre transexualidade. “Li os filósofos franceses, o que me deu o instrumental para lidar com todo o arsenal de emoções que eu sentia. Aquela sensação de não pertencimento. Foi um período de drogas e muita loucura”, ele conta. Em 1984, deixou a banda, apostou na abertura de uma boate em São Paulo, virou traficante e se casou, “no civil e tudo”, com a travesti Gabriela. “Nós éramos famosos, um casal diferente.” Em 2004, acabou a festa. Léo foi preso e passou cinco anos no regime fechado. Gabriela voou para a Europa.
De volta à liberdade, Léo já tinha barba e bigode graças aos hormônios que tomava. A mamoplastia masculinizadora (retirada das mamas), feita no SUS, aconteceu há três anos. “Foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. Não quero mexer no resto. Não tenho nenhuma obsessão para ter pênis. Não vale a pena.”
Vencedor em 2011 do Prêmio Shell pela iluminação do espetáculo Cabaret Stravaganza, da Cia de Teatro Os Satyros, Léo está distante das drogas há 12 anos. “Só tomo testosterona.” Não mudou seu nome de batismo nos documentos e, quando se apresenta com eles, causa espanto. “As pessoas ficam em pânico, me olham daquele jeito, não acreditam porque veem aquele homem de barba, careca, e se perguntam: ‘Como assim?’. Mas é importante que essa pessoa veja um transexual porque, se ela olhar para mim e achar que sou cis, não vai aprender. E eu acho que as pessoas precisam entender que existimos, que somos normais e merecemos respeito.” Com certeza, nada será como antes.
Léo Moreira Sá, múltiplas atividades e vencedor e do prêmio Shell , Foto: Luiza Sigulem/
“A mamoplastia masculinizadora foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. não tenho nenhuma obsessão para ter pênis”
O cantor Milton Nascimento durante entrevista à Brasileiros. Foto: Luiza Sigulem
Em São Paulo, para divulgar o lançamento do CD duplo e do DVD Uma Travessia, 50 Anos de Carreira ao Vivo, o cantor e compositor Milton Nascimento recebeu a reportagem de Brasileiros no mezanino do hotel Emiliano, no Jardins, bairro nobre da capital paulista. O encontro estava marcado para as 18h30, e deveria ter durado 40 minutos. A conversa, no entanto, teve início quase duas horas mais tarde. Para nosso prazer, o bate-papo teve quase a mesma duração do “atraso” de Milton: 1 hora e 40 minutos.
Mesmo enfrentando uma maratona de fotos, entrevistas e coletivas de imprensa desde as 11 horas daquela quinta-feira de setembro, Milton se trancafiou em uma sala com o repórter de outro veículo, que teve o preciosismo de levar seus álbuns de carreira (33 títulos) para que ele escolhesse dez e tecesse comentários sobre cada um deles. Motivo do “atraso” para o início da nossa conversa.
Nossa ideia era traçar um perfil de Milton, partindo de episódios cronológicos. Mas a proposta ganhou novas dimensões, graças ao prazer que ele explicita ao reconstituir, com minúcia e bom humor, acontecimentos divisores de sua carreira. De maneira que, apesar de encerrar expressando a opinião de Milton sobre as chamadas jornadas de junho e as recentes manifestações populares, a entrevista a seguir – por conta da necessidade de sua assessora interrompê-lo para descansar – incidentalmente resultou em um rico recorte da primeira metade da bela travessia empenhada pelo artista.
A propósito, mesmo tocando profissionalmente desde os 14 anos, Bituca, como é chamado desde a primeira infância, considera seu marco-zero o grupo instrumental Berimbau Trio, formado em 1963, por ele, Wagner Tiso, seu primeiro parceiro musical, e o baterista Paulo Braga – Milton fechava a cozinha empunhando um “rabecão”, o contrabaixo acústico.
Também em 1963, outro momento divisor: ele foi morar em Belo Horizonte e acabou “adotado” pelo clã dos Borges, um grupo de 11 irmãos apaixonados por música que, junto a ele, tornou universal o cruzamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, “sede” do imaginário Clube da Esquina.
Brasileiros –Antes de chegarmos ao episódio que marca seus 50 anos de carreira, fale um pouco de seu despertar para a música.
Milton Nascimento – Minha coisa sempre foi música. Virei músico profissional aos 14 anos, tocando em boates, das 22h até as 4h. Wagner Tiso me acompanhava, e tinha apenas 12 anos. Mas nunca tivemos problemas com nossas famílias ou com quem quer que seja. De vez em quando corríamos do Juizado de Menores, mas não era algo assim tão ruim, porque a gente se escondia nas cozinhas e chegando lá tinha batatas fritas e guaraná à vontade.
Brasileiros –Muito antes disso, aos 5 anos, você já teve os primeiros contatos com instrumentos musicais.
Eu morava no Rio de Janeiro com minha mãe de sangue (Maria Nascimento) e ela trabalhava para uma família que a adorava. Antigamente, quando a empregada ficava grávida a família imediatamente a mandava embora da casa, mas com minha mãe aconteceu exatamente o contrário. Tanto é que quando nasci passei a ser tratado como príncipe. Principalmente pela Lilia, que era uma das filhas da família e se tornou minha madrinha e segunda mãe. Um ano e meio depois minha mãe morreu. Fui mandado para Juiz de Fora, para morar com minha avó, não que Lilia e sua família quisessem, mas porque achavam que era o mais correto a ser feito. Acontece que, para mim, tal escolha não deu nada certo. Não me dava bem com nada, não conseguia comer, ficava sentado na porta da casa da minha avó, esperando um carro verde passar, o carro do pai da Lilia. Fui emagrecendo, ficando doente e, tempos depois, a Lilia tinha casado e se mudado do Rio de Janeiro para Três Pontas, no sul de Minas. Um dia ela chegou para o meu futuro padrasto (Josino Campos) e falou: “Temos de ir para Juiz de Fora porque o Bituca não está bem”. Com dois meses de casamento, decidiram me buscar. Eu estava sentado na soleira da porta da casa da minha avó quando vi o carro verde se aproximando e comecei a me levantar. As pessoas que viram a cena contam que, ao perceber que eu iria cair e bater a cabeça numa pedra pontiaguda, Lilia abriu a porta do carro ainda em movimento, saiu em disparada e conseguiu me pegar antes de eu me estatelar na pedra. Houve uma época que fui muito a Roma e sempre ia ao Vaticano ver a Pietà, de Michelangelo. Ia todos os dias admirar aquela beleza, até que fiquei sabendo que aquela Nossa Senhora, que segurava Cristo, segurava um filho morto. Lilia me salvou, nesse momento e em muitos outros. Foi uma Pietà para mim. Tanto que resolvi fazer um disco em homenagem a ela (Pietá, de 2002). Outras duas mulheres muito importantes em minha vida foram Ângela Maria e Elis Regina.
Brasileiros – Como você e Wagner se tornaram amigos?
Sempre adorei piano, mas não tínhamos dinheiro para comprar um. Foi então que minha mãe decidiu me dar uma sanfona. Não aquela que tem teclado, mas uma bem simples, de quatro baixos. Ganhei também uma gaita e aprendi a tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo. Botava a sanfona no pé e a gaita no joelho. Por muito tempo fiquei na varanda de casa, em Três Pontas, tocando os dois instrumentos. Há alguns anos Wagner Tiso foi ao programa do Jô Soares e o Jô perguntou para ele como é que tínhamos nos aproximado. Ele contou que me ouvia tocando os dois instrumentos e pensava: “Não é com minha família que vou tocar, não – a família dele é toda de músicos –, é com esse aí que eu vou!”. Passado um tempo nos encontramos e começamos a tocar e a cantar juntos.
Brasileiros – Por que você decidiu partir para Belo Horizonte?
Eu estava no ginásio, queria fazer Astronomia e falei para os meus pais que ia a Belo Horizonte para mexer com música. Meu pai insistiu: “Eu, se fosse você, estudaria alguma coisa, porque viver de música não é só uma questão de talento, é questão de sorte também”. Concordei com ele, mas fui para Belo Horizonte pensando nas duas coisas. Como, por lá, não havia faculdade de Astronomia pensei em estudar Economia. Eu já era amigo dos Borges, e fui com o Márcio até a universidade, peguei um material sobre o curso, para avaliar. Subíamos uma rua, no caminho de volta para casa, e perguntei para o Márcio se ele tinha fósforos. Ele olhou para mim e estranhou: “Ué, mas você não fuma”. “Mas eu quero, e não é para fumar!”, disse a ele. Peguei o fósforo, queimei toda a papelada da faculdade e gritei: “Viva a música!”. Na sequência, fomos comemorar em um boteco e enchemos a cara. Nunca mais parei com a música.
Brasileiros –Você se aproximou dos Borges logo que chegou?
Eles são 11 irmãos e logo que os conheci resolvi que seria o 12º. Acabaram me adotando. Só quando cheguei a Belo Horizonte é que fui conhecer músicos profissionais. Quando morava em Três Pontas ouvia no rádio um monte de músicas que eu gostava, mas, na maioria das vezes, a melodia e a letra eram até possíveis de pegar, mas a harmonia não, porque a qualidade da transmissão do rádio era precária. Eu até criava minhas harmonias, mas fui ver um show de outros músicos, com os Borges, e falei: “Meu Deus, faço tudo errado! Preciso começar tudo de novo”. Aí, o Marilton, o mais velho dos irmãos, me falou: “Nada! Você não tem de mexer em nada do que você faz!”. Foi também com eles que eu ouvi pela primeira vez o Miles Davis, o disco era Someday My Prince Will Come. Até hoje não sei por que fiz isso, mas um dia estava com eles, botei o disco do Miles para tocar e tive o ímpeto de levantar e dar um grito: “Isso aí não é trompete, não! Isso aí é minha voz!”. Ninguém riu de mim, ninguém me zombou, e acabei adotando o Miles como meu rei. Comprei tudo quanto é coisa dele, fui aprendendo a lidar com o jazz e descobri a força da música instrumental. Foi aí que comecei a tocar contrabaixo e nasceu o Berimbau Trio, com Wagner e Paulinho Braga.
Em 1963, Milton empuinha um baixo acústico no Berimbau Trio, combo formado por ele, o pianista Wagner Tiso e o baterista Paulo Braga. Foto: Arquivo pessoal
Brasileiros – Nesse mesmo período, você gravou com o conjunto Sambacana, do Pacífico Mascarenhas. Como surgiu o convite?
O Pacífico foi gravar um novo disco, me convidou, e também chamou o Wagner e mais dois músicos do Rio. Os produtores de um festival de São Paulo ouviram a gravação e resolveram me chamar para cantar. Chegando a São Paulo, no estúdio havia uma sala com vários músicos e uma porção de partituras em um canto. Fiquei andando pela sala, olhando disfarçadamente as partituras, até que reconheci uma música do Baden (o violinista Baden Powell). Escondi as folhas e fui lá passar o som com eles. Voltei para Belo Horizonte, e quando mostrei a partitura para os Borges e o Wagner eles ficaram doidos comigo, porque essa música certamente estava destinada a alguém. Era Cidade Vazia (de Baden e Lula Freire). Pouco depois, acabei tendo a felicidade de conhecer o Baden.
Brasileiros –Elis Regina o incentivou a participar dos primeiros festivais. Como vocês se aproximaram?
Tornei-me amigo da Elis em uma festa no Rio de Janeiro e nos reencontramos, pouco depois, em São Paulo. Ela tinha ganhado o festival da Record com Arrastão (1966), e nos encontramos no corredor da emissora. Hoje acho graça, mas na hora não foi nada divertido. Elis vinha caminhando e eu, que não queria encher o saco, abaixei a cabeça ao passar por ela. Ela deu uma pisada forte com o tamanco, virou para trás e disse: “Ei mineiro, não tem educação, não?”. Envergonhado, respondi: “Não Elis, só não queria ser mais um a te encher o saco”. Ela respondeu, brava: “Deixe de bobagem! O negócio, aqui em São Paulo, funciona da seguinte forma: de manhã a gente encontra uma pessoa e fala ‘bom dia’, à tarde diz ‘boa tarde’ e à noite diz ‘boa noite’. Simples assim. Quero que você vá até a minha casa mostrar umas músicas suas”. Ela passou o endereço e fui até lá. Era a semana em que Gil chegou a São Paulo e ele também estava lá. Toquei um monte de músicas. Gil costuma dizer que toquei três ou quatro, mas, mentira dele, foram umas 20 e tantas. Cansado, encostei o violão e Elis perguntou: “Você não tem mais nenhuma na manga?”. Aí, lembrei que não tinha tocado Canção do Sal e ela disparou: “É essa que eu quero!”.
Brasileiros –Pouco depois você se tornou avesso a festivais, mas Agostinho dos Santos te pregou uma peça, que seria divisora para a sua carreira…
Nessa época, em São Paulo, para cada instrumento havia uns 20 músicos desempregados, inclusive eu… Teve um dia em que fui substituir um rapaz em um bar pequeno, ambiente meio escuro, estava lá tocando, quando percebi um vulto se aproximar de mim. Acabei a música e ouvi uma voz dizer: “Ô, bicho, quem é você?”. Foi a primeira vez que alguém me chamou de “bicho”. Era Agostinho dos Santos. Reconheci imediatamente, porque eu era fanático, louco pelo Agostinho. Contei para ele que eu era de Minas, conversamos bastante e ele falou para mim: “Em todos os lugares que eu for, a partir de agora, você virá comigo!”. E assim foi. Depois começamos a andar juntos para lá e para cá. Um dia ele chegou na pensão onde eu morava, na rua Marquês de Itu (naregião central de São Paulo), e falou: “Olha, vai ter um festival internacional de música no Rio. Vai ter gente do mundo inteiro. Você tem de botar alguma música sua lá”. Fiquei um mês discutindo com ele, rejeitando o convite, e ele sumiu. Achei até que ele tivesse desistido. Um dia ele voltou com a seguinte conversa: “Olha, eu vou gravar um novo disco, falei de você para o meu produtor e ele quer três músicas tuas para fazer parte do disco”. Agostinho me levou na casa de um amigo que tinha equipamento e gravamos três músicas: Maria, Minha Fé, Morro Velho e Travessia. Entreguei as gravações e ele sumiu. Agostinho, Elis e o pessoal do Zimbo Trio, que tocava com ela, Amilton e o irmão dele, Adilson (Amilton e Adilson Godoy, respectivamente, pianistas do Zimbo e do Bossa Jazz Trio) eram as pessoas que eu mais me dava em São Paulo. Um dia eu estava na porta da Record, na saída do programa da Elis, e ela surge correndo, pula em cima de mim e diz: “Eu sabia!”. E eu: “Sabia o que, Elis?”. “Que você estaria no festival do Rio!” “Não, como assim, eu não inscrevi música alguma?!”. “Então tem outro Milton Nascimento andando por aí”, ela ironizou. Pouco depois desci a rua e ouvi uma baita gargalhada. Era Agostinho. E ele já chegou dizendo: “Não adianta, você vai ter de ir! Suas três músicas foram selecionadas e isso só aconteceu, até hoje, com Vinicius de Moraes. O pessoal tá doido para te conhecer. Encontrei um representante do festival e ele disse que você tem de ir para o Rio o quanto antes”. “Mas, como é que vou para o Rio se não tenho dinheiro nem para pegar ônibus aqui em São Paulo?”. Eles pagaram minhas passagens e reservaram um hotel que ficava bem perto do festival.
Brasileiros –E como a coisa se desenrolou?
Fui lá conversar com Marzagão (oprodutor Augusto Marzagão, criador do Festival Internacional da Canção), ele tinha uma secretária, e eu disse pra ela: “Preciso falar com o senhor Marzagão”. Indiferente, ela respondeu: “Acho que não vai dar, porque ele está muito ocupado hoje. Talvez você possa deixar um recado e ele combine um encontro”. Daí eu disse pra ela: “Então, por favor, avise a ele que o Milton…”. O Nascimento ela nem me ouviu falar, pois saiu correndo até a sala dele e gritou: “O Milton Nascimento está aí!”. Saíram da sala o Marzagão e todos que lá estavam para me ver e me receber. Fiquei numa tremenda vergonha. Foi aí que eu conheci o Eumir Deodato, que fez os arranjos das três músicas…
Brasileiros –E foi ele quem o convenceu a cantar, não?
Eumir me contou depois que quando eles começaram a tocar minhas músicas houve quem dissesse “tira isso daí!”. Alguém foi lá, atendeu o pedido e ele levou as gravações para a casa dele. No dia seguinte, Eumir voltou e disse para o Marzagão: “Mas nunca que você vai tirar essas músicas do festival!”. Ficamos muito amigos e, logo depois, ele me apresentou ao Tom Jobim e vários outros músicos. Dias depois eu estava na casa dele, tocando violão, ele escrevendo os arranjos, e fiz a confissão: “Eumir, o negócio é o seguinte: tá tudo perfeito, mas eu não quero cantar. Queria que a Elis cantasse, mas a Record não deixou. Precisamos pensar em alguém”. Ele rebateu, sem hesitar: “O negócio é o seguinte” digo eu: estou indo amanhã para os Estados Unidos e não vou voltar tão cedo. Resolva agora se vai cantar ou não, porque se você não for cantar eu não vou fazer os arranjos das suas músicas”. Não tive escolha.
Brasileiros –Eumir tinha partido para os EUA, a convite de Luiz Bonfá, e pouco depois convidou você para gravar um disco lá…
Sim, masTom Jobim também o chamou para fazer os arranjos do disco com o Sinatra (o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado pela Reprise Records). Para mim, foi uma coisa muito maluca, pois “apareci” em 1967, depois de passar por Minas Gerais e São Paulo, e fui parar no Rio. Quando me dei conta estava nos Estados Unidos gravando com ninguém menos que Herbie Hancock.
Brasileiros –Foi Eumir que o apresentou ao Herbie? Que lembranças você tem das gravações do Courage?
M.N. –Não, não foi o Eumir. Eu estava no Rio, e alguns músicos falaram: “Olha, o Herbie está na cidade, veio passar a lua de mel, vamos procurá-lo”. Eu reprovei: “Ah, que é isso? O cara vem para cá passar a lua de mel e nós vamos lá encher o saco dele?!”. Dias depois fomos a um lugar em que ele estava tocando piano, com vários músicos, e fiquei meio afastado. Fui convidado para uma canja, criei coragem e comecei tocando Tarde. Herbie me interrompeu com um “espera um pouquinho”, foi buscar um gravador, voltou e disse: “Agora, sim. Vamos nessa! Pode tocar, Milton!”. Toquei Tarde e, depois, Outubro, uma música minha que ele ama. No ano seguinte, estávamos juntos, em Nova York. Eu nem sequer desconfiava que pudesse existir um estúdio como aquele, era de um alemão (o engenheiro de som Rudy Van Gelder, da Verve, na verdade, norte-americano). Uma loucura! Cabia uma banda de fuzileiros navais com uma sinfônica naquele estúdio. Gravamos o disco durante o inverno, e foi tudo muito bonito. O produtor, Creed Taylor (que depois fundou a gravadora CTI Records), me deu a maior força. Eumir também foi muito generoso e tomou conta de tudo.
Lô Borges, Milton e Beto Guedes durante as sessões de estúdio de “Clube da Esquina”. Foto: Arquivo pessoal
Brasileiros –E como foi que você e Lô Borges se uniram para compor as canções eternizadas em Clube da Esquina? Aliás, você está com um bottom que reproduz a foto da capa, imagino que deve ser um dos álbuns prediletos de sua carreira.
Lô tinha 10 anos e tocava em uma banda que fazia várias versões dos Beatles. O quartetinho dos meninos era muito bom. Eu sempre ia a Belo Horizonte para visitar os Borges. Um dia, quando ele tinha uns 14 anos, cheguei lá e não tinha nenhum dos irmãos em casa. Na hora em que eu estava saindo, chegou o Lô. Disse pra ele: “Que coisa boa te encontrar! Vamos ao botequinho, que eu vou tomar uma batida de limão e você toma um guaraná comigo”. Chegando lá, pedi minha batida e o Lô emendou: “Outra para mim!”. Ele levou aquele tremendo olhar de reprovação, mas disse: “Bituca, adoro as coisas que você faz, sou fã da sua voz, mas tem algo que eu preciso reclamar. Sei bem que você, meus irmãos e seus amigos não gostam de mim”. “Que é isso, Lô? Como assim?!”, disse pra ele. “É isso mesmo. Vocês saem todas as noites, vão para tudo que é lugar, e nunca fui chamado para sair com vocês”, ele desabafou. Olhei bem para ele e falei: “O problema é o seguinte, Lô. Sabe quando foi que eu descobri que você não era mais uma criancinha? Há poucos minutos, quando você pediu essa batida de limão”. Ele sorriu, falou que tinha composto algumas canções, que havia escrito umas harmonias, e perguntou se eu não gostaria de ouvi-las. Voltamos para a casa dele e Lô começou a tocar umas coisas muito bonitas. Peguei um violão que estava ao lado, abaixei a cabeça, fechei os olhos e comecei a tocar com ele uma das músicas. Quando abri os olhos estava a mãe dele (Maria Fragoso Borges), encostada no batente da porta, chorando, emocionada, e o Marcinho escrevendo uma letra. Foi nossa primeira música juntos, Clube da Esquina 2, em homenagem à tal esquina que a vizinhança detestava.
Brasileiros –E como se deram as negociações com a gravadora para lançar o disco?
A partir desse dia Lô começou a escrever muitas músicas, até que eu disse a ele: “Vamos para o Rio fazer um disco, Lô”. Lógico, tive de ter uma discussãozinha com a mãe dele, mas o levei para o Rio e compusemos muitas outras músicas. Voltamos a Belo Horizonte, para buscar o Beto Guedes, e um belo dia concluí: “Acho que temos um disco. E vamos dar a ele o nome de Clube da Esquina”. Fui à Odeon, que hoje é EMI, expliquei como pretendia fazer o álbum e ouvi: “Não, de jeito nenhum. Não será aqui que você vai fazer esse disco, Milton!”. Disse a eles: “Ok, se não querem que eu faça o disco por aqui tem muita gravadora por aí. Tchau, para vocês”.
Brasileiros – E como foi que vocês reverteram isso?
Tinha um cara na Odeon, Adail Lessa (então produtor-executivo da gravadora), o apelido dele era “Pai dos Músicos”. Em 1958, João Gilberto, Tom Jobim e Milton Banana foram até a Odeon apresentar algumas canções e os diretores não deram a mínima. Lessa abriu o estúdio de madrugada, contratou uma orquestra, chamou João, Tom e Milton, e fez a primeira gravação do que seria o compacto de Chega de Saudade e Bim Bom. No dia seguinte ele botou o registro para tocar e falou para os diretores: “Taí o que vocês não queriam gravar!”. Foi ele que me ligou e disse: “Pode mandar todo mundo vir para cá que vou abrir o estúdio para vocês. Tenho certeza de que vocês vão fazer uma coisa linda”. E foi assim que surgiu o disco.
Brasileiros –Seu disco solo posterior, Milagre dos Peixes, foi mutilado pela censura. Como foi enfrentar esses dias sombrios?
Foi terrível. Voltei para o Brasil e percebi que vários amigos estavam indo embora, sendo expulsos do País, e pensei: “Não vou sair, vendo tudo o que está acontecendo por aqui. Não posso sair. Se quiserem me mandar embora, então, me mandem, me matem, mas eu não vou sair”. Em 1973, eu tinha duas músicas que queria gravar com o Caymmi e com a Clementina de Jesus, mas era um negócio impossível, porque bastava aparecer o nome Milton Nascimento que a censura vinha e cortava tudo sem ao menos ler a letra ou ouvir a música. Perseguição total. A Odeon chegou a sugerir que eu gravasse outro disco e falei: “Não, o disco vai sair assim mesmo. Quem tiver sensibilidade para perceber o que nós quisemos transmitir vai sentir”. E o Milagre dos Peixes saiu todo mutilado, mas foi sentido do jeito que a gente pretendia. Ao mesmo tempo que cortaram nossas ideias e toda a felicidade que estava sendo para nós fazer o disco, todos que o ouviram sentiram o que aconteceu ali. O disco saiu em vários países e o recado foi dado. Então, quem perdeu, no fundo, foram os censores e os militares.
Brasileiros –Mas você sofreu ingerências que foram além da questão artística?
Sim, houve muitos episódios. Coisas terríveis, que prefiro nem falar. Não podia conversar com ninguém sobre o que estava acontecendo, pois, para o meu próprio bem, fui recomendado a não contar nada. Para poder continuar cantando eu tive de me juntar aos estudantes da UNE e sair pelo Brasil afora fazendo o circuito universitário. Tive de sair de cena por um tempo, uns dois anos, nos quais eu não podia tocar no Rio nem em São Paulo. Foi terrível.
Brasileiros –Foi nesse período que você começou a ter problemas com o álcool?
Sim.Nesses 20 anos em que não pude falar e fazer quase nada, a única coisa que me restou foi beber muito. Como é que eu ia viver?! Um dia eu estava voltando do Jóquei Clube, fui encontrar um amigo meu e, quando estávamos voltando para a Barra da Tijuca, vi outros amigos saindo da praia, todos vestidos em roupas coloridas, felizes e, para mim, parecia que havia um vidro escuro que me separava daquela vida colorida. Dei uma volta pela praia e falei para mim mesmo: “Esse pessoal não merece que eu me mate”. Fui para o meu apartamento e decidi que ia parar de beber. Fiquei três dias trancado em meu quarto, deitado e olhando para o teto. Havia uma senhora, a Maria, que fazia comida para mim, mas eu não queria saber nem mesmo de me alimentar. No terceiro dia, no final da tarde, sentei na cama, estiquei minhas mãos e vi que elas não tremiam. Resolvi levantar e percebi que não ia ficar tonto. Saí do quarto, encontrei a cozinheira e falei: “Dona Maria, tem algo para comer?”. Ela disse: “Graças a Deus, meu filho!”. Saí de casa, de madrugada, e fui para Três Pontas. Quando cheguei, minha mãe estava na janela. Descarreguei minhas coisas, entrei em casa e ela falou: “Deixa tudo aí e me acompanhe”. Atravessei a casa com ela e fomos ao pomar do quintal. Quando eu era pequeno, plantei, com um amigo, uma laranjeira e ela nunca tinha dado frutas. Nesse dia surgiram duas laranjas, e comentei com minha mãe: “Caramba, até que enfim essa porcaria resolveu dar um presente para a gente”. Ela olhou bem para mim e falou: “É porque você parou de beber, Bituca”. Uma coisa maluca, pois ela ainda não sabia o que estava acontecendo. Sempre tivemos uma ligação muito forte.
Milton e o saxofonista norte-americano Wayne Shorter. A amizade entre os dois músicos teve início no Brasil, em 1972,e culminou, dois anos mais tarde, no álbum “Native Dancer”. Foto: Arquivo pessoal
Brasileiros –Voltando a sua discografia, o disco posterior ao Milagre dos Peixes, Native Dancer, foi feito com Wayne Shorter, que recentemente completou 80 anos. Vocês ainda são amigos. Como vocês se aproximaram?
Somos grandes amigos. Em 1973, estávamos fazendo uma série de shows na Lagoa Rodrigo de Freitas e ele estava na cidade se apresentando com o Weather Report no Theatro Municipal. Soube que eles perguntaram onde estava o Milton Nascimento e pedi para que dissessem pra eles que eu não estava no Rio. Acontece que a mulher do Wayne era portuguesa, um belo dia els abriu o jornal e lá estava algo como “Milton Nascimento e Lô Borges apresentam no Rio de Janeiro o repertório do novo disco, Clube da Esquina“. Ela saiu correndo pelo hotel, a procura de Wayne, e disse: “Veja isso, Milton tá no Rio, esses filhos das putas estão enganando a gente!”. Na mesma noite, eu estava me preparando para entrar no palco e alguém veio me dizer: “O Wayne Shorter está aí e quer te ver”. Tímido demais, disse: “Então, hoje não vou nem subir no palco”. Não bastasse ser o Wayne Shorter, ele tinha tocado com meu maior ídolo, Miles Davis. Entrei, fizemos o show e fui encontrar o Wayne. Depois desse primeiro encontro aconteceu um lance curioso, eles diminuíram o tempo do show deles no Municipal e deixaram um carro escondido na porta dos fundos. Acabava o show do Weather Report e não tinha nem bis, pois eles pegavam o carro e saíam correndo para ver ao menos um pedaço do nosso show. Dois anos depois fizemos, nos Estados Unidos, o Native Dancer. Ele me perguntou se eu queria convidar algum músico brasileiro e decidi levar o Wagner e o Robertinho Silva.
Brasileiros –A superação do alcoolismo coincidiu com a reabertura política, quando você compôs Coração de Estudante, que se tornou um hino das Diretas Já! Como surgiu a canção?
M.N. –Silvio Tendler fez um documentário chamado Jango e fui convidado para compor a trilha, com o Wagner. Quando o filme ficou pronto Silvio nos chamou para assistir e foi aquele negócio que mexeu demais com a gente. O final mostra o Jango numa tremenda solidão, de muleta, em sua fazenda, e essa cena me fez lembrar a época em que eu andava com os estudantes. A música que tocaria na cena não tinha ainda o nome Coração de Estudante. Dias depois recebi o telefonema de um amigo que estava em Roma e estava mal, não conseguia se concentrar e estudar direito por lá. Disse a ele para vir passar uns dias no Brasil, porque aqui ele conseguiria se isolar e mergulhar nos estudos. Reservei um quarto, um escritório, e fiz de conta que ele não existia. Um dia ele chegou tão cansado que sentou na cama e caiu duro. Peguei um caderno, subi no segundo andar da casa, e fiz a letra, de uma tacada só. Terminada a letra, afundei no sofá e, ao olhar para cima, vi uma planta que tinha folhas semelhantes a corações e que, por conta disso, tem o nome de coração de estudante. Foi aí que tive um estalo e pensei: “É isso. Agora sim a música está pronta!”.
Brasileiros –Quase 30 anos depois, insurreições históricas acontecem no País. O que pensa dessas manifestações, Milton?
Tomei um susto, que depois se transformou em felicidade. Nunca pensei que algo assim fosse acontecer tão cedo no País. Ver jovens, famílias, crianças, pessoas mais velhas, a estudantada toda indo para as ruas exigir aquilo de que tem direito… Para mim, foi uma felicidade enorme poder ver isso acontecer. No auge das manifestações houve um show meu em que, no meio de uma música, um rapaz invadiu o palco e colocou uma bandeira do Brasil nas minhas costas. Foi linda a reação do público. Pouco depois jogaram uma camiseta no palco, sem que eu percebesse. Quando chegou o momento do bis vieram mostrá-la para mim. Na frente, havia a frase “Não é só pelos R$ 0,20” e atrás “Milton Nascimento”. Vesti a camiseta e cantei mais três músicas.
Intensa campanha foi realizada em Minas Gerais. Prioridade é para residentes em áreas rurais, agora em São Paulo. FOTO: Agência Brasil/EBC
O macaco encontrado morto na terceira semana de outubro de 2017, no Horto Forestal na Zona Norte de São Paulo, teve comprovada a presença do virus da febre amarela. A Secretaria de Estado da Saúde fechou o Horto Florestal e está aplicando vacinas nos moradores da zona norte da capital.
É importante salientar, no entanto, que a transmissão para o macaco foi a do virus da febre amarela silvestre, comum na mata. Os macacos, são hospedeiros do virus, mas não transmitem a doença à população.
Desde janeiro deste ano, alertamos para este avanço.
Leia a seguir materia publicada no Saúde!Brasileiros:
De acordo com os dados divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais na sexta-feira (13), a região enfrenta 20 casos prováveis de febre amarela silvestre, com dez óbitos prováveis. Ao todo, são 133 casos suspeitos notificados e 38 mortes suspeitas da doença em 24 municípios. O retorno da febre amarela silvestre não é novo. Nos últimos anos, casos isolados foram registrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A quantidade de afetados em Minas Gerais, no entanto, é maior.
Doença infecciosa febril aguda, causada por um vírus transmitido por mosquito, a febre amarela não é registrada em centros urbanos do Brasil desde a década de 1940. Os principais sintomas são febre, calafrios, dor de cabeça, dores no corpo, fadiga, náuseas e vômitos. As manifestações clínicas incluem insuficiência hepática e renal, podendo evoluir para óbito.
Os casos em investigação em Minas Gerais se referem à febre amarela silvestre, presente em regiões rurais. A febre amarela silvestre e a febre amarela urbana são causadas pelo mesmo vírus, mas são transmitidas por diferentes mosquitos.
Na febre amarela silvestre, os mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes transmitem o vírus e tem os macacos como os principais hospedeiros. Na febre amarela urbana, o vírus é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti (o mesmo da dengue e do Zika) ao homem. Especialistas reforçam que o vírus nunca é transmitido de ser humano para ser humano.
“Apesar de a área acometida ser considerada área de potencial transmissão de febre amarela, sem ter havido expansão até o momento para novas áreas, o número de casos observados é acima do esperado, levando a maior preocupação”, afirma o infectologista André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (Fiocruz), à Agência Fiocruz.
Mesmo com a forma silvestre sendo registrada, o Estado de São Paulo, por exemplo, já está divulgando protocolo para lidar com a doença. As secretarias de Estado da Saúde e do Meio Ambiente definiram estratégias conjuntas para reforçar a proteção contra a febre amarela em São Paulo, com base na orientação à população e na intensificação de medidas preventivas.
Um fluxo específico de notificação foi estabelecido entre as duas pastas para garantir maior agilidade na identificação de possíveis casos. A Secretaria do Meio Ambiente manterá sob acompanhamento as unidades de conservação, como parques e áreas de proteção ambiental localizadas em áreas de risco. Também há vacinas disponíveis na rede pública.
Já o estado de Minas Gerais, em conjunto com os municípios, fará busca ativa nas localidades onde foram registrados casos suspeitos da doença na zona rural dos municípios. Postos de saúde móveis serão montados nas regiões onde estão ocorrendo os casos suspeitos de febre amarela, além da ampliação do horário de funcionamento das unidades.
Segundo o pesquisador André Siqueira, da Fiocruz, uma conjunção de fatores pode estar associada ao aumento de casos de febre amarela – todos relacionados a uma maior quantidade de vírus circulante na região.
Ele destaca: um aumento da população suscetível (não imune) tanto de humanos quanto de macacos; maior proximidade entre macacos, mosquitos e humanos que podem se dever a fatores ambientais, climáticos e/ou demográficos; e baixa cobertura vacinal.
Qual o tratamento?
Segundo a Fiocruz, não há tratamento específico para a febre amarela. A vacinação continua sendo a principal medida de prevenção contra a doença, além do controle do vetor. Produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), a imunização é oferecida gratuitamente no Calendário Nacional de Vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS).
A vacina contra a febre amarela, produzida pela Fiocruz. Foto: Agência Fiocruz
Como se prevenir
“A prevenção contra a febre amarela se dá pela proteção contra a picada de mosquitos com o uso de repelentes e roupas protetoras e com o uso da vacina. A vacina é altamente eficaz e segura nos grupos indicados”, esclarece André Sigueira, à Agência Fiocruz.
“ Vale lembrar que crianças abaixo de 6 meses, gestantes e idosos acima de 65 anos, bem como indivíduos em tratamento ou com condições que levem a depressão da imunidade, não devem tomar a vacina ao menos que haja recomendação explícita do médico”, destaca.
Especial atenção para viagens em áreas de risco e vacina
Quem vai viajar para regiões silvestres, rurais ou de mata deve se vacinar contra a febre amarela com pelo menos dez dias de antecedência. Para residentes em áreas de risco, o Ministério da Saúde recomenda, para crianças, a administração de uma dose aos 9 meses de idade e um reforço aos 4 anos.
Para pessoas a partir de 5 anos de idade que receberam uma dose da vacina, é necessário um reforço; para quem que nunca foi vacinado ou não possui comprovante de vacinação, é preciso administrar a primeira dose da vacina e um reforço após 10 anos. Pessoas que já receberam duas doses da vacina ao longo da vida já são consideradas protegidas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que apenas uma dose da vacina já é suficiente para a proteção por toda a vida. No entanto, como medida adicional de proteção, o Ministério da Saúde definiu a manutenção do esquema de duas doses da vacina.
Informações adicionais sobre a febre amarela
A febre amarela silvestre (FA) é uma doença endêmica no Brasil, particularmente na região amazônica, mas também fora dela. Nos últimos anos, as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país também foram acometidas com casos da FA.
O padrão temporal de ocorrência é sazonal, com a maior parte dos casos incidindo entre dezembro e maio. Há casos isolados ou surtos que ocorrem com periodicidade irregular, quando indivíduos suscetíveis entram em contato com locais onde existem os mosquitos transmissores da doença, que usualmente se alimentam do sangue de macacos.
Isso ocorre com maior probabilidade em condições climáticas de elevada temperatura e pluviosidade, que favorecem a multiplicação desses insetos.
Em 2015, foram registrados nove casos de febre amarela silvestre em todo o Brasil, com cinco óbitos. Em 2016, foram confirmados seis casos da doença, nos estados de Goiás (3), São Paulo (2) e Amazonas (1), sendo que cinco deles evoluíram para óbito. Atualmente, o Brasil tem registros apenas de febre amarela silvestre. Os últimos casos de febre amarela urbana (transmitida pelo Aedes aegypti) foram registrados em 1942, no Acre.
*Com informações da Agência Fiocruz, Ministério da Saúde, Secretária da Saúde do Estado de São Paulo e Secretária de Saúde do Estado de Minas Gerais.
Foto extraída da capa do álbum "Ben", lançado em 1972 pela Philips. Foto: Divulgação / Phonogram
Dias atrás, depois de um papo informal no Facebook, recebi oito páginas digitalizadas da íntegra de uma reportagem com Jorge Ben Jor publicada na edição de janeiro de 1976 da Ele Ela, período em que ele ainda defendia o codinome artístico Jorge Ben. Assinada pela repórter Daysy Cury de Abreu e veiculada originalmente no número 81 da revista voltada ao público masculino, a matéria foi gentilmente escaneada pelo jornalista e pesquisador João Antônio Buhrer, amigo precioso naquela rede social, que dedica o espaço de sua timeline majoritariamente para distribuir, de forma aberta, algumas joias digitalizadas de sua coleção de jornais e revistas da imprensa brasileira dos anos 1950, 60, 70 e 80.
Mas, afinal, porque esssa pílula documental, lançada espontaneamente por João no universo virtual, é algo assim tão valioso? Ora, porque diz respeito à história de alguém como Jorge, um dos artistas mais emblemáticos e proporcionalmente enigmáticos de nossa música popular. Mesmo no auge experimentado por ele nos anos 1960,70 90 e 2000, o cultuado Babulina nunca foi afeito ao expediente de falar regularmente com a imprensa local. Pura timidez, asseguram os mais próximos.
Na “fila do pão” do Jorge eu, por exemplo, sou só mais um repórter da imprensa cultural que passou anos e anos da vida profissional tentando armar um plá com o sujeito. Quando estive perto de tal façanha, fui acometido pela triste reafirmação da finitude que a todos nós persegue. Explico: quem estava dando a maior força para que a entrevista com Jorge acontecesse, Ivone Kassu, sua assessora – a gentileza personificada, uma mulher incrível – partiu dias antes de concretizarmos a ideia do papo.
Ivone esteve ao lado de Jorge e de outros grandes artistas, como Roberto Carlos, por décadas a fio. Braço direito do Rei, outro notório fujão dos microfones da imprensa, ela, melhor do que ninguém, entendia a natureza esquiva de Jorge e tentou me explicar o por que de seu silêncio. Dias antes de partir, em nossa última conversa por telefone, concluiu o papo em tom acolhedor. “Fique tranquilo, Marcelo. Tenho certeza que vai rolar!”.
Em reverência à Ivone, e em respeito à determinação da repórter Daysy, autora da matéria digitalizada pelo amigo João que foi o estopim desta reportagem – aliás, no texto, ela descreve, de maneira deliciosa, o périplo que foi abordar o sujeito – desencanei da ideia obsessiva de ter um papo com o Babulina e me contento, agora, de fazer aqui para vocês, caros leitores e fãs do Jorge, um apanhado de suas melhores declarações à imprensa entre os anos de 1966 e 1979.
Como fã incondicional do sujeito, passei uma semana mergulhando em tudo que eventualmente pudesse encontrar documentado na web em jornais e revistas do referido período. Quer dizer, fiz essa seleção buscando aquilo que está disponível online sobre ele, fuçando sites, blogs e algumas essenciais hemerotecas digitais, caso de Arquivos Incríveis, do amigo João (siga a página do jornalista no FB), e Velhidade, do colecionador Eduardo Menezes.
Fiquemos então com esse apanhado cronológico de documentação histórica sobre a vida e a obra de Jorge Ben Jor. Além dos recortes de reportagens e entrevistas, acrescentei pequenas resenhas, muito especiais, que abordam o lançamento de álguns dos clássicos lançados pelo sujeito no período áureo da fase Phonogram/Philips, caso de álbuns como Solta o Pavão e África-Brasil.
Boa leitura!
Depoimento de Jorge Ben para a edição 167 da revista InTerValo, da semana de 20 a 26.3.1966, em reportagem, não creditada, intitulada Subversivos do Samba Perseguem Cantor – Jorge Ben fez inimigos porque aderiu ao Iê-Iê-Iê (na ocasião, Jorge era patrulhado por ter, num curto intervalo, participado dos programas Jovem Guarda, Divino, Maravilhoso, celeiro televisivo da Tropicália, e O Fino da Bossa, que deveria, no protocolo da TV, ser seu reduto de origem, por associarem Samba Esquema Novo, Sacundin Ben Samba, Ben É Samba Bom e Big-Ben ao conceito da bossa, do samba jazz).
“Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba e da turma do samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o público que quiser. Sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais, minha música é cantada por todo mundo. Por crianças que mal sabem falar, por jovens e por adultos. O que quer dizer, é ‘sucesso’, mesmo sofrendo esnobação e pichação dos subversivos do samba.”
Trechos de É Dia de Jorge, reportagem de Scarlet Moon para a edição de junho de 1973 da revista POP.
Scarlett diz:
“…todo esse trabalho, por enquanto, está sendo feito para atender a pedidos de outros cantores. Ele faz as músicas de acordo com o estilo de cada um, mas só se o cara quiser gravar. Recentemente, Jorge criou a J.B. Coqueluche Band (as iniciais devem ser pronunciadas em inglês, jei-bi, e o restante com um bom sotaque nordestino), que já gravou um compacto simples, com o Hino do Flamengo numa faixa e Jazzpotato na outra. A banda também entrou na gravação do depoimento de Jorge para o Museu da Imagem e do Som. Mas a grande surpresa mesmo é o jazzpotato, um novo ritmo bolado por ele, bem quente, bem latino. O segredo está no tipo de harmonia que Jorge faz com a linha melódica. É uma espécie de portunhol (português com espanhol), misturado com inglês (“Is coming jazzpotato / aqui yo no quiedo más”).
Jorge, então, explica a origem do jazzpotato e fala sobre sua intuitividade.
“Nós ficávamos repetindo essa harmonização, até ficar todo mundo aceso para tocar as outras músicas. Mas aí apareceu a palavra jazzpotato (assim como ele agora está vidrado no som da palavra coqueluche, diz Scarlett) e o tema virou música mesmo. Quando escrevo música, vou fazendo as coisas do jeito que sinto, sem me preocupar com rimas ou adjetivos. Comigo as coisas são muito intuitivas e as pesquisas e elaborações não funcionam. Na maioria das vezes, não corrijo minhas músicas. Às vezes, a correção pode melhorar, mas acredito que existem casos em que a gente começa a mexer muito e a música se transforma em outra coisa, bem distinta e distante da idéia, da sacação inicial.”
Influências
“Sem nenhum vedetismo, sou uma pessoa que procura o mais possível defender suas ideias e agir de maneira própria. As coisas têm que ser sempre do jeito que eu quero, mesmo que eu quebre a cara. Não identifico meu trabalho com o de nenhum outro compositor. Não sei precisar as influências que possa ter sofrido, e acho isso muito legal.”
Páginas de abertura da reportagem “É Dia de Jorge”, publicada por Scarlett Moon na revista POP, em junho de 1973. Foto: Reprodução / “Revista POP” (fonte blog Velhidade, do pesquisador Eduardo Menezes)
Resenha do álbum Solta o Pavão, não creditada, publicada na edição de dezembro de 1975 da revista POP.
Ninguém Segura Jorge Ben – Músicas simples, letras inspiradas, e uma influência maneira de Gilberto Gil: o novo álbum de Jorge Ben pintou, seguindo a mesma linha que ele adotou em A Tábua de Esmeraldas. O disco é Solta o Pavão, e suas músicas mais fortes são Jorge da Capadócia, Dumingaz, Jesualda, Dorothy e Cuidado com o Bulldog. Jorge, cuja excursão ao México foi o maior ouriço (ficou lá 20 dias), voltou e, depois de um descanso natalino, retoma suas transas europeias.
Resenha de Solta o Pavão, não creditada, também publicada na revista POP, em dezembro de 1975, na sessão Em Cartaz.
O pavão, o bulldog, Santo Tomaz de Aquino, velhos, flores, criancinhas, cachorros, o rei, Jesualda, o zagueiro que não pode marcar toca – Jorge Ben abre as janelas de sua cabeça iluminada e vai soltando tudo, numa mistura danada e irresistível. Neste novo disco, lançado pela Phonogram, Ben confirma que é um dos compositores mais soltos e descontraídos da moderna música popular brasileira. E que é um dos intérpretes mais fortes e originais. E sua música cheia de balanço, quase crua, com jeitão primitivo. Ah, chega de adjetivos! Vamos é cair na dança, ao som de Jorge Ben!
Resenha do álbum África-Brasil publicada por Ana Maria Bahiana no Jornal de Música na edição de janeiro de 1977
Voa Jorge, Jorge voa! Lição de antropofagia, de volta por cima, de salutar digestão da massificação nossa de cada dia. Contra os enlatados e a música de merchandising, Jorge constrói sua cabeça de ponte com puro ritmo animal, negro, infinitamente brasileiro. De novo, Jorge voa!
Resenha de África-Brasil publicada por Oscar Pitta na edição de janeiro de 1977 da revista POP.
É realmente impossível ficar indiferente ao ritmo quente e explosivo que Jorge Ben e seu grupo – o Admiral Jorge V Ben – detonam em África-Brasil. É rock? É samba? É soul? É maracatu? Nem isso nem aquilo. É simplesmente o som (e marca registada de Jorge Ben, que nasce da genial união de guitarras, teclados, cuíca, surdo e atabaques, contagiando os sentidos num irrecusável convite à dança primitiva e sensual). África-Brasil é uma celebração. Aproveite.
Trechos da reportagem Eu Quero é Fazer um Som que Seja Universal, não creditada, publicada na Revista Música, em dezembro de 1977.
“Eu não me apresento (em teatros) porque dependo do empresário Marcos Lázaro. Sempre achei legal trabalhar em teatro, mas quando chego para bater um papo, Marcos diz que não é uma boa, que a ocasião não é propícia. Eu gostaria de fazer um trabalho para universitários e realmente já pintaram muitas propostas, mas eu não posso passar por cima do empresário. Sabe, eu curto tanto o público de teatro como o de baile. O primeiro vai curtir caladinho – e a gente vai trabalhar com a aquela vontade de fazer tudo certo, de cantar bonito, de transar aquele som gostoso. Vai ser um trabalho quase que despreocupado. Agora, em baile, é aquela agitação, e eu também gosto de sentir o cara cantando e dançando. Realmente isso também me empolga muito.”
Sobre os shows feitos por ele na Europa e nos Estados Unidos em 1977.
“A gente toca um samba médio, como Que Nega é Essa, com características mais universais, que pode ser um blues, mas é sambão mesmo. Tocamos um frevo, como Taj Mahal, que é mais sofisticado, e tocamos Zazueira, com um ritmo bem brasileiro, mas de baião. Os caras querem morrer!.”
Jorge aponta que fez shows na Itália, no Teatro Sistina, além de 15 dias de temporada com Jair Rodrigues no Olympia de Paris, com casa lotada.
“Eu percebi que os caras ficavam bobos, abismados, porque pensavam que música brasileira é só aquela que toca na época do Carnaval. Eu acho que vai ser a hora da música brasileira, porque os caras estão cansados de música pop. E, depois, os artistas de lá já não cantam as canções deles. Podem cantar no idioma local, mas as músicas são americanas: soul music, rock. Então, a nossa música mexe com eles.”
Jorge aposta no sucesso de Belchior e João Nogueira.
“Eu acho que futuramente vai aparecer um grupo fazendo música brasileira diferente. Há aqueles que estão tentando um som universal, mais eletrônico, e há aqueles que estão tentando um som de raízes. No momento, há um cara que está na moda, e que eu considero poeta, é o Belchior. Ele fala mais do que canta, e fala uns troços bonitos. E tem um outro, João Nogueira, que dá um recado importantíssimo com a divisão dele. Eu acho que o trabalho dos dois vai criar escola.”
Jovem Guarda, Tropicália e posicionamento político.
“A Jovem Guarda foi um impacto e uma barreira que eu consegui ultrapassar, porque eu era muito tímido musicalmente. Eu tinha medo de me apresentar para o público, ficava nervoso para tocar. Na Jovem Guarda conseguia me desinibir pelo calor que o público dava pra gente. E depois, quando passei para a Tropicália, foi demais. Aliás, foi uma pena acabar a Tropicália, porque era um negócio, assim, bem alegre e dançante. A minha música não tinha nenhuma conotação política. Nesse período compus Que Pena, País Tropical, Zazueira, todas bem dançáveis e uma música real e verdadeira. Charles Anjo 45é a história de um amigo de infância. Mas eu não sei fazer nada político. Minhas músicas são românticas, e eu acho que digo alguma coisa com elas.”
O som universal
“Meu trabalho é de raízes, mais para o popular. Quando faço uma canção, faço primeiro para mim, porque eu gosto de música, mas daí eu as testo em crianças. Se elas gostam é porque é boa mesmo. Eu quero é fazer um som que seja universal, mesmo sendo cantado em português”.
Do violão para a guitarra*
“Em princípio eu tentei colocar um microfone no meu violão, mas dava microfonia, daí eu adquiri um violão Ovation, de cordas de náilon e amplificado. Finalmente passei para a guitarra. Mas não foi fácil, porque a guitarra tem mais recursos, mais braço, então tem que estar bem afinada e a gente tem que ferir as cordas direitinho, tem que swingar diferente do violão”.
*Jorge fecha o papo revelando que tem dois violões nacionais “que são os melhores”, um Giannini e um Di Giorgio.
Trechos da reportagem Jorge Ben: Meu sonho é Ser Presidente, não creditada, publicada na edição de março de 1978 da revista POP.
A decepção com África-Brasil*
“O lançamento de meu disco África-Brasil, no começo de 1977, foi a maior falta de respeito profissional. A Phonogram lançou o disco sem me consultar – eu estava na Europa, na época, e eles não quiseram nem saber. Mandaram ver, modificando muita coisa. Até a capa não foi a que eu tinha escolhido – essa que está nas lojas é horrível.” *Reclamando, aliás, dessa precariedade dos estúdios, Jorge afirma, sobre o ambiente de gravações: “Temos, no Brasil, apenas material humano bom”.
Lembranças de Tokyo
“Em 1973, por exemplo, cantei no Japão para um teatro lotado só por japoneses: todos sentadinhos, comportados, esperando o show começar. Mas logo eles estavam batendo palmas no ritmo, até cantaram comigo o coral de Zazueira, imagine! No fim, subiram no palco, dançaram. Uma festa! Curti muito aqueles carinhas.”
Presidente / Rei de um reino “cheio de flores”
“Além do futebol, eu sonhava em ser advogado, profissão importante… Eu gostaria de ser rei de um reino cheio de flores, onde criança nenhuma tomaria injeção. Presidente? Gostaria de ser, sim. Mas presidente do Mengo. Nuns dez anos chego lá. E aí o Mengo vai ser sempre o melhor.”
Trechos de Salve Jorge! – Seu Som Eleva o Astral e e dá uma Sensação de Gol, reportagem publicada por Daisy Cury de Abreu na revista Ele Ela, em janeiro de 1976, na edição 81.
Louco por natureza
“Não bebo e não fumo. Meu barato é futebol e música. Além da praia, é claro. Bebo no Natal e no Ano Novo. Mas uma taça de champanha me faz entrar em órbita. Sou louco assim, por natureza.”
Rosa, a musa de Mas, Que Nada!.
“Quando vim para zona sul morei na República do Peru (rua de Copacabana que desemboca na orla da praia). Lá tive a minha primeira turma de violão. Depois, quando fiz Por Causa de Você, Menina, eles me ajudaram muito. Telefonavam para as rádios pedindo a música. Como era uma turma muito grande, eu era tocado toda hora no rádio. Lá também morava a minha primeira musa – a Rosa – ela vivia falando “mas, que nada, rapaz!”, e me inspirou a fazer a música.”
Melhor ser alegre que ser triste.
“Quando não estou alegre, procuro ficar. Não adianta ficar triste. Porque só vai atrapalhar, entendeu? Não adianta nada. Mesmo que eu esteja triste por dentro, tento ficar alegre. Porque a tristeza só vai ser negativa – e não vai resolver nada!”.
São Paulo, selva de pedra,
“Está muito difícil morar em São Paulo. Só mesmo trabalhando muito. Até os paulistas já não estão aguentando mais. Estão saindo do centro, procurando outro lugar nas redondezas para morar. Mesmo as firmas, como a Phonogram, estão se mudando, a procura de um lugar retirado, mais humano. Onde eu moro ainda á bonito. Ainda escuto passarinho e tem muito verde. Moro no Ibirapuera. À tardinha, escuto ronco de avião, que eu gosto e me faz bem.”
Madureira, terra do samba.
“Nasci na terra do samba, que não é Vila Isabel, mas Madureira. Fui garotinho para o Rio Comprido. Me lembro bem de minha infância. Era um menino pobre, não tinha luxo, mas tinha o amor de meus pais. Tinha o que eles podiam me dar. Jogava muita bola, brincava no morro, dançava no carnaval, Graças a Deus, agora estou tentando retribuir tudo a meus pais, quando posso.”
Páginas de abertura da reportagem “Salve Jorge” – Seu Som Eleva o Astral e dá uma Sensação de Gol, publicada por Daysy Cury de Abreu na revista “Ele Ela”, em janeiro de 1976. Foto: Reprodução / “Ele Ela” (fonte: Arquivos Incríveis / João Antônio Buhrer).
O método Patrício Teixeira
“Meu primeiro violão ganhei com o sacrifício de minha mãe. Ela tocava violão e meu pai era sambista. Quando entrei para o Exército, ela me deu de presente o violão e o método que ela usava. Um método antigo demais, chamado Patrício Teixeira. E eu comecei sozinho com aquele método. Como gostava do instrumento, foi fácil e rápido aprender. Naquela época eu pensava: que bacana a gente cantar e se acompanhar!”
João Gilberto, às dez da noite.
“Também fui influenciado pelo João Gilberto, meu ídolo. Achava bacana o estilo dele tocar violão. Eu dizia para os amigos: surgiu um cara aí muito bacana e tal. E a gente ficava esperando para ouvi-lo no rádio. Só tocava na Tamoio depois das 10 da noite, e a gente ficava esperando para curtir o som dele.”
Babulina, a origem.
“Meu irmão mais velho, oficial da Marinha, viajava muito. Certa vez, ele foi para os Estados Unidos. Na época, era aquela empolgação toda pela música americana, pelo rock e outros bichos. Então ele trouxe para mim um disco que estava na onda, Bob and Lena (na verdade, Bop a Lena, sucesso de Ronnie Self) e uma camisa que trazia o nome da música. Eu cantava isso, dava a entender que era ‘Babulina’ e usava a camisa. Então o apelido pegou, na Tijuca e no Rio Comprido.”
Jorge coroinha, seminarista e alquimista.
“Quando era garoto, lia alguns livros de meu avô, que era rosa cruz, e comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho. Desde pequeno, estive ligado com a arte hermética, embora não soubesse bem o que significava. Quando estive em Paris, comecei a pesquisar livros sobre alquimia. Andava pelo Quartier Latin procurando livros esotéricos. Tem uma livraria muito famosa no Boulevard Saint-Gerrmain, a Livraria Ariete. Você está lá e de repente encontra um filósofo, escritor ou um professor da Sorbonne procurando o mesmo livro que você. É bacana isso. Acabei fazendo amizade com o livreiro, e ele me deu muitas dicas. Na Europa há a facilidade de obter informação, não é? Quando descobri que na arte hermética também existe música, quis fazer uma alquimia musical. Daí saiu o A Tábua de Esmeraldas e agora o Solta o Pavão, que é uma continuação do Tábua. Solta o Pavão eu fiz em homenagem ao pavão real. Sempre gostei dessa ave, e na arte hermética ele representa assim como um descobrimento, entendeu? Dizem que quando se solta o pavão é porque se achou uma coisa maravilhosa, um tesouro.”
Filho de Ogum.
“Gosto de prestar homenagens através da música. Jorge da Capadócia é para homenagear São Jorge. Sou filho de Ogum, São Jorge. Além de santo, é para mim um ídolo. Acho ele muito bacana. Não só por sua história, pelos momentos difíceis que passou, mas também pela nossa amizade. Até na música eu trato o Jorge com muita intimidade. Como se ele estivesse presente, entendeu?”
Daysy pergunta como Jorge escreveu O Circo Chegou, do álbum epônimo de 1969.
“O palhaço para mim é uma figura que amo. Para mim é o grande herói do circo. Quando vou a um circo, vou principalmente para ver o palhaço. Eu imaginei um palhaço, e ele tinha uma mulher sensacional, incrível, que sabia de tudo o que acontecia. Adivinhava e segurava todas as barras. Sempre na dela, olhando tudo com muita sabedoria. Eu pensei: uma mulher tão incrível como Daisy só pode ter um homem que come raios laser.”
Compor para você é como espirrar, como defendem alguns, pergunta Daysy?
“Não é bem assim. Para compor eu sinto como se uma coisa começasse a martelar em minha cabeça. Às vezes, uma coisa simples, uma frase de um amigo, uma palavra que fica na minha cabeça e uma coisa que começa a se criar. De repente pego o violão e sai a música. Minhas músicas têm sempre uma história. Coisas que aconteceram comigo, que eu presenciei ou vivi. Uma coisa simples pode me inspirar. Só não consigo fazer música encomendada. Aí não sai mesmo. Antes de tudo, tenho que sentir. Não é como uma prova que se estuda para fazer tudo certinho. Eu sinto e faço um arranjo daquilo tudo, da melhor maneira possível que eu possa interpretar. Tenho o meu estilo e estou acostumado com ele. Quando estou compondo sei a minha linha de ritmo e melódica. Estou com uma coisa na cabeça. Quero fazer uma música universal. Todo mundo vai curtir e entender. Normalmente, gosto de todas as minhas músicas. Mas a minha preferida é Mas, Que Nada!”
O que você pensa das mulheres de hoje, mais descontraídas, falando gírias, trabalhando, questiona a repórter?
“Mas isso é da época. É o modernismo atual. Eu concordo com elas. Poxa, não pode cortar a onda. Nós estamos quase no século XXI, e todo mundo está mudando ou se dando conta da mudança. As mulheres de hoje são bem diferentes das do meu tempo de garotinho. Para mim, mulher pode fazer de tudo. Mas tem uma coisa, tem de ser feminina”.
Daysy pergunta o que Jorge ouve em casa. Ray Charles, James Brown e Stevie Wonder, a resposta. Pinga-fogo: para fechar a conversa, a repórter pede veredictos sobre alguns colegas de ofício. Gilberto Gil?: Maravilhoso, um cara que eu gostaria de ser! Milton (Nascimento)?: Está prestes a encontrar um tesouro. Caetano (Veloso)?: É a ternura! Gal (Costa)?: Gostaria que fosse minha namorada.
Colocando o pinga-fogo de escanteio, talvez porque o assunto cobre maiores explicações, Daysy pergunta: “Simonal ainda é seu amigo?”. Jorge Responde, de maneira sucinta.
Acho o Simonal um cara muito bacana. Ele, aliás, foi o primeiro cantor a acreditar em mim como compositor.
Você não ficou decepcionado com ele? Não acha que ele se tornou um mau-caráter (Daysy esmiuça a polêmica que, até então, 1976, ainda não havia silenciado, enquanto Simonal definhava artisticamente).
A mim ele nunca decepcionou. Não que ele fez um troço, assim, feio. Não consigo achar nada feio em ninguém. Gosto de todo mundo. Tenho uma filosofia de vida. Uma filosofia meio barata, mas com senso de humor e que eu acho muito bacana: ‘Jacaré tem que ser malandro, porque quando não é malandro vira bolsa de madame’. Sabe o que quer dizer? Não se meta com a vida dos outros, se não quiser que os outros se metam com a sua vida. E é assim que eu sigo.”
Nota triste, que consta no rodapé da reportagem: “Recado para o Jorge: depois de tanto trabalho e de ter uma entrevista tão simpática, aconteceu uma zebra. A fita do gravador pifou e só gravou a metade de um lado. Foi muito azar, mas não há de ser nada. Vou à forra! Um beijo”, afirma Daysy.
Voa Voa Jorge, Jorge Voa – o alquimista voltou. reportagem de Ruy Fabiano para o Jornal de Música, publicada em janeiro de 1978
Música caipira, chorinho, samba e Black Rio,
“Às vezes, eu estou sozinho em meu apartamento de São Paulo e ligo o rádio de madrugada para ouvir aquelas duplas caipiras. Acho incrível aquela transação deles. Chorinho, que agora é moda, ouço desde pequeno, pois meu pai é velho seresteiro. Sou do Salgueiro, e minha ligação com o samba é também antiga. Nada disso impediu que eu me interessasse pelo rock e pelos diversos ritmos que entraram e saíram de moda. Sempre participei de bailes e embalos de subúrbio, essas coisas que hoje em dia resolveram rotular de Black Rio.”
Fuga da Guerra do Vietnã.
“A minha primeira experiência internacional foi em 1965, quando o Itamaraty enviou alguns músicos, entre eles o Sergio Mendes, em missão cultural aos Estados Unidos. Fui incluído e ganhei uma bolsa para estudar música. Não cheguei a fazer o curso, pois não falava inglês. Não fiz muita coisa por lá, porque fiquei pouco tempo. É que para trabalhar por lá era necessário adquirir o Green Card, e acabei tendo que me alistar no Exército Americano. Fiz isso por pura formalidade, para conseguir trabalho, só que acabei convocado para ir ao Vietnã e tive que voltar às pressas.”
A passagem pelo festival Midem, em Paris
“Quando subi ao palco e vi aquelas pessoas seriíssimas, engomadas, pensei ‘o que é que eu faço agora?’. A minha sorte é que Mas, Que Nada! era sucesso com o Sergio Mendes e todo mundo conhecia. Bastou eu começar a cantar para sentir que todo mundo tava na minha. Fui bisado, e a partir dali choveram propostas de trabalho”.
De novo, a decepção com África-Brasil (e também com Solta o Pavão) e a partida para a Som Livre.
“Os meus últimos LPs – Solta o Pavão e África Brasil – não saíram com a qualidade técnica que eu esperava. O último, então, foi demais. Tive o maior cuidado com as gravações, já sabendo das limitações do estúdio Havaí, onde o disco foi feito. Queria participar da mixagem e já tinha apresentado sugestões para a capa. Pois bem: quando cheguei de viagem encontrei o disco pronto, mal mixado, com uma capa que não tinha nada a ver com o que eu queria. Mas isso tudo é o de menos. O mais grave é que, pelo contrato da Phonogram, não posso regravar nenhuma das minhas músicas num prazo de 10 anos, contados a partir do momento em que eu deixei a empresa. Quer dizer, a música é minha, mas eu não posso cantar. Se eu quiser regravar País Tropical ou Mas, Que Nada!terei que esperar até 1987. Assim, fui pra Som Livre, que me apresentou uma proposta bastante interessante: um contrato de um disco, sem qualquer exigência, podendo ser renovado, se não houver problemas.”
A reverência do público japonês
“Uma coisa incrível é a plateia japonesa. É impressionante a musicalidade deles. E batem palmas acompanhando o samba sem atravessar o ritmo em nenhum momento. Lá, tudo que eu cantava dava certo. Desde o Hino do Flamengo até Cidade Maravilhosa.”
Jorge reitera sua atração pela alquimia como coisa antiga, despertada desde os tempos remotos em que estudava em colégio de padres e chegou a ser seminarista.
“Uma coisa que sempre me fascinou foram os vitrais de igreja. Certa vez, lendo sobre aquilo, encontrei referências aos alquimistas. Fiquei curioso, e tendo o que encontrei sobre o assunto – uns livros velhos de meu avô, que era rosa cruz – li com interesse. Cheguei mesmo a conversar com alguns filósofos franceses hermetistas, mas não me filiei a nenhuma seita. Há muito mais coisas que gostaria de saber, porque a alquimia tem muito a ver com música. Por exemplo: todo alquimista – e geralmente eram homens de algumas posses – contratavam um menestrel para decorar suas fórmulas. Quando a memória falhava, o trovador cantava a fórmula e resolvia a situação, Meu interesse pelo assunto, embora grande, é exclusivamente amadorístico”.
Trechos da reportagem Jorge Ben foi um Sucesso em Nova Iorque, não creditada, publicada na edição de abril de 1979 da revista Música.
Studio 54 versus Xenon
“Eu dei um show grandioso numa discotchèque. Foi uma festa. Mas não foi na Studio 54, como todo mundo anda falando, foi na Xenon, rival da 54. Ciraram essa discotchèque porque a 54 costuma barrar as pessoas, mesmo que a casa não estivesse cheia. Eu fui convidado para essa festa porque o Ricardo Amaral fez um convênio com a Xenon de levar gente para lá e de trazer o pessoal de lá para a Hippopotamus. E o primeiro cara que ele convidou fui eu. Fiquei contente porque pela primeira vez eu me apresentava em Nova Iorque e numa casa conceituadíssima como a Xenon. A recepção foi ótima. Discotchèque cheia. Logo no começo as pessoas estavam dançando aí o locutor me apresentou daquele jeito deles ‘ladies and gentlemen…’. As pessoas pararam de dançar e chegaram mais perto para assistir. Na terceira música ninguém resistiu, todo mundo caiu na dança até o final do show. Foi 1 hora e 40 de pauleira, eu cantei tudo, e todas as músicas em português. Cantei País Tropical, Banda do Zé Pretinho, Mas, Que Nada!, Chove Chuva, Fio Maravilha etc. De Nova Iorque eu fui a Los Angeles porque fui convidado para conhecer a gravadora AM Record – que foi estúdio de filmagem do Chaplin. Futuramente devo voltar lá para fazer um disco nessa gravadora. Já ficou tudo acertado.”
Efervescência nova-iorquina
“Em Nova Iorque tem de tudo. É um lugar eclético. Existem muitos bares com música ao vivo. Num barzinho só tem jazz, no outro rock, no outro blues. Tem também o funk – música mais pro lado dos negros. É um outro ritmo para dançar. O funk deverá ser a música do futuro. As multinacionais já estão programando sua entrada no mercado para daqui a dois anos – tempo que as gravadoras prevêem que a discotchèque vai permanecer enquanto modismo.”
O preconceito inerente aos movimentos
“Já passei por vários movimentos, na Bossa Nova existia um certo preconceito contra mim, o pessoal achava que eu não era muito Bossa Nova e eu mesmo me sentia muito preso. Era um negócio que eu não conseguia acompanhar muito bem. Um dia eu fui convidado pelo Roberto Carlos para cantar no Jovem Guarda. O programa era no domingo. Na segunda-feira, quando fui me apresentar no Fino da Bossa, programa do qual eu participava toda semana, fui barrado porque eu tinha ido ao programa do Roberto. Veja só, e isso era porque eram da mesma emissora (aTV Record). Depois os baianos me procuraram, através do empresário Guilherme Araújo, me convidando par fazer parte de um novo movimento que iria surgir, o Tropicalismo. ‘Sua música vai se encaixar direitinho nesse movimento. A Tropicália tem tudo a ver com você’, disse o Guilherme. Aí eu fui só para conhecer, gostei e resolvi ficar. Foi legal por ter sido mais um avanço na minha música. Tudo isso permitiu uma abertura no meu trabalho. Se eu não tivesse passado pela Jovem Guarda ficaria preso à Bossa Nova. Eu prefiro como está hoje onde existem várias tendências, porque esse negócio de movimento cria muito preconceito. A abertura de hoje é válida, na medida em que enrique a música popular brasileira.”
Trechos de Rod Stewart Plagiou Jorge Ben, reportagem da revista Música, não creditada, de julho de 1979 (matéria que repercute o processo de plágio movido contra Do You Think I’m Sexy, de Rod Stewart, acusada de ser um plágio de Taj Mahal).
“Coincidência musical pode existir. Uma pessoa ouvindo muita coisa, não atual, já fica difícil. Se você está acostumado a ouvir muito músicas antigas, de dez ou 20 anos atrás, então, pode até acontecer. E há perigo de todas as formas, no meio da música e até mesmo no refrão. Taj Mahal foi no refrão, o que é mais forte. Vejo isso como o próprio compositor disse que foi: uma ‘coincidência musical’. Só que depois ele já mudou de ideia, falou que não foi de sua autoria a música, e sim do seu baterista (no processo, Rod deu essa explicação), doando, inclusive, os direitos para o Unicef. Agora, se fosse eu ter feito uma música parecida com a de um compositor estrangeiro, ou mesmo qualquer outro compositor brasileiro que fizesse isso, ficaria logo desmoralizado. Nosso povo ia malhar e repudiar. Graças a Deus não fomos nós que fizemos isso, nem qualquer outro compositor de expressão, senão seria fim de carreira. Música de folclore, de domínio público, a gente pode gravar e pôr o nome. É a primeira vez que acontecesse isso comigo. Não estou muito chateado. Realmente, Taj Mahal é o tipo de música que todo o mundo está querendo fazer. Ela já tem cinco anos e eu sempre tive fé nela. Está (por conta da polêmica) sendo sucesso novamente.”
Gilberto Gil, em defesa de Jorge, diz, na mesma reportagem:
“Qualquer operário brasileiro, montado num andaime, trabalhando, assobia e acompanha o refrão de Jorge Ben, podendo até mesmo comentar: ‘Bem, isso aí até eu mesmo faria, sem ser músico’. E seria até verdade, porque é uma coisa… Uma música bem brasileira. Bem feijão com a arroz. Mas Rod Stewart não! Ele não faria, e não fez.”
MAIS
Leia também, na íntegra, entrevista de Jorge Ben Jor publicada, em 2009, pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches na revista Trip.
Veja parte do MPB Especial Jorge Ben, atração da TV Cultura, dirigida por Fernando Faro, que foi ao ar em 1972.
Fernando Henrique Cardoso (Foto: Renato Araujo/ABr)
Por volta de 1980, Fernando Henrique Cardoso tomou uma decisão importante. Ele tinha sido eleito suplente de senador em 1978, com votos que iam da esquerda para o centro. Estava no horizonte da época montar-se um “partido popular”, que uns queriam que fosse uma grande coalizão dos setores progressistas, outros desejavam que fosse mais de esquerda – como acabou sendo, chamando-se Partido dos Trabalhadores.
Parte dos que apoiaram FHC em 1978 foi criar o PT. Mas FHC fez outra escolha. Penso que sua análise foi a seguinte: a direita brasileira é golpista. O que melhor posso fazer pela democracia é convencer a direita de que ela pode ganhar e conservar o poder dentro das regras democráticas. A oportunidade era de ouro: a ditadura, que a direita implantou em 1964, estava indo para a falência. Com o esgotamento do regime de força, dava para civilizar a direita. Era uma missão, uma tarefa histórica – que FHC cumpriu anos depois. Porque, ao se eleger presidente, ele submeteu a direita tradicional, egressa da ditadura, à liderança dos que combateram o regime militar e que formavam o núcleo do PSDB.
Além disso, é claro que não caberiam no mesmo partido FHC e Lula. Estava ficando claro que o sindicalista seria a escolha preferencial das esquerdas. Para FHC, era melhor capitanear um campo moderado, que atraísse a direita, embora lhe deixando uma posição subalterna.
O surgimento de uma direita despudorada, agressiva, preconceituosa marca a dificuldade dos tucanos de continuarem liderando, a partir do centro, a direita.
A outra opção, por volta de 1980, era dar voz a quem não tem voz, aos novos protagonistas da cena política, a começar pelos trabalhadores em greve, liderados pelo jovem Lula, e pelos membros das Comunidades Eclesiais de Base. Essa tarefa, também uma missão histórica, ficou com o PT. E assim sucedeu que gente que esteve no mesmo palanque em 1978, que trabalhou junto anos a fio, se dividiu. Nas eleições de 1994, quando muitos queriam PT e PSDB formando uma chapa para mudar o País, o PT ficou liderando a pequena esquerda, enquanto os tucanos chefiavam uma ampla coalizão de centro-direita.
O que essa divisão causou de bom? O enfrentamento sempre repetido, às vezes por pessoa interposta, entre FHC e Lula tirou o espaço de qualquer aventureiro, no caso de direita, que quisesse concorrer à presidência. Collor foi o último a ocupar esse espaço – por sinal, ocultando cuidadosamente sua trajetória de apoio à ditadura. Os saudosos do regime militar não passariam de 10% numa eleição. Isso valeu durante vinte anos, de 1994 a 2014.
Mas essa missão histórica do PSDB continua – ou acabou? É crescente, dentro do partido, o número de pessoas, algumas delas bem votadas, que são hostis à pauta básica dos fundadores do PSDB, que defendia os direitos humanos às vezes mais até do que o PT. Dos principais nomes dentro do partido, apenas FHC e Serra estão perto dos princípios do PSDB. Alckmin é relativamente indiferente ao que eu chamaria de valores humanistas tucanos, Aécio mais ainda e Doria nem se fala. Uma das maiores realizações da vida de FHC – civilizar, democratizar a direita – entrou em crise séria.
Acima, a escola de samba Acadêmicos do Tatuapé FOTO: Paulo Pinto / LIGASP
• por João Luiz Vieira
Pulei frevo, dancei maracatu, fui atrás de trio elétrico, segui os Filhos de Gandhi, mas nunca havia saído em escola de samba. Tirei essa demanda da frente. Convidado por uma amiga, encarei a ideia de defender o enredo “Tropicália da Paz e do Amor”, da Águia de Ouro, escola de samba do bairro da Pompéia, em São Paulo. O desfile foi na madrugada de ontem, domingo 19. Em uma palavra: inesquecível embora absolutamente cansativo.
Decorar samba é difícil? É. As letras são enormes, as informações contidas nas frases atravancam a cadência, e em alguns casos você não entende exatamente o que está cantando. Mas o samba da Águia é lindo e o refrão é contagiante e pegajoso. Passado esse susto, vem a fantasia. A minha eu peguei no dia do desfile. Eles têm sua medida, então não tem erro. No meu caso, ao menos. Mas há quem use calçados menores que os pés. Tive sorte.
A minha ala era a última, atrás do último carro alegórico. Sabe o que é ala? Sessenta pessoas, no mínimo, formam esse grupo coeso que defende um trecho do enredo defendido pela escola. Fomos de homens da paz. No início, estava muito feliz porque a roupa não incluía esplendores e outros penduricalhos que ferem a cabeça, ombros, braços e pernas. Só depois eu descobri porque nossa ala era a mais “simples”. Como encerraríamos o desfile, se a escola estivesse atrasada quem correria contra o tempo? Nós, a ala final. E foi isso o que aconteceu. Estávamos em cima do lance e por segundos não perdemos ponto por causa disso.
Sambar é o que você menos faz em um desfile. Você anda, na verdade, com uma ou outra chance de evoluir e requebrar as cadeiras. A preocupação é manter sua fila reta e aprumada para não perder ponto em evolução. Assistir ao desfile de sua escola é outra lenda. Não vemos nossa escola, ou melhor, enquanto a comissão de frente está sob holofotes você ainda está em pé, esperando sua vez. Os outros é que nos veem. No máximo, conferimos os fundos do carro alegórico.
Desfilaram pela Águia de Ouro Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Cauby Peixoto, Angela Maria. Pergunta se eu vi algum deles na concentração. Claro que não. Eles ficam em camarotes e só surgem na hora do show. Encontrei, sim, Wanderléa, na dispersão, exausta, como todos nós. Se eles sabem cantar o samba? Dificilmente. Sabe qual é o truque que me ensinaram nessas horas? Mastigar chiclete, saudar a arquibancada e virar o rosto naquela frase indecifrável. Foi o que fiz. Quem sabe volto no Desfile das Campeãs, na sexta. Sabe o que também ouvi sobre essa nova passagem pela avenida? Neste dia será comemoração, portanto é para entrar semibêbado. Então tá.
Till Fellrath e Sam Bardaouil, curadores e chairmans da Fundação Montblanc, baseada em Hamburgo, na Alemanha. Foto: Coil Lopes
Curadores e co-chairmen da Fundação Cultural Montblanc, Sam Bardaouil e Till Fellrath participam na noite desta terça-feira (10) da cerimônia de entrega da edição brasileira do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage, que será realizada, para convidados, na Pinacoteca de São Paulo.
Em sua 26ª edição, a segunda no Brasil, a premiação, que consagra iniciativas de mecenato artístico em 17 países e destina aos vencedores um aporte de 15 mil euros para novos projetos, anunciará hoje o grande vencedor entre três indicados.
Selecionados por meio de um júri internacional formado por 51 personalidades de diversas áreas, os concorrentes brasileiros são: o Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, idealizado pelo apresentador Luciano Huck; a Associação Cultural Videobrasil, fundada e dirigida pela curadora Solange Farkas; e o Instituto Ricardo Brennand, dirigido pelo empresário e colecionador pernambucano (saiba mais).
Nesta segunda-feira (9), dando início a uma série de entrevistas para a imprensa local, a dupla de curadores abriu a agenda de conversas em um encontro com a reportagem de páginaB!.
“Há cerca de um ano e alguns meses atuamos como diretores e curadores da Fundação Montblanc, e tem sido uma jornada fantástica. É muito gratificante ver as respostas que as instituições de tantos países têm dado às atividades da fundação. Aprendemos muito e, juntos, tivemos grandes ideias que serão desenvolvidas nos próximos anos”, afirmou Bardaouil.
“No Brasil, este é o segundo ano em que estamos premiando patronos por suas contribuições às artes do País (leia a cobertura da primeira edição). No último ano, criamos também um conselho curatorial internacional formado por profissionais do meio artístico, e um deles, que está baseado no Brasil, Jochen Volz, é conhecido por seu trabalho na Pinacoteca de São Paulo e também como curador da última Bienal de São Paulo. A ideia, com esse conselho curatorial, é criar uma rede de contatos que incremente nossas buscas. O fato de termos escolhido alguém que está no Brasil para contribuir conosco é também uma forma de reafirmar o quanto acreditamos na arte feita no País”, complementou Fellrath.
Durante a entrevista, Bardaouil e Fellrath também anunciaram que artistas beneficiados por patronos dos 17 países contemplados com o prêmio terão trabalhos comissionados que, ao mesmo tempo em que vão expandir o acervo da coleção Montblanc, também serão exibidos ao público em mostras e bienais. “O patronato, para nós, significa algo muito importante. É sobre pessoas que investem recursos substanciais, de tempo e dinheiro, para apoiar artistas a criar para as pessoas a possibilidade de mudar a paisagem da cultura das comunidades de onde elas vêm”, reiterou Bardaouil.
O Brasil no cenário mundial das artes
“Uma das razões que nos deixa muito excitados de estar aqui é o fato de o Brasil ser um país com grandes contribuições para a arte, não só nos últimos dez ou 20 anos, mas por séculos. Desde o século 18, o Brasil tem uma grande tradição na pintura, na escultura, vindas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, entre outras”, defende Baradouil, antes de listar alguns de seus artistas brasileiros prediletos, como Tarsila do Amaral, José Pancetti, Lasar Segall, Geraldo de Barros e Di Cavalcanti. Este último, destaca o curador, “tem agora uma exposição brilhante na Pinacoteca”, referindo-se à mostra No Subúrbio da Modernindade – Di Cavalcanti 120 anos, com curadoria de José Augusto Ribeiro.
Atentos às questões contemporâneas da arte brasileira, Bardaouil e Fellrath acompanham de perto a celeuma deflagrada com a mostra Queermuseu, que estava em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre, e foi encerrada antecipadamente, sob acusações de apologia à zoofilia e à pedofilia, e a acusação de pedofilia também atribuída à performance La Bête (leia análise de Fabio Cypriano), realizada pelo artista Wagner Schwartz na abertura do 35o Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM).
“Penso que é muito importante para a rede de patronato artístico, além de dar suporte aos artistas, criar o espaço necessário para que eles possam se expressar livremente. Não importam as circunstâncias, é absolutamente importante que eles estejam hábeis para se reinventar e questionar as coisas ao redor. Um dos valores mais importantes para um patrono da arte é criar espaços livres onde os artistas possam experimentar sem limites. Algo que fortemente acreditamos é na liberdade de expressão para os artistas, e ficamos felizes de poder manifestar esse apoio aqui no Brasil”, opinou Fellrath.
Confira nesta quarta-feira (10), em páginaB!, a cobertura completa da cerimônia de entrega do Prêmio Montblanc de la Culture Arts Patronage.
Esther Solano, cientista política professora na UNIFESP e uma das autoras de “Mascarados: A verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc” FOTO: Carolina Piai
Por Carolina Piai
Durante o último mês, o MBL (Movimento Brasil Livre) e seu discurso tomaram ainda mais força no Brasil. O grupo, que surgiu pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi autor das críticas que levaram ao fechamento da exposição Queermuseu, no Rio Grande do Sul, e também dos ataques direcionados a performance La Bête no MAM. Além disso, em setembro, um general do exército falou publicamente em intervenção militar por mais de uma vez.
O cenário de escalada do conservadorismo tornou-se o centro da pesquisa da acadêmica espanhola radicada no Brasil há sete anos, Esther Solano. Cientista social e professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), ela recebeu a reportagem do páginaB! para uma entrevista exclusiva em seu apartamento, na região central de São Paulo. Durante mais de 40 minutos, explicou como suas análises e pesquisas fizeram com que se tornasse uma das inimigas número 1 de movimentos como o MBL.
Na conversa, Esther rememora sua trajetória, as dificuldades que encontra por ser mulher no meio acadêmico e no campo progressista, debate a influência das redes sociais no atual momento político, além de contar como acredita que a esquerda pode disputar o discurso com esse grupo, que exerce cada vez mais influência na internet.
“Num momento de crise muitas pessoas pensam que a culpa é do funcionamento democrático, que se nós tivéssemos um regime mais duro, mais autoritário, mais centralizador, resolveríamos a crise. Não podemos dar asas para esse tipo de pensamento, porque é muito perigoso”
Nos últimos anos, ela conduziu pesquisas de campo nos protestos de São Paulo, juntamente com os acadêmicos Pablo Ortellado e Marcio Moretto, com o objetivo de registrar as percepções dos manifestantes. Dentre os diagnósticos, alguns pontos chamam atenção: em 2015, na mobilização pelo impeachment de Dilma, uma das respostas apontava que mais da metade dos entrevistados acreditavam que o PT queria implantar um regime comunista no País. Para a pesquisadora, resultados como esse revelam o perigo das fake news: “Democracia sem informação não é democracia. Então quando temos informações tão pobres, tão cheias de boatos, a gente acaba diminuindo muito a capacidade democrática”.
Esther defende que o campo progressista deve disputar o discurso, a rua e a internet, “chamar para a luta contínua”. Por isso, frequentemente, a cientista política recebe ataques xenófobos e machistas em suas redes sociais. “Você tem que lutar mais para ter sua voz escutada, simplesmente pelo fato que você é mulher e ainda mais por ser uma mulher jovem”, conta.
“É como se fosse uma milícia tentando patrulhar seu pensamento. Mas eu pelo menos não tenho intenção nenhuma de calar a boca, então tudo bem: podem continuar que eu vou continuar também!”
Confira a entrevista completa:
páginaB! – Poderíamos começar a nossa conversa com você contando um pouco da sua trajetória na academia, como escolheu sua área, como veio pra cá…
Esther Solano – Eu cheguei no Brasil em 2010, estava acabando o doutorado na Espanha, mas coincidiu naquele momento em que a crise chegou na Espanha, então ficou extremamente complicada a situação e aqui acontecia a expansão de vagas do Reuni – estas tantas vagas que foram abertas na época do Lula. Eu cheguei aqui e consegui passar no concurso na UNIFESP. Minha pesquisa começou de fato em 2013, com as manifestações, porque eu sou socióloga e o meu foco tem sido sempre manifestações, dinâmicas populares, etc, então é bem o foco do que acontece na rua. Então em 2013 eu fui às manifestações, como bastante gente no Brasil, e comecei a me interessar muito pela questão da violência, dos black blocs, da polícia… São temas que tenho sempre o interesse: a repressão, a violência, a contestação contra o Estado. Aí comecei a estudar o black bloc e a repressão policial também (Esther Solano é coautora do livro “Mascarados: A verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc”). Em 2015 começaram as manifestações pelo impeachment e basicamente fui juntando uma pesquisa na outra. Comecei a estudar, junto com Pablo (Ortellado, professor na EACH – USP e colunista da Folha de S. Paulo) e Marcio (Moretto, também professor na EACH – USP) as manifestações conservadoras e agora estamos um pouco nessa onda, de estudar os movimentos mais conservadores, direita… Outra pegada totalmente diferente.
Recentemente, você divulgou ataques xenófobos que sofreu nas redes. Você lida muito com esses ataques?
Muito. Nós temos bastante exposição porque divulgamos muito nossas pesquisas na imprensa. A nossa ideia sempre foi essa: fazer pesquisa, mas não para a academia só, e sim divulgar também. Então publicamos muito a pesquisa, porque achamos importante isso. Então tem um lado positivo, que você consegue dialogar com as pessoas, mas tem o lado negativo, de que muitas vezes você fala coisas que algumas pessoas não gostam… Então eu, por exemplo, tenho dois pontos que são sempre fonte de ataque: a misoginia – dos colegas eu sou a única mulher, então eu sofro sempre ataques muito mais duros, de todo tipo de conteúdo, machista, patriarcal, sexista, etc – e outra que sou estrangeira. Sempre tem ataques misóginos, e vou falar que infelizmente não é só na direita, tem vezes que para o lado do campo progressista, de esquerda também tem esses ataques. Mas infelizmente a gente tem que lidar com isso – é duro, porque são ataques muito desagradáveis e normalmente chegam em massa, quando você dá uma entrevista, alguma coisa gera impacto, chega em massa esse tipo de ataque. É como se fosse uma milícia tentando patrulhar seu pensamento. Mas eu pelo menos não tenho intenção nenhuma de calar a boca, então tudo bem: podem continuar que eu vou continuar também…
E na academia você também encontra xenofobia e misoginia?
Não, na academia não encontro xenofobia, mas misoginia sim. Na academia o que você encontra é que você, como mulher, tem que lutar muito mais pelo seu espaço. Porque a academia é um lugar de privilégio do homem branco, classe média, etc. Então para a mulher é mais difícil ter uma voz reconhecida na academia. Eu diria que especificamente a misoginia na academia é esta: você tem que lutar mais para ter sua voz escutada, simplesmente pelo fato que você é mulher e ainda mais mulher jovem – parece que você tem duas desqualificações ao mesmo tempo.
As manifestações de machismo você encontra nas universidades de outros países também?
A misoginia você encontra em todo lugar. Por exemplo, falando um pouco da questão da academia, eu tenho colegas acadêmicas em outros países e as narrativas são iguais. Você ser convidada para uma palestra, para um seminário, ter um monte de homem e você foi convidada porque você é a cota feminina, tem que estar lá e pronto. Ou, por exemplo: quando homens falam as pessoas prestam muita mais atenção do que quando você fala. Infelizmente, as minhas colegas que moram fora, principalmente na Europa, que é meu ponto de referência, já me contaram coisas muito parecidas com aqui. A academia que é um lugar que deveria ser a vanguarda da inclusão, do diálogo, infelizmente ainda é um lugar muito patriarcal. Ouvi várias experiências de colegas que sofreram isso também. Na teoria você encontra mais possibilidades no campo acadêmico, na prática infelizmente você ainda tem obstáculos que são bem grandes. Além dessas coisas como maternidade, por exemplo, que ainda tem enormes dificuldades – as mulheres têm deixado a carreira, mas os homens não…
E como você vê a situação da ausência/pouquíssima presença de mulheres, negros e indígenas na política?
Sinistro… A gente tem só 11% de deputadas federais por exemplo, estamos no número 115 do ranking internacional das mulheres parlamentares. O Brasil é uma coisa sinistra, o problema de tudo isso é que muito se discute sobre a reforma política, distrital, se está aberta ou fechada, fundo de campanha, mas pouquíssimo, ou nada, está se discutindo na perspectiva das minorias políticas. Como que nós poderíamos trabalhar uma reforma política que incluísse mais mulheres e negros? Que são metade da população. Estamos absolutamente sub representados. Infelizmente a gente tem um congresso brasileiro de homens, brancos, classe média, empresários, então representa muito pouco. Por isso é difícil esperar que esse congresso adote uma medida realmente eficaz para aumentar a representatividade feminina. Isso é uma coisa que o movimento feminista deveria também começar a tecer essas rédeas, porque sem representatividade feminina na política a gente consegue muito pouco, as pautas legislativas estarão bloqueadas o tempo todo. Temos pautas importantíssimas como o aborto, que vai ser criminalizado ainda mais, então os dados são pavorosos. Acho que a participação maior de mulheres e de negros na política deveria ser um dos pontos fundamentais de partida da esquerda. Mas infelizmente é difícil, não é um dos pontos fundamentais porque os próprios partidos são patriarcais, por exemplo. Romper esse ciclo é uma coisa que demora tempo. Então nós, mulheres, temos que pressionar sim… O tempo todo. Cada espaço é um espaço de disputa. A política é um espaço de super disputa.
Pensando nas ruas, hoje temos uma insatisfação bem maior em relação ao governo e em 2013 a mobilização era muito maior nas ruas. Como vê esse processo?
Foi um processo de desgaste. Se você pega 2013 foi um momento muito histórico, então não dá para medir tudo por 2013 porque foi uma catarse coletiva. E você pensa: a gente teve quase 3 anos com muitas manifestações, uma coisa extraordinária. Em paralelo a isso nós temos a Lava Jato, que foi aumentando, então acho que as pessoas enxergaram que o sistema como um todo está apodrecido. Uma insatisfação que no começo era mais com o governo, com o PT, passou a se alastrar contra todo o sistema. E o que aumentou muito é a ideia de que o brasileiro não consegue ver saída. Então ele percebe que não só a classe política está podre para ele – um sentimento muito antipolítico, ninguém presta, todo mundo corrompido –, como também percebe que não tem saída, que por mais que vá para a rua, proteste, nada vai mudar – então é aquele: “nada muda mesmo né? Tudo continua igual”. Essas duas coisas se juntam, acho que chegamos em um momento de frustração política muito grande. Chegamos a um ponto de superação. As pessoas vão para rua e não muda nada, a Lava Jato avançando tanto deu a impressão de que o sistema todo tá corrupto. E isso é muito perigoso, porque deixa as portas abertas para os outsiders, como fenômeno do Dória, Bolsonaro, etc. Então acho que vai ser difícil reverter essa questão da mobilização. Acontece no mundo todo essa negação da política, esse cansaço coletivo.. É difícil reverter isso de novo…
Tivemos agora o fechamento do Queermuseu. Você acredita que o MBL tem tido tanta força por qual motivo?
Eles têm força mesmo – não é trivial a força deles. Eu sempre penso que a esquerda tenta menosprezar esses grupos, mas não, eles dialogam e eles comunicam. Eu acho que a gente tem que pensar primeiro que o Brasil é um país conservador, então a bolha é a nossa, a bolha progressista. A grande massa da população é conservadora – é um país muito punitivo, que tem muitos problemas racistas, classistas. Então o MBL começou primeiro com uma linha muito neoliberal na economia, então o objetivo principal era este. Essa ideia do estado mínimo e do neoliberalismo não tem consciência no Brasil, as pessoas não querem isso. Então o MBL mudou a estratégia e passou para uma coisa das pautas mais moralistas na política, pois assim têm realmente um eco, então quando você parte para uma coisa de pautas moralistas, da população LGBT, mulheres, punitivismo, você sempre vai encontrar setores muito grandes da sociedade que te apoiam, porque são pautas que ainda têm questões transversais de racismo e classismo que são complicadas de vencer. O MBL é muito importante, o Bolsonaro é muito importante. Por mais que a gente goste ou não goste, são grupos que comunicam com a sociedade. Então talvez uma autocrítica para a esquerda é que a gente perdeu a capacidade de comunicar com a sociedade. Não sei se isso serve para instigar a esquerda para que ela comunique de novo, porque isso é bem urgente. Nós chegamos em um ponto que alguns grupos da direita se comunicam melhor com a sociedade do que a esquerda.
Como você acredita que a esquerda poderia disputar o discurso com o MBL, por exemplo?
Acho que o problema agora é que o campo da esquerda continua muito atrelado a um projeto petista e isso é muito perigoso, porque a esquerda e o progressismo têm que ser muito maior do que um partido só. Então eu acho que a crise do PT acaba sendo a crise da esquerda como um todo. Ou seja, a gente tem na verdade essa fragilidade: como se organizar agora? Estou pensando aqui e acho que a gente não está nem no nível de disputar o discurso, nós estamos no nível de organizar nosso campo ainda, então é bem mais precário o assunto. A gente precisa conseguir se reorganizar, sair um pouco da órbita do PT, ganhar uma autonomia. A esquerda tem que ser muito mais do que um partido. Está todo mundo muito perdido agora, a eleição também é um momento difícil, então todos os esforços estarão voltados para o cenário eleitoral, e não realmente para reestruturar a base. Então o primeiro passo tem que ser esse, e aí depois na verdade tentar realmente disputar o discurso, porque sem essa reorganização prévia tá difícil. Por exemplo, o movimento feminista está muito forte no Brasil, muito mesmo, uma coisa para mim bem potente. Mas o movimento feminista não conta com representantes políticas suficientes para dar uma voz à instituição, no parlamento, etc. Essa ponte com as instituições é complicado, tem que ser reestruturado, é urgente tudo isso…
Como observa as eleições em 2018?
Que medo! (risos). Eu tava vendo a última pesquisa de rejeição e o Lula subiu 40 pontos, é uma coisa impressionante né, então o Lula diminuiu a sua rejeição e está subindo a recepção positiva dele… Se ele conseguisse se candidatar, obviamente que ele ganhava, talvez até no primeiro turno. Como é muito duvidosa a candidatura do Lula, vamos temos que deixar tudo isso em parênteses. Se ele não conseguir se candidatar, ainda acho que ele vai ser um cabo eleitoral muito importante, porque simbolicamente, a pessoa que ele apoie, vai ter um apoio muito grande. Então o candidato que for escolhido pelo PT não vai ter a força do Lula, evidente, mas ainda vai ter força porque o Lula vai apoiá-lo de alguma forma. Se o Lula for condenado, vai ter todo aquele discurso do vitimismo, “Lula vítima”, tudo isso. Então eu consigo imaginar uma pessoa da esquerda movida pela força do Lula, mas ainda assim vai ser complicado porque uma condenação do Lula vai ser bem crítica.
Eu consigo ver agora o Dória e o Alckmin, que estão em disputa aí, o Dória está melhor nas pesquisas, mas está pior dentro do PSDB, vamos ver quem vai ganhar a disputa interna no PSDB – que é terrível. E o Bolsonaro está muito bem colocado. Resta saber se o Bolsonaro é um fenômeno mais social do que eleitoral né, porque ele tem um partido muito pequeno. Então vamos ver se ele se garante quando começar o horário eleitoral gratuito, o partido muito pequeno dele vai prejudicar. Então basta ver se ele é um fenômeno social mobilizador ou de fato eleitoral. E aí tem a Marina, que não enxergo muita possibilidade, porque acho que ela mesma é o problema dela mesma… Mas assim, se o candidato do PT não consegue ir para o segundo turno, a gente tem a possibilidade de ter um segundo turno só com candidatos de direita. E é uma possibilidade sim, que a gente viu o que aconteceu em outros países, na França, por exemplo, ultra direita com uma direita liberal. Poderia ser assim também aqui…
Considerando também a recente declaração de General Antonio Hamilton MartinsMourão (general do Exército que em palestra realizada em Brasília durante o mês de setembro falou publicamente por mais de três vezes na possibilidade de intervenção militar), você enxerga um perigo de tomada de poder militar no Brasil?
Não enxergo um perigo de tomada de golpe militar, mas o que eu enxergo é que pessoas que apoiam e legitimam esse discurso podem aumentar, isso sim. O episódio do Mourão, para mim, foi muito simbólico. Não pelo que ele falou, porque eu acho que tem mais gente que opina também isso, mas pela ausência de uma punição depois do que ele disse. Se ele falasse isso mas depois fosse punido ou expulso por falar isso, poderia ser mais pedagógico. A gente tem o Bolsonaro que já é também esse discurso, para mim a ameaça não é o golpe, é que essas ideias se difundam e ganhem apoio.
General Mourão FOTO: Pedro Ribas / ANPr / Divulgação
A gente já vive sob um golpe não é…
A gente já vive numa ordem democrática entre muitas aspas. Esse tipo de comportamento (do General Mourão) é totalmente ilegítimo, então quando você vê esse tipo de comportamento sem nenhum tipo de punição ou represália você está levando uma mensagem de que: “Pô, vamos apoiar esse cara porque é possível!”. Já estamos em um momento muito frágil, a democracia passou longe, então deveríamos ter muito cuidado com isso. Porque quando acontece isso você acaba a instaurar na sociedade a ideia de que a democracia é mais um regime, talvez não é tão necessária, num momento de crise talvez não dure…
Num momento de crise você tem que cortar da raiz o discurso autoritário porque pega muito. Num momento de crise muitas pessoas pensam que a culpa é do funcionamento democrático, que se nós tivéssemos um regime mais duro, mais autoritário, mais centralizador resolveríamos a crise. Não podemos dar asas para esse tipo de pensamento, porque é muito perigoso. Acabamos de ver agora nas eleições na Alemanha que neonazistas ganharam 13% do parlamento. É muito expressivo isso. Ou você corta da raiz, ou você tem um problema que vai se espalhando pela sociedade.
Você vê então também no panorama global essas questões.
Sim, sem dúvida. Globalmente você tem um sentimento de frustração com a democracia muito grande, você tem uma globalização que não está dando certo para muita gente, tem os problemas migratórios que são muito grandes, tem o problema do próprio capital, da precarização do trabalho, da vulnerabilidade que teve essa precarização. São problemas muito estruturais que o mundo inteiro, em diversos níveis, está sofrendo. E a democracia ficou muito refém do poder econômico, então a democracia não está dando as respostas que muitas populações queriam. Aí vem esse discurso anti-político, da negação da política… E se você vê no mundo todo estão pipocando movimentos extremos. Nos Estados Unidos, com o Brexit na Grã-Bretanha, a própria Marine Le Pen na França, a segunda mais votada. Então infelizmente é de uma ordem global, sem dúvida.
Voltando para o Brasil, como avalia o comportamento dos cidadãos nas redes sociais?
Tem um problema aí – não sei se é do brasileiro, mas de forma geral – a rede social é um espaço onde se discute muita política, questões sociais. E nós temos um pouco uma dupla fácil porque por um lado é um lugar interessante, sobretudo para pessoas que não têm voz, que são muito menos ouvidas, ter uma plataforma com mais possibilidade de acesso. Mas, por outro lado você tem um discurso de ódio muito potente, porque também você tem o anonimato total. E nós temos essa questão do Facebook, que trabalha com bolhas ideológicas, essa coisa do algoritmo. Então na verdade você está discutindo política talvez no pior lugar para discutir política porque você não consegue dialogar com outros. Tá tudo muito polarizado, a rede social também está polarizada, então acho que o principal problema é isso: você fomenta um discurso muito unilateral, não consegue debater, não consegue diálogo. E o discurso de ódio passa muito gratuito também, acho que as pessoas ainda não entenderam talvez muito a dimensão que tem a rede social. Eu vejo que tem esse lado negativo que falamos, do discurso de ódio, que você se expõe muito também né, porque você consegue uma visibilidade grande, fica muito fragilizado também por um lado. Mas por outro lado tem uma coisa muito positiva, que é dialogar com muitas pessoas. Então ao mesmo tempo que te digo que encontro muito discurso contra mim, encontro muito discurso positivo também comigo, sobretudo – uma coisa muito importante isso – como mulher, por exemplo, tem umas meninas que me escrevem falando que é importante o exemplo que eu dou enquanto mulher, porque, de novo, nós mulheres não temos tanto essa possibilidade de nos colocar no debate público. Então se eu colocar no balanço acho que esse papel meu como mulher e como eu consigo dialogar com meninas do Brasil todo, isso é muito importante. E eu não conseguiria fazer isso se não fosse pela rede social.
Nas pesquisas que desenvolveu com Ortellado e Moretto, durante as manifestações pelo impeachment, 42% dos entrevistados afirmam que o PT trouxe mais de 50 mil haitianos para votar na Dilma e 64% acreditavam que o PT quer implantar um regime comunista no Brasil. Nesse sentido, 64 e hoje têm muita proximidade também…
Uma coisa que a gente estuda muito que é muito perigoso é essa coisa dos boatos e dos fake news, que não é um fenômeno novo, sempre houve informações falsas. Mas é um fenômeno que com a internet você extrapola muito. Então quando agente mediu isso, estávamos vendo justamente isso, como as falsas informações, que justamente atacam e deslegitimam o outro, são poderosas. A gente mediu isso também: as notícias mais compartilhadas no Facebook a cada semana e você encontra sempre notícias falsas entre as mais compartilhadas. E isso é muito perigoso: a qualidade da informação é muito baixa, você tem uma pseudo informação que acaba desqualificando o outro, e isso empobrece muito o debate, que já está muito empobrecido, você acaba numa dinâmica muito bélica, de destruir o inimigo. Isso foi bom justamente para aqueles que se aproveitam do momento dos outsiders, mas acaba diminuindo muito a qualidade democrática também. Porque democracia sem informação não é democracia. Então quando temos informações tão pobres, tão cheias de boatos, a gente acaba diminuindo muito a capacidade democrática.
Para concluir, você teria considerações finais?
A esquerda tem muito essa coisa da arrogância, de quem pensa que é dono da verdade absoluta e nós estamos sofrendo muitas perdas: impeachment, eleição municipal, a gente pode perder muitas disputas que estão vindo… É o momento de ter a humildade de reconhecer que alguma coisa importante está acontecendo do outro lado, porque essa coisa de caricaturizar o pessoal do MBL, acho que não vai por aí, e depois partir para a luta mesmo. Não dá também para você ficar observando o que acontece, tem que disputar o discurso, a rua, a internet… Disputar tudo. Então acho que é um momento em que nenhum de nós pode se furtar do trabalho, porque cada um também tem uma responsabilidade. Chamar para a luta contínua. Até disputando com a sua família, na manifestação, qualquer lugar é lugar de disputa.
Campanha contra estupro e machismo em trotes de ingresso em universidades. FOTO: reprodução
Pesquisa feita com alunos de cursos superiores mostra que há um comportamento machista por trás de atos de violência praticados contra mulheres em campi universitários públicos e privados. Os ataques incluem estupros e assédio sexual, além de outras humilhações às mulheres cometidas em festas estudantis, em recepções aos calouros, no caminho de ida ou volta das salas de aula e outras circunstâncias que favoreçam as agressões.
O levantamento – encomendado pelo Instituto Avon ao Data Popular – foi feito com 1.823 estudantes dos sexos feminino e masculino de todas as regiões do país, sendo que mais da metade dos entrevistados (51%) têm entre 16 e 25 anos, 53% são da classe média e 76% estudam em faculdades particulares.
“A pesquisa foi muito importante para quebrar um grande mito de que a violência contra a mulher está fortemente ligado à escolaridade ou ao nível socioeconômico de quem a pratica. Os muros das universidades não estão impermeáveis ao machismo que acontece no restante da sociedade brasileira”, disse Renato Meirelles, presidente do Data Popular.
Segundo Meirelles, 2,9 milhões de mulheres já sofreram algum tipo de violência física nas universidades. “Isso é mais do que a população de 90% das cidades brasileiras.” Para ele, isso atrapalha o bom desenvolvimento do aprendizado e gera uma consequência para o futuro profissional das mulheres.
Para o diretor, depois de formados, os universitários acabam levando para o seu dia dia os efeitos de um comportamento machista, que é multiplicado, e resulta em distorções no mercado de trabalho. Um exemplo disso é o fato de as mulheres desempenharem as mesmas funções de um homem, mas recebendo salários inferiores.
Do total de alunas consultadas, 42% declararam que já sentiram medo de sofrer violência no ambiente universitário. Outras 36% contaram ter deixado de fazer alguma atividade em função desse temor. Nos relatos, segundo o Data Popular, elas justificaram que “têm a percepção de que não apenas criminosos externos, mas também colegas, professores e parceiros do cotidiano podem ser protagonistas de violências, que vão da desqualificação intelectual ao assédio moral e sexual, chegando ao estupro”.
Os casos de estupro foram apontados por 14% das estudantes, e 11% disseram já ter sofrido tentativa de abuso sexual por estarem sob o efeito de bebida alcoólica. Em relação ao assédio sexual, 73% disseram conhecer casos; 56% declararam-se vítimas e 26% confessaram ter cometido algum tipo de assédio. Há situações de professores terem oferecido “presentinhos em troca de uma prova mais fácil”.
As entrevistas foram feitas pela internet. Uma estudante relatou que “uma menina foi estuprada na festa, dormindo. Em outra festa, soube que deram droga para outra sem ela saber, e também foi estuprada”. Já um dos alunos disse que “tem mulher que não se respeita, que usa umas roupas pra se oferecer”.
Os atos classificados como coerção foram apontados por 12% das alunas entrevistadas, e 11% disseram ter sido coagidas a participar de desfiles, leilões ou outras atividades degradantes. Para 27% dos alunos do sexo masculino é normal abusar de uma garota se ela estiver alcoolizada e 35% deles também não consideram ser violência coagir uma mulher a participar de atividades degradantes como desfiles e leilões.
“Se não desnaturalizar o preconceito e a violência contra a mulher, ela vai continuar nutrindo as próximas gerações”, disse a presidente do Instituto Avon, Alessandra Ginante. Ela ressaltou que, desde os primeiros anos de vida, as crianças são estimuladas a ter comportamentos distintos, o que parece normal para a maioria das pessoas.
Alessandra destacou que é comum, na fase da adolescência, a família deixar os meninos livres, fazendo o que querem, enquanto as meninas são educadas com controle de horário, das roupas e das pessoas com quem se relacionam.
A pesquisa foi apresentada na terceira edição do Fórum Fale Sem Medo e faz parte do movimento 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres
A propósito do Dia do Nordestino, comemorado em 8 de outubro, uma agência de publicidade criou um jogo que expõe orgulhosamente a bela face do povo nordestino, e, ao mesmo tempo, a horrível face do preconceito. Com mais de 32 mil compartilhamentos no Facebook, o “Jogo do Preconceito” (clique no link) viralizou na rede levantando algumas questões sobre o preconceito que os nordestinos sofrem diariamente.
O convite do #JogoDoPreconceito é um só: encontramos duas fotos de pessoas distintas, devendo assim selecionar “quem tem cara de nordestino”. A cada vez que selecionamos uma foto afirmando, segundo os nossos preceitos, quem deve ser o “verdadeiro nordestino” aparecem frases como: “povo ignorante”; “raça de preguiçosos”; “povo burro”; “nojentos” e “gentinhas”.
“O Dia do Nordestino, antes de tudo, é um dia para espalhar o respeito entre as pessoas. Aceitar, aprender com as diferenças e enxergar que somos capazes de evoluir com os nossos erros”, afirma a Agência Bend, criadora do projeto.