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Fim da desigualdade salarial entre homens e mulheres nos EUA, só em 2152

O estudo mostra que a brecha salarial, o chamado “gap” (em inglês), tem efeitos negativos financeiros duradouros. Foto: EBC
Mesmo após mais de um século de luta por igualdade de condições entre homens e mulheres nos Estados Unidos, elas só deverão ter salários equiparados aos deles daqui a 135 anos, em 2152, segundo projeção divulgada na semana passada pela Associação Americana de Mulheres Universitárias (American Association of University Women – AAUW).

O estudo Simple Truth about the Gender Pay GAP (A Simples Verdade Sobre a Desigualdade Salarial de Gêneros, em tradução livre) aponta que, em 2015, as trabalhadoras em tempo integral nos Estados Unidos ganhavam 80% menos que os homens.

Apesar do valor menor, o salário já era reflexo de melhorias constantes para as mulheres no período de 1960 até 2000. Entretanto, desde 2001, observa-se maior lentidão na tentativa de deixar os salários menos desiguais – o que só permitiria que fossem igualados em 2152.

De acordo com o estudo, a diminuição das desigualdades registradas de 1960 em diante estava diretamente ligada ao aumento da escolaridade das mulheres.

O estudo mostra que a brecha salarial, o chamado “gap” (em inglês), tem efeitos negativos financeiros duradouros. Em 2015, 14% das mulheres norte-americanas entre 18 e 64 anos de idade, viviam abaixo da linha de miséria, enquanto esse percentual entre os homens é de 11%.

Mudanças nas estruturas familiares também têm afetado a vida das mulheres. Em 2012, a proporção de mulheres chefes de família atingiu o patamar de 40%. Por isso, diz o documento, os índices de pobreza aumentaram, porque cada vez mais mulheres passam a sustentar sozinhas a família, sem uma melhoria salarial equiparada à condição dos trabalhadores.

Sem igualdade

Em outra estimativa baseada na participação por gênero, o Centro de Pesquisa Pew Reseacher avalia que a participação das mulheres no mercado de trabalho deve atingir o percentual máximo em alguns anos, mas deve seguir uma tendência de ser sempre minoria e nunca chegar aos 50% da força laboral norte-americana.

A conclusão do Pew Reseacher baseou-se em números oficiais do Bureau of Labor Statistist. Na análise do centro de pesquisa, a participação de mulheres no mercado vem crescendo e poderá atingir o pico de 47,5% em 2025 e depois começar a diminuir.

A pesquisa mostra que o crescimento das mulheres como força de trabalho foi constante até o começo dos anos 2000. Depois iniciou-se um período de estagnação e ligeira queda.

Durante a década de 1960, a força de trabalho das mulheres aumentou, em média, três vezes mais rápido que a masculina. Em 2000, 59,9% das mulheres estavam no mercado de trabalho, contra 37,7% em 1960.

Mas após os anos 2000 iniciou-se um declínio. Para os pesquisadores, a principal razão é a maternidade. Mães com filhos menores de 18 anos têm menos possibilidade de ter um trabalho em tempo integral.

Nos Estados Unidos, a educação só é universal e gratuita a partir dos 5 anos, na pré-alfabetização. A mãe que trabalha fora e tem filhos pequenos precisa pagar por serviços de creche ou babás que costumam ser caros no país.

Várias mulheres abandonam o trabalho nesta fase ou partem para funções de meio-período, que dificilmente levam a promoções internas nas empresas.

Jennifer Marilyson, de 34 anos, têm dois filhos: uma de 4 anos e outro de 1 ano e meio.

Ela conta que deixou o cargo de gerente de banco quando engravidou da filha mais velha.

“No começo, eu pensei em ficar. Mas a licença maternidade era de 14 semanas e eu fiquei muito triste de ter de deixar minha filha.”

Ela disse que conversou com o marido e, depois de fazer várias contas, viu que seria mais caro pagar um serviço para cuidar da filha pequena do que ficar em casa.

Jennifer diz que não se arrependeu no começo e que olhava para a filha pequena e sentia que havia feito a escolha certa. Mas depois, ao engravidar do segundo filho, ela  viu mais distante o projeto de voltar a trabalhar.

“Eu queria ter outro filho, mas se eu não conseguia pagar creche para um, imagine para dois”, disse, sorrindo.

Jennifer agora espera voltar a trabalhar quando seu filho mais novo completar 5 anos e meio, idade necessária para a entrada no “kindergarden”, jardim de infância das escolas públicas norte-americanas.

Ela diz que até lá terá completado pelo menos nove anos fora do mercado de trabalho.

“Às vezes eu sinto falta de trabalhar. E penso que é muito cruel. Como gerente, eu ganhava menos que outros gerentes homens e, agora, quando eu voltar a trabalhar, tenho que começar tudo de novo, provavelmente, ganhando menos de novo e eles vão estar à frente”, comenta.

A luta e o legado de Chico Mendes

Foto- Reprodução:theguardian.com
Foto- Reprodução:theguardian.com

* Alex Tajra

No coração da maior floresta do mundo, os últimos seringueiros do Brasil buscam continuar vivendo do extrativismo, mesmo com a constante desvalorização do látex. Nos áureos tempos da borracha, a região, que seria o futuro estado do Acre, foi o centro de uma disputa diplomática entre brasileiros e bolivianos. Em 1903, portanto há 110 anos, foi necessária a intervenção do Barão do Rio Branco para que o território, habitado em sua maioria por brasileiros, pertencesse definitivamente ao Brasil.

Hoje, as dificuldades ainda são imensas. Ameaçados por posseiros, os seringueiros do Acre são os alvos principais de agricultores, que os intimidam o tempo todo. A luta pela terra neste rincão escondido do país gera mortes, despedaça famílias, mantém os seringueiros em constante estado de alerta. O sonho de envelhecer vivendo na floresta é uma batalha diária, que já vitimou pessoas simples e líderes, como Wilson Pinheiro e Chico Mendes.

O assassinato de Chico Mendes, em Xapuri, em 1988, foi o estopim para que as reivindicações dos povos da floresta chegassem ao poder público. Porém, 25 anos depois, o que se vê é o abandono de muitos projetos e cooperativas idealizadas pelo líder dos seringueiros.

Google homenageou o aniversário do seringueiro e líder sindical Chico Mendes – Foto- Reprodução:Google
Google homenageou o aniversário do seringueiro e líder sindical Chico Mendes – Foto- Reprodução:Google

Com o látex pouco lucrativo, os extrativistas buscam novas formas de sustento. Plantações de cacau e produção de castanha para exportação são atividades que garantem a sobrevivência dos acrianos que resistiram. Resistir parece ser o verbo correto para se pronunciar no Acre. Assim como os extrativistas, a floresta resiste às ações de madeireiras.

A reportagem do programa Caminhos da Reportagem foi até as margens do Rio do Rola, conversou com quem sempre viveu ali, entrevistou quem está ali só pelo lucro. No papel, todas as madeireiras dizem fazer o manejo sustentável das áreas exploradas. Na prática, é visível que o corte ilegal da vegetação amazônica aumentou nos últimos anos.

Nada mais distante do ideal que Chico Mendes tinha para a região, onde os trabalhadores, reunidos em cooperativas, conseguiriam a sobrevivência respeitando os limites da floresta. O Acre, com sua história mais do que centenária; Chico Mendes, sua luta e seu legado; e a dura realidade dos povos da floresta; são os temas deste Caminhos da Reportagem.

Cruzamentos históricos

  • Vinícius Mendes

Nos anos 1960, a tradutora e intérprete alemã Margarethe Hamich se mudou com o marido para a pequena Bietigheim, no sudoeste da Alemanha, mais de uma década antes de sua junção à vizinha Bissingen. “A cidade era muito feia. Falei que ficaria no máximo três anos, mas cá estou eu”, afirma a octogenária Margarethe, hoje também uma guia especializada na joia da coroa do lugar, as construções medievais feitas com enxaimel, estruturas de hastes de madeira, encaixadas em posições horizontais, verticais ou inclinadas, com paredes de barro ou tijolos. Com cerca de 42 mil moradores, Bietigheim-Bissingen faz parte de uma rota criada pelo órgão oficial de turismo da Alemanha (DZT, na sigla em alemão) nos anos 1990, que percorre cerca de cem cidades ao longo de três mil quilômetros, de Stade, à beira do rio Elba, no norte do país, a Meersburg, no Lago Constança, no sudoeste.

Ao todo existem mais de 2,5 milhões de construções do gênero na Alemanha. A Brasileiros visitou algumas delas, não somente em Bietigheim-Bissingen, mas também em Besigheim, Schorndorf, Blaubeuren, Pfullendorf, Esslingen, Biberach e Meersburg, num dos seis segmentos da Fachwerkstrasse (o nome da rota em alemão), que abriga 26 cidades com enxaimel, em construções que datam do século 13 ao 19. Em todas, as técnicas construtivas e os detalhes arquitetônicos funcionam como uma moldura para o interessante retrato histórico oferecido pela rota.

As casas mais antigas do trecho ficam em Biberach e Esslingen. Na primeira, algumas das casas com enxaimel revelam, por meio da divisão de seus cômodos, como era a vida doméstica e citadina nesses pequenos povoados alemães, nos séculos 14 e 15. Por exemplo: uma característica marcante era o andar térreo reservado ao abrigo de animais, ao armazenamento de alimentos e à atividade econômica de seu proprietário, como a panificação ou o curtume, de que a família inteira participava. Os dormitórios ficavam nos andares superiores e o banheiro ainda era elemento praticamente ausente do vocabulário arquitetônico. Um pequeno apêndice fazia as vezes de WC, com escoamento para o vão entre as casas. Tempos insalubres.

Outro destaque de Biberach é a Weberberg, área da cidade que no século 16 chegou a reunir cerca de 400 teares, ocupando 1/4 da população. Um dos highlights do roteiro do enxaimel, o lugar se tornou um ímã para profissionais como ceramistas, escritores, designers e arquitetos.

Em Esslingen, por sua vez, a antiga praça do mercado da cidade abriga um grandioso exemplar de enxaimel, onde fica a Kessler-Haus, mais antiga fabricante de espumantes (Sekt, em alemão) do País, e a primeira de vinhos do gênero fora da França. Aberta em 1826, a Kessler ocupa um complexo com adegas e construções que datam do início do século 13, e que já haviam pertencido à Igreja. O lugar ideal para Georg Christian Kessler aplicar os conhecimentos de produção de champanhe, aprendidos diretamente com Barbe-Nicole Clicquot, a famosa viúva.

Já em Bietigheim-Bissingen, a casa-museu Hornmoldhaus, antiga residência do escrivão e oficial de justiça Sebastian Hornmold (1500-1581), revela a transição entre dois estilos de enxaimel, do alemânico (fim da Idade Média) para o francônio (início da Idade Moderna), com elementos construtivos passando a ter função meramente ornamental, como a cruz de Santo André, um “X” de madeira muitas vezes aparente na estrutura.

Mas não só isso. Lá dentro, uma maquete revela como é o esqueleto de hastes da construção, ainda sem o preenchimento de paredes com barro ou pedra. As pinturas nas paredes e no teto da Hornmoldhaus falam um pouco do estilo de vida na Alemanha durante a Renascença. Além de ornamentos florais, dos brasões da família Hornmold e da Casa de Wurtemberg, há desenhos que criticavam a Igreja Católica e o clero. Criada nos anos 1980, a casa-museu tenta contar um pouco dos 1.200 anos de história da cidade.

Na pequena Blaubeuren, mais história. As águas do lago Blautopf (panela azul, em alemão) servem de cenário para construções de enxaimel do século 15, muitas delas à beira dos canais que cortam a cidade. Há também pré-história: Blaubeuren abriga em seu principal museu a Vênus de Hohle Fels, a mais antiga figura feminina feita pelo homem, a partir de marfim de mamute. Descoberta em 2008, a Vênus tem entre 35 mil e 40 mil anos. E faz o enxaimel parecer até recente.

Uma tarde na Fundação Casa

Matéria especial da semana- Uma tarde na Fundação Casa
Matéria especial da semana- Uma tarde na Fundação Casa
  • Vinícius Mendes

Obstáculos, como muralhas, alambrados e portões, separam os adolescentes que ocupam o centro de atendimento socioeducativo Casa Governador Mário Covas da Fundação Casa, na Vila Maria, zona norte de São Paulo, do trânsito da pista local da Marginal Tietê. Para entrar no edifício, os visitantes precisam assinar um caderno, deixar celulares no balcão e abandonar ideias preconcebidas do lado de fora. Nesse ambiente, encontram-se 64 jovens (capacidade máxima da casa) entre 15 e 18 anos incompletos que vivenciam pela primeira vez a experiência de estarem confinados em uma instituição socioeducativa. Qualquer um deles pode ser protagonista do polêmico debate em curso no País: a redução da idade penal de 18 para 16 anos em alguns casos. A Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional, que prevê redução da maioridade nos casos de crimes hediondos – como estupro e latrocínio – e para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Se a medida for aprovada pelo Senado, infratores de 16 e 17 anos vão cumprir pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos.

Inaugurada em novembro de 2014, a Casa Governador Mário Covas conserva as paredes pintadas de verde-claro e os acabamentos, como batentes e janelas, em tons da mesma cor, só que mais escuros. Tem oito dormitórios, cada um com quatro beliches, e várias salas onde os meninos têm aulas de ensino básico, desenho, computação, confeitaria, panificação. O prédio ainda abriga uma quadra poliesportiva, mas eles preferem mesmo jogar futebol.

Todos, sem exceção, têm o cabelo cortado ao estilo militar por “motivos de higiene” e usam uniforme azul-marinho com um número de identificação – as toalhas, os lençóis, as saboneteiras, tudo tem um número. Edson Luis de Oliveira, diretor do centro de atendimento, explica que esse método, semelhante ao usado entre presos adultos, tem apenas função administrativa na Fundação Casa. “Eles não são chamados pelos seus números. Utilizamos essa prática apenas para organizar melhor as nossas atividades.”

“Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.

Pelos corredores, Oliveira fala com um e com outro, sempre chamando pelo nome – nesta reportagem, a identidade dos internos será mantida em sigilo. “Sua cama não está tão bem arrumada, hein, João?”, diz o diretor. Com um leve sorriso, ele continua: “Tudo bem, pelo menos está tudo dobrado”. Na sequência, explica: “Antes, eles deixavam tudo bagunçado. Até o dia em que os que estão no quarto cinco arrumaram as camas sem que ninguém desse uma ordem. Agora é uma concorrência para ver quem deixa o lençol mais esticado”.

O ambiente, apesar de contido, tem espaço para esse tipo de conversa entre diretoria e interno. Em um dos corredores, uma tabela chama a atenção porque informa quem é quem no centro. Nela estão escritas “as referências” de cada menino – os profissionais da equipe psicossocial.

O refeitório serve para as refeições e também funciona no improviso. No dia da visita, enquanto um dos funcionários colocava um filme para rodar na TV, outro deixava três caixas cheias de livros sobre uma mesa. Alguns meninos se interessaram pelos livros, mas a maioria preferiu assistir ao filme. Uma das caixas só tem Bíblia, presente das duas organizações evangélicas – Igreja Universal do Reino de Deus e Congregação Cristã do Brasil – que realizam cultos semanais na fundação. A frequência dos meninos nesses encontros é irregular. “Tem dias que lota. Mas tem dia que vão quatro, cinco meninos”, diz Oliveira.

A Casa Governador Mário Covas foi a 71a aberta desde 2006, quando o nome da instituição mudou de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM) para Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Mais do que o rebatismo, a ideia foi melhorar o atendimento do Estado aos adolescentes em conflito com a lei. Uma das reformulações foi a descentralização da entidade, realizada por meio da construção de unidades no interior do Estado, o que reduziu o número de rebeliões, que desgastaram a imagem da antiga FEBEM.

De acordo com o último relatório da Fundação Casa, de agosto último, havia 10.035 jovens na instituição em todo o Estado de São Paulo. Desses, 7.328 (73,2%) tinham entre 15 e 17 anos e 42,9% estavam privados da liberdade por roubo qualificado. Dados de 2013 da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SINASE) mostram que o País possuía 23.066 menores de 18 anos cumprindo medidas socioeducativas. Ao fazer a comparação, chega-se a um resultado alarmante: o Estado de São Paulo comporta 43% do total de adolescentes em conflito com a lei.

O que eles contam
João e Mateus, ambos de 16 anos, acompanharam a nossa visita, em meio às suas lembranças, rotinas e regras. Ao longo do encontro, percebe-se que há normas bastante peculiares lá dentro, como pedir “licença” cada vez que cruzam com qualquer pessoa, andar sempre com as mãos para trás, falar muitos palavrões e terminar as frases invariavelmente com “senhor”. Eles contam que tiveram o primeiro contato com livros na Fundação Casa. João acabou de ler Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez, mas admite ter gostado mais da história de A Hora da Estrela, da brasileira Clarice Lispector. Mateus também fala sobre sua leitura preferida. Foi um livrinho pequeno e surrado chamado A Última Pedra, de Rogério Formigoni, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. “Já leu esse, senhor?” Ao receber a negativa, ele conta que o livro trata de um jovem viciado em crack que consegue se reerguer.

Mas os meninos também leem jornais e revistas. Por isso sabem argumentar sobre o que muito lhes interessa: o debate em torno da diminuição da idade penal de 18 para 16 anos para crimes hediondos. João parece mais familiarizado com o assunto, enquanto Mateus acompanha as palavras do colega para formular a sua opinião. “Olha que louco, senhor. Os caras fizeram mais unidades da Fundação Casa do que escola. Não é uma contradição, senhor?”, pergunta João. Antes que pudesse continuar, Mateus diz: “No meu bairro não tem escola nem posto de saúde, senhor”.

Ninguém passa incólume por uma temporada de privação de liberdade. “Eu odeio este lugar”, diz João. “Mas seria ingrato se não dissesse que isso aqui mudou minha vida, senhor. Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor? Jamais leria um livro lá fora, senhor. Por isso tenho de admitir que isso aqui mudou minha vida. Vou sair daqui e nunca mais fazer cagada.”

João está na Fundação Casa há um ano, desde setembro do ano passado. Ele se tornou interno depois de assaltar uma mulher em uma rua do Jardim Brasil, bairro no extremo norte de São Paulo, onde sua família mora. Na ação, João usava uma faca de cozinha. Ele conta que foi flagrado por policiais, colocando a ponta do objeto cortante no abdômen da vítima. Na hora, pensou em tentar fugir, mas foi fortemente segurado pelo policial. “Fiquei com o‘cu na mão’. Nunca tinha entrado num camburão, senhor. Fiquei lá até a minha mãe chegar. Ela estava indo para o trabalho e viu os policiais na rua. Acho que se tocou que era eu. Me deu um conforto quando ela entrou na viatura, que o senhor nem imagina. Ela estava chorando, mas foi até a delegacia, me levou lanche, acompanhou tudo.”

Nunca tinha lido um livro no ‘mundão’, senhor. Aí vim para cá e conheci todos esses caras. Agora estou lendo um livro que conta a história do mundo, dos hominídeos, do homo erectus, dos homens que desceram das árvores e começaram a andar com duas pernas. É louco, não é, senhor?

Antes da internação, João usava drogas, basicamente cocaína. Entrou nessa quando tinha 11, 12 anos. Já tinha cometido outros roubos para sustentar o vício. Seu irmão mais velho, que gerenciava um ponto de venda de drogas, também está privado de liberdade em uma penitenciária do interior do Estado. Os outros dois não tiveram experiências melhores: um está detido por tráfico de drogas e outro, que recentemente saiu da cadeia, voltou para as ruas. João não sabe nada sobre o emprego da mãe, mas tem certeza de que ela “não está ganhando bem”. O diretor Edson Luis de Oliveira diz que João “não é criminoso”. O problema dele seria o vício. “Quando chegou aqui, estava acabado. Hoje é outro menino.”

Por enquanto, João tem sonhos aparentemente prosaicos para quando recuperar a liberdade, provavelmente nos próximos dias. “Vou pegar essa marginal aí, ir até o Shopping D, comprar um BK Picanha, um saco de batata frita, um milk shake de Chokito e assistir qualquer filme que estiver passando no cinema”, diz, encarando o arame farpado no topo das muralhas do prédio.

Mateus é mais calado. Enquanto João fala, ele prefere rir da espontaneidade do único amigo que fez lá. Os dois andam sempre juntos. Mateus também está internado desde setembro do ano passado, mas chegou à Vila Maria em dezembro, depois de ficar no centro de atendimento do Brás, na região central da cidade. Ele diz que nunca se viciou em drogas e roubava para pagar desejos materiais que os pais não podiam lhe dar.

“Eu não vim de uma família rica nem pobre, mas era bem de vida, senhor. Desde pequeno minha mãe saiu de casa, fui criado pelo meu avô. Fiquei até os 11 anos lá. Ele tentou me molestar, eu e minha tia, senhor. Falei para a minha mãe, mas ela não acreditou.” Mateus conta que a mãe só começou a dar conta do problema quando ele e a tia foram visitá-la. “Minha tia chorou e minha mãe viu que eu estava contando a verdade.” Naquele mesmo dia, os três foram à delegacia para denunciar o avô. A partir de então, Mateus toma remédios para controlar o trauma. “É difícil esquecer, senhor. Às vezes, estou com a cabeça vazia e vem.”

O avô acabou preso, Mateus foi morar com a mãe, no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Um dia, foi flagrado com um cigarro de maconha por uma vizinha, que contou para a sua mãe, que, por sua vez, decidiu dividir o assunto com o pai de Mateus. “Ele me telefonou e disse que iria me matar. Meu pai não me batia, mas meu tio sim.” João interrompe, eufórico: “Olha aí”, aponta em direção à parte superior da orelha direita de Mateus, que tem uma cicatriz, aparentemente fruto de um corte profundo.

Com medo da reação do pai, Mateus fugiu de casa no mesmo dia do telefonema. “Fiquei na rua. Fui morar na casa de uns amigos e comecei a traficar, senhor. Meus pais até me procuraram, falaram para eu voltar para casa, mas disse que não queria porque eles estavam querendo me agredir.” Um mês depois, decidiu roubar e foi pego. Ele não tem previsão de deixar a unidade, apesar dos constantes elogios que recebe dos coordenadores, que o consideram “observador” e “inteligente”.
No desfecho do encontro, recuperamos nossos pertences na recepção da unidade. Os portões se fecham, ouve-se o som forte da tranca de ferro. Do lado de fora, às margens da Marginal Tietê, fica a questão: adolescentes em conflito com a lei ou a sociedade em conflito com os adolescentes?

Sebastião Salgado: documentário e reparação

Foto- Leila Salgado:Amazonas:Sony Pictures Classics
Foto- Leila Salgado:Amazonas:Sony Pictures Classics
  • Ligia Braslauskas

É inegável a força do nome do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Entre os grandes da fotografia mundial, é mestre na arte de construir narrativas densas por meiode um jogo fascinante de luzes e sombras. Não por acaso, sua obra e vida estão retratadas na produção cinematográfica O Sal da Terra. Apresentado no Festival de Cannes de 2014, ganhou o Prêmio Especial do Júri, da seção Um Certo Olhar, e foi eleito o Melhor Filme pelo público no Festival de San Sebastián, na Espanha. Este ano, concorreu ao Oscar, na categoria Melhor Documentário. Dirigido por Juliano Ribeiro Salgado, filho do fotógrafo, e pelo diretor alemão Wim Wenders, O Sal da Terra foi selecionado em um universo de 134 inscritos na academia, mas não levou a estatueta, que ficou com Citizenfour, dirigido pela americana Laura Poitras, baseado na história de Edward Snowden, o ex-analista da CIA que vazou informações sigilosas e comprometedoras do governo dos Estados Unidos.

Teria sido ótimo vencer, mas vale lembrar que outras produções que colocaram o Brasil sob os holofotes também foram indicadas, não ganharam e entraram para a história. Caso, entre outros, de Central do Brasil (produção Brasil-França) e Lixo Extraordinário (Brasil-Reino Unido). Nesta edição do Oscar, os brasileiros agraciados indiretamente foram Vivian Aguiar-Buff e Antonio Andrade, que fazem parte da equipe técnica de Operação Big-Hero, da Disney, vencedor da categoria Melhor Animação.

O Sal da Terra, produção brasileira, francesa e italiana pre- vista para entrar em circuito comercial no dia 26 deste mês de março, conta um pouco da longa trajetória de Salgado e apresenta os bastidores do ambicioso projeto Gênesis, expedição que teve início em 2004, com o objetivo de registrar regiões do planeta inexploradas. Parte do resultado dessa viagem, que terminou em 2012, está no livro homônimo da expedição, pela editora alemã Taschen.

Em O Sal da Terra, os dois diretores contam o envolvimento que têm com a obra de Sebastião Salgado e o próprio fotógrafo faz observações sobre seu trabalho. Quem assiste ao documentário, se sente um tanto em viagem, tamanha a beleza das imagens. Wim Wenders, que dispensa maiores apresentações, surpreende o espectador. O ficcionista que enriqueceu o Novo Cinema Alemão, movimento que surgiu no início dos anos 1960, fala do choque emocional que sentiu quando se deparou, pela primeira vez, com uma imagem feita pelas lentes de Sebastião. Foi uma fotografia de 1986, dos trabalhadores de Serra Pelada, no sudeste do Estado do Pará, à procura de pedras preciosas. Essa imagem faz parte de uma série que retrata questões sociais. Como se sabe, na época do registro, Serra Pelada era cenário de um contexto tenso e de grande perplexidade humana.

Emocionante também a participação de Juliano, 41 anos. O filho do homem de tantas imagens belas e raras, que nasceu e cresceu na França, revela que não tinha uma relação estreita com o pai. As longas viagens e as ausências de casa por causa do trabalho provocaram uma distância entre os dois. Em entrevista à Brasileiros, Juliano afirma que sentia muita falta do pai, apesar de entender que havia algo de especial no trabalho dele. “Eu tinha consciência de que meu pai fazia algo grande, que poucos conseguem fazer. Eu tinha uns 10 anos, quando seu trabalho começou a ter mais destaque, as fotos dele saíam nas primeiras páginas de jornais franceses. Saber que Tião havia encontrado um lugar para a fotografia amenizava a ausência que eu sentia dele. Mas guardei certo ressentimento, que só mudou com a realização do filme.”

Depois de um conversa com Wenders, Juliano concluiu que compartilhava da mesma opinião do amigo alemão sobre Sebastião Salgado: mais do que um grande fotógrafo, ele é dono de um trabalho particular e precioso, que o tornou uma espécie de testemunha ocular, no sentido literal da palavra, do passado recente da humanidade. Perceber essa dimensão foi um dos principais pontos de partida de O Sal da Terra. Mas a guinada que permitiu a realização do documentário aconteceu quando Juliano acompanhou o pai em uma expedição à tribo indígena Zo’é, nativa e isolada, na região noroeste do Pará.

Lá, Juliano fez muitas fotos e vídeos, e na volta tomou a decisão de revelar ao pai o que tinha capturado em suas lentes. “Ele ficou emocionado com o que viu e isso tocou nossa relação. Meu pai é uma pessoa da imagem, entende dessas coisas. Esse momento abriu a porta para que eu pudesse pensar nesse filme, que fala sobre ele. Tião aceitou meu olhar”, diz Juliano à reportagem da Brasileiros. O filme não poderia ser diferente. Boa parte da história de Sebastião Salgado é contada por meio de suas fotografias, imagens de arquivo e recentes, feitas durante a expedição Gênesis, além de filmagens em preto e branco e coloridas.

Mineiro de Aimorés, Sebastião Salgado nasceu em 1944. Ainda jovem, seguiu para Vitória, em busca de formação universitária em Economia, na Universidade Federal do Espírito Santo. Depois, seguiu para São Paulo, onde fez mestrado, na mesma área, na USP. Foi no campus acadêmico que Sebastião Salgado conheceu Lélia Deluiz Wanick, com quem se casou.

Nos anos 1960, engajados em movimentos políticos contra o regime militar, eles foram obrigados a deixar o Brasil para viver em Paris.

Na capital francesa, Sebastião Salgado, ainda no papel de economista, começou uma carreira promissora no Banco Mundial. Mas a vida dá muitas voltas. Lélia ganhou de presente uma câmera fotográfica que mudou radicalmente a vida do marido. Com essa máquina, ele descobriu sua nova paixão. Foi um sentimento tão intenso que fez com que ele largasse tudo para se dedicar totalmente à fotografia.

É o que conta O Sal da Terra, um documentário que apresenta uma seleção extraordinária de imagens. É tão exuberante plasticamente que quase não se percebe a trilha sonora, assinada pelo ator e diretor francês Laurent Petitgand. Mas é justamente essa união de elementos sutis que faz o filme ter rara beleza, um retrato lírico de um fotógrafo que vê o mundo com todas as complexidades, contradições e poesia.

Leia aqui a entrevista completa com Juliano Ribeiro Salgado.