Início Site Página 163

Fusae Uramoto – Vovó do surfe

Dona Fusae é um exemplo de que a idade não é empecilho para nada. Vinda do Japão aos 3 anos de idade, Fusae só fala sua língua natal em casa e não é totalmente fluente no português, mas aprendeu a aproveitar a vida como uma legítima brasileira: curtindo a praia. A nipo-brasileira, que mora em Santos desde os anos 1970, resolveu, há pouco mais de sete anos, frequentar as aulas de surfe na escolinha de Cisco Araña, uma lenda viva do esporte na Baixada Santista. E não para por aí. Quando completou 77 anos, Fusae resolveu comemorar em grande estilo e saltou de paraglide. Além dos esportes radicais, também já praticou inúmeras artes marciais japonesas. Quando não está se aventurando, Dona Fusae cuida de sua casa e já planeja uma nova empreitada, dessa vez, um pouco mais tranquila: aprender a tocar gaita.

Precisamos falar do assédio

van de precisamos falar do assédio
Van-estúdio para receber os depoimentos. De vermelho, a diretora, Paula Sacchetta em ação. FOTO: Divulgação

Era uma van que virou estúdio de cinema. Ela guardava segredos profundos. Ao fechar a porta, o silêncio, a escuridão e uma câmera recebiam mulheres que sofreram assédio. Para muitas delas, era a primeira chance de falar sobre o trauma que envolve a violência de quem passou por esse abuso. Casos que variavam entre uma cantada de mau-gosto até o estupro.

A caixa escura da van recebeu os testemunhos de 140 mulheres, de 14 a 85 anos. Vinte e seis desses depoimentos compõem o documentário Precisamos falar do assédio, da diretora Paula Sacchetta, com produção da Mira Filmes. A película terá uma vídeo-instalação no SESC Santana, exibida de 1 a 31/3, mostrando as oito horas de material bruto do filme.

Em uma sociedade que naturaliza o assédio, a dureza das declarações pode ser notada pelo olhar de medo, pela respiração aflita e pelo desabafo de quem percebe – finalmente – que não está sozinha. “Uma começa a falar e encoraja a outra a falar”, conta Paula, que caminhou com a van por nove locais, em São Paulo e no Rio de Janeiro, oferecendo uma rara escuta. “Por um lado, havia o acolhimento e por outro lado, o grito, a denúncia. Vamos começar a falar, juntas, para tentar mudar alguma coisa.”

Há, por exemplo, o caso de uma jovem mulher que, usando uma máscara azul simbolizando a tristeza, contou ter sofrido abuso aos 13 anos. Ela nunca teve coragem de contar a ninguém a violência que sofreu, nem para a psicóloga, nem para a psiquiatra, mesmo muitos anos depois. “Elas tratam algo que elas nem sabem o que é”, desabafa. “Enquanto eu não tratar isso em mim, não tem remédio que possa ajudar. Eu não consigo”, ela diz. Percebe-se também, ao longo da exibição, que na maioria dos casos os abusos partem de pessoas conhecidas e que geralmente exercem uma espécie de poder sobre a mulher, como professores ou médicos.

O filme é apenas uma parte do projeto “Precisamos falar do assédio”. A ideia de gravar os depoimentos veio da percepção de que muitas mulheres sofreram assédio e se calaram, sem saber que é tão comum. Quando as redes sociais exibiram as hashtags #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto, durante o que se chamou de Primavera das Mulheres, o que ficou explícito foi o fato de que o assédio – e a violência sexual – é muito mais comum do que pensamos.

Em parceria com a Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres de São Paulo, quem participava da gravação também podia ser atendida por uma funcionária da secretaria, que encaminhava os diferentes casos para instâncias de apoio jurídico e psicológico. No site www.precisamosfalardoassedio.com é possível assistir a todos os depoimentos e enviar outros testemunhos. A plataforma também oferece caminhos para denúncia e acolhimento, com endereços de todas as Delegacias de Defesa da Mulher, cetros de referência para a violência doméstica, além dos dispositivos legais que protegem as pessoas desse tipo de agressão.

A culpa é da vítima

O documentário é extremamente atual e relevante diante de uma sociedade que se demonstra machista, misógina e intolerante. Nesta quarta-feira (21), o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre violência sexual contra mulheres. Os números revelam que um terço  dos brasileiros acredita que a culpa pelo estupro é da própria mulher. Os dados, encomendados pelo Fórum de Segurança Pública, mostram que o problema é muito maior do que se pode imaginar: a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Estima-se que apenas 10% dos casos sejam notificados, o que sugere que anualmente aconteçam 500 mil estupros.

O quadro se torna mais assombroso quando se constata que 70% das vítimas desse tipo de agressão são crianças e adolescentes de acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde). O estudo aponta ainda que 85% das mulheres têm medo de ser estuprada.

Por isso é tão importante falar sobre o assédio. “Toda mulher, sem exceção, tem uma história para contar”, lembra Paula. “Isso é assustador.” No Brasil, a cultura do estupro está muito viva

O direito vencendo a ciência

Renato_Janine_Ribeiro_em_2015
FOTO: Valter Campanato/Agência Brasil

Praticamente não existem ciências humanas antes do século XIX. Quer dizer que sociologia, antropologia, ciência política, psicologia e mesmo história, como ciências, têm no máximo duzentos anos. Houve precursores, mas essencialmente o que hoje conhecemos do ser humano é obra recente. Os avanços nessas áreas foram notáveis.

Acontece que, quando você estuda o indivíduo ou a sociedade, você está envolvido no estudo. Podemos ser mais objetivos quando tratamos de física ou química, mas no caso do ser humano nossos interesses ou desejos se envolvem. E isso traz pelo menos um resultado positivo: quem estuda o ser humano, na maior parte dos casos, quer melhorar a vida de nossa espécie. Haverá divergências sobre o que é melhor para nós, mas a vontade de melhorar será forte. Quem usou as ciências humanas para o racismo acabou no lixo da História.

Isso levou muitos cientistas humanos a se tornarem militantes, sem com isso perderem o rigor científico. Antropólogos, por exemplo, defendem direitos de indígenas, negros e de minorias em geral. E por aí vai.

O problema é que, de um tempo para cá, esse ativismo levou alguns a negarem o próprio espirito científico. Vejam Freud: sua principal batalha foi contra a moral, se quiserem, contra o moralismo. Ele revelou a força de pulsões sexuais que, para sua época, eram algo proibido, de que não se falava. (Agatha Christie, em seus primeiros romances, chega a contar que uma moça em começos do século XX perderia a reputação se a vissem sair de um… banheiro).

Acontece que hoje falar, cientificamente, de certos assuntos suscita, em vários meios, uma reação estranha: é como se a simples menção de algo imoral representasse a defesa dessa imoralidade. Pego diretamente uma declaração de uma signatária do manifesto em defesa da cantada (não do assédio!) assinado por cem francesas, e que afirmou que uma mulher pode gozar durante um estupro. Ela disse que pode gozar, não que goza. No entanto, o que ela disse foi entendido como defesa do estupro. (Não confundi-la com outra que disse que queria ter sido estuprada. São duas declarações bem diferentes). O que ela disse foi infeliz, mas quando se vai estudar a sério a sexualidade o que se descobre pode não agradar aos bons costumes, nem aos antigos da opressão e da repressão, nem aos modernos, da igualdade e do respeito ao outro (e à outra).

E aqui temos o abismo entre a militância e a ciência. O conhecimento científico não pode ter barreiras. Ele lida com o horror, eventualmente. Mas sem se conhecer o que há de pior não se conhece o ser humano. Não há ciência sem a disposição de suspender o juízo moral para se conhecer. Mesmo que nosso objetivo seja combater o horror – no caso, o abuso sexual – precisamos entendê-lo.

E aqui temos o abismo entre a militância e a ciência. O conhecimento científico não pode ter barreiras.

Como é justamente no que tange o sexo (uso essa palavra de propósito, e não gênero, porque quero enfatizar o lado do desejo, da libido) que há ainda um enorme número de abusos e de preconceitos, o que pretendo enfatizar é simples: conhecer as causas ou as razões de um processo não significa elogiá-las. Não significa tomar o partido delas.

Já vi muita gente criticando quem procurava ver, em nosso sistema eleitoral, o que favorece a corrupção. Recusavam a ideia mesma de que a corrupção tivesse causas; para eles, decorria apenas da desonestidade pessoal. Por isso, paradoxalmente, repudiavam qualquer reforma que tornasse mais honesto o sistema, alegando que a pessoa é honesta ou não, como se as circunstâncias não jogassem nenhum papel. (Se houver um sistema em que seja francamente prejudicial respeitar as regras do jogo, elas tenderão a ser desrespeitadas. Imaginem-se num congestionamento na estrada, com motoristas ultrapassando pelo acostamento. Conheço gente corretíssima que, depois de meia hora se sentindo otária, adere à ilegalidade.). Pois bem, conhecer as causas – das ilegalidades pequenas, dos abusos e problemas sexuais, da corrupção e da violência – exige muitas vezes lidar com o que chamarei, para simplificar, gradações do Mal. Pois sem conhecê-lo não há avanço científico.

Ninguém coloca essa questão quando se pesquisam as causas de uma doença. Se um médico descobre o que causa uma gripe, ou um câncer, alguém o acusará de estar defendendo a moléstia em questão? Mas é o que muitos fazem quando se investiga o que causa condutas humanas desaprovadas.

E é por isso que o direito, o melhor direito mesmo, a defesa das causas “do bem”, vai se intrometendo em áreas que não são dele. Vai aplicando uma série de normas, corretas, justas, do bem, mas que por vezes negam até a possibilidade de estudar fenômenos constatados. O que acaba sendo um tiro no pé. Se não soubermos o que anda na cabeça do pior criminoso, como poderemos enfrentar as causas do crime?

FestA! ocupou as unidades do Sesc SP no fim de semana

fernanda sanino e Leticia Piagentini da lumberjills
As Lumberjills, Fernanda Sanino (à direita) e Leticia Piagentini (à esquerda), ensinarão a marcenaria no FestA!. FOTO: Ana Paula Ferreira

As 39 unidades do Sesc espalhadas por São Paulo sediarão durante os dias 2, 3 e 4 de março a segunda edição do FestA!, o Festival de Aprender. A iniciativa tem como objetivo difundir o acesso gratuito a atividades que desenvolvam o conhecimento em diversas esferas nas áreas de tecnologia e artes visuais. As mais de 500 atividades oferecidas serão coordenadas por profissionais de peso em cada setor, como Djamila Ribeiro, Paulo Bruscky, Amadeu Zoe e Araquém Alcântara.

Uma infinidade de áreas são contempladas no FestA!. O público encontrará práticas manuais, digitais e artísticas, dentre outras. Apesar de gratuito, algumas das atividades do festival necessitam de inscrição prévia ou outras de retirada de senha com 30 minutos de antecedência, as demais têm acesso livre. É recomendado observar a classificação indicativa na programação.

A inciativa tem como objetivo, também, trazer o olhar do público para a pluralidade de cursos, oficinas, palestras, vivências e outras tantas opções de atividades de curta duração que o Sesc oferta à população ao longo do ano. Fernanda Sanino, da Lumberjills, projeto de marcenaria e tapeçaria feitas por mulheres, ressalta a dimensão do festival: “Está sendo muito importante para nós participar desse evento, porque ele ajuda a ressaltar, divulgar e incentivar as habilidades com as mãos, que se perderão muito no mundo moderno”.

Fernanda e a sócia, Letícia Piagentini, ministrarão, no Sesc Santo André, oficina
e vivência em marcenaria básica criativa. “Está sendo uma honra poder participar e levar a marcenaria e o empoderamento feminino, que a gente prega tanto, por aí”, finaliza Sanino.

O público poderá participar de uma oficina de desenho de paisagens com a arquiteta Carla Caffé, ministrada dentro de um barco, em Bertioga. Também é possível aprender técnicas de encaixe na marcenaria japonesa com o designer Igor Hideki Hatanda no Sesc Pompeia, além de várias outras opções de práticas ligadas à cultura oriental na unidade. Uma oficina e um bate-papo sobre Xerografia e Poema Linguístico fica a cargo do artista Paulo Bruskcy no Sesc 24 de Maio. Na unidade de Pinheiros, o destaque é a JUNTA!, Feira de Livro de Artista Latino Americana.

Clique aqui para conferir toda a programação e todos os horários do FestA!

 

A sexualização feminina nas artes plásticas brasileiras

Anita Malfatti
Anita Malfatti, "A Boba", 1916).

1. SEMBLANTE DE MULHER

Anita Malfatti tornou-se conhecida a partir de uma tela pintada em 1916 e exposta em Paris, chamada A Boba. Anita nasceu em 1889, ano da proclamação da República, apenas um ano depois da lei que libertou os escravos no Brasil. Ela morreu em 1964, apenas dois anos antes que eu mesmo tivesse nascido. Este fato devia nos surpreender mais. Apenas uma existência separa este que vos fala de uma época de escravidão. Anita pintou mulheres fazendo uso da deformação expressionista e da decomposição perspectiva praticada pelo cubismo. Ou seja, quando mulheres começam a produzir seus próprios semblantes nesta linguagem específica das artes visuais, elas o fazem segundo uma consciência estética às voltas com o tema da perda da coisa. Certo que este é um problema comum para as vanguardas dos anos 1920, ou seja, a coisa só pode ser recuperada se admitirmos estratégias de negativização do Real. Se o realismo romântico e também o certo impressionismo pretendia apreender a relação entre a representação e a coisa, os anos 1920 descobrem que o real se apreende pela via do negativo, pela retomada da experiência perdida, pelo retorno da presença a partir da ausência. Surge então um olhar que capta os acontecimentos em série e que se distribui entre estratégias de negação, repetição e deformação.

Mas perder-se como coisa é deixar a escravidão. É emancipar-se como posição de olhar e lugar de fala. O semblante feminino que Anita constrói terá este traço fundamental de que há uma parte que falta. Ou seja, além de conciliar uma forma estética deformativa com uma contradição social representada pela liberdade que se avizinha, ainda que não se realize, há um detalhe a mais, que dá o tom especificamente singular desta mulher: a ocultação característica do braço esquerdo.

Sabe-se que Anita tinha muita vergonha de um pequeno defeito em sua mão direita. Defeito que teria contribuído para formar seu caráter recluso e talvez tivesse impedido que ela se declarasse ao seu amor improvável, Mário de Andrade.

Semblante é um dos operadores da sexuação. O semblante unifica e compõe uma variedade de traços, em sistemas de linguagens distintos, formando uma unidade. A sexuação é semblante porque ela exige um ato performativo pelo qual cada qual assume, um semblante. No mesmo sentido em que a fala é a assunção de uma língua por aquele que fala. Assumir um semblante não é identificar-se com traços essenciais do que é ser mulher ou do que é ser homem, mas construir uma unidade entre as histórias. Neste caso a história de opressão a deformação estética encontra sua unidade na subtração de um elemento. Um elemento faltante em quase todas as suas telas: a mão esquerda.

Como é possível que um acidente deste tipo crie para alguém o sentido de um sofrimento punitivo? Parece-nos aceitável que alguém se envergonhe das características disfuncionais de seu corpo. Mas como a parte pelo todo tornou-se, neste caso, uma espécie de metonímia feminina. Argumento que isso capta algo que extrapola o caso singular, contendo em si a disposição histórica da feminilidade do Brasil nos anos 1930: o sofrimento com a vergonha do próprio corpo.

O aspecto metafórico deste semblante pode ser encontrado em Tarsila do Amaral. Em seu auto-retrato também encontramos este pequeno gesto pelo qual a mão direita encobre a esquerda. A mão boba desta vez está ausente de outra maneira. Não se trata de deformação ou de desencaixe perspectivo, mas de uma verdadeira ausência. Ausência que nos passa desapercebida porque o vestido vermelho a envolve. Envolta e protegida, por uma espécie de armadura, a tela é composta logo depois da primeira exposição da artista em Paris, na Galeria Percier, em 1926.

Enquanto as obras de Anita envolvem títulos metonímicos e descritivos, como A BobaA Estudante Russaou A mulher de cabelos verdes, os retratos de Tarsila evocam nomeações metafóricas, como as que se poderia criar para seu autorretrato em vestido vermelho: A Mulher FarolA Dama de Ferro. É também pela exageração que as partes do corpo tomarão conta do semblante de mulher em Abapuru, o nosso Antropófago fundador, que não deixemos de lembrar, foi um presente de aniversário Tarsila para seu marido Oswald de Andrade. Nele vemos imensos mão e pé. Nele a boca, órgão antropofágico por excelência está ausente. Vemos ainda uma estranha estrutura que pode ser um nariz, ou um seio, talvez um braço deslocado ou dobrado, sobre o qual o melancólico apoia seu rosto.

O que temos, nos dois casos, Anita e Tarsila, é uma espécie de incompletude da representação de si, de pequena falha no semblante, referida à interferência desta função que Lacan chamou de objeto a: as mãos subtraídas, a mancha ou a nódoa que indetermina o fechamento da forma, a ilusão ou engano na composição da unidade do corpo. Isso contrasta vivamente com o modo como se apresenta o semblante de Mário de Andrade, pintado em toda sua solidez e inteireza, tanto por uma quanto por outra.

2. FANTASIAS DE CORPO

Situação análoga, porém de outra natureza, se encontrará na análise comparativa de duas damas do neoconcretismo dos anos 1960. Na tela Retrato de Regina, de 1949, vemos uma jovem Lygia Clark que parece ter se formado na experiência da assexuação modernista. A tristeza do olhar, a abstinência das mãos, o modelo infantil.

Vejamos o contraste disso com a Lygia Pape de Língua Apunhalada (1968). Não estamos mais na produção de um semblante feminino com seu traço de negatividade, mas na metáfora da impossibilidade de dizer. Novamente temos aqui a conjugação entre uma contradição social, representada pela censura praticada pela ditadura civil militar e uma forma estética, desta vez sem deformação alguma, posto que fotográfica. A forma estética é produzida pela ambiguação metafórica da língua, como parte do corpo e da língua como meio da fala. Apunhalada é o significante que faz interferência. Mas não vemos a faca ou o punhal, apenas o sangue que escorre. Chegamos um segundo depois do ato. Mas percebemos a cena na qual ela nos mostra a língua. Metáfora sobre metáfora, pois agora é um gesto de escárnio e repúdio, que vemos nas crianças, e que sobrevive na mensagem da língua que não se dobra. O que temos aqui é um funcionamento que faz parte da sexuação, não como semblante, mas como fantasia. Na série da fantasia, o essencial é dado pelo enquadre. Este instante que define a montagem de um conjunto de perspectivas, para o qual nosso olhar é convidado a entrar. Ficamos assim
conjecturando sobre o que teria acontecido antes ou o que acontecerá depois.

Reencontramos o tema da negativização de uma parte do corpo em Lygia Clark com Máscara Abismo com Tapa Olhos (1968). Aqui são os olhos que estão vendados, nos impedindo de ver. Mas também é a boca e, portanto, a língua que se direciona para um tubo rumo ao abismo. O tubo reticulado é transparente de modo que podemos ver o batom bem delineado sob os lábios. A mascarada é um conceito psicanalítico trazido por Joan Riviére e desenvolvido por Lacan como uma estratégia feminina de sexuação. Não é que atrás da máscara exista a essência da sexualidade feminina, mas que historicamente ela se apropria da máscara para dizer que a feminilidade é apenas um conjunto de máscaras, como uma cebola infinita onde seu centro interior se comunica com o exterior.

Outra estrutura construída em torno do encobrimento é Divisor, de 1968, onde Lygia Clark coloca um lençol gigante nos quais as pessoas podem cobrir seus corpos e deixar suas cabeças de fora. Lembremos que o lençol é a peça de roupa preferida pelos fantasmas. Ele faz a função de véu, essencial ao trabalho da fantasia. Mas qual divisão? Entre cabeça visível e corpo oculto? Entre a hipótese de fantasia de várias cabeças com um mesmo corpo? Cabeças sem corpo? Como fantasmas assexuados ou no lugar da ausência de corpo mostrado incitação a um corpo por ser construído por nossa fantasia? A fantasia é o divisor do sujeito, a estratégia pela qual ele se apreende como objeto para o outro ou como ele se divide como sujeito em seu próprio desejo. Ela é também o indutor do sintoma: palavra amordaçada, metáfora do desejo, censura de gozo.

Duas mulheres contemporâneas de Simone de Bouvoir que pensam a arte com o corpo, mas também com uso do corpo que parece inquietar-se com a estabilidade de suas imagens representativas. A contraface disso encontramos em Wanda Pimentel. Nela há outro registro construtivo para os mesmos pés e mãos deslocados. A mesma estratégia de assexuação por subtração do corpo todo. São sempre corte, ângulos, perspectivas que produzem este efeito na fantasia, de que a parte ausente, nós mesmos temos que completar, com nossa própria fantasia.

No ponto de cruzamento entre a tradição formalista e na tradição pop temos este ponto comum de abordagem do real da sexuação pela via da sua produção como hipótese de fantasia, conjectura ou paródia, como diria Judith Butler. Como se estivéssemos aqui às voltas com uma crítica da sexualidade como mostração de semblantes. Lembremos a observação simples de John Berger [1] de que a tela é, antes de tudo, um cofre onde o burguês pratica sua arte de apossamento e acumulação da experiência perdida.

Lígia Clark, com sua deriva da arte para a psicanálise e a correlata prática de invenção de experiências, assim como Lygia Pape com sua aproximação com a arte gráfica e do design dos conhecidos biscoitos Piraquê, acrescentaram ao feminino, como problemática do semblante de si, a subjetivação da fantasia como uma tarefa.

Novamente, o que temos aqui é menos do que a exposição de uma sexualidade crua em sua demanda de pleno exercício e acontecimento e mais a tematização de uma assexução, ou seja, de como fracassamos em dizer a sexualidade, tanto porque o objeto a atrapalha o semblante quanto porque ele introduz a fantasia da asexuação. As duas formas estéticas que estavam juntas nos anos 1920, agora aparecem separadas. De um lado, a perspectiva tenta sair do espaço bidimensional da tela (com seus trípticos e suas superfícies de Moebius gigantes). De outro lado a deformação parece tomar consciência dos sistemas de encobrimento: a máscara, o vestido, o envoltório.

Se o semblante faz gênero, a fantasia faz espécie. Por isso há sempre um descompasso entre nossa experiência coletiva do gênero e nossa singularidade de fantasia. Neste caso isso pode ser mostrado pela oposição entre a contradição social, em um momento de silenciamento da palavra, e principalmente redobramento do silenciamento das mulheres e a forma estética que inverte este processo ao colocá-lo em uma linguagem específica desta mulher.

Lygia Pape, ‘Língua Apunhalada’, 1968.

3. GOZO FEMININO

Chegamos assim ao terceiro momento destas histórias. A partir dos anos 2000, muitas artistas brasileiras começam a se interessar pelo traço. Como se nessa diferença mínima, e na sua repetição, algo se escreve sobre o gozo feminino. Isso está nos alfabetos poéticos de Mira Schendel, nas variedades composicionais dos retalhos de Leda Catunda, no grafismo hiperintenso de Teresinha Soares.

Para Lacan, o gozo feminino tem uma propriedade interessante em sua diferença para o gozo masculino na medida em que eles são formalizáveis por meio de dois tipos distintos de infinito. Quando digo formalizáveis me refiro a possibilidade de que o gozo se escreva e nisso ele tem esta primeira característica de que uma vez que ele começa, temos sempre medo de que não vai parar mais. Como se diz, se dou o dedo ele quer o braço e se dou o braço ele vai querer levar as pernas. O gozo é um perigo porque ele sempre quer mais, inclusive o gozo opressivo do supereu. Estamos aqui no registro antropofágico do mal-estar. Um de seus suportes mais fecundos é justamente a metáfora da escrita.

Este problema da infinitude do gozo aparece vigorosamente em Anna Maiolino. Para ela Tudo Começa pela Boca, a boca que devora infinitamente um fio, ou então a boca que regurgita infinitamente um fio em In And Out [2]. Fios que prendem os cabelos da artista, como uma tiara, deixando-a jovem e infantil. Tiara que se desdobra em uma segunda volta, tornando-a uma múmia, prisioneira de seu próprio fio. Múmia que se transforma em um nó que aprisiona e fecha o circuito. Finalmente nó que termina na metáfora sintomática do “embrulhada para presente”, com um lindo laço na ponta. Processo descritivo de como o infinito de uma linha vai se transformando na finitude de uma unidade compacta. Processo que permite mostrar como começamos na série infinita e ambígua, passamos pela fantasia e chegamos ao semblante. A Mulher Presente, a Mulher Embrulhada para Presente … só que não, pois é justamente a Mulher Ausente.

Processo homólogo aparece em Shirley Paes Leme e seus trabalhos sobre ranhuras, gravetos, filamentos como em Fumaça Congelada sobre Tela de 2015, onde a textura e a seriação das letras aparece dando materialidade ao livro, não como forma expressiva, mas como fio de letras que se dispõe como forma estética. Se a sexuação masculina pode ser escrita como uma reta de números naturais, onde podemos contar {1,2,3, … n} a sexuação do gozo feminino é uma reta de número reais onde não podemos contar com suas regras de formação {0, 1}. Não há binário aqui porque a reta dos naturais compreende um elemento anômalo que é o zero e a reta dos reais compreende imprevisibilidade e ausência de fechamento. Com isso, tanto o fechamento do semblante quanto a proporção da fantasia são subvertidos por uma experiência da não identidade, da contra identidade. O malestar do não-todo aparece ainda na obra de Elida Tessler, principalmente no processo de rescrita de objetos historicamente ligados à experiência feminina: prendedores de roupas, chaves, toalhas de mãos, meias de seda, lupas, rolhas, esmaltes de unha. Repetidos indefinidamente e escriturados, eles perdem seu suporte de sofrimento e sintoma, aparecendo como nomeação do mal-estar.

4. CONCLUSÃO

Trouxe aqui três capítulos de uma reta infinita. Capítulos de uma história que subverte seus próprios segmentos, pois não precisa ser contada assim, em ordem ou ao modo de uma série. Temos então outras histórias da sexualidade para contar, pois cada momento em que estamos recria uma história
que o torna ao mesmo tempo possível, nos trazendo para um universo de verdade em estrutura de ficção, mas também para o impossível impensável de cada instante, que é o instante impossível do agora.

Para podermos contar novas histórias, precisamos nos libertar tanto dos semblantes quanto das fantasias e ainda de nossas identidades de gozo. Isso produziria histórias não concêntricas, histórias que não seriam contemporâneas de si mesmas, nem anacrônicas em relação ao Outro. Histórias contingentes. É isso que se poderia esperar da entrada do infinito como conceito crítico para a experiência de gênero e suas fantasias. Histórias que não seriam necessárias, nem apenas possíveis, por representar um ponto de vista ou perspectiva, como qualquer outra.

Nosso tempo de concorrência de narrativas, de histórias feitas às pressas, de retalhos de pós-verdade, precisa levar mais a sério aquilo que ofende sua unidade constituída de capítulos fixos. Precisa levar em conta que a loucura, a miséria e a vulnerabilidade que produz milhares de rejeitados. A história das sexualidades é tensão entre forma estética e contradição social. Ela serve para nos lembrar que usar corpos humanos, tratados apenas como matéria prima para o espetáculo da limpeza social, não é apenas um crime higienista e uma segregação tolerada, mas ela inventa e reproduz gramáticas políticas que depois grudarão em nossos olhos, nos desacostumando com o estranhamento diante do sofrimento.

[1] Berger, J. (1973) Modos de Ver. São Paulo: Rocco (1999).
[2] In-Out (Antropofagia), 1973/74, duração 8’27’’

Gêneros e seus descontentes

marcha-mulheres-negras
Igualdade de gênero é tratado como ideologia pelos conservadores. Foto: Reprodução / EBC

Quando estive na Inglaterra, em 2001, o ambiente acadêmico fervilhava em torno da herança das teorias feministas dos anos 1970, agora revigoradas em estudos de gênero (Gender Studies), estudos gays e lesbianos e mais tarde pela teoria Queer. Independentemente de seus temas e autores específicos, o movimento incluía uma espécie de retomada da presença da política nas ciências humanas. Mas as teorias de gêneros só podiam ser compreendidas em uma paisagem composta por outras teorias emergentes, como os estudos culturais de Stuart Hall e Raymond Williams, que questionavam a hierarquização entre cultura erudita e popular, e a teoria pós-colonial, de Spivak, que criticava a presença de processos de racialização e subalternidade em sociedades complexas que, aparentemente, teriam deixado isso para trás. Essa paisagem incluía ainda o pós-marxismo de Zizek, Laclau e Badiou, o pós-estruturalismo de Derrida e Deleuze e, fechando o trem, quase saindo do comboio, a psicanálise de inspiração crítica de Juliet Mitchel e Julia Kristeva.

Um dos aspectos mais interessantes dessa tendência nascente era a forma como ela conseguia estabelecer debates transversais bem como unir a pesquisa universitária ao mundo real. Talvez isso decorra das origens bífidas do feminismo, entre intelectuais e sindicalistas. Quem faz academia costuma concordar quanto aos dois problemas que nos assolam: a mania administrativa, que faz com que o pesquisador se dedique mais a preencher formulários do que a aulas ou projetos, e a prisão departamental, que acorrenta cada qual a seu tema, suas revistas, sua comunidade, tendencialmente superespecializante. Recentemente perdemos uma de nossas mais dedicadas neurocientistas, Suzana Herculano-Houzel, para o primeiro problema. Os estudos de gênero, por estarem dispersos pelas humanidades, sem residência fixa na antropologia ou na psicologia, nas letras ou na filosofia, acabaram sendo uma espécie de alívio contra o confinamento da conversa universitária e uma forma de voltarmos ao “mundo real” depois do declínio do que antes se chamava debate político, cujo epicentro era a economia, o direito e a história.

De volta ao Brasil, não entendia por que tais teorias estavam subrepresentadas, com seus pioneiros ainda com pequena visibilidade e a maior parte dos autores de referência pouco traduzida. Contudo, em dez anos as coisas se alteraram substancialmente e de forma inusitada. Hoje não há escola que se preze em São Paulo que não conte com um coletivo feminista. Os movimentos LGBTTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros) multiplicaram-se, ganhando visibilidade e reconhecimento, mas o mais importante é que se nota uma crescente alteração de nossos modos de pensar e praticar relações entre gêneros. Quero crer que a grande novidade desse conjunto de movimentos está em pensar que nossas relações mais cotidianas e nossos hábitos mais simples replicam e atualizam relações de poder. Em nossas pequenas decisões linguísticas ou comportamentais, de consumo e de estilo, no campo do trabalho, do saber e do amor, há um jogo envolvendo o poder. Isso traz para cada aspecto do cotidiano a possibilidade de uma transformação dessas relações, ou seja, um caminho real e acessível para que inventemos outro mundo, e para que nos sintamos parte da diferença que faz diferença nesse processo. Se nos anos 1950 o trabalho e a nação definiam o teor dessa diferença e nos anos 1970 o lugar da transformação migra para a sexualidade e o desejo, os anos 2000 convidam a pensar uma encruzilhada, ou melhor, uma intersecção, entre as diferentes formas de minorização do outro e de si mesmo, bem como as políticas de reversão dessa minoridade. Para tanto a profissão e o estudo, as formas de amar e desejar, as modalidades de governo e de família, sobretudo, o corpo e a cultura, devem ser pensados como determinados por opções construídas, e não naturais. Nelas não há nada de essencial, compulsório ou coercitivo.

Ao que tudo indica, os descontentes com a ascensão das demandas de gênero só conseguem ler nesse conjunto de reivindicações perda de espaço e de poder, ameaça à família e ao recato. Uma concorrência entre feminismo e machismo, como se fossem partidos particulares e simétricos em busca de uma fatia de poder. Os descontentes com a questão de gênero a transformam em uma ideologia, como se a verdadeira ideologia não fosse esta que nos impede de ver as desigualdades flagrantes na relação entre homens e mulheres, a discriminação de homossexuais, o horror aos transexuais e até mesmo o sofrimento daqueles que não se definem em nenhum gênero. Quando o intrainterino Temer deixa as mulheres de fora de seu ministério, isso não deveria ser lido apenas como uma ofensa à equidade de participação no poder, nem nos levar a qualquer consideração de excelência comparativa, mas como uma declaração ostensiva de que ele não ”pensa com gêneros”. Ele não pensa com tudo o que essa questão representa em termos de metonímia do problema da violência, da segregação, da iniquidade e da diferença social em nosso País. Assim como ele não “pensa com a cultura”. Sua forma de fazer política é ainda dos anos 1950, parodiando Pascal, “ajoelha e trabalha que a fé virá por si mesma”, como se do progresso da economia brotasse, espontaneamente, a felicidade dos povos. Seu problema não está nas soluções que ele está a praticar, mas no anacronismo de sua teoria da transformação.

A chamada quarta onda feminista, assim como a maior parte dos movimentos adjacentes, sofreu um grande impulso com a internet. É como se tivéssemos passado de uma situa­ção de flagrante atraso discursivo, que retratei acima, para um salto rumo a uma vanguarda de problemas sociais maltratados. Problemas que estavam há muito esperando reconhecimento, tendo como ponto de convergência a violência e a segregação. De certa maneira, a colonização brasileira da internet seguiu rapidamente as etapas do debate sobre o poder. Primeiro foi usada para assuntos estratégicos, científicos e militares de interesse da nação. Depois veio o tempo dos grandes negócios, do ecommerce e da startups milionárias. Em seguida tivemos a fase da pornografia farta, copiosa e massiva. Agora, o vazio de sentido e o excesso de meios formais disponíveis parecem ter encontrado na questão de gênero e no sofrimento de gênero um conteúdo universal. Campanhas como #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e #AgoraÉqueSãoElas trouxeram uma nova estratégia de tematização da opressão e da violência. Não apenas conscientização e luta por direitos institucionalizáveis, mas uma reforma do cotidiano e uma indignação prática contra a iniquidade entre gêneros. Junto com isso vem a descoberta de uma nova força da palavra, capaz de denunciar e responder na mesma moeda a ofensa recebida. Isso é bastante compatível com a ideia de que o gênero não é apenas uma condição anatômica ou biológica, por exemplo, homem ou mulher, nem uma orientação de desejo ou de afeto, como homoerotismo ou heteroerotismo. O gênero é algo que se faz, não só algo que se é. Ele é uma prática que por meios performativos, ou seja, pela eficácia na repetição de certos padrões, cuja origem ou referência pode ser vazia, referenda ou desconstrói relações de poder.

O atraso universitário na questão de gêneros é um sintoma de como o Brasil pensa ainda seus meios de transformação como excessivamente ligados à institucionalização do tratamento de diferenças. Leis são fundamentais, mas nem sempre elas alteram a substância social dos que são tocados por ela. Quero crer que uma grande novidade e parte da força política do novo feminismo residem nesse ponto. Tocar as relações imediatas, pré e pós-institucionais, a vida privada e a esfera desejante, assim como seu impacto público e econômico. O preço a pagar pela eficácia dessa estratégia é a sedimentação de identidades que se particularizam excessivamente no espaço público. E isso é distinto de fazer valer a singularidade de cada sujeito, objetivo de uma verdadeira política dos despossuídos, inclusive dos despossuídos de sua própria identidade.

Por isso a opressão da mulher pela mulher deve ser pensada junto com todas as outras opressões. Em uma era pós-identitária, e seguindo a tese da essência vazia como forma de resistência ao poder, a militância por um grupo específico exige critérios performativos para saber afinal: quem é uma mulher? Ou seja, a política de identidade pode ser decisiva para criar reconhecimento diante de outras tantas identidades. Mas isso não parece funcionar tão bem para além desse plano estratégico. Separada de uma política que reconheça em todos um fragmento de minoria, tenderá a praticar a segregação e a autossegregação que pretende erradicar. Sem retomar sua função de transversalidade entre os saberes e de interseccionalidade entre minorias, seu destino será o de reificar a posse capitalista desse bem narcísico: a própria identidade.
Para tanto precisaremos de uma quinta onda.

Ter vergonha na cara, por Renato Janine Ribeiro

renato janine
Renato Janine Ribeiro em cerimônia como ministro da Educação. Foto: José Cruz / Agência Brasil / Fotos Públicas

Não estou interpelando os outros, os que discordam de nós. Estou dizendo que nós mesmos, que nos consideramos progressistas, seja nos costumes seja na política, precisamos ter vergonha na cara. Faz dois ou três anos que vivemos uma crise forte, e nos sentimos desarmados, sem saber o que fazer. Deveríamos ter aprendido.

Pela simples razão de que, nos últimos 60 ou 70 anos, os tempos de crise, de insatisfação, de desânimo foram mais longos do que os momentos de satisfação, de euforia ou contentamento com nossa vida social e política. Pela conta que farei agora, nesse período tivemos mais de 40 anos ruins, versus duas décadas de otimismo e confiança. Dois anos ruins para cada ano bom. Por que, então, cada vez que vivemos um desastre, nos sentimos sem rumo, sem saber o que fazer? Já devíamos ter aprendido, pelo menos os mais velhos.

Começo com o suicídio de Getúlio, em 1954. O Brasil só retoma o ânimo com os otimistas cinco anos de Juscelino Kubitscheck. Depois vive a crise de Jânio e Jango, a repressão e a revolta após o golpe de 1964 – e só volta a ter otimismo no período do ditador Médici. Notem: não estou fazendo juízo político. Só quero checar os tempos em que, com razão ou sem, a sociedade brasileira olhou o presente e o futuro com confiança.

Depois de Médici, são 21 anos de crise, até que o Plano Real, em 1994, estabiliza a moeda. O primeiro mandato de Fernando Henrique dá satisfação – mas não o segundo. Lula, em seus dois mandatos, faz o Brasil conhecer quase que o êxtase, tanto assim que deixa o governo com uma aprovação em torno dos 80%. Mas, desde o terceiro ano de Dilma, entramos numa crise que só tem piorado.

Fazendo contas: JK, Medici, FHC 1, Lula, Dilma 1 somam uns 23 anos de confiança (repito, justificada ou não, nós gostando ou não). E isso, contra 40 anos de depressão.

Tivemos assim quatro décadas para aprender a lidar com a frustração. Entende-se que os mais jovens, bafejados por quatro anos de FHC-1 e uns 11 anos petistas, estejam menos preparados para lidar com as dificuldades. Mas o Brasil, como um todo, deveria ter aprendido a lidar com seus problemas e a enfrentá-los.

Por que não o fizemos? Porque terceirizamos nossa política. Isso não é de ontem. É uma longa trajetória histórica, que continua forte.

Culpamos os outros pelo que acontece. Penso que diminuiu o uso da terceira pessoa do plural para falar das frustrações e proibições (“fecharam essa rua”, “aumentaram o preço da gasolina”). Esse é um bom sinal! Nós omitíamos o sujeito, quando íamos falar de coisas ruins. Era um “eles” oculto, querendo culpar o outro e ao mesmo tempo tendo medo de identifica-lo. Isso melhorou, talvez, na linguagem.

Mas continuamos não nos sentindo responsáveis pelos desastres sociais e políticos.

Ser responsável não é ser culpado. Culpa é de quem fez a coisa errada. Responsabilidade é de quem vai resolver o erro, mesmo alheio. Quem se eleger em 2018 vai dirigir um país fraturado. Os problemas podem não ser culpa dele, mas será sua responsabilidade solucioná-los.

Pior que isso, não aprendemos a reagir ou a agir. Três governos foram derrubados por serem de esquerda – Getúlio, Jango, Dilma. A reação a suas deposições foi fraca – exceto no primeiro caso, mas isso porque Getúlio se suicidou, o que foi a solução extrema para adiar por dez anos o golpe militar. Mas não construímos estratégias, nem psique, para resistir ao retrocesso ou promover o avanço.

Vi isso quando fui ministro da Educação de Dilma Rousseff, por seis meses em 2015. Entrei no governo diante da possibilidade de seu impeachment, fui exonerado (para dar espaço ao PMDB) quando o impeachment já era uma probabilidade. Mas o que mais me surpreendeu, negativamente, foi a atitude dos beneficiários dos programas petistas de inclusão social. (Vejam bem, não isento de culpa quem destruiu o governo: mas questiono por que os que o defendiam, o defenderam tão mal ou tão pouco).

Olhando do MEC, os beneficiários das políticas públicas não foram solidários com o governo que lhes tinha aberto tantas oportunidades, mais que dobrando as vagas de ingresso nas universidades federais. Eu tinha a impressão de que as pessoas que me procuravam no MEC não liam jornal, não ouviam rádio, não viam TV, não abriam a Internet: porque pareciam ser as únicas, no Brasil, a não perceber que vivíamos uma crise econômica severa. Pareciam acreditar que havia dinheiro suficiente para fazer tudo o que queriam.

Eu me pergunto: é possível fazer política sem ter meios de lidar com os momentos difíceis, com as vacas magérrimas? Dá para fazer uma política que só serve para os momentos afortunados? Tudo o que a esquerda saberá fazer, será distribuir melhor a riqueza, isso quando houver riqueza a ser distribuída? Não saberá, quando falta dinheiro, agir para produzir riquezas? Marx acharia isso um absurdo. E é mesmo.

Resumindo, quem quer fazer política tem de se preparar para os momentos bons e os ruins. O Brasil teve dois anos ruins para cada ano bom, nos últimos 60 anos. Então, como não saber lidar com isso? Agora não falo só da esquerda, falo da sociedade inteira. Parece que isso foi anestesiado porque de 1994 a 2014 tivemos, na minha conta, três anos bons para cada ruim. Esquecemos os longos anos ruins da ditadura militar. Mas a moral da história é que justamente nas horas difíceis é que precisamos mostrar resiliência e saber o que fazer.

“Não há inocentes. Todos têm responsabilidade pelos horrores”

siria-reproducao-facebook-vanessa-beeley
Segundo Paulo, os integrantes da oposição que começaram os protestos contra o governo de Bashar al-Assad durante a chamada Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, não têm mais participação direta no conflito. FOTO: Reprodução / Facebook Vanessa Beeley

À frente da comissão internacional e independente nomeada pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) para investigar as violações de direitos humanos na Síria, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro não tem dúvidas: os integrantes da oposição que começaram os protestos contra o governo de Bashar al-Assad durante a chamada Primavera Árabe, a partir de dezembro de 2010, não têm mais participação direta no conflito. “Ou eles estão mortos ou presos ou refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. O que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado”, afirmou Pinheiro em São Paulo, onde mora e recebe relatos das mais diferentes fontes, entre elas representantes dos grupos armados e dos capacetes brancos, como são chamados os voluntários locais que atuam nos primeiros-socorros às vítimas.

Convicto de que não existe grupo armado moderado, Pinheiro acredita que a única saída para o conflito é a negociação. Para o cientista político, a retomada da parte Leste da cidade de Alepo por parte do governo não significa o fim da guerra: “Os grupos armados, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando”. Em entrevista à Brasileiros, ele afirmou que recebe com cautela notícias que circulam nas redes sociais de que na Síria há mulheres se matando para escapar do estupro: “Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe.”

Em agosto de 2012, quando o cientista político já chefia a comissão nomeada pela ONU, a Brasileiros publicou uma reportagem de capa sobre o seu trabalho, intitulada Paulo Sérgio Pinheiro, o Pacificador.

Brasileiros – Como o senhor, que acompanha o conflito na Síria desde o começo, analisa a situação em Alepo?
Paulo Sérgio Pinheiro – Desde outubro a situação só vem se deteriorando. As negociações propriamente ditas foram paralisadas e o quadro se agravou também devido à intensidade dos ataques do governo da Síria, com apoio da aviação russa e também outras forças no terreno, como o Hezbollah. Simplesmente agravaram a situação na região Leste da cidade. Quando falo Alepo, estou falando da cidade, não da província. Então é preciso também sempre levar em conta que existe a região Oeste de Alepo, controlada desde sempre pelo governo da Síria.

B – A parte controlada pelo governo? 
PSP – Sim, pelo governo da Síria. A questão é que há uma desinformação total sobre quem é essa brava oposição armada que os Estados Unidos chamam de grupos moderados. Não existe grupo moderado algum. Esses grupos estão associados à organização que antes era Al Nusra, hoje a sucursal que se chama Jabhat Fatah al-Sham, que é exatamente a sucursal da Al-Qaeda, apesar de eles fazerem um esforço de dizerem que não são. E esses grupos armados atacavam indiscriminadamente – eles não têm aviação, mas têm morteiros – a população civil de Alepo Oeste.

B – O Jabhat Fatah al-Sham?
PSP – Isso mesmo, mas tem outros grupos também. Todos esses grupos participam dessa frente. O Al-Sham é considerado pelo Conselho de Segurança da ONU uma organização terrorista, assim como o Estado Islâmico. São esses grupos que estavam lutando em Alepo Leste.

B – Com apoio dos Estados dos Unidos.
PSP – E com apoio do Reino Unido, da França além de, evidentemente, da Turquia, da Arábia Saudita, do Catar. Enfim, toda a frente contra o governo Assad. Esses grupos, boa parte do tempo, tomam refúgio na população civil.

B – Tomam refúgio?
PSP – Eles ficam dentro das habitações ou mesmo colocam armas em escolas. Com isso, transformam essas escolas em alvos militares legítimos, o que é uma coisa grotesca. E também impedindo a população civil, que queria sair de Alepo Leste. O noticiário é totalmente desinformado e só dá a versão oficial dos países e da frente contra o governo Assad. Não há inocentes. Não há nenhum inocente. Todos têm responsabilidade pelos horrores que ocorreram em Alepo Leste.

B – Podem estar ocorrendo ainda?
PSP – Agora diminuiu. Com o governo no controle, a questão está só no debate humanitário, mas, há pouco, vários ônibus foram incendiados. Eram ônibus que transportariam habitantes para fora de Alepo Leste.

B – O presidente Assad ficou mais forte?
PSP – Foi um tento importante conseguir derrotar esses grupos em Alepo Leste. O que precisa ficar claro é que os integrantes da oposição que iniciaram o movimento tipo Primavera Árabe ou estão mortos ou estão presos ou estão refugiados. Não tem oposição civil. Só existem grupos armados, militarizados. Quer dizer, o que começou com protestos contra o governo se transformou em 2012 em um conflito bastante militarizado. Depois, em  uma outra etapa, de maior envolvimento das forças regionais, e o último círculo com o envolvimento das potências, os membros permanentes do Conselho de Segurança. De um lado, os Estados Unidos, a França e o Reino Unido. Do outro lado, a Rússia e a China, que não está envolvida diretamente no conflito armado, mas apoia a posição russa.

B – Que é a favor do Assad.
PSP – O apoio é legal. Na verdade, a Síria é um Estado-membro da ONU e a carta da organização autoriza, em casos de ameaça, a solicitar o apoio de outro Estado-membro. Então, isso tem uma certa legalidade. A presença das outras potências não tem legalidade nenhuma. É tudo absolutamente ilegal.

B – Essas outras potências apoiam os grupos rebeldes?
PSP – Exatamente. E esses grupos rebeldes são aliados a uma organização terrorista. Não estou falando do Estado Islâmico. O Estado Islâmico é outra história. Está em outra parte do território da Síria.

B – É também um dos protagonistas do conflito?
PSP – Certamente. Não no caso de Alepo. É um dos protagonistas do conflito porque a coalizão em torno dos Estados Unidos ataca o Estado Islâmico, mas também a Rússia e a Síria atacam. Sem falar nos curdos, que também atacam o Estado Islâmico.

B – Há saída à vista?
PSP – A única saída é uma saída negociada. Essa vitória do Assad é uma vitória de Pirro. Não significa o fim da guerra. Esses grupos armados, aliados aos terroristas, que estão entre os mais cruéis daquela região, vão continuar lutando contra o governo Assad. Não sei se o Ocidente vai continuar apoiando. Eles têm recursos. Saem de Alepo, mas vão continuar lutando.

B – Não param de circular informações nas redes sociais e jornais de que mulheres estariam se matando na região de conflito para evitar serem estupradas.
PSP – Eu tomaria isso com uma certa sobriedade. É evidente que podem ter ocorrido casos limites, mas acreditar em tudo… Nem tudo que está saindo nas redes sociais corresponde à verdade. Evidentemente que entre os refugiados tem problema de casamentos precoces, de violações de adolescentes e de trabalho forçado, mas querer completar o horror da guerra em Alepo com esses detalhes… Na verdade, ninguém sabe. Nem nós que estamos lá. As informações que se tem, a não ser quando é da Unicef ou do Alto Comissariado de Refugiados, são todas de organizações da sociedade civil ligadas à oposição ao governo Assad. Apesar de algumas serem sérias, de fazerem bons levantamentos, nenhuma tem interesse muito grande em mostrar moderação no conflito.

B – As fontes para os relatórios que o senhor prepara sobre o conflito continuam sendo da área do conflito?
PSP – Continuam as mesmas. Recebemos informações do interior de Alepo. No final de janeiro vamos lançar um relatório especial que o Conselho de Direitos Humanos da ONU nos pediu para fazer sobre Alepo. Mas é a mesma coisa. Pessoas que saem. São médicos, enfermeiras, capacetes brancos (voluntários locais que prestam serviços de primeiro-socorro) e também integrantes dos grupos armados. Falamos com os governos dos dois lados.

B – Também com os grupos considerados terroristas?
PSP – Falamos com todo mundo. Ninguém escapa, a não ser o Estado Islâmico. O nosso único limite é não conversar com o Estado Islâmico nem com essa sucursal da Al-Qaeda, Jabhat Fatah al-Sham. Agora falamos com os que lutam com eles. E com os próprios grupos, que têm sempre enviados em países da região. Nós também conversamos com todas as organizações da oposição ligadas a levantamento de violações. Nós não tomamos partido. Não temos lado nenhum. É um exercício difícil, mas temos conseguido fazer.

Será que eles sabem que é natal?

Alepo
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo. FOTO: EBC

*Por João Alberto Alves Amorim

Eu poderia começar este texto apontando a proximidade do final do ano, período em que, mais uma vez, nos rendemos aos mais variados festins consumistas em que se converteram estes dias, ou, ainda, qualquer outra referência que fisgasse a sua atenção focada nos temas natalinos e festivos.

Também poderia lançar mão dos tags mais comuns e dos temas e chavões mais difundidos – de modo consciente ou inconsciente –, através das redes sociais, com motes natalinos ou de reflexões de final de ano, de anseios de paz, de prosperidade e de alegria. Mas, vou começar este texto de outra forma, sugerindo uma reflexão: Você sabe quem você é? Ou, de modo mais simples e direto, quem é você? A pergunta, apesar do que possa parecer, não é simples, nem fácil. Ao contrário. Você verá que é uma questão extremamente incômoda. Principalmente se eu te disser que a resposta deve ser dada sem que sejam feitas referências ao seu nome, sua ascendência familiar, sua profissão, seu endereço, seus atributos físicos ou qualquer outra característica extrínseca.

Geralmente, é a primeira pergunta que dirijo a meus alunos, quando começo a explicar as questões fundamentais da teoria dos direitos humanos, como o conceito de dignidade da pessoa humana. Deixo os estudantes refletirem por alguns minutos e, em seguida, pergunto a eles (e o faço a você, agora) se conhecem a letra da música do Chico Buarque Geni e o Zeppelin (a letra toda, claro, e não apenas o refrão). Você conhece? Na maioria das vezes, a resposta a estas duas provocações é o silêncio. Não um silêncio qualquer, mas aquele que revela o incômodo de quem se cala, que o deixa inquieto, como se algo lhe revirasse as entranhas.

Basicamente, o mote desta primeira aula é induzir, ainda que apenas naquele momento, o despertar da empatia. É criar as condições para que aquelas pessoas, através destas pequenas induções (e, claro, do restante do contexto da aula) despertem da indiferença, sintam a fragilidade da segurança que pensam disfrutar, se coloquem no lugar daqueles a que tão facilmente nos referimos, quando precisamos exemplificar condições desumanas de existência, e percebam, por exemplo, a onipresente hipocrisia social e as nuances dos discursos e promessas carregadas através dela, como no que fizeram à coitada da Geni. O núcleo-verbal é exatamente este: despertar.

Cotidianamente somos entorpecidos por um sistema cultural de massa que, em sua quase totalidade, produz alienação mascarada de informação, aculturação disfarçada de erudição e conservadorismo e estreitamento intelectual maquiada de liberdade e amplitude de horizontes. Justamente diante deste ponto, volto a te perguntar: Quem é você?

Não é raro escutarmos que a causa para uma infinidade de problemas e questões sociais sérias no Brasil é a educação. Mais precisamente, a falta dela. Por um lado, é inegável que o Brasil é um país profundamente dividido e desigual em termos de educação (ou da falta dela). A maioria esmagadora da população não tem acesso a educação de qualidade e a minoria que tem não sabe lá muito bem, não quer saber ou tem raiva de quem saiba, o que fazer com ela.

Mas, apesar da falta de educação ser a usual suspect mais comum e frequente nas rodas de conversa, o Brasil não é um país que valoriza, preza ou investe na educação. Nem parcela considerável da população – apesar do belo discurso das rodas de conversa – está comprometida com ou desejosa da melhoria da educação de verdade e, principalmente, dos sacrifícios e esforços implicados em tal evolução. E, ainda que assim não fosse, será que o problema é tão simples quanto a tão alardeada “falta de educação”? Mesmo? Será que a questão não é um pouco mais profunda do que isso?

Campo de Refugiados Ain Al-Hilweh, no Líbano . FOTO: UNHCR

 

Você, que me lê agora e teve acesso a educação, ao sistema educacional, tem acesso a fontes variadas de informação, ou seja, que integra a parcela pequena da população que teve acesso à educação, principalmente em nível universitário, o que tem feito para, efetivamente, melhorar as questões sociais do país, de sua cidade, do seu bairro, de sua rua, do seu prédio (ou, ao menos, não cometer os mesmos “erros” da maioria que não teve acesso à “educação”)?

Somos um país que, na verdade, não valoriza a educação. Ao menos, não a educação real, que empodera, que liberta. Preferimos que as coisas nos cheguem de modo fácil. Sonhamos com o sucesso e com a glória, com a riqueza e com o luxo, mas queremos simplesmente que tais coisas aconteçam, como ganhar na loteria ou ser descoberto por um produtor desconhecido enquanto estamos sentados numa praça ou num bar. Ainda que tenhamos a consciência da necessidade de nos educarmos de forma libertadora, acabamos sendo vítimas de um sistema educacional praticamente onipresente que formata e adestra, ao invés de ensinar, que estreita a visão e o pensamento, ao invés de ampliá-lo.

Obviamente que existem exceções a esta regra geral. Mas, são pouquíssimas e, praticamente, inacessíveis à quase totalidade dos mortais deste país. Ah, uma coisa, já conseguiu responder à pergunta que lancei no começo deste texto? Não?  Dentro deste contexto cultural de aversão não assumida pela educação, se encontra a questão da difusão da informação e seu processamento.

Por muitos séculos, uma das formas mais comuns e eficientes que a igreja católica e os reis usaram para difundir seus ensinamentos e suas versões dos fatos, sobretudo para a população iletrada, foi a pintura. Aqueles que não sabiam ler e escrever, que não conseguiam compreender as missas em latim, contemplavam, maravilhados, as belíssimas imagens e as prodigiosas explicações dos padres e demais incumbidos de espalhar a versão desejada dos fatos pelos donos do poder.

Através de representações imagéticas, os mais simples e iletrados poderiam compreender os mistérios da fé, as razões de seus sofrimentos e provações e, principalmente, o destino dos pecadores, dos que se revoltavam contra a vontade de Deus. Não é à toa que duas das maiores virtudes que um pobre servo, explorado, escravizado, sem qualquer perspectiva diante do sofrimento, deve cultivar são a humildade e a resignação. Aceitar a condição social, sofrer os martírios desta vida, para ganhar, por esta expiação, o reino dos céus, sempre foi uma poderosa mensagem de controle social, propagandeada até os dias atuais, pelas mais variadas formas.

No século XX, tivemos o rádio e a televisão, sobretudo para a massa de pessoas que, ou não sabiam nem ler nem escrever, ou, sabendo, simplesmente não se dispunham a tanto. Somos hoje no Brasil, provavelmente, a quarta geração de pessoas criadas em frente à televisão. Independentemente se nascido em pequenos bolsões de tranquilidade ou em grandes áreas sem tranquilidade alguma, somos uma sociedade que, em sua grande maioria, acostumou-se a ser amplamente entretida e “educada” pela televisão.

E, hoje, no século XXI, temos também a internet! Esta ferramenta espetacular que nos permite, literalmente, viver em um mundo que vira de ponta a cabeça as noções de tempo e espaço, que tem um potencial enorme de igualar desigualdades e promover verdadeiramente a inclusão democrática. Mas, que, também, tem seus mecanismos de coleta de metadados, que gravam nossos gostos, nossas preferências, nossos afetos, nossas sensibilidades, e as convertem em ofertas, notícias, informações, imagens e perfis selecionados para nos “agradar”.

Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado.

Alguns dizem que já existem programas embutidos em smartphones que “gravam” palavras-chave de suas conversas e as transformam em metadados para o mercado. Sendo isso verdade ou não, é fato que vivemos numa realidade onde a navegação pela internet se tornou uma grande e trabalhosa aventura de seleção e de avaliação da qualidade e da veracidade das informações que recebemos.

Das “sugestões” de pesquisa que vão sendo fornecidas pelo Google, enquanto você está digitando o que de fato procura, até às notícias e pop-ups que aparecem nos portais de notícias e nas timelines das redes sociais, passando pelos anúncios que pipocam nos sites pelos quais você navega, somos bombardeados por uma avalanche de informações cuidadosamente escolhidas por algoritmos que se baseiam em informações coletadas de nós mesmos. Em meio a isso, são também selecionadas, por programas ou por agências de notícias que centralizam, segundo seus próprios interesses empresariais, as informações sobre o que acontece no mundo.

É uma quantidade de informação gigantesca que, pela velocidade e quantidade, acaba tornando-se impossível de ser processada. Talvez seja por isso que, na era da informação, seja tão difícil encontrar uma pessoa realmente informada.

Você, que já estudou bastante, consegue garantir a fidedignidade de suas fontes de informação? O que você tem compartilhado em suas redes sociais? Quais jornais ou sites de notícia você acompanha? Você ouve o dissenso? Reflete sobre ele? O risco, em meio à velocidade e profusão de informações, de se deparar com algo que não seja verdadeiro, ou que esconda interesses maliciosos, é muito grande.

É muito fácil, hoje em dia, “viralizar” indignações e manifestações contra este ou aquele absurdo, contra/a favor a tal ou qual pessoa, nos engajarmos em campanhas das mais variadas – inclusive antagônicas – no mundo virtual, mas cada vez mais difícil nos mobilizarmos, sairmos de casa, agirmos para fora do computador e dos limites da tela da televisão e da roda dos amigos que nos dão a proteção de pensar do mesmo modo que nós.

Talvez seja essa a razão de vermos tantos indignados virtuais com a fome, a miséria, o racismo, a pobreza, a violência, o machismo, a homofobia, a corrupção, a falta de saúde, a pouca educação, e tantos outros temas, e tão poucas pessoas agindo efetivamente no mundo real para eliminar tais situações. Lembre-se da pergunta que fiz no começo deste texto: quem é você?

Pode ser que o processamento e a exploração industrial do comércio de metadados sejam uma das principais razões pelas quais #somostodoschape ou tenhamos, há algum tempo atrás, sido todos Charlie, e não sejamos todos Alepo, ou Síria, ou República Democrática do Congo, ou Yemen, ou Chade, ou os refugiados que morrem nas águas do Mediterrâneo, ou mesmo não sejamos todos as crianças que dormem na rua na esquina da sua casa, ou no centro de sua cidade.

Não estou comparando ou classificando tragédias. Não é disso que se trata. Mas, me parece estranho que tantos se mobilizem (ao menos virtualmente) por Paris, pelos cartunistas do Charlie Hebdo, pelos mortos em Nice, pelos atletas da Chapecoense, pelos atropelados de Berlim, aqui e no resto do mundo, e tão poucos (mesmo virtualmente) se comovam com situações e tragédias semelhantes, ou de maiores proporções, sobretudo crises humanitárias, que matam milhares de pessoas inocentes, que vitimam civis em atentados terroristas covardes, que fazem milhões de pessoas abandonarem suas casas, que condenam à morte por fome, por doenças facilmente tratáveis, por contaminações ocasionadas pela ganância econômica.

No tempo que você está lendo estas linhas até aqui, centenas de crianças morreram de fome, em um planeta que produz alimento suficiente para mais do que o dobro da população que abriga, ou de doenças que poderiam ser evitadas com vacinas que custam centavos. Mesmo não aparecendo em sua timeline, neste exato momento (e já há muitos anos) centenas de milhares de pessoas estão à mercê de crises humanitárias na República Democrática do Congo, no Yemen, no Chade, na Nigéria, na Somália, no Sudão, na Palestina, no Mali, e, principalmente, na Síria. A maioria delas, alimentada por pesados interesses econômicos (petróleo, metais, água, terra) e geoestratégicos que movem e patrocinam o elevado padrão de bem-estar social das grandes potências globais.

Há cinco anos assistimos impávidos a uma sequência de absurdos e de crimes contra a Humanidade perpetrados na Síria, com milhões de refugiados e deslocados internos, centenas de milhares de mortos. Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, cerca de 5 milhões de pessoas na Síria vivem em cidades sitiadas (por rebeldes ou pelo governo) ou em áreas de difícil acesso. E não apenas na cidade de Alepo.

Apesar da onipresença de Alepo nos nossos telejornais e nas nossas timelines, e dos vídeos amadores e autobiográficos, principalmente de mulheres e crianças, que nos chegam diariamente (muitos sem que se consiga comprovar a autenticidade), Alepo não é a única cidade sitiada, nem em conflito, num país devastado pela guerra. Nem mesmo é uma cidade que esteve completamente sob o controle de grupos militares que se opõem ao governo Assad, uma vez que a parte Oeste da cidade sempre foi controlada pelo governo e o que foi recentemente retomada por este foi a parte Leste.

Quando nos chegam notícias de Alepo, precisamos tomar cuidado, por exemplo, para se identificar se se está a referir à cidade ou à província, ambas de mesmo nome. A crise humanitária na Síria, em termos humanos, é de dimensões gigantescas, mas é também uma guerra de informações, onde cada lado interessado procura capitalizar mais e vender melhor o “seu peixe”. E, em meio a esse fogo cruzado de bombas, balas e informações, está a população civil.

Há quem culpe o governo Assad e seus principais aliados, entre eles Rússia e Irã, pelo genocídio e pela catástrofe humanitária que assola a Síria. Outros, culpam os EUA e seus aliados na região e na Europa, por mais esta intervenção imperialista e a crise humanitária. Há também quem aponte o fracasso da ONU e sua doutrina da Responsabilidade de Proteção em mais esta catástrofe humanitária.

O que a maioria não vê é que, independente do lado que se simpatize ou escolha para torcer, independentemente do lado que você considere vencedor, ou dos temas selecionados que você aceita se sensibilizar e comover, a verdade é uma só: a grande derrotada na Síria, e em todas as regiões e crises humanitárias esquecidas do planeta, bem como na esquina da sua casa, é a própria Humanidade.

E isso não se resume à Síria apenas. A derrota de nossa Humanidade decorre do torpor do qual nos recusamos a despertar. O mesmo transe que nos deixa inertes em relação às tragédias humanitárias na Síria, no Yemen, na República Democrática do Congo, no Haiti, na República Centro Africana, na Nigéria, no Iraque, na Palestina, nos territórios dominados pelo Estado Islâmico, pela Al-Qaeda, pelos paramilitares na Colômbia, é o que nos faz indiferentes, ou manipuláveis, em relação à violência urbana; que nos mobiliza contra a redução de limites de velocidade nas marginais da cidade de São Paulo, ou nas ruas das grandes cidades do país, mas não nos faz parar de misturar álcool e direção; que nos deixa indignados pela corrupção de membros de um determinado partido, mas não nos abala em relação à corrupção ainda maior daqueles que tomaram ilegitimamente o poder; que nos faz chorar por uma criança com fome na África, mas não nos faz comprar um salgado de padaria para uma criança com fome, que nos interpela na rua por onde caminhamos.

É nisso que reside a derrota de nossa Humanidade. Só que este assunto ainda não apareceu – e, talvez, não apareça – em sua timeline, nem nas manchetes dos principais telejornais ou novelas da televisão. Talvez você pense: Isso não é comigo. Pode ser.  Mas, afinal, quem é você?

P.S.: Nesta época do ano, enquanto muitos se refestelam ao som dos Jingle-Bells tradicionais, ou mesmo da música da Simone, eu me recordo sempre da música Do They Know its Christmas, gravada por um coletivo de artistas britânicos, em 1984, que se nomeou Band Aid (Ajuda das Bandas, em tradução livre) e de onde busquei o título deste texto que você acaba de ler.

Eram artistas em pleno sucesso nos anos 80, Sting (recém-liberto do The Police), Bono Vox, Phil Collins, Boy George, George Michael, Spandau Ballet, Duran Duran, entre outros, todos liderados por Bob Geldof. A música foi gravada para arrecadar dinheiro para as vítimas da fome na Etiópia e nos países vizinhos, então a grande manchete dos principais jornais do mundo e a crise humanitária onipresente na mídia àquele tempo, numa época em que a internet nem sonhava em nascer, não tínhamos celulares, nem TV a cabo, muito menos cobertura global em tempo real.

Lançada no Natal daquele ano (juntamente com o clipe), vendeu milhões, levantou uma quantia em dinheiro considerável e inspirou outros movimento iguais, principalmente o USA for Africa, liderado por Michael Jackson, Quincy Jones e Harry Belafonte (que gravou a música We are the World), além de levar à realização, no ano seguinte, dos concertos do Live-Aid.

Do They Know its Christhmas é uma canção muito bonita, com uma letra forte, que chama a atenção para a disparidade entre o mundo rico/consumista, bem alimentado e feliz, e o mundo pobre, miserável e que preferimos não ver. Recomendo que, no intervalo entre a música da Simone e o especial do Roberto Carlos, você assista ao vídeo (procure no YouTube), leia a letra e sua tradução. Talvez você se sinta tocado(a) e se emocione. Talvez passe a tentar agir de modo diferente. Ou, quem sabe, apenas pense: “Well, tonight, thank God is them, instead of you”.

*João Alberto Alves Amorim é doutor em Direito Internacional pela USP, professor de Direito Internacional e coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi advogado do Acnur e do Centro de Referência para Refugiados, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo

O exemplo da Revolução dos Cravos: fascismo nunca mais!

ato no porto
Ato de portugueses ao enfatizar o desprezo pela ditadura de Salazar na cidade do Porto. FOTO: Olivia Pedroso

Desde pequeno ouço falar da Revolução dos Cravos – o “25 de Abril”, como dizem os portugueses, dia que marcou a derrubada do regime salazarista em 1974. Não que eu tenha aprendido sobre o assunto na escola. A queda da ditadura fascista que oprimiu os portugueses por 41 anos, o breve período revolucionário que se seguiu a ela e a posterior consolidação da democracia em terras lusitanas não parecem suficientemente importantes para estarem no currículo escolar brasileiro.

Se com Portugal compartilhamos a mesma língua e tantos traços culturais, um passado de colonização, independência e grandes movimentos migratórios (nas duas direções), isso não importa. Portugal foi um país pobre e pouco influente geopoliticamente por quase todo o século 20. Para as escolas, importa mais ensinar – não que isso não seja fundamental – sobre o governo de qualquer presidente norte-americano (Roosevelt, Kennedy, Nixon…), o Maio de 68 na França, o período de Thatcher na Inglaterra, as revoltas contra a URSS no Leste Europeu e assim por diante. Mas é somente a história das grandes potências, sempre.

Pois bem. Sobre a Revolução dos Cravos, eu ouvia falar em conversas em casa, em algumas músicas (como “Tanto Mar”, de Chico Buarque) ou no filme “Capitães de Abril”, que por algum motivo assisti mais de uma vez na adolescência. Mas mais do que isso, um evento em particular, bastante íntimo à família, mas que diz muito sobre a história do século 20, sempre me comoveu. Foi o encontro de minha tia-avó – Clara Charf, ativista comunista e feminista, viúva de Carlos Marighella, irmã de minha avó Sarita – com o resto da família em Portugal, em 1975, após anos de exílio em Cuba.

Em 1970, na sequência do assassinato de Marighella (1911-1969) e após anos de luta contra a ditadura – primeiro pelo Partido Comunista e depois na luta armada com a Aliança Nacional Libertadora – o cerco da repressão se fechou de vez, e a permanência no Brasil, para a tia Clara e tantos outros guerrilheiros, seria uma escolha pela prisão, tortura e, possivelmente, a morte. Com documentos falsos e uma plástica no rosto (sua fisionomia já era bastante conhecida pelos agentes do regime militar), ela conseguiu sair do país e, após uma longa jornada, chegar a Cuba.

A família ficou sem notícias, por muito tempo. Não podia ir atrás, trocar cartas, nem mesmo para confirmar se ela havia chegado viva em Havana. Eram tempos de medo no Brasil – sempre bom lembrar, especialmente quando alguns ainda saem às ruas pedindo a intervenção militar. Pois em 1975, após uma comunicação cuidadosa e com a ajuda do governo cubano (realmente não sei dos detalhes, ainda hoje pouco falados na família, de como isso foi possível), minha avó e seus três filhos adolescentes embarcaram para Lisboa para encontrar a tia Clara.

Vivia-se o período do governo revolucionário em Portugal, e o país era território seguro para o encontro. O clima, segundo conta minha mãe, era de euforia e esperança na construção de um outro país possível. A emoção do reencontro familiar não posso descrever, já que eu nem era nascido. Sei vagamente de um quase desmaio, de horas de choro e por aí vai. Foram duas semanas passadas em Lisboa antes de minha tia voltar para Cuba, onde ficou por mais quatro anos até a anistia, em 1979.

Seja como for, escrevo este texto porque neste 25 de abril de 2017 estive nas ruas do Porto, acompanhando as celebrações, discursos, atos e shows organizados na cidade. A data da revolução é feriado nacional, motivo de orgulho para a grande maioria dos portugueses, que saem às ruas com cravos vermelhos e entoam a célebre “Grândola, Vila Morena”. Se reivindicações se fazem presentes – notadamente por melhores salários, direitos trabalhistas e contra a desigualdade de gênero –, o clima foi festivo e esperançoso com um governo que há cerca de um ano direciona Portugal para a esquerda, na contramão da tendência global.

Chamada de Geringonça, a união de quatro partidos de centro-esquerda e esquerda – Socialista, Comunista, Bloco de Esquerda e Verde –, capitaneados pelo mais moderado deles, tem conquistado bons resultados no país, seja em aspectos sociais, econômicos, no incentivo à revitalização urbana e à vida turística e cultural.

Voltando aos atos, o que mais se ouvia pelas ruas era o grito: “25 de abril sempre, fascismo nunca mais!”. Ouviam-se também falas sobre o inestimável valor da liberdade, a mesma que parece estar violenta e velozmente sendo retirada da população no Brasil pós-golpe, onde executivo, legislativo e judiciário demonstram pouca (ou nenhuma) simpatia pelo Estado de Direito, pelas liberdades individuais e pelos valores democráticos.

E como escreveu o historiador Rui Tavares – fundador do Livre, um novo partido de esquerda português – em sua coluna no jornal “Público”, “fascismo nunca mais” é para levar a sério. Não se trata de um grito vazio ou de um slogan ultrapassado em um mundo que já amargou o poder dos sanguinários Salazar, Franco, Hitler, Mussolini, Pinochet, Stroessner e, no nosso caso, Costa e Silva, Médici, Geisel e tantos outros. Trata-se sim, de um grito necessário em um mundo que convive com Trump, Marie Le Pan, Geert Wilders, Yisrael Beiteinu ou, no nosso caso, Bolsonaro, Temer e seus comparsas, e tantos outros fascistóides ao redor do mundo.

Alguns deles são ainda ameaças; outros estão no poder. Por isso, especialmente em semana de greve geral contra mais retrocessos no Brasil, gritemos como os portugueses fizeram neste 25 de Abril: “Fascismo nunca mais!”.