Em evento de lançamento na galeria Luisa Strina, Cildo conversou com os organizadores Guilherme Wisnik e Diego Matos.
A pesquisa presente no livro Cildo – estudos, espaços, tempo, lançado pela Ubu Editora, é uma das concorrentes à categoria Sérgio Milliet, do Prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Organizada por Guilherme Wisnik e Diego Matos, a edição mergulha no universo de Cildo Meireles, um dos artistas contemporâneos brasileiros mais cultuados.
Outra produção da Ubu, o livro 3nós3: Intervenções Urbana, fruto de pesquisas de Mario Ramiro,é outro que concorre na mesma categoria, além de Artes Visuais, Coleção Ensaios Brasileiros Contemporâneos, organizado por Fernando Cocchiarale, André Severo e Marilia Panitz e editado pela Funarte.
Cildo participou do lançamento do livro, na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. À esquerda, o artista autografa o livro; à direita, a equipe da Ubu Editora e os organizadores.
Leia artigo sobre o livro, publicado na edição 42 da revista ARTE!Brasileiros.
A metamorfose na obra do artista
Por Tiago Mesquita
O livro Cildo – estudos, espaços, tempo, lançado pela Ubu Editora, retrata a trajetória de Cildo Meireles a partir de seus procedimentos. Os organizadores Diego Matos e Guilherme Wisnik reuniram cerca de quarenta trabalhos, realizados ao longo de cinquenta anos de carreira. As obras são apresentadas por meio de fotografias de exposição, notas do artista, desenhos e projetos. Conhecemos como os trabalhos vieram a público, mas também os passos de elaboração de Cildo Meireles e parte de sua repercussão crítica.
Os vestígios nos ajudam a reconstruir os passos da obra. Acompanhamos as metamorfoses de alguns trabalhos importantes ao longo do tempo e entender a forma que eles assumem em diferentes fases: idealização, desenho, implementação e uso. A documentação veio do arquivo do próprio artista e é arrumada em ordem cronológica.
A relação dos trabalhos no livro nos faz pensar uma relação entre as ideias do que veio antes e o que veio depois. O livro é completado por uma excelente fortuna crítica que explora a interlocução da obra com a história da arte brasileira e estrangeira, a relação com diversas formas teóricas e os sentidos que a obra ganhou quando escapou da mão do seu autor.
O livro estuda as variações de algumas ideias e o sentido que elas ganham em diferentes formas de implementação inclusive. Por isso, os trabalhos mostrados não possuem nem uma técnica definida, tampouco pedem do espectador uma forma de atenção convencional. Talvez por isso trabalhos mais objetuais, como Ouro e paus, Estojos de geometria, Árvore de dinheiro, que pedem uma forma de contemplação mais tradicional, tenham ficado de fora da narrativa do livro.
A noção de estudo organiza a obra. O estudo seria um refinamento dos enigmas que colocam as convicções ideológicas em xeque. Seria um teste dessas percepções. Assim, faz lembrar o experimento científico, o teste de hipóteses.
Guy Brett, em um texto de 2005, republicado no livro, afirma que a produção brasileira da geração imediatamente anterior a Cildo Meireles confiou nos sentidos. Essa investigação da percepção foi uma maneira de encarar os limites de uma racionalidade burocrática. A arte devia se haver com esses limites e buscar uma nova relação com a vida.
Artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica se distanciam da contemplação racionalista tradicional para criar relações entre sentidos que estavam aparentemente desconectados. Assim, criaram situações ou ambientes, em que essas formas sensuais de perceber funcionam em alta voltagem. Corpo e mente, razão e sensibilidade, até mesmo as formas de convívio seriam refeitas por essas relações mais diretas e comunitárias. Essa promessa escapista, romântica e sensorial, não parece estar diante de Cildo quando ele começa os seus primeiros trabalhos.
O artista vem da geração batizada por Frederico Morais de “geração AI-5”. As promessas de modernização e a construção de uma percepção utópica não estavam no horizonte. As sensações em seu trabalho, daí em diante, se tornam espaço para a dúvida. Como aprendemos com o texto de Frederico, a experiência sensorial é colocada em dúvida. Assim, a aparência das esferas na instalação de Eureka/Blindhotland (1970-1975) é desmentida pelo seu peso e os sons amplificam o que Sônia Salzstein nomeia como confusão dos sentidos.
Por isso, o espaço dos primeiros trabalhos de Cildo, os Espaços Virtuais: Cantos (1967-8), não é expansivo. Ele se parece como um beco sem saída. O colorido de Desvio para vermelho (1967 – 84) não potencializa a percepção para além dos limites da racionalidade: o vermelho torna os objetos homogêneos. As experiências são negativas, de se procurar algo pelas sensações, pelos instrumentos da razão e não encontrar. O estudo parece esgotar esses saberes, em um exercício cético permanente da dúvida.
Cildo Meireles é provavelmente um dos artistas contemporâneos que mais influenciou a arte contemporânea engajada, à sua revelia. Diferente de muitos que usam a arte como veículo de convicções, mas é crítica ideológica, a crítica da maneira como pensamos quando acreditamos não pensar. A sua força política é a radicalização da incerteza e a indefinição. Esse livro nos traz a força da dúvida radical.
"O prestígio do Judiciário levou a uma interpretação pouco usual da lei". FOTO: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
*Por Lincoln Secco eFernando Sarti Ferreira
A História nos ajuda a refletir sobre o presente com o mais perigoso dos métodos: o das comparações, como dizia o historiador francês Fernand Braudel. O que há então de comum entre a crise política que desembocou no golpe de abril de 2016 e o ciclo das revoluções tenentistas entre 1922 e 1935?
Os chamados “tenentes”, filhos das camadas médias urbanas da República Velha, eram oficiais de média patente, portanto sem o comando da instituição; seus principais líderes foram expulsos e passaram anos em meio a uma atividade conspiratória com civis.
O ideário tenentista consistia em defender a reforma eleitoral e o combate à corrupção. Queriam derrubar o governo para entregá-lo a um civil honesto. Uma ideologia tão ambígua quanto o destino de muitos de seus atores: alguns ex-tenentes aderiram ao comunismo (como o principal deles: Prestes) e outros se envolveriam com o integralismo e em várias tentativas de golpe de Estado.
Como o seu discurso correspondia à antiga campanha civilista contra a fraude eleitoral e era facilmente manipulável pelas oligarquias dissidentes, estas assumiram a direção política do movimento em 1930 e os tenentes viram-se marginalizados.
Os juízes em cena
O Judiciário não tem os mesmos poderes das Forças Armadas. Depois do declínio do tenentismo, toda ação golpista de natureza militar foi invocada sob as ideias de hierarquia, disciplina e centralização de comando. Juízes não exercem diretamente a violência – apesar de sempre ratificá-las – e não têm unidade. Muitas decisões de seus membros são invalidadas por cortes superiores.
Acontece que, desde o julgamento da ação penal 470 (conhecida como mensalão), aquele poder foi marcado por um protagonismo jamais visto em nossa história. Ele se formou mediante o conluio da mídia e de uma base social de classe média militante contra o PT. Tudo sob a liderança improvável de Joaquim Barbosa.
Ele caiu como uma luva para uma direita racista se eximir de culpa no ataque cerrado ao governo que, apesar de escolhas antipopulares, dirigiu políticas de igualdade social, de gênero e racial que nunca haviam sido implantadas no País.
O prestígio do Judiciário levou a uma interpretação pouco usual da lei. A teoria do domínio do fato, invocada por Joaquim Barbosa, só foi usada daquela vez. Assim como ele mesmo. Uma vez punidos o tesoureiro e dois ex-presidentes do PT, Barbosa e sua teoria deixaram o palco. Afinal, nos bastidores ninguém pensou em mantê-la no roteiro para cancelar a anistia aos criminosos da ditadura militar ou punir presidentes de outros partidos.
A ambição justiceira vem desde o julgamento do mensalão. Contou com o conluio da mídia e os aplausos de uma classe média militante contra o PT. Para uma direita racista se eximir de culpa, caiu como uma luva a liderança de Joaquim Barbosa
Em 2013, outra inovação: a delação premiada foi ampliada para organizações criminosas. Assim foi possível coagir grandes empresários a delatar seletivamente em troca de penas alternativas. Esse foi o caso da negativa do Ministério Público Federal de aceitar a delação da Odebrecht em março de 2016, uma vez que ela extrapolava o alvo da operação: o financiamento por meio de caixa 2 do PT, e não dos outros partidos que a empresa prometeu entregar.
Essas modificações foram acolhidas por um sistema que estava previsto, mas não realizado na Constituição de 1988. O Ministério Público ganhou foros de um novo poder no Estado e a Polícia Federal deixou de ser um órgão policial do Executivo para atuar com autoridade política, embora seja provável que a hipertrofia desses poderes só tenha se exibido sob a inépcia do PT.
A disputa política de 2014, apesar de tudo, apontava a continuidade daquele partido na Presidência. Isso bastou para que se invocassem os comediantes sérios do II Ato.
A operação Lava Jato
A ambição justiceira dos membros da força-tarefa da Lava Jato, todos aprovados em disputadíssimos concursos públicos, origina-se principalmente de sua origem de classe, assim como os tenentes. Estaríamos no terreno da comparação ou da longa duração braudeliana em que certas realidades se modificam com uma lentidão mais do que secular?
A verdade é que a classe média se move como um pêndulo, oscilando entre as representações políticas das populações superexploradas do nosso País e o projeto de modernização conservadora das classes dominantes.
Ao ter seus espaços antes privilegiados – universidades federais, aeroportos e vias de trânsito – ocupados por setores palidamente beneficiados pelo tripé distributivista – programas de transferência de renda, ampliação do crédito para o consumo e elevação do salário mínimo – construído ao longo dos governos do PT, os setores urbanos novamente se aferraram à sua particular visão de mundo de quem não produz e não se apropria do que é produzido, apenas gerencia. Isso gera uma leitura mística e voluntarista do mundo, em que haveria o combate entre o bom e o mau, o corrompido e o puro.
O tenente João Cabanas, durante a Revolução de 1924, relata que alguns dias após o início do levante na cidade de São Paulo uma multidão invadiu e saqueou os moinhos das empresas Matarazzo e Gamba no bairro operário do Brás. Na frente desses estabelecimentos, Cabanas relata uma espécie de comício improvisado por trabalhadores de todos os tipos que listavam as mazelas que os afligiam. É claro que havia protestos contra a corrupção, mas também denúncias contra os senhores Matarazzo e Gamba, os “exploradores do povo”, os grileiros e grandes proprietários, “essa meia dúzia que formava uma casta onde as posições eram herdadas entre pais, filhos, sobrinhos, etc”.
João Cabanas depois vinculou-se definitivamente às lutas populares. Ao contrário de alguns magistrados atuais, os tenentes arriscaram suas vidas, viveram na clandestinidade e não auferiam privilégios, muito menos altos salários como os de alguns conhecidos juízes.
Moralismo
A operação Lava Jato tem um caráter seletivo e já mostrou que não se trata de uma cruzada contra o corrupto e violento empresariado brasileiro e seus representantes no Estado. Os justiceiros atuais não irão percorrer nem meio metro a pé contra os “senhores Matarazzo e Gamba” de hoje. Os novos tenentes se satisfazem com premiações globais, sessões de autógrafos e apartamentos em Miami.
O reino da virtude não é tolerável por tanto tempo, como a guilhotina ensinou ao incorruptível Robespierre. É claro que a força do moralismo judiciário se assentou em reais casos de corrupção. Só que juízes não podem substituir os políticos. Mesmo quando eleitos, ingressam num sistema fundado em negaças, negociações e negociatas. Não há bancadas desinteressadas no Congresso, ainda que se vote em nome de Deus, pátria e família, uma trindade na qual os nossos deputados já provaram não acreditar muito.
A nossa virtude cômica está longe de uma revolução, por isso no dia 21 de junho de 2016 o lançamento de um livro sobre o juiz Moro e os membros da Lava Jato se tornou um ato de celebração. Com seus cônjuges, foram tietados com selfies e autógrafos.
Em 30 de setembro de 1791, quando Luís XVI assinou o decreto que dissolvia a Assembleia Nacional, um grupo de populares recebeu Robespierre com gritos de “Longa vida ao incorruptível!”. Robespierre desceu da carruagem e gritou: “Cidadãos! Que atitude humilhante estão adotando? Já se esqueceram que são um povo livre?”.
* Lincoln Secco é professor livre docente de História Contemporânea na USP. Fernando Sarti Ferreira é mestre e doutorando em História Econômica na USP
"A água mais cara é aquela que não existe", diz Newton. FOTO: Pedro França/Agência Senado
Soa esdrúxulo afirmar, mas é possível concluir. A crise de abastecimento de água que assola o Estado de São Paulo trouxe um ponto positivo: tornou urgente a conscientização de que é preciso reinventar a gestão de nossos recursos hídricos. Quem afirma, em entrevista à Brasileiros, é Newton de Lima Azevedo do World Water Council (WWC), o Conselho Mundial da Água. A entidade não governamental defende o insumo vital em âmbito global, agrega cerca de 300 instituições de 70 países e foi criada na França, em 1996, na cidade de Marselha. No WWC, Azevedo exerce o papel de governador, como são chamados os representantes de cada uma das nações filiadas. A entidade também é presidida, desde 2013 e até 2017, por outro brasileiro, o engenheiro civil Benedito Braga, acadêmico da USP, com décadas de atuação nas questões relativas à defesa da água.
Azevedo também é vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) e está na linha de frente de um compromisso firmado pelo Brasil em fevereiro último: sediar em 2018, na capital federal, Brasília, o 8o Fórum Mundial da Água. A realização do evento no Brasil é providencial. Converge com a intenção do WWC de ampliar suas políticas globais, pois essa é a primeira ocasião em que o fórum será realizado em um país do Hemisfério Sul (a 7a edição acontecerá na Coreia do Sul, em abril de 2015), e permitirá o aprofundamento de soluções para o enorme déficit na América Latina.
Somente no que tange às demandas de saneamento básico do continente, mais de 300 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado, sendo que um terço deles vive no Brasil. Em nosso território, além dos dejetos orgânicos e químicos, que contaminam lagos, rios e oceano, ainda há estados da Federação, como o Piauí, que desperdiçam até 60% da água potável tratada pela precariedade da rede de distribuição. Mas a questão do abastecimento para o consumidor comum, que demanda 10% da água tratada, segundo o WWC, é só a ponta do iceberg de uma gestão irresponsável intimamente ligada ao poder privado. Setenta por cento da água potável do País tem uso indiscriminado no agronegócio. Outros 20% destinam-se à indústria, que começa a ensaiar mudanças de hábitos, desde que passou a ser penalizada com multas severas. Como veremos a seguir, é possível ser otimista, mas ainda há muito a ser feito para resgatarmos a água perdida.
Brasileiros – Como se deu a escolha do Brasil para sediar o 8o Fórum Mundial da Água? Newton de Lima Azevedo – O argumento mais forte que defendemos para trazer o fórum ao Brasil foi: “Se o conselho quer realmente ser tratado como Conselho Mundial da Água, tem que ser, de fato, mundial”, pois esse será o primeiro fórum no Hemisfério Sul. Havia nove concorrentes e, no final, sobraram dois: o Brasil, com sede em Brasília, e a Dinamarca, com sede em Copenhague. E é bem difícil comparar Copenhague com Brasília, pois são cidades com realidades totalmente diferentes. Por aqui, ainda temos cem milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado. E esse chamamento de trazer o fórum para a América do Sul foi estratégico, já que em todo o continente há 300 milhões de pessoas sem saneamento básico. Cem milhões aqui e outros 200 nos outros 12 países. Com todo o respeito a Copenhague, lá se discute o terceiro derivado do crédito de carbono, mas aqui ainda temos cocô indo para os rios, os lagos e o mar. No Brasil água ainda é um “bicho” indomado. Fomos para a votação aberta e tivemos 23 dos 35 votos.
Em 2018, haverá um novo pleito presidencial. Nos próximos quatro anos, até a realização do fórum, que medidas devem ser cobradas do presidente que será eleito em 2014?
Quem está assinando esse contrato com o WWC é a cidade de Brasília, com o aval do governo federal, por meio do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Meio Ambiente. Assinaremos o contrato em 15 de setembro próximo e pretendemos blindar o evento de qualquer conotação política. Para mantermos essa chama acesa, há uma ação fundamental, que também dependerá do apoio governamental: estamos fazendo um projeto que começará a ser implantado imediatamente após o próximo fórum, que acontecerá na Coreia do Sul, em 2015. Um programa que se estenderá do final do próximo ano até seis meses após o fórum do Brasil, em 2018, quando entregaremos todos os relatórios e encaminhamentos para o país sucessor. Pretendemos “irrigar” discussões em nossa sociedade e precisamos do apoio da imprensa para conscientizar a opinião pública.
Independentemente do fórum em 2018, o Brasil já exerce o papel de protagonista dessas questões na América Latina?
Sim. O Brasil tem uma legislação forte e os modelos de negócio existem. A questão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) ainda é alvo de tabus, mas é inegável que elas também evoluíram. É importante dizer que o WWC não tem nenhuma vertente ideológica. Ele é pragmático, assim como a questão da água, que é bem objetiva. Um exemplo: para universalizar o acesso a esgoto e água potável no Brasil em 30 anos, precisamos investir R$ 20 bi por ano. Com todo o esforço que o governo federal tem feito, chegamos a R$ 9 bi. Então, das duas uma: ou universalizaremos esses serviços em 50 ou 60 anos, ou teremos de criar um ambiente jurídico-institucional que faça existir agências reguladoras e atrair aporte financeiro. A questão é que, no Brasil, para a iniciativa privada, os serviços ligados à água concorrem com outras áreas de infraestrutura. Daí o investidor pensa: “Concessão de rodovias é um puta negócio! E não é que a energia é ainda melhor?!”. Até o cara pensar que saneamento é legal, demora… Mas a questão é que não dá mais para ficar nessa. Temos de rever o que significa ser “legal”. O saneamento tem restrição da participação privada porque ainda há um discurso babaca, em minha opinião, de dizer que água é direito do cidadão e dever do Estado, mas aí o cara morre de sede ao lado da plaquinha em que isso está escrito.
E como podem ser integradas as ações do Estado com a iniciativa privada?
Nos últimos dez anos, houve evolução das PPPs, mas o setor de recursos hídricos pode e deve amadurecer ainda mais. É preciso melhorar as gestões integradas, pois temos um arcabouço jurídico de razoável para bom. É preciso que a sociedade também se conscientize e cobre essas ações. No caso de São Paulo, é terrível dizer isso, mas a crise colaborou para a penetração da discussão na sociedade. Há pesquisas que dizem que a falta de água, claro, é problema dos que mais sensibilizam o brasileiro. Já com relação ao esgoto, o cidadão não tem a menor ideia do problema que enfrentamos e não quer saber. Ele aperta a descarga e está pouco se importando se aquilo caiu no colo do vizinho da rua de trás. São esses conceitos que a gente quer bater de frente, porque temos água num nível razoável de abastecimento e qualidade. Já o esgoto é essa vergonha. Inadmissível pensar que, em um País que é a sétima potencia mundial, o cocô das pessoas vai direto para o rio ou para o mar.
E por que isso ainda é tolerado?
No Brasil, o saneamento é tratado como o primo pobre da infraestrutura. Mas se não temos esgoto, de quem é a culpa? Costumo dizer que é como no casamento, se a relação não vai bem, nunca existe culpa de um lado só. Então, há uma série de “culpas” e de “culpados”. A começar pelo problema cultural. O Brasil parece não ter mesmo a real dimensão do impacto desse descaso. Basta dizer que para cada real investido em saneamento básico podemos economizar quatro em saúde pública. Mas o problema mais sério é, sem dúvida, a atomização da responsabilidade. Veja o exemplo das telecomunicações, hoje em dia, temos mais celular do que pessoas no Brasil. Há pouco mais de 20 anos, ter uma linha telefônica por aqui era investimento. Não há dúvida de que quando você tem a concentração da regulação e do controle em âmbito federal é mais fácil ser eficaz. Agora, com relação ao saneamento, há uma confusão absurda, pois o responsável – último na hierarquia, mas o primeiro por ser o executor – é o prefeito. No Brasil, deve haver umas 300 cidades com prefeitos porretas, empenhados em levar saneamento básico à sua população, mas há também outras três mil nas quais o prefeito é o Toninho da Farmácia que tem outros mil problemas para lidar antes de querer fazer um plano municipal de saneamento. Não estou, com isso, dizendo que temos de fazer uma espécie de “Sanebras”, mas a dificuldade é não ter essa gestão integrada entre Federação, Estados e Municípios.
Hoje, qual é a realidade de nossas estatais de saneamento?
Temos, hoje, 26 empresas estatais de saneamento básico. Dessas, 20 estão quebradas e têm a despesa maior do que a receita. Ou seja, se não há dinheiro nem para sobreviver, como é que terá para investir? O pior é que existem programas do governo federal para ajudar a revitalizar essas empresas com apoio da iniciativa privada, mas elas simplesmente não se movimentam. Embora, do ponto de vista constitucional, o governo federal não tenha ingerência para falar com esses Estados, ele teria o direito moral de chamar o governador e o presidente de cada uma dessas companhias para uma conversa franca. Afinal, essas 20 empresas são responsáveis por 70% dos serviços prestados para a população brasileira. Daí, você chama o cara e diz: “Ótimo que você veio até aqui. Não tenho nenhuma ingerência sobre seu Estado, mas ofereço a você um cardápio de três ou quatro soluções para revitalizar sua companhia de saneamento. Caso contrário, não vamos atingir a meta de, até 2030, universalizar o saneamento básico e a água potável no Brasil”. Em última instância, o cara tem o direito constitucional de dizer: “Não quero nenhuma das três alternativas. Vou voltar para minha cidade e continuar naquela pindaíba”. O problema é essa diluição e atomização das responsabilidades.
Como o senhor interpreta a crise em São Paulo?
Como disse antes, não dá para falar de universalização de água e esgoto, se não falarmos de todo o resto. Setenta por cento da água vai para o agronegócio, 20% para a indústria e só 10% para o abastecimento da população. Então, não adianta eu ficar aqui dando cabeçada com o consumidor comum, se a indústria estiver gastando água loucamente e o agronegócio, com a irrigação e a contaminação dos lençóis por agrotóxicos, estiver destruindo tudo por aí. Mas começam a surgir instrumentos legais que estão fazendo repensar essas práticas. A indústria, por imposição da Agência Nacional de Águas (ANA), começa a entender o conceito do poluidor pagador. O industrial passou a pagar caro quando devolve a água poluída para o meio ambiente, e esse dinheiro é revertido em investimentos para a bacia hídrica. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estão começando a ter um diálogo com o WWC.
No caso do agronegócio, além do consumo de mais de dois terços do total de água potável, ainda há a questão da intoxicação dos lençóis por agrotóxicos…
A CNA está começando a dialogar com o WWC, mas a questão é que o agronegócio é um setor gigante, que sustenta milhões de empregos no País. Além de ser um dos pilares da nossa economia, há nele quem insista no seguinte discurso: “Ou gastamos água para colocar o alimento na mesa ou não teremos alimento”. Uma visão um tanto maniqueísta. Se você for a países como Israel concluirá que há grandes avanços na questão do reúso para a irrigação agrícola – que lá é feita com o menor gasto possível de água potável. Ou seja, se a gente não se movimentar para pensar a água em todos os setores, jamais resolveremos o problema. E o maior problema de gestão hoje é a perda por ineficiência. Das 20 companhias que estão quebradas, algumas como a Agespisa, do Piauí, perdem até 60% da água tratada antes mesmo que ela chegue à população. É preciso ter gestão eficiente, mas, para tal, é preciso ter agências reguladoras que cobrem essa eficácia. A indústria começou a mudar de postura, pois a coisa passou a doer no bolso, e ela teve de rever seus processos. Os movimentos estão aí, mais velozes do que antes, mas não tão rápidos quanto necessitamos. São Paulo, hoje, não tem mesmo o que fazer, a não ser economizar água e acender algumas velas para São Pedro, porque esses projetos tomam planejamento e tempo de execução. Pesquisas de 2002 já alertavam para o que está acontecendo em São Paulo, e não dá para deixar uma metrópole dessa dimensão a mercê de São Pedro.
Até que o Brasil atinja a meta de saneamento e água potável para todos, prevista para 2030, não corremos o risco de enfrentar outras tantas crises de abastecimento?
Tem um pouco de futurologia nisso tudo, mas uma coisa é fato: quanto mais houver consciência e quanto mais veloz essa consciência for incorporada a nossa sociedade, haverá menos chance de que isso aconteça. Agora, se continuarmos do jeito que estamos, podemos nos preparar para uma crise atrás da outra. Mas sou otimista e sempre vejo o copo meio cheio. Em São Paulo, a população tem dado uma boa resposta à crise e o povo brasileiro é porreta, a hora que entende, a coisa vai. Claro, ele não entendeu ainda o problema do esgoto, mas conversas como essa são cada vez mais importantes. A sociedade precisa ter acesso a essas informações numa linguagem mais palatável para mudar seus hábitos e cobrar ações.
Ironicamente, o Brasil tem reservas subterrâneas de grande magnitude, como o Aquífero Guarani. Por que esses recursos ainda não são explorados? É possível prever quando isso acontecerá?
Existem planos para o Guarani, mas não dá para precisar quando essa água chegará até nós. O grande problema é a falta de vontade política e de consciência da real importância da água. Quando exportamos carne, também exportamos a água que foi utilizada no processo. A água transita por tudo e tem enorme valor econômico. Água é PIB. Gera e faz perder emprego. Melhora ou piora a saúde do cidadão. Há vários países pequenos em que o esgoto é tratado a ponto de torná-lo água potável. Os caras bebem a água que vem do esgoto, felizes da vida, pois ela é inclusive mais limpa do que a nossa. Há também tecnologias como a dessalinização e temos uma enorme costa litorânea. Recursos não faltam. O que falta é capacidade de empreender. Agora, se a maioria das nossas empresas de saneamento não tem dinheiro nem para trocar hidrômetros, como é que eu vou dizer a elas para fazer uma estação de reúso com membrana ultrafiltrante japonesa?
Apesar da crise em São Paulo e de todos esses problemas, sua experiência permite ao senhor sustentar uma postura otimista?
Sou otimista, assim como outras pessoas que, há mais de 20 anos, começaram a trilhar esse caminho. Em 1995, atuei em uma das primeiras concessões privadas para tratamento de esgoto, na cidade de Limeira, interior de São Paulo. Muita gente foi contra. Tomamos tiros de todos os lados. Passados 20 anos, esqueceram que havia ali uma gestão da iniciativa privada. Hoje, a cidade tem 100% de água potável e 100% de esgoto tratado. A perda é de somente 16% e há 98% de aprovação da população. Além disso, há na cidade menos de 1% de inadimplência. O cidadão paga porque está contente e satisfeito com o serviço. É preciso perceber que o pior dos mundos é: a água mais cara é aquela que não existe.
O direito humano à água e ao esgotamento sanitário foi explicitamente reconhecido por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de julho de 2010 e do Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro de 2010, com forte apoio do governo brasileiro. A Assembleia Geral reconheceu que se trata de “um direito humano essencial para o pleno desfrute da vida”, o que pode ser compreendido em articulação com outras definições sobre os direitos humanos, como a de que todos os direitos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. Esse reconhecimento, a par de tornar os cidadãos dos vários países portadores desse direito e aptos a reivindicarem-no judicialmente, traz obrigações aos governos e gestores públicos.
O cumprimento do Direito Humano à Água (DHA) supõe assegurar água com disponibilidade, acessibilidade física, qualidade e segurança, financeiramente acessível e que cumpra com os requisitos de aceitabilidade, dignidade e privacidade. Semelhantes atributos aplicam-se ao direito ao esgotamento sanitário.
No atual momento, em que o País vive uma dramática crise no abastecimento de água, afetando fortemente sua região mais populosa, urbanizada e industrializada, cabe analisar a situação a partir da lente do DHA.
Inicialmente, avaliando o atual desabastecimento, verifica-se que, caso os princípios do DHA tivessem sido observados pelos responsáveis pela prestação dos serviços, as oscilações climáticas que vivemos não teriam se convertido em escassez de água para consumo humano.
Entre os princípios do DHA, espera-se dos Estados-membros das Nações Unidas que empreguem o “máximo recurso disponível” para assegurar o acesso. Violações a esse direito são consideradas situações de retrocesso. Obviamente, caso o planejamento do abastecimento de água nas localidades afetadas tivesse se dado de forma adequada, levando em conta as variações climáticas, mesmo as mais extremas, o problema não estaria ocorrendo com a atual magnitude.
As tendências científicas mais contemporâneas indicam que os sistemas de abastecimento de água têm de ser planejados de forma estratégica, criativa, adaptativa e capaz de aprender com as mudanças da realidade. Quando incorporarmos esses princípios efetivamente no Brasil, nossas cidades ganharão resiliência para enfrentar situações de estresse hídrico.
Outro aspecto que merece um olhar a partir do DHA são as medidas adotadas ou planejadas para enfrentar a crise. Aí reside a maior preocupação atual, pois sabe-se que, em situações de restrição de consumo, são justamente as populações mais vulneráveis as que mais sofrem seus efeitos. Justamente essa população mais indefesa, com menos capacidade econômica, tem de lançar mão de alternativas ao desabastecimento. Isso porque ela é a mais impactada, inclusive quanto à saúde. Refiro-me não apenas ao segmento da população visivelmente mais pobre, a exemplo da que vive nas vilas e favelas, mas também aos moradores de rua, aos idosos, às crianças e à população carcerária.
O atual momento requer colocar os princípios do DHA no centro da atenção dos decisores públicos. A gestão da crise, por meio de medidas para a restrição de consumo, sejam elas quais forem – redução de pressão nas redes, instrumentos econômicos punitivos, campanhas contra o desperdício, rodízio e racionamento – não deve assumir que todos os usuários sofrerão impactos equivalentes. Ao contrário de medidas de caráter universal, essas devem ser tomadas focalizando afirmativamente as parcelas mais vulneráveis da população, que devem ser protegidas, a bem do cumprimento do DHA.
Além disso, outros princípios do DHA também devem ser evocados neste momento: a transparência e a participação. Medidas para restrição do consumo não se restringem a um processo técnico de tomada de decisão. É um processo que tem implicações sociais diretas nas populações das cidades. Portanto, o processo decisório não deve ser uma exclusividade de gestores públicos e de especialistas. Deve ser um processo democrático, que conte com a participação dos representantes dos afetados, seja nos próprios fóruns constituídos para gerir a situação de crise, seja envolvendo os conselhos de participação social já instituídos.
*Pesquisador da Fiocruz-Minas, relator especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água Segura e ao Esgotamento Sanitário e membro da Plataforma Política Social
Orlando participou do 55º CONUNE em debate sobre desmilitarização da polícia e novas política de drogas. FOTO: Mídia Ninja
O caso Amarildo transformou o delegado Orlando Zaccone em um “policial que incomoda”, como ele mesmo se define. O carioca da Tijuca já defendia publicamente questões controversas, ainda mais nesse meio, como a legalização de todas as drogas e a desmilitarização do modelo de segurança. Além disso, o delegado tem uma trajetória incomum: antes de entrar para a polícia, foi repórter do jornal O Globo durante um ano, ainda na juventude, desistiu e virou monge hare krishna, “estava com alguns questionamentos existenciais”, e depois foi cursar Direito.
Mas nada disso o estigmatizou tanto quanto o papel que desempenhou ao rejeitar a tese de que o assistente de pedreiro, levado à interrogatório na Unidade da Polícia Pacificadora na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, e desaparecido desde então, tinha ligações com o tráfico: “Fui obrigado a realizar na prática aquilo que sempre defendi. Não podia deixar que se construísse a imagem de Amarildo e de sua mulher como traficantes pelo simples fato de morarem na favela do lado da boca de fumo. No Brasil, o que está em jogo não é a violência policial, mas contra quem essa violência é exercida. Se o Estado não consegue transformar o pedreiro em traficante, o policial vai preso. Se consegue, ganha medalha”.
Após seis meses de buscas pelo corpo do pedreiro, a Justiça decretou a morte presumida de Amarildo. Em fevereiro deste ano, 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento e morte de Amarildo, crime ocorrido em julho de 2013, foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.
Depois do caso célebre, Zaccone saiu dos holofotes. Foi afastado da titularidade e transferido para uma delegacia de acervo de cartório, no qual trabalhava com inquéritos antigos, sem fazer atendimento ao público nem investigações.
Ainda que minoritário, é crescente o número de policiais adeptos ao discurso crítico com relação à segurança pública, que dialogam nacionalmente pela internet e se dedicam cada vez mais a formações acadêmicas.
Secretário-geral da Leap Brasil (Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição), mestre em Ciências Penais e doutor em Ciência Política, Zaccone é um dos 2.288 membros da página de Facebook “Policiais Antifascismo”. “Na contramão do pensamento hegemônico de uma polícia a serviço do Estado brasileiro, policiais civis, militares e guardas municipais se reúnem para construir uma polícia mais próxima do povo”, diz o texto de apresentação do grupo.
A segurança militarizada, segundo Zaccone, é antidemocrática porque constrói a figura de um inimigo dentro do Estado e o despe de todos os direitos de cidadania. “Isso começa com o traficante, mas pode ser o black block, o manifestante do MST. Temos duas questões: uma é a existência de uma força policial militar, com um regimento militar e os trabalhadores que são construídos não como trabalhadores, mas como soldados. A atuação militarizada da segurança pública é outra questão. O fim da PM não resolve esse problema”, diz o delegado.
Para Zaccone, a discussão sobre um novo modelo de segurança pública precisa passar por uma guinada e começar a envolver policiais: “Tem que falar com praça, com escrivão. Se perguntar para oficial e delegado, eles vão dizer que está tudo ótimo. Esses modelos de segurança são pensados para garantir privilégios. Deixar com que policiais participem disso pode ser um problema. Um policial que se identifica como trabalhador pode não querer jogar bomba e cassetete contra professor, porque a luta é a mesma. Eles querem o policial como cão de guarda”.
É também o que defende o tenente Anderson Duarte, da Polícia Militar do Ceará, criador da página de Facebook “Policial Pensador”, com 3.813 membros. “Criei a página em 2014, quando percebi a falta de vozes dissonantes no debate da segurança pública. Ou se fazia um debate conservador, militarista, de reforço à guerra, ou, por outro lado, um debate ‘de esquerda’ que não se preocupava em ouvir policiais progressistas, que via na polícia algo apenas ruim e não buscava compreender o policial como um trabalhador”.
Polícia atuou repressivamente nos protestos de 2013. FOTO: Mídia Ninja
O antropólogo Luiz Eduardo Soares, estudioso de segurança pública há 20 anos e um dos autores da PEC 51, que propõe uma reforma na arquitetura institucional, diz que os policiais foram excluídos do debate por uma soma de fatores: repressão política, proibição de sindicalização de policiais militares e um discurso da categoria em sua maior parte exclusivamente corporativista, que não mobiliza o resto da sociedade por não discutir uma política mais ampla de segurança pública. “Esta reportagem não poderia ser escrita há dez anos. É algo absolutamente novo essa intelectualidade orgânica na polícia e nos dá muita esperança porque as mudanças só acontecerão se os policiais fizerem parte. Eles são os protagonistas”, diz Soares.
Na época estudante universitário de Geografia, Duarte entrou para a polícia “sem a menor noção” dos problemas da segurança pública brasileira – segundo ele, um modelo falido. A oportunidade de se aprofundar no assunto aconteceu especialmente em cursos de pós-graduação. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Renaesp (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública), programa nacional de estudo gratuito para agentes de segurança pública.
“Os mais de 50 mil homicídios ao ano, junto à crescente taxa de encarceramento, demonstram como nosso sistema é falido. Nossos policiais são mal remunerados, desvalorizados, matam e morrem muito, inclusive há altas taxas de suicídio. A democracia ainda não chegou plenamente aos quartéis, como mostram as prisões disciplinares, que colocam os policiais militares em condições de cidadãos de segunda categoria. Isso só se explica numa situação de guerra, de exceção. A guerra que temos é a ‘guerra às drogas’, que subverte o trabalho da polícia, fazendo com que ela deixe o seu papel de mediação de conflitos, fundamental para qualquer democracia, e se dedique majoritariamente à apreensão de drogas, que não é um problema de polícia, mas de saúde pública e de economia, já que há uma demanda e uma oferta que precisam ser regulamentadas. Como resultado do abandono do Estado nesse campo, mortes e prisões dos mais pobres, sem qualquer diminuição da sensação de insegurança da população. É preciso desmilitarizar a política”, diz Duarte.
Dados do 10º Anuário de Segurança Pública mostram que nove pessoas são mortas por policiais por dia no Brasil e ao menos um policial é morto, em sua maioria em horário de folga. De 2014 a 2015, houve uma estabilização do número de mortes violentas no País, mas as decorrentes de ações policiais cresceram 6,3%, chegando a 3.345. O número de policiais mortos caiu 3,9%, para 393.
Apesar de seu ativismo, Duarte nunca foi preso administrativamente. Segundo ele, no entanto, há formas de punição veladas, como transferências não motivadas e a não promoção. Em 2015, Duarte foi selecionado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para compor uma equipe de cinco policiais que trabalhariam no Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará, no entanto, não o liberou para ir.
Abusos cometidos pela polícia não são um desvio de função da corporação – pelo contrário. Desde sua origem, o sistema de segurança pública no Brasil existe para servir ao Estado e à elite, e não à sociedade como um todo. É o que diz Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica excludente e elitista. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da população, que está fora de qualquer discussão político-econômica, quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desses 95% de excluídos”.
Em outubro, a Justiça de São Paulo havia determinado, com base em Ação Pública Civil movida pela Defensoria Pública, que o Estado pagasse R$ 8 milhões de indenização por danos morais coletivos em função da violência policial ocorrida nas manifestações de 2013, que a PM elaborasse um protocolo de uso da força em protestos no prazo de 30 dias e cada soldado que atuasse nesse tipo de evento portasse identificação visível com o nome e o posto na hierarquia. A sentença dizia também que armas menos letais, como balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, só poderiam ser usadas em “situação excepcionalíssima”, cabendo à PM, em caso do emprego do armamento, “informar ao público em geral que circunstâncias justificaram sua ação e qual o nome do policial militar que determinou a repressão”. Menos de um mês depois da decisão em primeira instância, o Tribunal de Justiça suspendeu, em 7 de novembro, a liminar que limitava a atuação da PM em manifestações.
A violência contra manifestantes se repetiu nos diversos protestos contra o governo de Michel Temer neste ano. No primeiro dia de Presidência definitiva do peemedebista, uma jovem perdeu a visão de um olho ao ser atingida por uma bala de borracha durante um ato em São Paulo. Profissionais da imprensa, ainda que identificados, também foram vítimas de agressões da polícia enquanto cobriam manifestações. Caso da repórter fotográfica Marlene Bergamo, da Folha de S.Paulo, que foi atingida por uma bala de borracha no dia 2 de novembro, durante a desocupação de um prédio na região central de São Paulo.
Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças), membro da diretoria da Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi também candidato a deputado estadual pelo PSOL em 2014. Pelo Código Penal Militar e pelos regulamentos vigentes, ele não poderia sequer conceder esta entrevista: “Fui punido várias vezes, inclusive com prisão administrativa. Você consegue imaginar um médico que não possa falar de saúde? Pois é, os policiais da base não podem falar sobre segurança pública. Mas, cada vez mais, nosso pessoal questiona e se mobiliza contra isso”.
Em vários protestos, a bandeira sobre a desmilitarização é levantada. Foto: Mídia Ninja
A Anaspra defende a desmilitarização da polícia como forma de desvincular a corporação do Exército, inserir esses profissionais no âmbito dos direitos trabalhistas e humanizar as relações dentro dos quartéis. Para Lotin, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para combater a violência cometida pelo Estado brasileiro, uma das mais altas do mundo, e repensar um novo modelo de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador e cidadão, ele vai respeitar os direitos dos outros?”.
Segundo o cabo, o número de denúncias de tortura e maus-tratos nos quartéis é crescente, o que não significa necessariamente aumento dos casos de abuso, mas das denúncias em si. Para ele, isso se deve principalmente ao uso das redes sociais. “Essa é a minha percepção. Não tem nenhum levantamento das denúncias, nem dos órgãos de segurança, que tentam esconder, nem dos órgãos de pesquisa, que não têm acesso a esses dados.”
Soares conta que a promotora Glaucia Santana, do Rio de Janeiro, apresentou um termo de ajuste de conduta ao Estado em dezembro de 2015, após receber denúncias anônimas de policiais de UPPs: “Originalmente, o relatório dela começava assim: ‘Eu encontrei os policiais trabalhando em condições análogas à da escravidão’. Fizemos reuniões com três coronéis da PM para apresentar esse documento. Os três disseram, de forma unânime, que isso acontece porque os policiais são militares. Se eles reclamarem, denunciarem, se recusarem a cumprir essas jornadas, eles são presos administrativamente e correm o risco de perder as suas carreiras. Eles não têm direito à manifestação, desobediência, sindicatos. Isso é muito útil para os governos, que podem exigir que eles trabalhem em turnos dobrados, submetidos a todo tipo de pressão. É evidente que a luta corporativa necessária e legítima se encontra naturalmente com uma luta política muito maior, que é a desmilitarização. Outra bandeira coincidente é pela carreira única, acabando com essa fronteira que faz com que praças nunca cheguem a oficiais, os não delegados jamais virem delegados”.
Treinamento
O índice de assédios moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase 40%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela. Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. Tivemos casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 15h, num sol de 40 graus. O filme Tropa de Elite mostra aquela cena dos caras comendo comida no chão. Aquilo acontece”, diz Lotin. Em 2013, um policial militar teve morte cerebral dias após passar mal durante um treinamento no qual fazia exercícios no chão quente.
A primeira dificuldade de mobilização acontece entre os próprios PMs, segundo Lotin: “Para começar, a Constituição nos proíbe de ter sindicato, temos uma associação. Primeiro você tem que vencer barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que tem direitos pelos quais deve lutar. Quando ouve falar em manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação: não sabe se é trabalhador, policial ou militar, se é cidadão, se não é. Ele é condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso”. Lotin diz que não existe um movimento organizado desses policiais, tampouco uma agenda de mobilização em comum. Segundo ele, foi algo que surgiu “espontaneamente” em diversos lugares do Brasil.
Em setembro deste ano, a Anaspra se reuniu com o secretário Nacional de Segurança Pública, Celso Perioli, e com o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para discutir as demandas da categoria, como o fim das prisões administrativas, a rearticulação de um grupo de discussão sobre assédio moral e sexual dentro dos quartéis e a questão previdenciária.
O projeto de lei 148, que extingue as prisões administrativas, foi aprovado na Câmara em agosto e agora tramita no Senado. “Essa prisão é discricionária, ou seja, depende de o comandante ir com a sua cara ou não. Não tem um regulamento claro e que esteja de acordo com os ditames da Constituição. Se eu me envolver em uma ocorrência e acabar tirando a vida de alguém, é bem provável que eu responda em liberdade. Mas se tiver sem chapéu, posso ir preso”, diz Lotin. A prisão administrativa segue um rito mais rápido do que a comum e é determinada por um comandante, via de regra por questões internas, como vestir uma bota suja, chegar atrasado ou dar uma declaração para a imprensa.
O sargento Luciano Galesco, da Polícia Militar de São Paulo, ficou preso administrativamente por dois dias após reclamar em sua página de Facebook do lanche oferecido no quartel. Segundo seu advogado, Raul Marcolino, o deputado estadual Coronel Telhada (PSDB-SP) alegou ter se sentido ofendido com a publicação e comunicou o fato ao comandante-geral da PM, que determinou a prisão.
Marcolino foi policial militar por 12 anos, período no qual se formou em Direito. Em 2014, pediu exoneração para ser advogado e defender policiais vítimas de abuso: “Presenciei casos e fui vítima de outros. Fui preso injustamente diversas vezes, processado administrativamente e sempre consegui me defender, por isso fui ser advogado. Sendo policial, não conseguia ajudar ninguém, agora posso ajudar policiais”.
Marcolino recorrentemente recebe ameaças veladas por causa de sua atuação profissional e diz que precisa andar de carro blindado. O advogado conta que seus clientes costumam sofrer repressões no quartel depois de serem defendidos por ele. Ainda assim, é cada vez maior o número de policiais que o procuram.
Lotin defende que o fortalecimento do movimento de policiais questionadores acompanhou a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que completa dez anos: “Essas pesquisas referendaram aquilo que a gente sabia empiricamente. Saber que 74% dos policiais militares entrevistados defendem a desmilitarização como forma de humanização da segurança pública nos dá um sentido maior e nos diz que temos que mudar o modelo”.
Ainda assim, as ideologias de direita e extrema-direita predominam dentro das instituições de segurança. Em um encontro de policiais trabalhando nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), conhecido por defender a pena de morte e ações violentas da polícia contra criminosos, foi ovacionado e recebido com flexões. “Bolsonaro é uma espécie de ícone entre os policiais, e é estranho isso porque ele nunca defendeu a categoria. Aliás, recentemente, votou a favor da PEC 241, que poderá congelar salários e até promoções. Acho que o pessoal está começando a acordar para a demagogia do mito”, diz Lotin.
Zaccone enxerga a atual crise econômica como oportunidade de conscientização: “Do ponto de vista político, é um momento maravilhoso porque os policiais estão vendo que todo o exercício do modelo que interessa ao poder político e jurídico não traz nenhum retorno para eles enquanto trabalhadores. Com a crise financeira dos estados, os policiais estão sem salário. Nesse momento cai a ficha de que são trabalhadores”.
Protesto na fachada do cinema, durante os funerais de Edson Luís, em março de 1968 – Foto: Reprodução
Cinemas do Rio de Janeiro anunciaram em letras garrafais filmes que não estavam em cartaz naquele momento: Coração de Luto, À Queima Roupa e A Noite dos Generais. Era uma forma de se unirem aos protestos que tomaram conta do Rio depois que o secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto com um tiro no peito, durante invasão da Polícia Militar ao restaurante popular Calabouço, no centro da cidade.
Nascido em uma família pobre de Belém do Pará, Edson Luís mudara-se para o Rio para estudar no Instituto Cooperativa de Ensino. Tinha 18 anos. Como outros 300 colegas com poucos recursos financeiros, fazia as refeições no Restaurante Central dos Estudantes, mais conhecido como Calabouço. Eles se preparavam para fazer uma passeata-relâmpago quando a polícia chegou atirando. Vários estudantes saíram feridos.
Atingido no peito, Edson Luís chegou a ser levado a um hospital a três quarteirões do Calabouço, mas já estava morto. Era final da tarde do dia 28 de março de 1968. Em vez de deixar o corpo com a necropsia, os estudantes o carregaram para velório na Assembleia Legislativa. No dia seguinte, pelo menos 50 mil pessoas acompanharam o caixão até o cemitério, realizando a primeira grande manifestação contra a ditadura.
O ano estava apenas começado, mas seria tão tumultuado e trágico que inspiraria a obra 1968 – O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura. Na prática, 1968 fechou o tempo em 13 de dezembro, com o decreto do Ato Institucional Número 5, aquele que acabou com todas as garantias constitucionais. A partir daí, desmoronou a democracia de faz-de-conta encenada pela ditadura desde o golpe de março de 1964.
A morte de Edson Luís ficou impune. Cinquenta anos depois, o Palácio Pedro Ernesto, antiga sede da Assembleia Legislativa, abriga a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Cinquenta anos depois, de novo tiros transformaram o palácio em espaço para velar vítimas da violência, desta vez a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. Sinal que a redemocratização deixou tanto a desejar que agora retrocede. Por isso mesmo, a morte de Marielle não pode ficar impune.
Em tempos de gravação por celular, vídeos de homenagens à Marielle estão correndo mundo. Não era assim no passado recente. O cineasta Eduardo Escorel filmou cenas do cortejo e enterro de Edson Luís em março de 1968 mas, com o recrudescimento da repressão, preferiu entregar o material à Cinemateca do Museu de Arte Moderna. A filmagem de 12 minutos só reapareceu em 2008, depois de passar 40 anos extraviada. Veja cenas:
Sétima edição do programa Arte Atual apresenta mostra no Tomie Ohtake, Bruno Dunley lança seu primeiro livro, na galeria Nara Roesler em São Paulo e no Rio, e Nelson Leirner abre nova individual na carioca Silvia Cintra + Box 4. Na Bahia, Antônio Dias ganha exposição na Paulo Darzé Galeria. Confira a agenda completa abaixo:
Juliana Cerqueira Leite, ‘H1’ (detalhe), 2017
Arte Atual: Fratura, coletiva no Tomie Ohtake, até 6/5.
Nesta sétima edição do programa, que conta com o patrocínio da Recovery, a partir das
obras de Adriano Costa, Arjan Martins e Juliana Cerqueira Leite, os curadores propõem
questionar as urgências do tempo presente e seu apego à própria descartabilidade. “Em
uma época que resiste a planejar seu futuro ou a conhecer seu passado, talvez seja o
momento de questionar a fugacidade do que se propaga ao redor: e se nada – nenhum
produto, nenhum corpo, nenhuma história – for tratado como descartável? ”, analisa Paulo
Miyada.
Bruno Dunley, Sem Título, 2014
Bruno Dunley, lançamento de livro na galeria Nara Roesler, em São Paulo e no Rio, nos dias 20/3 e 22/3, respectivamente.
O livro apresenta pela primeira vez uma seleção de trabalhos emblemáticos no contexto da produção do artista com cerca de 100 obras dos últimos dez anos. Livro audacioso do ponto de vista editorial, composto por páginas duplas, o projeto gráfico surpreende pela criação de espaços escondidos que propõem novas relações espaciais para o expectador-leitor, que tem liberdade para estabelecer associações entre as imagens.
Nelson Leirner, Fita Métrica, 2017
Nelson Leirner: A Nova Revolução Industrial, individual na Silvia Cintra + Box 4, no Rio de Janeiro, abertura em 17/3.
Com curadoria de Lilia Schwarcz, a exposição apresentará ao público nove tapeçarias que foram produzidas manualmente, reproduzindo os projetos do artista, por um grupo de tecelões durante o último ano.
A “nova revolução” proposta por Leirner é na realidade uma volta no tempo, quando o mundo não estava dominado pelas máquinas da revolução industrial, e nem pela tecnologia que recentemente inundo nossas vidas, mudando inclusive a forma como nos relacionamos com o tempo.
Antônio Dias, ‘Sem Título’, 2016
Antônio Dias: Cruz Credo, individual na Paulo Darzé Galeria, em Salvador, até 20/4.
A mostra contém 16 trabalhos de Antonio Dias, artista que marca profundamente a arte brasileira desde os anos 60 com uma obra exemplar na utilização das mais variadas formas e materiais para criação de ideias estéticas, através de um estilo muito pessoal na depuração de uma poética plástico-visual, o que o tornou um dos mais importantes artistas na arte internacional hoje.
Tacita Dean, Descanso, 2013
Esse Obscuro Objeto do Desejo, coletiva na Carpintaria (RJ) e na Galeria (SP) da Fortes D’Aloia & Gabriel, abertura simultânea em 17/3.
Esse Obscuro Objeto do Desejo explora as interseções entre abstração, percepção, desejo e memória através do trabalho de oito artistas que compartilham um interesse na morfologia do desejo: Miroslaw Balka, Tacita Dean, Iran do Espírito Santo, Félix González-Torres, Douglas Gordon, Roni Horn, Rivane Neuenschwander, Wolfgang Tillmans.
Myriam Glatt, Série Lux, 2017.
Myriam Glatt: descartes, individual no Centro Cultural dos Correios de São Paulo, abertura em 22/3.
A exposição descartes é primeira individual da artista Myriam Glatt na capital paulista. A mostra reúne um conjunto de trabalhos produzidos a partir de materiais recolhidos em entulhos – papelões, principalmente – que são apropriados pela artista e reutilizados como suporte das obras. A partir da pintura e da colagem, Myriam cria instalações visualmente potentes, concebidas especialmente para o espaço expositivo, que tocam em temas como ecologia, consumo, arquitetura e apropriação na arte contemporânea.
Jean-François Rauzier, Escadaria Selarón, 2014.
Jean-François Rauzier: Hiperfoto-Brasil, individual no Centro Cultural São Paulo, até 6/5.
Com curadoria de Marc Pottier e idealização de Bertrand Dussauge, o projeto chega à capital paulista depois de ter passado pelas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. A edição de São Paulo apresentará ao público cerca de 100 trabalhos, entre hiperfotos e hipervídeos – parte deles ainda inéditos, recriações de uma série de espaços da cidade. A mostra é parte de uma iniciativa que o artista desenvolve em diversas metrópoles do globo desde 2002, quando começou a desenvolver suas primeiras hiperfotos.
Gabriel Bonfim, ‘Maria da Pena e Luiza Brunet’
Gabriel Bonfim: M, individual no Palácio dos Correios de São Paulo, até 20/4.
A exposição dos trabalhos de Gabriel Bonfim acontecem em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. São fotografias em cores – 9 em São Paulo e 7 no Rio de Janeiro e em Curitiba – além de uma videoinstalação artística com 11 telas, na qual Gabriel Bonfim retrata cenas aparentemente comuns na vida de mulheres brasileiras. No registro da transexual na escadaria Selarón, no Rio de Janeiro, ou da Ialorixá na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador, as imagens descortinam histórias que levam o espectador a perceber algumas das dificuldades enfrentadas por essas mulheres.
Com tantas informações disponíveis na rede, um projeto da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com o suporte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tem como objetivo reunir e disponibilizar milhares de materiais de diferentes culturas. O acervo, nomeado Biblioteca Digital Mundial (WDL, na sigla em inglês), conta com mais de 19 mil obras que vão da literatura a fotos e filmes, passando por gravações e mapas.
Para facilitar a acessibilidade ao material, os conteúdos do site podem ser acessados em sete idiomas, além das descrições em áudio para pessoas com deficiência. Além dos idiomas oficiais das Nações Unidas, consta também o português, devido ao papel essencial da Biblioteca Nacional brasileira no desenvolvimento do projeto. A maior parte do material foi cedido por instituições educacionais e culturais, acervos, museus e organizações internacionais ao redor do mundo.
O patrocínio do projeto parte de contribuições de fundações e instituições financeiras que apoiam a promoção da difusão de trabalhos que fazem parte das histórias culturais da humanidade. São obras, manuscritos e referências que datam de 8.000 a.C.
Como funciona o projeto?
Com tantas produções de variados momentos da história, algumas tão frágeis que requerem manuseio especial que somente museólogos podem prover, digitalizar esses arquivos não é tão simples quanto colocá-los sobre um scanner.
A parceria entre a Biblioteca do Congresso estadunidense, a UNESCO e as instituições que cedem suas obras para o projeto também prevê a criação de centros de digitalização especializados.
Para garantir o sucesso da digitalização, sem danos as obras, a Biblioteca Digital Mundial promoveu investimentos em países em desenvolvimento para a criação de centros de digitalização. Entre os beneficiados estão Egito, Iraque, Uganda, Rússia (embora não seja considerado um país em desenvolvimento) e o Brasil. Além dos equipamentos, o programa ofereceu treinamento e softwares para a implementação do projeto.
A Biblioteca Digital Mundial desenvolveu também, com parceiros, três publicações com temáticas específicas, para difundir entre os usuários materiais de grande relevância para a história da humanidade: “As Bíblias”, “O Projeto Afeganistão” e “Os Primeiros” .
Foto reproduzida de capazes.pt/cronicas/nada-vai-mudar-se-nao-lutarmos-e-denunciarmos/
A sensação de medo também varia de acordo com o gênero. Pesquisa
recém-concluída constatou que 83% das mulheres têm medo de andar
sozinhas à noite. Entre os homens, o índice cai para 55%. “Todos os
indicadores mostram que a sensação de medo em andar na rua, ir para o
trabalho, sair para comprar pão, é muito maior entre as mulheres do que
entre os homens”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto
Locomotiva, que entrevistou três mil pessoas, em 35 cidades, nos dois
primeiros meses do ano.
A ideia de pesquisar o tema surgiu da hipótese de que a sensação de medo
era generalizada nas cidades brasileiras, associada à dúvida se essa vivência
dependia do gênero. Constatada a discrepância entre os gêneros, Meirelles
trabalha com a possibilidade de o pano de fundo desse temor estar no fato
de, em geral, a fonte do medo vir do sexo masculino: “Uma mulher não
atravessa a rua para não cruzar com outra mulher. Por outro lado, os
homens não têm medo de ser assediados. Não têm medo de ser violentados.
Eles não fazem ideia do que seja isso.”
Embora a ameaça de violência sexual não faça parte do universo
masculino, o tema permeia o cotidiano de todos. De acordo com a pesquisa,
28% dos brasileiros conhecem uma mulher que foi violentada. O índice
aumenta para 34% quando o universo pesquisado é apenas feminino.
“Existe uma proximidade com casos de estupro muito maior do que nós
imaginávamos”, afirma Meirelles.
Outro detalhe que chama a atenção na pesquisa é o fato de 96% das
brasileiras defenderem que é preciso ensinar os homens a respeitarem as
mulheres. Faltam, no entanto, políticas públicas nesse sentido. Por outro
lado, é cada vez mais intenso o debate sobre o tema organizações, redes sociais e manifestações. Assim como há um medo generalizado, há também
muito empenho para não sofrer violência calada.
Marielle denunciou, dias antes de morrer, violencia policial em Acari. FOTO: Mídia NINJA
Durante show no Rio de Janeiro, na Praça da Apoteose, no último domingo, Katy Perry fez questão de lembrar as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. A cantora levou a irmã e a filha de Marielle ao palco e abriu espaço para que as duas se pronunciassem. Além de prestar solidariedade às famílias, dedicou uma de suas canções à vereadora.
Assista:
Executados
Eram cerca de 21h30 de uma quarta-feira (14 de março) quando Marielle Franco, vereadora do PSOl pelo Rio de Janeiro, passava de carro pela rua Joaquim Palhares, na região central da capital. O carro em que estava, acompanhada do motorista Anderson Pedro Gomes e de sua assessora, foi abordado por homens armados que dispararam nove tiros contra o veiculo. Marielle morreu na hora, atingida por pelo menos quatro disparos na cabeça. Anderson Pedro também morreu no local, atingido por três tiros nas costas.
A noticia pegou de surpresa eleitores da quinta vereadora com mais votos na ultima eleição. A “cria da Maré”, como se autointitula, Franco começou sua jornada de militância após a morte de uma amiga. Desde então, formou-se socióloga na PUC do Rio de Janeiro e tornou-se mestre em administração publica pela UFF, a Universidade Federal Fluminense. Jovem, com 38 anos, já havia coordenado a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Para além da surpresa, houve também quem sugerisse a possibilidade da ligação do crime com a intervenção militar na Segurança Pública estadual, uma vez que Marielle foi nomeada relatora da comissão que acompanharia a intervenção sob a ótica da conservação dos Direitos Humanos. Outra possibilidade levantada por militantes nas redes sociais é a de retaliação contra a vereadora por ter denunciado casos de violência policial em Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, no último dia 10 de março.
A vereadora, que recebeu 46.502 votos na eleição de 2016, voltava de um evento de empoderamento de mulheres negras quando foi emboscada. Ela deixa para trás uma filha de 19 anos e um espirito de luta por democracia e comoção que deve levar pessoas às ruas das grandes capitais nesta quinta-feira.
Pelo menos dez capitais brasileiras têm manifestações de homenagem e por justiça marcadas para este 15 de março. Entre as cidades que recebem atos de repudio contra a violência que tirou a vida do motorista e da vereadora do PSOL, estão São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Brasília, Natal e Porto Alegre.
Marielle não é a primeira mulher e, certamente, não é a primeira mulher negra a ser vitima de feminicido no Brasil. De acordo com levantamento da Agência Lupa, com base nas informações do Atlas da Violência do IPEA, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país e em 65,3% dos casos a vitima é uma mulher negra.
A cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil, 65,3% são negras
Os corpos de Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Pedro Gomes, que cobria um colega que estava de licença, foram velados na ALERJ, Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no começo da tarde.
Colegas de partido e militância de Marielle deixaram recados sobre a vereadora. Jean Wyllys, deputado federal pelo PSOL-RJ, disse em discurso durante sessão solene na Camara dos Deputados, que “as ideias de Marielle Franco são a prova de bala!”. O deputado solicitou à Casa a criação de uma comissão para que se possa acompanhar a investigação do assassinato da vereadora e de Anderson Gomes.
As ideias de Marielle Franco são à prova de bala! Há pouco solicitei, em plenário, durante sessão solene em memória da nossa vereadora, a criação de uma comissão externa para acompanhar a investigação sobre seu assassinato e para que esse crime não fique impune. #MariellePRESENTEpic.twitter.com/8LEfpdxzYE
Entrevistado logo que chegou ao local do crime na noite da ultima quarta-feira (14), Marcelo Freixo, deputado estadual também pelo PSOL-RJ, emocionou-se ao comentar os anos de trabalho ao lado de Marielle Franco na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Hoje, em sua conta no Twitter, Freixo desabafou, “Mari era uma amiga, companheira com quem dividíamos o cotidiano, nossas vidas, esperanças, angústias, sonhos”.