Início Site Página 162

O cinema segundo Nelson Pereira dos Santos

O cineasta Nelson Pereira dos Santos. Foto: Marcos Pinto

Aos 83 anos, o cineasta paulistano Nelson Pereira dos Santos vive a rotina extenuante de cabines de imprensa, pré-estreias e um sem-número de entrevistas para a divulgação nacional do aclamado documentário A Música Segundo Tom Jobim, um comovente testemunho audiovisual da obra universal do maestro carioca, assinado por ele e Dora Jobim, neta de Tom. O filme rendeu uma continuação, A Luz do Tom, reunindo depoimentos de três mulheres importantes na vida do maestro: a irmã Helena, a primeira mulher, Thereza, e a segunda, Ana. O longa está previsto para estrear no final do primeiro semestre. Inquieto, Nelson ainda pretende iniciar neste ano as filmagens de seu novo projeto ficcional, dedicado a um dos grandes símbolos da história do País, o imperador D. Pedro II.

Com uma frenética agenda, o autor de clássicos da nossa cinematografia, como Rio 40 Graus, Vidas Secas e Memórias do Cárcere, nos concedeu a entrevista a seguir, que seria feita por e-mail – sim, Nelson também é um entusiasta dos meios eletrônicos –, acabou sendo registrada por telefone, ao longo de quarenta minutos, de forma objetiva e lúcida.

O cinema parece trazer a ele uma eterna juventude (Nelson, imortal desde 2006, ocupa a cadeira número 7 da Academia Brasileira de Letras). E é essencialmente sobre o cinema brasileiro, suas próprias experiências e impressões da indústria que ajudou a estabelecer que, a seguir, ele fala com entusiasmo.

Brasileiros – Quando você se envolveu com o Cinema Novo, já havia feito filmes importantes, como Rio 40 Graus e Boca de Ouro. Como se deu essa aproximação?
Nelson Pereira dos Santos – Quando fiz Vidas Secas, em 1963, já havia rodado outros quatro filmes. Fui cooptado por essa nova geração de cineastas, numa boa, pois defendíamos que o cinema brasileiro começasse a discutir a realidade social do País. Isso, na época, virou até moda. Todos procuravam dar alguma contribuição nesse sentido, porque havia também a situação política, que exigia uma tomada de posturas. A pressão sob os intelectuais para lutar pela liberdade de expressão e contra a ditadura era muito grande. Mas o Cinema Novo não tinha um pensamento homogêneo, muito menos uma face única. Era um grupo de amigos que fazia cinema, cada um com suas próprias afirmações culturais, estéticas e políticas.

Brasileiros – Que conquistas essa geração trouxe ao cinema do País?
Vejo como grande conquista – digamos assim, na falta de outra palavra – o fato de termos acabado com o enorme preconceito contra a nossa própria realidade. Outro importante avanço foi a discussão étnica que propusemos, porque, no Brasil, pelo cinema que se fazia, era cabível concluir que não havia negros. Os poucos papéis dados a negros eram de empregados, como na Hollywood dos anos 1940. Personagens vinculados à realidade brasileira e sua problemática foram aparecer aqui somente com o Cinema Novo. Hoje, é fluente a presença e a variedade étnica na produção brasileira. Naquele tempo, havia certa censura do próprio mercado. Diziam: “Ah, mas esse filme não vai dar dinheiro, filme com negro não dá dinheiro”. Havia uma série de preconceitos, horríveis, felizmente superados.

Brasileiros – Havia também uma grande convergência de influências entre vocês…
Leon Hirszman, Cacá Diegues, Ruy Guerra, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade foram expoentes de uma geração cinematográfica. Minha turma era a do Neorrealismo italiano e do Buñuel. A geração deles surgiu sob a influência do Godard e de toda a Nouvelle Vague francesa. Hoje, temos um cinema pluralista, bem diferente dessa época, que reunia uns 15, 20 diretores em atividade. Só na escola de cinema da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que ajudei a fundar no século passado, saem 30 jovens formados por ano. Outras escolas de cinema do Rio, São Paulo, Porto Alegre e de quase todo o País também têm formado cineastas bastante capacitados.

Brasileiros – O que pensa sobre os embates estéticos entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal na transição da década de 1960 para os anos 70?
Apesar da aparente anarquia, o Cinema Marginal promoveu avanços no plano estético e na expressão da linguagem cinematográfica por aqui, como fez a Nouvelle Vague na França. Influências essas que ainda estão impregnadas em nossa produção. É possível identificar tendências do Cinema Novo e do Cinema Marginal em muitas obras recentes produzidas em todas as regiões do Brasil – nos filmes de Cláudio Assis e de Lírio Ferreira, por exemplo, dois jovens diretores de que gosto muito. Aliás, o cinema pernambucano tem uma personalidade fortíssima e essa é outra característica atual da nossa produção. Ou seja, ela deixou de ser feita apenas no eixo Rio-São Paulo. O cinema brasileiro, hoje, é tematicamente plural e expressa identidades regionais diversas.

Brasileiros – Durante as décadas de 1970 e 80, o Estado subsidiou uma nova indústria, via Embrafilme, mas, paradoxalmente, esse foi um período em que o cinema brasileiro produziu muito e distanciou-se do grande público…
N.P.S. – Os anos 1970 foram um período de crescimento acentuado da indústria. Foram criados organismos de apoio oficial ao cinema, projetos ambiciosos, como o Conselho Nacional de Cinema, que incentivou o surgimento de empresas de produção, coprodução e distribuição. Na década de 1980, essa mesma indústria passou a ter complicações, decorrentes da enorme inflação e de nossa frágil economia e chegamos ao ponto em que o Collor assumiu a presidência e mandou fechar a Embrafilme. Apesar de todos os impasses, esse foi um período importante para a consolidação da nossa indústria, mas houve exageros na legislação, como a cota mínima de 180 dias de filmes brasileiros exibidos por ano no cinema e a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens. Os exibidores, para não pagarem pelo não cumprimento da lei, começaram a coproduzir qualquer porcaria. Uma aberração. Um erro político crasso e paternalista, que só ajudou a formar uma opinião pública contrária ao cinema brasileiro.

Brasileiros – Nos últimos dias, o sucesso mundial da música Ai, Se eu Te Pego, do cantor Michel Teló, tem gerado constrangimento para muitos, por revelar uma faceta supostamente inculta do País. Você produziu filmes enaltecidos pela crítica, mas nunca teve problemas em lidar com a cultura de maior acento popular, como no filme Estrada da Vida, sobre a dupla Milionário e José Rico. O que pensa disso?
Existe, sim, grande preconceito contra essa suposta “baixa cultura”. Eu “fui” paulista (Nelson nasceu em São Paulo, em outubro de 1928, mas vive no Rio de Janeiro desde os anos 1960), meu pai era caipira, do oeste de São Paulo, e gostava muito de música sertaneja. Meus irmãos mais velhos se achavam sofisticados, pois gostavam de música americana e não deixavam meu pai ouvir os programas de música caipira no rádio. Simplesmente, o censuravam. Quando me ofereceram o projeto do filme do Milionário e José Rico, fui ver a dupla cantar no Parque São Jorge (o extinto estádio do Corinthians, na zona leste de São Paulo), que estava lotado, com milhares de pessoas. Eu me lembrei do meu pai e vi que este era um dado cultural importantíssimo pela quantidade de pessoas que movia, a tradição e a história que carregava. Quando exibi o filme, fui criticadíssimo, malhado mesmo, mas ele rodou o País e fez grande sucesso.

Brasileiros – A Música Segundo Tom Jobim é essencialmente cinematográfico. Não traz depoimentos, legendas ou informação alguma que não venha de imagens e sons. Ao final, a célebre frase de Tom: “A linguagem musical basta”. Em que proporção o cinema, arte autônoma como a música, ainda basta para você, Nelson?
Sim, o cinema também é uma arte livre, como a música. A minha formação, em todos os sentidos, seguiu uma linha clássica de ter um mínimo enquanto máximo. Fundamentalmente, para mim, conteúdo e forma caminham juntos no fazer cinematográfico. Posso expressar um conteúdo adaptando obras literárias ou partindo de roteiros originais, adotando diferentes linguagens, mas esse mesmo conteúdo pode ser feito de diversas formas. O conteúdo, por si só, já impõe uma determinada forma. Tudo isso, é claro, está dentro da minha cabeça, são conceitos que não existem fora do que eu estou pensando ou sentindo, e sempre me preocupo com a forma ligada ao conteúdo para que ela não se exima, não fique separada. São, para mim, fundamentos indissociáveis.

Brasileiros – Que avaliação você faz da chamada Retomada do Cinema Brasileiro. Ela tem sido eficaz em retratar esse novo Brasil e resgatar nosso passado?
Essa retomada comprova a vitalidade do cinema brasileiro, que havia sido arrancado da nossa história à força. Eu me lembro de uma crônica da Maria Lucia Dahl, naqueles tempos do Collor, em que ela dizia ter topado com uma nova vassoura, em casa, e percebeu que as cerdas tinham uma imagem dela. Eram feitas de filmes reciclados, que os fabricantes compravam como matéria-prima. Um testemunho claro de que acabaram mesmo com o cinema por aqui, mas, dali a pouco, houve um: “Peraí! Não é bem assim…” E surgiu a Lei Rouanet. Em pouco tempo o cinema brotou novamente no País. As margens do Rio São Francisco são caatinga pura, mas se você levar a água do rio até o solo, planta até uva! O cinema brasileiro também precisava desse pouquinho de água, de incentivo de capital e brotou de novo com mais fôlego e mais rico. A coisa mais bonita é ver, hoje, a pluralidade do nosso cinema.

MAIS

Veja, no Youtube, o documentário A Música Segundo Tom Jobim

 

Auritha Tabajara, “Magistério indígena em verso e prosa”

Auritha Tabajara tem 38 anos e seu livro, Magistério Indígena em Verso e Poesia foi lançado em 2010 e integra leituras obrigatórias do Estado do Ceará
Auritha Tabajara tem 38 anos e seu livro, Magistério Indígena em Verso e Poesia foi lançado em 2010 e integra leituras obrigatórias do Estado do Ceará

“Sou mulher que ainda chora; Por tão grande escuridão; Minha essência está aqui; Dentro do meu coração; De um Brasil ensanguentado; Onde ninguém é culpado; Mulher da mesma nação!”

Assim brota da terra cearense, uma das poesias da escritora do povo Tabajara, Auritha. Seu nome ancestral assina os livros, poemas e cordéis da mulher de 38 anos que o homem branco obrigou a registrar como Aurilene. Indígena nordestina-cearense, Auritha calçou o salto alto e desembarcou em São Paulo meio ao caos da maior cidade brasileira.

Logo de cara, a escritora desceu na Avenida Paulista, “me jogaram logo na [Avenida] Paulista quando cheguei, foi um choque. Fiquei tonta olhando para aqueles prédios. Parecia que eu não estava respirando. Quando desci do carro, a primeira coisa que senti foi o peso da poluição”, desabafou.

Sua chegada a capital paulista foi decorrência do termino de um relacionamento. Antes de vir conhecer parentes e pessoas de outros povos indígenas, a escritora vivia em uma aldeia a 370km de distância da capital cearense. Na aldeia em que vivia, o pé no chão era de lei, pelo menos para Auritha. Ela sente falta da liberdade que a natureza oferecia. “Em São Paulo”, diz, “sentia falta de algo nos pés e só depois eu pude entender que não poderia esquecer meus ancestrais ou me distanciar deles”.

“Para pisar no chão, tem que pisar com firmeza. É diferente pisar no chão da aldeia e no chão da cidade”

O próprio processo criativo da autora de “Magistério Indígena em Verso e Poesia” perdeu um pouco de sua liberdade, porque Auritha escreve às madrugadas debaixo de alguma árvore que lhe pareça agradável. Porém, na cidade grande, cheia de muros que navegam entre o cinza, o pixo, o graffitti e o lambe-lambe, é difícil sentar ao pé de arvore, ainda mais sem por em risco a própria segurança.

Publicado em 2010, seu livro, como o próprio nome diz, nasceu no magistério cursado no estado natal. A obra nasceu já no primeiro dia de estudos. Após a aula, Auritha transformava seus relatórios em cordel, estilo que chamava sua atenção desde que aprendeu a ler e escrever, aos 9 anos. Hoje, “Magistério Indígena em Verso e Poesia” foi adotado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará como obra obrigatória nas escolas públicas.

A mulher indígena

Auritha é neta de uma das maiores contadoras de história do povo Tabajara, Francisca Gomes. Ela segue os passos da avó e também promove contaçōes de histórias para manter viva a cultura oral de seus ancestrais. Além disso, ela também é curandeira, utiliza o conhecimento passado através das gerações e das ervas e plantas para cultivar os costumes Tabajara. Assim como a avó, Auritha transpira sabedoria mesmo nos momentos em que as palavras fogem e falta o ar.

Em São Paulo, Auritha leva sua contação de historias para as salas de aulas de diversos colégios. Em uma dessas ocasiões, ela precisou lidar mais uma vez com os preconceitos e sensos comuns. Ao aparecer na porta da sala de aula, Auritha observou a professora dizer “A índia chegou, não precisam ter medo”. Já surpresa, o pior aconteceu ao entrar na sala, “como é que o índio faz? Nós treinamos, lembram?” continuou a professora. Os alunos, em coro, reproduziram os sons erroneamente atribuídos à povos indígenas. Embaraçada e desanimada, Auritha reuniu forças e contou sua história.

“Nesse dia eu fiquei quase sem querer contar a minha historia, de pensar que aquelas crianças já tinham aquela visão do índio. O Daniel [Munduruku] diz que quem quiser mesmo saber o que é um índio precisa buscar na tabela periódica, porque somos um metal.”

Isso [Índio] é apelido que nos deram. Isso não existe.

Questionada sobre dificuldades no setor editorial, Auritha afirmou categoricamente nunca ter sofrido discriminação de gênero em sua aldeia ou por parte de pessoas de outros povos. Porém, relatou dificuldades ao chegar em São Paulo. Estudando para ingressar pela primeira vez em um curso superior, a escritora e uma das integrantes do Conselho de Povos Indígenas da Cidade de São Paulo, sofreu racismo. “No primeiro dia de aula no cursinho pré-vestibular da PUC, me apresentei como nordestina, como mulher indígena e ouvi risadas. Depois, um colega de sala me procurou para perguntar, entre outras coisas, o que eu estava fazendo aqui em São Paulo?”, contou.

O sonho de cursar Letras foi interrompido ali. “Desisti do curso naquele momento, mas ainda vou me formar”, explicou para a reportagem. Para ela, fazer uma graduação vai além das noções do homem ocidental de empregabilidade. “Precisamos conhecer outros mundos. Principalmente eu que desejo continuar dentro da literatura, os títulos acabam sendo importantes para a sociedade, temos que ter os conhecimentos ancestrais, do nosso povo, mas temos que ter esse conhecimento desse mundo em que temos de estar no mesmo vocabulário, ate para exigir nossos direitos”.

Para Auritha, ancestralidade é tudo. Seu nome, ela explicou, quer dizer pedra de luz. Ela diz que gostaria de ter sido registrada com seu verdadeiro nome, mas comemora ter conseguido registrar sua filha, apesar da resistência do cartório, com o nome ancestral.

“Foi a minha avó, parteira, curandeira e contadora de histórias, quem me pegou nos braços pela primeira vez no mundo. Foi ela quem me chamou de Auritha.”

Agenda: confira os destaques de 21 a 27 de abril

Luis Roque, Geometria Descritiva, 2012, videoinstalação na mostra do Mitomotim

Lugares do Delírio, coletiva no Sesc Pompeia, até 01/7

Idealizada por Paulo Herkenhoff e curada por Tânia Rivera, apresenta cerca de 150 trabalhos – entre instalações, mapas, performances, pinturas e objetos – de diversos artistas, como Cildo Meireles, Laura Lima, Anna Maria Maiolino, Arthur Bispo do Rosário, Fernand Deligny, Lygia Clark, Raphael Domingues, Gustavo Speridião, Fernando Diniz, Cláudio Paiva, Geraldo Lúcio Aragão e outros. Trata-se de uma reflexão política, ética e estética sobre loucura e arte.



Geraldo de Barros, ‘They are kissing negativo’, 1964

Entre Construção e Apropriação, coletiva no Sesc Pinheiros, até 03/6.

Com curadoria de João Bandeira, apresenta a produção de Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman, nos turbulentos anos 1960, em obras que articulam o legado da arte construtiva no país e elementos apropriados da indústria cultural e da cultura popular urbana, destacando aspectos técnicos, estéticos e suas implicações sociais.



Mestre Didi, ‘Ejo Lorum Keta’, década de 60. | Frans Krajcberg, ‘Sombra V’.

Um Deoscóredes, individual no Museu Afro Brasil, a partir de 21/4.

A exposição Um Deoscóredes – 100 anos do Alapini Deoscóredes Maximiliano dos Santos: Arte e Religiosidade é uma homenagem ao centenário de nascimento de Mestre Didi (1917-2013), Alapini do Ilê Asipa e filho de Mãe Senhora (1890-1967) – iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. A mostra celebra a obra de fôlego inesgotável e as tradicionais e potentes esculturas do artista, produzidas com materiais naturais como búzios, sementes, couro, nervuras e folhas de palmeira.

Didi também é tema de exposição na galeria Almeida e Dale, com Mo Ki Gbogbo In – Eu saúdo a todos, até 26/5. O Museu Afro abre mais quatro exposições no próprio dia 21/4, são elas: Um Frans, a natureza – Exposição em memória de Krajcberg: Esculturas, relevos e fotografias; Os Africanos – O olhar europeu da fotografia contemporânea; África Contemporânea e África e a presença dos espíritos. Todas elas, inclusive Um Deoscóredes, têm curadoria de Emanoel Araújo.



Luiz Roque, ‘Geometria Descritiva’, 2012, videoinstalação

MitoMotim, coletiva na Videobrasil, até 28/7.

Realizada a partir de uma ampla pesquisa no Acervo Histórico Videobrasil, a exposição MitoMotim tem curadoria de Júlia Rebouças e busca refletir sobre a representação da identidade nacional e a capacidade da arte de se contrapor às ordens instituídas.

A curadoria recorre às ideias de mito e motim, articuladas como um palíndromo no título da mostra, para debater os modos e as possibilidades de insurgência diante de cenários de instabilidades sociais e refletir sobre o Brasil do momento presente. A partir da leitura em dois sentidos, é como se a ideia de motim na arte, ou por meio dela, fosse desafiada como uma mitologia, ao passo que se propõe o motim dos mitos, ou a desconstrução de nosso ideário de país.



Abraham Palatnik, ‘W’, 2018

Abraham Palatnik: Em movimento, individual na Nara Roesler do Rio de Janeiro, a partir de 24/4

A exposição demonstra o pleno vigor do mundialmente reconhecido mestre do movimento e da luz, ao apresentar como obra central um inédito Objeto Cinético em grandes dimensões (205 x 226 x 40 cm), realizado em 2018. A obra em destaque simboliza a continuidade de uma extensa pesquisa à qual o artista se dedica ao longo de sua carreira, tornando-se, após justo revisionismo histórico, uma referência no campo da arte cinética e óptica.

Nesta mostra de Palatnik estão reunidos outros trabalhos também de sua produção mais recente: relevos sobre acrílico, sobre madeira, da série W, e sobre papel cartão, que passaram a receber uma camada de tinta spray na superfície. São peças bidimensionais que alcançam profundidade e dinamismo devido à composição de padrões rítmicos, por meio cortes sequenciais, que remetem a ondas de caráter irregular, características formais que conectam à genealogia da produção de Palatnik a partir dos anos 1960.



Luiz Hermano, ‘Dobrada’, 2016

Trapézio: Luiz Hermano, individual no Sesc Santo Amaro, a partir de 21/4.

 

O artista cearense Luiz Hermano, representado pela Galeria Lume, apresenta uma instalação inédita com diversos trabalhos. Com curadoria de Cauê Alves, a exposição pretende apresentar o desenvolvimento criativo do artista. A mostra faz parte do projeto Desdobramentos, realizado pelo Sesc. As diversas obras que vieram compor a exposição partem do estudo da ciência das formas, tamanho e propriedades do espaço: a geometria.


Festival Serrote, conversas no Instituto Moreira Salles de São Paulo, nos dias 21 e 22/4.

serrote, revista de ensaios do IMS, promove conversas com escritores, jornalistas, pesquisadores e críticos sobre literatura, arte, política e sociedade, e uma sessão da serrote ao vivo com leituras, música e artes visuais.


 


 


 

Democracia?

'Alguém me disse que a democracia representativa estava morta em todos os lugares, que os parlamentos já não cumprem a sua missão e, completava com a demonstração cabal, “veja o nosso Congresso...”' FOTO: EBC

Quando estourou a última onda de revoltas no mundo árabe, me fizeram muitas vezes a pergunta que naquele momento apareceu, aos olhos de muitos no Ocidente, como uma das mais intrigantes: será possível a democracia no mundo árabe e no mundo muçulmano? A formulação mais direta e mais comum era: Islã e democracia são coisas compatíveis?

Eu respondia – com razão, acho – que sim; que não havia  por que imaginar que determinadas sociedades, humanas como todas as demais, não tivessem anseios por, entre outras coisas, liberdade e participação, e não tivessem condições de construir sistemas em que esses anseios fossem atendidos.

Apenas, pensava eu, a democracia que essas sociedades construiriam teria as marcas que lhe seriam próprias. Ela não poderia ser imposta ou importada sem que a palavra mesma perdesse significado.

Alguém me disse então que eu respondia assim porque não sabia o que era democracia. Esta verdade dita deste modo, sem misericórdia, abriu diante de mim o fosso da minha própria ignorância. Eu até podia ter razão sobre a impossibilidade lógica de uma democracia ao mesmo tempo democrática e imposta, ao mesmo tempo genuína e imitação desajeitada, mas o que, afinal, é a democracia?

Você que está lendo, saberia dizer?

A minha perplexidade com a coisa vem de longe. Desde a escola, talvez até mais desde as salas de cinema que eu frequentava com mais gosto, nos acostumamos a representar a democracia ateniense como o começo de todas as coisas boas e como superior à disciplina e ao autoritário de Esparta – a Esparta de abdômen definido só fará bonito, nos quadrinhos e nos filmes, contra os persas, aqueles vilões usuais de turbantes e rostos indefinidos.

Era preciso fazer um esforço para lembrar que aquela era um democracia exclusivamente de homens e de cidadãos, uma democracia de senhores e escravos.

Mais perto de nós no tempo, o modo como muitos europeus e outros ocidentais articulavam seu otimismo em relação à democracia turca causava em mim, a cada vez, uma surpresa confusa. O argumento era que naquele país o que garantia a continuidade democrática era a ameaça constante de um golpe militar: qualquer desvio antidemocrático seria corrigido pela ação violenta das forças armadas que viriam reconduzir a democracia a seu curso natural!!

O estranhamento causado pela imagem evocada, que mesmo para quem não entende nada de democracia pode parecer razoavelmente absurda, só fica um pouco mitigado quando se percebe que o que se quer dizer é que os militares seriam a garantia da laicidade, que eles constituiriam a defesa contra a islamização da política turca. Interessante a ideia subjacente de democracia, incompatível com o Islã mas não com um golpe de Estado.

E nos dias que correm a Turquia nos brinda com novas charadas democráticas. Em tempos de expurgo em massa de militares, juízes, promotores, professores e jornalistas, de uma evidente escalada autoritária e de uma crescente islamização da estrutura de poder, o presidente responsável por tudo isso conhece uma popularidade sem precedentes que o faz imbatível em qualquer processo eleitoral. Democracia e a voz do povo podem se desencontrar?

Mas o meu enigma favorito em relação à democracia é outro. Olho com admiração para os países que conhecem, em seus sistemas internos, os traços do que imagino seja a face da democracia à ocidental que se quer universal –  a esta altura, denunciada a minha ignorância, só me é licito imaginar…: eleições livres, alternância no poder, laicidade, participação, liberdades – com uma ou outra exceção para o burquini circunstancial -, alto grau de segurança jurídica. Não direi igualdade ou justiça social porque seria pedir muito.

Apenas, a admiração dá lugar ao espanto quando lembro que, enquanto operavam essas belas construções em casa, esses países se dedicavam à exploração colonial de outros povos, e quando vejo que ainda hoje, enquanto vendem barato o discurso da democracia, não fazem mais do que exercer, ou tentar, uma dominação de que os ditadores amigos ou os eleitos complacentes são os instrumentos, e cujos adversários merecem uma primavera que os venha arrancar de seus tronos.

Li em algum lugar, e me soou verdadeiro, que desde o início dos tempos a liberdade de uns se dá à custa da servidão de outros.

E, como diz a canção, pra não dizer que não falei de flores… Alguém me disse que a democracia representativa estava morta em todos os lugares, que os parlamentos já não cumprem a sua missão e, completava com a demonstração cabal, “veja o nosso Congresso…”

Ora, nosso Congresso anda bastante ocupado. A pergunta é se está cumprindo seu papel em relação à democracia brasileira. Afinal, quando todos os ritos e procedimentos tiverem sido cumpridos, quando todos os discursos, a despeito de ferirem de morte a gramática, tiverem sido proferidos a contento dos oradores e quando os votos estiverem contados, poderemos dizer que uma presidente foi eleita pelo voto popular mas foi derrubada por uma espécie de golpe democrático?

X-Range, um poema sobre o espaço

A artista carioca discute a poética do espaço sobre as imagens desencadeadas a partir de diferentes espaços. FOTO: Divulgação
A artista carioca discute a poética do espaço sobre as imagens desencadeadas a partir de diferentes espaços. FOTO: Divulgação

Os artistas habitam formas culturais e sociais. Os ateliês se convertem em fenômenos da memória e provocam reflexões sobre o espaço. Regina Vater é uma das pioneiras da vídeo arte e instalações no Brasil, mas se manifesta por meio da fotografia e da poesia visual para criar X-Range, reedição do livro publicado em 1977, em Nova York. A artista irrompe segredos por meio dos objetos espalhados ou organizados no espaço doméstico de quatro artistas: Hélio Oiticica, John Cage, Lygia Clark e Vito Acconci, todos seus amigos e, na época, morando no exterior.

A artista toma o espaço “como um instrumento de análise para a alma humana” como diz Gaston Bachelard, conceito que tangência X-Range. Tudo casual, porque Vater criou o livro muito antes de ter lido o pensador francês. A artista carioca discute a poética do espaço sobre as imagens desencadeadas a partir de diferentes espaços. Busca a origem e chega a uma fenomenologia da imaginação, ao visitar dezenas de casas de artistas, ateliês e escolher entre eles quatro para compor esse livro de formato inusual, feito em papel craft.

Regina tenta encontrar a presença na ausência, assim como em outros de seus trabalhos. “Ao longo de X-Range, procuro registrar, de maneira poética, como um indivíduo ou grupos de indivíduos lida com o espaço doméstico”. A artista não se prende a territórios e, onde quer que esteja, aborda o tempo e a temporalidade dos espaços como material poético. “O que me interessa é essa poesia cotidiana que o ser humano imprime ao seu entorno por meio de gestos, exposição de seu modo de ser e viver”.

Cada artista visitado recebeu um poema criado pela artista, com a impressão de partes de seu corpo e intervenções como rasgos, dobras ou pedaços de papel colados com fita adesiva. Dos 30 exemplares editados em 1977, resta apenas um, guardado por ela. O poema visual dedicado a Hélio Oiticica se transforma em performance gráfica ao mostrar uma espécie de “ninho”, com a impressão do corpo de Regina, rasgado e colado sobre ele. A nova edição mantém a performance nos 1.500 exemplares.

Paralelamente à edição do livro, produzido pela Ikrek, Regina realizou a retrospectiva Oxalá que dê Bom Tempo no MAC, de Niterói, com 70 obras, entre instalações, desenhos, séries fotográficas e vídeos. O conjunto aborda temas ligados à mulher, corpo, natureza, com curadoria de Pablo León de La Barra e Raphael Fonseca. O destaque fica para Tina América, de 1976, um dos trabalhos com forte referencial frente ao posicionamento da mulher na sociedade. A mostra é um resgate importante da obra de uma das artistas representativas da arte contemporânea brasileira.

Juruna e a propina para eleger presidente

Deputado pelo PDT, Juruna ficou conhecido por gravar “tudo o que o branco diz” – Foto: Reprodução

Não vem de hoje essa história de pagar propina em parcelas. O inusitado é devolver a bufunfa sem ter sido flagrado pela polícia na hora da entrega. Foi o que fez Mário Juruna, o primeiro – e único – indígena eleito deputado federal no Brasil. Numa sexta-feira, 26 de outubro de 1984, Juruna exibiu pilhas de dinheiro durante uma coletiva que convocou em Brasília.

A soma equivalia a cerca de US$ 10 mil. Pelo relato do parlamentar, era a primeira de quatro parcelas que receberia para votar no candidato da ditadura, Paulo Maluf, nas eleições indiretas de janeiro de 1985. O outro candidato, Tancredo Neves, representava a oposição. Naquela altura, a emenda das eleições diretas tinha sido derrubada no Congresso.

Pelo relato de Juruna, a primeira parcela deveria ser acompanhada de uma declaração de apoio a Maluf. A segunda viria assim que ele confirmasse que tinha ‘malufado’. As outras duas parcelas seriam quitadas na véspera e no dia seguinte à votação. O acerto tinha sido feito em um hotel de Brasília, com o empresário Calim Eid, tesoureiro de campanha de Maluf.

Juruna, que ficara famoso por usar sempre um gravador “para registrar tudo o que o branco diz”, tinha dificuldade em lidar com dinheiro, em dimensionar valores. Ainda assim, negociou e recebeu uma quantidade de cédulas que nem sabia contar. Depois, confessou a falcatrua ao sertanista José Porfírio Fontenele de Carvalho, de sua assessoria.

Como Juruna tinha sido eleito pelo PDT, o sertanista avisou à liderança do partido, ressaltando que o xavante estava decidido a devolver o suborno o mais rápido possível. Para o sertanista, o ideal seria entregar o dinheiro ao então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, que teria de providenciar uma investigação em torno da compra de votos.

Leonel Brizola, líder do partido, avaliou que o melhor seria convocar uma entrevista. Fez barulho. Só que, na sequência, Calim Eid e Maluf negaram tudo. O dinheiro do suborno foi depositado em uma conta do empresário. Nas eleições seguintes, Juruna tentou, mas não se reelegeu. Morreu pobre e esquecido nos arredores de Brasília, em 17 de julho de 2002.

O “Eu sou bilíngüe” trabalha a interculturalidade

Linete É servidora da Funai na Coordenação Regional do Medio Purus. FOTO: Celia Santos/Caravana do Esporte e das Artes

A educação escolar indígena no Brasil é prevista em lei desde 1997. A questão pedagógica, no entanto, que tem como objetivo conciliar o currículo nacional a um programa indígena, ainda está em fase de diagnóstico no País. É o que diz Linete Ruiz Ferreira, servidora da Funai na Coordenação Regional do Medio Purus, no sul do Amazonas,  e que trabalha com educação indígena há 20 anos.

A falta de conhecimento para desenvolver um projeto educacional apropriado tanto entre os indígenas quanto entre os técnicos dos municípios, dos estados e da Funai dificulta a implementação de um currículo próprio, diz Linete. Além disso, a legislação garante que cada povo decida seu próprio processo educativo, o que preserva a diversidade das diferentes culturas indígenas, e deixa ainda mais complexa a realização de um programa.

A região onde Linete atua comporta 4 municípios, cerca de 9 mil indígenas, mais de 150 aldeias e 27 terras indígenas regularizadas. Confira abaixo a entrevista que a servidora da Funai concedeu à Brasileiros/PágianB!, após um debate organizado pela Caravana do Esporte e das Artes, em Lábrea.

Revista Brasileiros/PáginaB!: A educação indígena está prevista na legislação brasileira desde 1997. Quais são as dificuldades de avançar nessa questão e tirá-la do papel?

Linete Ruiz Ferreira: Desde 1997 tivemos pareceres da câmara nacional de educação básica, tivemos resoluções, a mais recente é de 2012, a resolução 005, e elas orientam os próprios professores indígenas a  implementar nas aldeias uma educação intercultural, que aborde as particularidades indígenas, mas também o currículo nacional. Uma escola indígena é muito difícil de implementar porque ela tem o dobro do conteúdo que a escola comum. Ela tem todos os conteúdos da escola comum e ainda tem que atender às diversas especificidades e línguas diferentes que têm cada povo. Tem aldeia que com sete línguas diferentes. A FUNAI fez isso em épocas passadas, reuniu vários povos em uma mesma aldeia e agora tem aldeias com sete línguas faladas. Como que você consegue ter um currículo que atenda a todos os povos? Hoje temos muitas dificuldades porque há poucos técnicos que entendam da questão indígena, tanto entre os próprios indígenas, quanto no governo ou mesmo na FUNAI. Estamos na fase de diagnóstico educacional. Não saímos dele ainda porque todo dia estamos tentando aprender com a comunidade indígena e nesse aprendizado tentando encontrar o melhor rumo.Tem muitas comunidades bilíngües onde os indígenas já aprenderam a vestir roupa, a usar sal, óleo, sabão, itens que não são produzidos na aldeia. Então o índio não pode mais viver do usufruto dos recursos da floresta. Ele precisa ter uma renda para poder comprar essas coisas. E como que ele vai comercializar se ele não sabe falar português, se não sabe matemática. Tem comunidades bilíngües pedindo para aprender minimamente isso, para não ser enganado nesse comércio que ele é obrigado a entrar. Em função disso, temos uma série de outros problemas. O índio vem na cidade, recebe o Bolsa Família, ele vai no mercado comprar uma coisa. Se essa coisa custa R$ 5 para o não índio, para o índio custa R$ 10. Aí o dinheiro do Bolsa Família não é o suficiente, o comerciante diz: deixa o cartão aqui, fica metade aqui, metade mês que vem.  Em vários estabelecimentos comerciais você vê bloquinhos de Bolsa Família, de aposentadoria de indígenas.

O projeto Eu sou bilíngüe intercultural é uma iniciativa dos indígenas, hoje tem apoio da Funai. Tem duas salas de aula, uma paumari outra apurinã, para tentar manter vivas as línguas indígenas, que por necessidade vieram para a cidade. Em labrea tem um numero muito grande, que já vivem na cidade, se estabeleceram, tem emprego, não faz parte da perspectiva dessas famílias voltarem para as terras indígenas.

O professor Edilson, do projeto Eu sou bilíngüe intercultural, que dá aulas de paumari e apurinã, disse que parece ser proibido um índio estudar. O que ele considera um absurdo, já que todo ser humano teria o direito de desenvolver as suas capacidades.

É, como se índio não fosse ser humano. Índio não pode ter celular, não pode ter blog, não pode estar no Facebook. O Eu sou bilíngüe trabalha justamente a interculturalidade porque além de valorizar a língua materna, também coloca para os indígenas que eles precisam falar inglês, estar bem no português. Acho muito legal, trabalham muito bem a sua língua materna e reconhecem a necessidade dessa interface com as outras culturas. No Purus tem muitos indígenas na cidade. Da mesma forma que tem apurina e paumari desenvolvendo o projeto Eu sou bilíngüe, tem os indígenas de jarawara reivindicando o ensino médio dentro de suas aldeias. Isso quer dizer que vai ter o tal do IPTV, que é a televisão colocando o branco para falar em português, dentro de uma aldeia na qual todo mundo é monolíngüe. Isso vai matar a língua indígena. É aquela coisa de querer imitar o que está na mídia. Tem o mesmo poder sobre todas as pessoas, indígena ou não.  Já vi isso acontecer em outras comunidades indígenas e é muito triste. O indígena cai num conto da beleza, vê aquela coisa linda na televisão e de repente não é só o aluno que está aprendendo português, mas a aldeia inteira. Temos exemplos de alguns povos que estão fazendo mídias em suas línguas. Os paumari vão ter em setembro o campeonato da língua indígena onde vão ter várias atividades. O produto final será um material para se fazer vídeo, cd e livro na língua. São estratégias para tornar mais justa a relação entre a cultura nacional e as culturas indígenas. Não é renegar uma ou outra, as duas são importantes. Mas a gente precisa ter um equilíbrio. Às vezes caímos numas armadilhas, tem que ficar se policiando o tempo inteiro.

Dada a complexidade dos diversos povos indígenas, é possível pensar em uma educação indígena?

A legislação fala da autonomia dos povos indígenas para conceber o seu modelo de educação especifico. Olha que complicado. Como é que um indígena, que nunca teve uma escola  em sua comunidade, vai conceber essa escola? A educação para todos os povos indígenas se dá no dia a dia. Você vê criança desde pequena indo para a roça, caçada, pesca. Elas têm contato com armas, ferramentas. A brincadeira do indígena é imitando o adulto. O meu filho é indígena, meu marido também, e eu muitas vezes me peguei com medo do meu filho mexendo com ponta de flecha, arco. E hoje eu vejo que ele tem 17 anos e nunca se machucou no mato.

A educação indígena no Brasil está neste processo: de descobrir o que é melhor para cada povo.

Ninguém acha que índio precisa ficar no museu, isso não existe, o ser humano desenvolveu. A gente encontra os indígenas em uma etapa. Dali eles vão para frente, de uma maneira ou de outra. Temos que ter cuidado em como influenciar para que esse ir para frente seja bom para eles. É um exercício constante de se questionar. Infelizmente temos pouca gente na Funai para discutir isso.

E qual a perspectiva daqui para frente? A senhora vê como uma prioridade do governo tratar desta questão?

Prioridade não é, está muito longe disso, porque tem pouca gente com conhecimento e disposição para discutir essas questões. Na educação somos formados com modelos pedagógicos, que temos que largar e pensar em uma educação para cada povo. Isso dá muito trabalho, exige muito tempo. Tem que aprender a ouvir as pessoas. A elaboração de um calendário, por exemplo. Tem comunidade que durante as épocas de temporais, com os bichos de caça desovando, fica na praia aproveitar. Então como que o aluno vai freqüentar a sala de aula nesse período? Sem contar que até 10, 11 anos, idade na qual a criança está sendo criada pelos avós, a escola não pode entrar com português, tem que registrar os conhecimentos que os avós estão transmitindo. Precisa ter perspicácia, paciência para formalizar esses processos que já existem. Tem muitos municípios que tem abertura para isso, mas faltam técnicos. É um desafio muito grande. Não conseguimos acompanhar todos, mas é por isso que fazemos os seminários de educação.

Existe algum modelo funcionando que a senhora avalie positivamente?

Cada caso é um caso. O que acontece no Rio Negro não se aplica a nossa região. Os rios têm características diferentes,  povos que vivem de formas diferentes. A concepção dessa educação não está pronta, espero que nunca esteja – senão vamos cair no caos que é a educação publica com todos os seus problemas. Não queremos que a escola indígena se afaste da realidade dos que vivem ali, não pode ser um elemento estranho, tem que ser construída a partir da vida deles. É lento. Eu vou caducar, meus filhos também e os indígenas ainda vão estar construindo. A vida deles é muito dinâmica e isso se reflete na educação deles também. É muito legal trabalhar com comunidades que dão uma importância à educação que a gente não dá, justamente porque a educação é algo do dia a dia. Graças a deus não separaram uma coisa da outra, como a gente fez.

Sonhar a Síria

"Uma Síria íntegra territorialmente é a derrota do projeto de fragmentação do mundo árabe em pseudo-nações sectárias, étnicas ou religiosas". Foto: Manu Gomez/ Fotomovimiento via Fotos Públicas

Não há inocentes na política internacional. Se aparecer algum, será imediatamente devorado, junto com os ingênuos.

Ali também todo mundo mente, em alguma medida, quase todo o tempo.

Nós, aqui de fora, tentamos adivinhar nas reentrâncias dos discursos mais ou menos bem urdidos a real intenção da raposa, o próximo passo do lobo, o bote da cobra, o truque que está a armar a hiena enquanto esfrega as patas e abre seu sorriso.

Não só não temos acesso à verdade por trás das palavras; tampouco temos como apreender a total realidade do que se passa nos vários campos da ação, nos vários teatros, alguém diria.

Estamos condenados a montar quebra-cabeças incompletos com fragmentos de informação e com aquilo que arrancamos das entrelinhas dos muitos discursos que nos são servidos. Fazemos nossas melhores apostas.

Essa tem sido a nossa sina também em relação à Síria, nos últimos cinco anos.

Os jogos ali continuam abertos; a imagem que nos revelaria o quebra-cabeça se um dia o viéssemos a completar muda a cada instante.

No último lance, em Viena, sob a condução de Estados Unidos e Rússia, reuniu-se uma parte daqueles cujos gestos e palavras espreitamos e tentamos decifrar. Foram a isso levados, em parte ao menos, pelos efeitos da entrada em força da Rússia no conflito armado.

Diz-se que há um acordo de princípio sobre o que deve ser o futuro: a manutenção da unidade territorial da Síria; a construção de um sistema democrático apoiado em instituições fortes; a laicidade do Estado.

Ainda que mintam, se mentem, descrevem a Síria que se deve sonhar.

Nada menos se deve querer que emerja depois de tanta dor, tanto sangue.

Uma Síria íntegra territorialmente é a derrota do projeto de fragmentação do mundo árabe em pseudo-nações sectárias, étnicas ou religiosas. É uma Síria de todos os seus cidadãos, muçulmanos, cristãos, curdos. É uma Síria que comporta a pluralidade dentro de sua identidade una.

Uma Síria de instituições é um país que se liberta da necessidade, da inevitabilidade dos homens únicos salvadores.

Uma Síria laica, ainda que multirreligiosa é a garantia da igualdade de todos perante o Estado.

 

Ricardo Lísias e a profissionalização do escritor

Há quase cinco anos, Lísias falou à Revista Brasileiros sobre seu livro 'Divórcio'. Assista ao final do texto.

É comum que seja perguntado a um escritor qual é o seu emprego. No geral, não se pode conceber que o emprego de um escritor seja baseado em sua própria escrita. Isso porque, no Brasil, a profissionalização do escritor não é uma realidade, exceto para uma minoria.

O paulistano Ricardo Lísias é um desses que consegue viver de literatura. Não apenas dos direitos autorais – embora os seus ainda tenham um bom valor, considerando a média do mercado -, mas de tudo o que envolve sua atividade, como eventos, traduções e pesquisa. “Eu vivo, sim. Não dá pra dizer que seja da melhor forma possível”, brinca Lísias.

Ele é um dos participantes do Ciclo Profissão: Escritor, realizado na Estação das Letras, no Rio de Janeiro, no sábado (14). A atividade, que tem curadoria de Michelle Strzoda, traz em seu escopo justamente a ideia da formação de escritores e de tudo o que envolve o meio.

Em um momento em que artistas e técnicos de espetáculos lutam para não terem seu direito a um registro extinto pelo Superior Tribunal Federal, com um movimento intitulado Profissão Artista, Ricardo aborda o fato de escritores serem uma classe que não tem registro. Segundo ele, o registro traria uma facilidade aos escritores, que sofrem com burocracias para participarem de eventos, por exemplo.

“Muitos lugares exigem que o autor tenha pessoa jurídica (PJ) para poder participar de atividades”, conta Lísias, que, pouco antes da entrevista, tinha acabado de ser desconvidado de um evento por esse motivo, já que não possui PJ. Ainda sobre a luta dos artistas e técnicos de espetáculos, ele afirma: “Minha preocupação é que isso está sendo feito em um momento de subtração de direitos”.

Para o autor, a profissionalização do escritor só será possível quando surgir no Brasil uma quantidade maior de público-leitor de literatura: “Temos um público-leitor de entretenimento, mas de literatura – a considerada como arte – não é tão amplo”. Ricardo concorda, então, que a questão deve-se passar pela educação de base escolar, que formaria esse público leitor. Segundo ele, isso possibilitaria que existissem mais pessoas dispostas a participar de eventos como encontros com escritores, por exemplo.

Ricardo também acredita que uma das saídas para que haja essa profissionalização é ter cursos de escrita criativa melhor incorporados no país. “Acho que a universidade deveria ter esses cursos, que eu saiba só tem um na PUC do Rio Grande do Sul”. Em outros lugares do país, cursos de escrita criativa não fazem parte de um currículo fixo.


Leia trecho de entrevista cedida a Daniel de Mesquita Benevides para a edição 74 da Revista Brasileiros, no qual Lísias fala sobre sua literatura:

Brasileiros – Você falou que escrever foi uma forma de terapia, de resistência?

Ricardo – Não sei se foi uma forma de resistência. Escrevi alguns textos posteriores a um trauma que eu tive, textos de ficção, não sei se de resistência como comprovação de que eu era capaz de continuar o trabalho, talvez.

Brasileiros – O que te move a escrever?

Ricardo – Acredito que é algo que eu faça mais ou menos bem, escrevo todos os dias de manhã há mais ou menos 12 anos e isso me faz sentir melhor. Descarto textos, raramente eu publico, mas em dez anos acho que houve 20 dias que eu não tenha escrito. Mesmo no dia de Natal ou Ano Novo. Hoje, por exemplo, eu escrevi. Quando não dá, aí é um dia ruim para mim.


,

Angeli – confissões de um cartunista

Angeli
O cartunista Angeli no ateliê de seu apartamento, em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Em longa conversa com a Brasileiros (e sem papas na língua, como era de se esperar), Arnaldo Angeli Filho, o pai de personagens símbolos dos anos 1980, como Rê Bordosa, Os Skrotinhos, Meiaoito e Nanico, Walter Ego, Mara Tara e Osgarmo, relembrou sua trajetória errante, lamentou, de olhos marejados, a perda do amigo Glauco, falou da transformação recente do amigo Laerte, e deu nomes àqueles que considera como “ratos sujos” da política.

Em tempos de aparente retração conservadora, Angeli continua a defender a liberdade de ser politicamente incorreto, como o punk Bob Cuspe, e reitera, como os hippies Wood e Stock, a deliciosa tese de que “só o Grande Orgasmo Universal salvará a humanidade!”.

Com 40 anos de carreira e mais de 30 mil trabalhos publicados, o cartunista paulistano terá um expressivo recorte de sua produção exposto na Ocupação Angeli do Itaú Cultural, instituto sediado em São Paulo.

A mostra, que reproduzirá o ambiente do estúdio do artista, exibirá mais de 800 obras. Será aberta em 15 de março e permanecerá no Itaú Cultural até 29 de abril de 2012.

Enfrentando uma rotina de trabalho intenso e apenas quatro horas diárias de sono, em meio a copiosas baforadas de seus cigarros – Angeli comemora ao dizer que partiu de 4 para 2 maços diários –, o cartunista afirma querer envelhecer com dignidade, e que cada vez mais abrirá mão de novos personagens, deixando o caminho livre para as futuras gerações de cartunistas do País – sucessores que certamente têm e terão nele a figura de um herói.

Funileiro, bandido, cartunista

Filho de um modesto casal de imigrantes italianos, o pai funileiro, a mãe costureira, Angeli veio ao mundo em 31 de agosto de 1956. Quatorze anos mais tarde, como office-boy, descobriu os encantos e as contradições de sua cidade e também deu os primeiros passos da carreira de cartunista nas páginas da extinta revista Senhor.

Nossa conversa tem início com a recordação da alienação de suburbano que o fazia acreditar que São Paulo se limitava a seu bairro: “Por um bom tempo, achei que minha vida e São Paulo eram só aquele mundinho da Casa Verde. Até que aos 14 anos atravessei o Tietê (as margens do rio), conheci o Centro e descobri que a cidade e as experiências que ela podia me proporcionar eram algo que ia muito além. O mesmo aconteceu com quase todos os meus amigos de infância, um deles, o Toninho Mendes, que tempos depois foi o editor da Chiclete com Banana, pelo mesmo motivo: o primeiro emprego de office-boy”, defende.

O cartunista aos 15 anos, em retrato de 1971. Foto: arquivo pessoal.

Vizinho de um bar frequentado por traficantes, Angeli enfrentou um turbulento rito de passagem para a adolescência, anestesiado pelo consumo de maconha. Admirava o ofício do avô, um humilde ferreiro, que potencializou sua paixão pelo desenho, mas temia a oficina de funilaria do pai, possível reduto profissional de um garoto que pouco ou nada se importava com sua formação, por conta da recorrente sensação de deslocamento em sala de aula.

“Meu avô era ferreiro, um trabalho que aparentemente não tem nada a ver com arte, mas ele desenhava aqueles portões art noveau e pesquisava muito. Fazia esboços, era um tremendo desenhista, e eu apreciava esse universo dele. Por outro lado, meu pai era funileiro, e eu tinha quase certeza de que também iria acabar me tornando um, o que já era uma boa perspectiva, porque eu vivia em um ambiente muito propício para transformar alguém em bandido. Cheguei a tomar conta de uma banca de jornal de um vizinho em troca de parangas de fumo. Havia um bar frequentado por traficantes ao lado da minha casa. Eu descia a escadinha do sobrado dos meus pais e dava de cara com esse ambiente todos os dias.”

Enfatizando o que classifica como uma “vocação para a delinquência”, Angeli revela os motivos que o levaram ao precoce fim de sua carreira estudantil, depois de repetir por três vezes a 5a série do primário e ser expulso: “Minha família obviamente dava importância à educação dos filhos, mas acabou desistindo de mim. Pudera! Fui, várias vezes, expulso da escola por questões idiotas: brigava com um menino e era advertido; batia em outro e acabava expulso. Minha mãe ficava puta comigo, mas eu não conseguia me dedicar. Às vésperas de completar 14 anos e ainda na 5a série, estava fadado a ficar ao lado de uma turma três, quatro anos mais nova do que eu. Sabia que se eu ficasse ali, cedo ou tarde ia querer bater em todos e aterrorizar a pivetada”, recorda.

Nem funileiro nem bandido, Angeli teve a vida transformada da noite para o dia quando, em 1975, foi um dos premiados no 2o Salão de Humor de Piracicaba, encerrado no dia em que ele completou 18 anos. A premiação o aproximou da chargista Hilde Weber, alemã, radicada no Brasil. Hilde trabalhava para o jornal O Estado de S. Paulo e era ex-mulher do jornalista Cláudio Abramo, então editor da Folha de S. Paulo. Por recomendação de Hilde ao ex-marido, Angeli foi parar na Folha, onde reina, como chargista e cartunista, há quase 40 anos: “Foi lá que me tornei homem e gente”, admite.

Em 1972, aos 16 anos, no Jardim São Bento, bairro nobre do distrito da Casa Verde. Foto: Arquivo pessoal

Com o abandono dos estudos, a descoberta do rock e da cultura underground, Angeli passou a apostar cada vez mais em uma formação empírica, baseada em experiências cotidianas e uma rede de intensa troca de informações que o livrou da sensação de deslocamento que engessava sua desenvoltura na educação formal.

Um caminho de transformações, pavimentado com o desbunde de excessos e amizades valiosas, como a do poeta Roberto Piva: “A paixão pelo rock envolvia muito mais do que música, era uma questão comportamental e também uma forma de aproximar pessoas com interesses parecidos. Um dos pontos de encontro dessa turma era o vão livre do Masp. Foi lá que conheci Roberto Piva e nos tornamos amigos. Piva foi o mentor dessa turma. Ele organizava shows e uma série de saraus de literatura beat, e só aí é que fui encontrar a minha escola. Mas esse era também um período difícil, em que roqueiro brasileiro ainda tinha cara de bandido e veado. Lembro que no auge do glitter rock, eu tinha uma calça de cetim coral e andava com ela em plena Casa Verde. Me chamavam de veado, mas eu não comprava briga. Encarava essas provocações como algo legal, me sentia desafiador. Hoje, jamais vestiria aquela calça”, sorri.

Riviera, Rê Bordosa, Meiaoito

A consolidação da carreira de Angeli na virada dos anos 1970 para os 80 coincidiu com uma transição geracional no País. Saíam de cena emepebistas esquerdistas e hippies anacrônicos para dar lugar a punks e pós-punks reunidos em históricos inferninhos de São Paulo, como os clubes Madame Satã, Ácido Plástico, Carbono 14 e Radar Tantã, e bares como o Riviera, antros de uma fauna transgressora que, às vésperas da paranoia da AIDS, dispensava pudores e mergulhava de cabeça em comportamentos libertinos e progressistas, ignorando antigos tabus, como o sexo sem paranoias e o uso de drogas sem o ônus da autopenitência.

O próprio Angeli, cocainômano por uma década e adepto de um comportamento sexual poligâmico, soube debochar como ninguém desses anos loucos e, assim, pode retratar a década de 1980 como um cronista. Aventura que teve como laboratório um dos mais tradicionais bares da boemia paulistana.

“No Riviera, conheci outros cartunistas, escritores, poetas, jornalistas, todo tipo de gente. Foi uma escola. Antes da minha geração, ele era frequentado pela turma do Caetano, Gil, Chico. Aprendi muito, briguei, quebrei o bar, roubei vinho, criei personagens inspirados em frequentadores, casei e me separei lá dentro. Lamentei muito o fim do Riviera. Ele deveria ter sido tombado pelo patrimônio histórico dos malucos de São Paulo. Foi lá que me formei e aprendi muito daquilo que não consegui aprender na escola. Ficava de orelha em pé, pegando as conversas e tentando entender tudo o que ouvia.”

 

Angeli, Salão do Humor de Piracicaba, 1975
O trabalho premiado, em 1975, no Salão do Humor de Piracicaba. Foto: arquivo pessoal

Esse apreço pela observação, a insolência e a urgência em compreender o mundo a sua volta, eram atitudes típicas de alguém tão carente de rumos, mas também hábitos críticos deflagrados por sua enorme paixão pelo cartunista Robert Crumb, ídolo que, desde os anos 1960, quando impôs à contracultura impagáveis personagens como Fritz, The Cat e Mr. Natural, tornou-se guru de sucessivas gerações de cartunistas espalhados ao redor do mundo.

No documentário Crumb, de Terry Zwigoff, o cartunista norte-americano confessa que a paixão pelos quadrinhos o redimiu de uma possível condição de loucura. Não seria exagero dizer que, no caso de Angeli, desenhar foi a redenção urgente para uma vida ordinária ou até mesmo uma vida de crimes.

Em 1992, no Festival Treviso Comics, em Treviso, na Itália, Angeli teve a honra de expor seu trabalho no mesmo espaço em que Crumb e outro de seus mentores, o pai dos Freak Brothers, Gilbert Shelton, foram homenageados.

“Eu tinha verdadeira adoração pelo Crumb, e ele foi decisivo para me convencer de que eu teria de fazer algo autoral, falar da minha vida, das coisas que eu gostava, das raivas que eu tinha, do meu desprezo à burguesia, mas eu estava fazendo charge política na Folha, em uma época em que não se podia apontar o dedo ou desenhar generais. Foi então que falei que queria sair da charge e comecei a produzir tiras. Só havia tiras americanas na Folha, e os embriões da Chiclete com Banana surgiram nesse novo espaço que defendi. A observação crítica é o que me levou aos personagens. O Laerte foi do partidão (o Partido Comunista Brasileiro) e chegou a me levar a algumas reuniões comunistas, mas me incomodava essa coisa da militância. Tive a ideia de fazer o Meiaoito, um guerrilheiro de merda, de balcão de bar, e foi então que percebi que poderia criar outros personagens com a mesma visão. A resposta do público veio rapidamente.”

Muito além de ser tão somente o fundador de uma revista “porralouca”, Angeli fez por sua geração o que fez Carlos Zéfiro anteriormente com seus Catecismos – uma série de quadrinhos pornográficos, em preto e branco, disputados a tapas nos anos 1970. Mas ao sexo de Zéfiro, Angeli acrescentou doses cavalares de drogas, rock’n’roll e cultura subversiva, como quando decidiu convidar o poeta Claudio Willer, tradutor da primeira versão brasileira do clássico poema Uivo, de Allen Ginsberg, para colaborar com a revista e deixar bem claro de onde vinha o hippie que derivou no punk e descambou no heavy metal, que tanto fazia alguns leitores estreitos da Chiclete com Banana literalmente baterem cabeça sem o pré-requisito dos decibéis das guitarras metaleiras.

Rê Bordosa, a Porralouca, em meio à fauna noturna inspirada na boêmia do Riviera. Foto: Arquivo pessoal

“Desde aquela época, eu já defendia que a saída para o homem é o sexo, que só o ‘Grande Orgasmo Universal’ pode salvar a humanidade. Falava de sexo, de drogas, e depois que fiz todos esses personagens, enfim pude reconhecer que eu era um verdadeiro autor. Em pouco tempo, alcançamos marcas históricas de vendagem, e chegamos a colocar 110 mil exemplares na rua. Em meio a tantos leitores, a seção de cartas da Chiclete só tinha metaleiro, uns headbangers estreitos, e eu comecei a pensar: ‘Porra, vamos tentar abrir um pouco mais a cabeça desses moleques, colocar um pouco mais de postura na revista’. Encomendei para o Cláudio Willer uma série em capítulos sobre a geração beat (movimento literário norte-americano surgido no final dos anos 1950, que reuniu autores como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg). Todo mundo falava dos hippies, dos punks, mas ninguém aqui sabia de onde esses caras tinham vindo. O embrião de tudo isso estava no comportamento libertário dos beats.”

Ao longo dos cinco anos em que foi publicada pela Circo, a Chiclete com Banana experimentou um sucesso comercial que possibilitou à editora lançar outras duas publicações, as revistas Geraldão, do impagável e inútil personagem de Glauco, e a Piratas do Tietê, que libertou do espaço limitado das tirinhas da Folha de S. Paulo o traço inconfundível de Laerte. Uma história de ascensão meteórica e queda vertiginosa, antecipada com a traumática chegada de Fernando Collor ao Planalto.

“Vendíamos 80 mil exemplares, e, no mês seguinte ao plano da Zélia, despencamos para sete mil. Nunca tivemos anunciantes, a receita era feita nas bancas. Mas eu já achava que devíamos parar por ali. Se virasse uma revista muito profissional, perderia o encanto. Ficou para a história.”

Ratos sujos e redemocratização

Inimigo número um de certas aves de rapina que sobrevoam a capital do Brasil, Angeli desenvolveu, em paralelo aos cartuns, uma brilhante carreira de chargista político. Acompanhou de perto as transformações que o País experimentou desde os anos 1970, e mensura com propriedade erros e acertos de todos os presidentes que conduziram o Brasil depois da morte de Tancredo Neves.

Capa da “Chiclete Com Banana” com a personagem Rê Bordosa. Foto: Reprodução / Circus

Demonstra antipatia pela postura “mauricinha” e soberba dos tucanos, mas também rechaça o que considera convenções antiéticas que levaram Lula ao poder e que mantiveram o presidente sindicalista como um personagem inabalável ao longo de oito anos.

“Tirando o Sarney, o Collor, e a sucessão de erros dos dois, acho que até o Itamar, de alguma forma, colaborou com o País. O FHC também fez coisas importantes, mas eu não suporto essa escolinha do PSDB. Eles têm o nariz muito empinado: ‘Oh, eu fiz Sorbonne’. ‘Participei de palestras com o Sartre!’. O FHC fez esse filme propondo debates sobre a maconha, aplaudo, mas essas questões têm de ser levadas à esfera política quando se está no poder, para que elas realmente sejam transformadas. Não adianta ter essa postura agora que ele está fora do governo. O Brasil avançou com o Lula, mas ele também tolerou um monte de coisas graves, negociou com vários lados e, algumas vezes, seguiu o caminho errado. A Dilma está tendo pulso mais firme do que ele com relação a corrupção. O Lula fez coisas bem importantes, mas fez também outras bem negativas, como se aliar à corja do PMDB, um partido de ratos sujos, que vivem à sombra do MDB da ditadura, e que vende, até hoje, a ideia de que reformularam o Brasil. Temos uma oposição de ratos, e não são aqueles ratinhos branquinhos, fofinhos, são ratões gordos e sujos procriando filhotes. Estão aí o neto do ACM, o filho do Cesar Maia e tantos outros…”

Crise, perdas e mutações

Aos 55 anos, três casamentos e dois filhos da segunda relação – o sonoplasta e artista gráfico Pedro, 30, e a professora de educação física Sofia, 26 –, Angeli é casado com a arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru, 35. Braço direito do cartunista, Carolina assina a curadoria da retrospectiva Ocupação Angeli, no Itaú Cultural.

A exposição é oportuna para um balanço da carreira do cartunista. Angeli é sereno e justo ao mensurar a importância de seus personagens, no entanto, ainda mais generoso ao admitir que o momento é de tirar o pé do acelerador e dar passagem para os novos artistas que vêm por aí.

“Estou em um momento de baixa criatividade, não sei exatamente o que desenhar e não me agrada mais a ideia de criar personagens, pois acho que os meus já cumpriram seu papel. Há algum tempo vem surgindo uma nova geração de cartunistas, bastante influenciada por mim, pelo Laerte e pelo Glauco. Olho o trabalho dessa molecada e, francamente, me pergunto ‘Por que é que eu vou continuar fazendo isso? Eu já fiz isso! Por que é que eu vou concorrer com um moleque que está começando a descobrir o caminho dele agora?’. Para mim, é fundamental envelhecer com dignidade.”

Meiaoito e nanico
Tirinha da antológica dupla Meiaoito e Nanico. Foto: arquivo pessoal

A propósito do seu comentário, questionado sobre o que acha dos esforços empenhados por jovens cartunistas para regulamentar a profissão, Angeli defende que envelhecer com dignidade também passa por condições dignas de vida profissional, mas se diz alheio a assembleias reivindicatórias de sua categoria.

“Acho válido, mas, sendo bem sincero, prefiro não frequentar. Acho um puta saco ficar em um ambiente desses, onde só se fala de cartum. Regulamentar a profissão e dar garantias mínimas é fundamental, mas também acho que uma profissionalização excessiva tirar parte essencial do encanto do ofício.”

Los Três Amigos
Los Três Amigos: Laerte, Angeli e Glauco, em foto, de 1987, de Leonardo Crescenti.

Encerramos a entrevista com dois assuntos polêmicos e inevitáveis: a trágica perda do amigo Glauco e, o mais ameno deles, a recente mutação de Laerte: “Me divirto com isso, porque o Laerte já tinha essa coisa, vivia falando ‘acho que sou bi, sou gay’, mas acho que só agora ele encontrou uma saída. E eu também estou precisando achar alguma, que não sei qual é, mas com certeza não será me travestir de mulher. Já o Glauco foi o cara que mais fez jus ao predicado hippie. Éramos meio carrancudos, veio o Glauco com aquelas tirinhas, e eu, mesmo na minha fase mais riponga, não conseguia fazer essa piada por piada que ele sempre fez. Eu tinha a pretensão de ter algum viés político, só que a piada pela piada do Glauco era algo brilhante. A amizade que tivemos trouxe muito frescor a nossos trabalhos. A perda do Glauco é uma ausência profunda. Ele cumpria um papel importante e ficou esse vazio”.

Nossa conversa foi registrada em São Paulo, no bairro nobre de Higienópolis. Angeli, como Artacho Jurado (que projetou o cultuado prédio onde vive o cartunista e era odiado por seus pares por não ter formação em arquitetura), também driblou convenções para impor, a fórceps, seu grande talento. Reduto simbólico, convenhamos.

* Perfil originalmente publicado em maio de 2012, capa da edição 56 da revista Brasileiros