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Juruna e a propina para eleger presidente

Deputado pelo PDT, Juruna ficou conhecido por gravar “tudo o que o branco diz” – Foto: Reprodução

Não vem de hoje essa história de pagar propina em parcelas. O inusitado é devolver a bufunfa sem ter sido flagrado pela polícia na hora da entrega. Foi o que fez Mário Juruna, o primeiro – e único – indígena eleito deputado federal no Brasil. Numa sexta-feira, 26 de outubro de 1984, Juruna exibiu pilhas de dinheiro durante uma coletiva que convocou em Brasília.

A soma equivalia a cerca de US$ 10 mil. Pelo relato do parlamentar, era a primeira de quatro parcelas que receberia para votar no candidato da ditadura, Paulo Maluf, nas eleições indiretas de janeiro de 1985. O outro candidato, Tancredo Neves, representava a oposição. Naquela altura, a emenda das eleições diretas tinha sido derrubada no Congresso.

Pelo relato de Juruna, a primeira parcela deveria ser acompanhada de uma declaração de apoio a Maluf. A segunda viria assim que ele confirmasse que tinha ‘malufado’. As outras duas parcelas seriam quitadas na véspera e no dia seguinte à votação. O acerto tinha sido feito em um hotel de Brasília, com o empresário Calim Eid, tesoureiro de campanha de Maluf.

Juruna, que ficara famoso por usar sempre um gravador “para registrar tudo o que o branco diz”, tinha dificuldade em lidar com dinheiro, em dimensionar valores. Ainda assim, negociou e recebeu uma quantidade de cédulas que nem sabia contar. Depois, confessou a falcatrua ao sertanista José Porfírio Fontenele de Carvalho, de sua assessoria.

Como Juruna tinha sido eleito pelo PDT, o sertanista avisou à liderança do partido, ressaltando que o xavante estava decidido a devolver o suborno o mais rápido possível. Para o sertanista, o ideal seria entregar o dinheiro ao então ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, que teria de providenciar uma investigação em torno da compra de votos.

Leonel Brizola, líder do partido, avaliou que o melhor seria convocar uma entrevista. Fez barulho. Só que, na sequência, Calim Eid e Maluf negaram tudo. O dinheiro do suborno foi depositado em uma conta do empresário. Nas eleições seguintes, Juruna tentou, mas não se reelegeu. Morreu pobre e esquecido nos arredores de Brasília, em 17 de julho de 2002.

O “Eu sou bilíngüe” trabalha a interculturalidade

Linete É servidora da Funai na Coordenação Regional do Medio Purus. FOTO: Celia Santos/Caravana do Esporte e das Artes

A educação escolar indígena no Brasil é prevista em lei desde 1997. A questão pedagógica, no entanto, que tem como objetivo conciliar o currículo nacional a um programa indígena, ainda está em fase de diagnóstico no País. É o que diz Linete Ruiz Ferreira, servidora da Funai na Coordenação Regional do Medio Purus, no sul do Amazonas,  e que trabalha com educação indígena há 20 anos.

A falta de conhecimento para desenvolver um projeto educacional apropriado tanto entre os indígenas quanto entre os técnicos dos municípios, dos estados e da Funai dificulta a implementação de um currículo próprio, diz Linete. Além disso, a legislação garante que cada povo decida seu próprio processo educativo, o que preserva a diversidade das diferentes culturas indígenas, e deixa ainda mais complexa a realização de um programa.

A região onde Linete atua comporta 4 municípios, cerca de 9 mil indígenas, mais de 150 aldeias e 27 terras indígenas regularizadas. Confira abaixo a entrevista que a servidora da Funai concedeu à Brasileiros/PágianB!, após um debate organizado pela Caravana do Esporte e das Artes, em Lábrea.

Revista Brasileiros/PáginaB!: A educação indígena está prevista na legislação brasileira desde 1997. Quais são as dificuldades de avançar nessa questão e tirá-la do papel?

Linete Ruiz Ferreira: Desde 1997 tivemos pareceres da câmara nacional de educação básica, tivemos resoluções, a mais recente é de 2012, a resolução 005, e elas orientam os próprios professores indígenas a  implementar nas aldeias uma educação intercultural, que aborde as particularidades indígenas, mas também o currículo nacional. Uma escola indígena é muito difícil de implementar porque ela tem o dobro do conteúdo que a escola comum. Ela tem todos os conteúdos da escola comum e ainda tem que atender às diversas especificidades e línguas diferentes que têm cada povo. Tem aldeia que com sete línguas diferentes. A FUNAI fez isso em épocas passadas, reuniu vários povos em uma mesma aldeia e agora tem aldeias com sete línguas faladas. Como que você consegue ter um currículo que atenda a todos os povos? Hoje temos muitas dificuldades porque há poucos técnicos que entendam da questão indígena, tanto entre os próprios indígenas, quanto no governo ou mesmo na FUNAI. Estamos na fase de diagnóstico educacional. Não saímos dele ainda porque todo dia estamos tentando aprender com a comunidade indígena e nesse aprendizado tentando encontrar o melhor rumo.Tem muitas comunidades bilíngües onde os indígenas já aprenderam a vestir roupa, a usar sal, óleo, sabão, itens que não são produzidos na aldeia. Então o índio não pode mais viver do usufruto dos recursos da floresta. Ele precisa ter uma renda para poder comprar essas coisas. E como que ele vai comercializar se ele não sabe falar português, se não sabe matemática. Tem comunidades bilíngües pedindo para aprender minimamente isso, para não ser enganado nesse comércio que ele é obrigado a entrar. Em função disso, temos uma série de outros problemas. O índio vem na cidade, recebe o Bolsa Família, ele vai no mercado comprar uma coisa. Se essa coisa custa R$ 5 para o não índio, para o índio custa R$ 10. Aí o dinheiro do Bolsa Família não é o suficiente, o comerciante diz: deixa o cartão aqui, fica metade aqui, metade mês que vem.  Em vários estabelecimentos comerciais você vê bloquinhos de Bolsa Família, de aposentadoria de indígenas.

O projeto Eu sou bilíngüe intercultural é uma iniciativa dos indígenas, hoje tem apoio da Funai. Tem duas salas de aula, uma paumari outra apurinã, para tentar manter vivas as línguas indígenas, que por necessidade vieram para a cidade. Em labrea tem um numero muito grande, que já vivem na cidade, se estabeleceram, tem emprego, não faz parte da perspectiva dessas famílias voltarem para as terras indígenas.

O professor Edilson, do projeto Eu sou bilíngüe intercultural, que dá aulas de paumari e apurinã, disse que parece ser proibido um índio estudar. O que ele considera um absurdo, já que todo ser humano teria o direito de desenvolver as suas capacidades.

É, como se índio não fosse ser humano. Índio não pode ter celular, não pode ter blog, não pode estar no Facebook. O Eu sou bilíngüe trabalha justamente a interculturalidade porque além de valorizar a língua materna, também coloca para os indígenas que eles precisam falar inglês, estar bem no português. Acho muito legal, trabalham muito bem a sua língua materna e reconhecem a necessidade dessa interface com as outras culturas. No Purus tem muitos indígenas na cidade. Da mesma forma que tem apurina e paumari desenvolvendo o projeto Eu sou bilíngüe, tem os indígenas de jarawara reivindicando o ensino médio dentro de suas aldeias. Isso quer dizer que vai ter o tal do IPTV, que é a televisão colocando o branco para falar em português, dentro de uma aldeia na qual todo mundo é monolíngüe. Isso vai matar a língua indígena. É aquela coisa de querer imitar o que está na mídia. Tem o mesmo poder sobre todas as pessoas, indígena ou não.  Já vi isso acontecer em outras comunidades indígenas e é muito triste. O indígena cai num conto da beleza, vê aquela coisa linda na televisão e de repente não é só o aluno que está aprendendo português, mas a aldeia inteira. Temos exemplos de alguns povos que estão fazendo mídias em suas línguas. Os paumari vão ter em setembro o campeonato da língua indígena onde vão ter várias atividades. O produto final será um material para se fazer vídeo, cd e livro na língua. São estratégias para tornar mais justa a relação entre a cultura nacional e as culturas indígenas. Não é renegar uma ou outra, as duas são importantes. Mas a gente precisa ter um equilíbrio. Às vezes caímos numas armadilhas, tem que ficar se policiando o tempo inteiro.

Dada a complexidade dos diversos povos indígenas, é possível pensar em uma educação indígena?

A legislação fala da autonomia dos povos indígenas para conceber o seu modelo de educação especifico. Olha que complicado. Como é que um indígena, que nunca teve uma escola  em sua comunidade, vai conceber essa escola? A educação para todos os povos indígenas se dá no dia a dia. Você vê criança desde pequena indo para a roça, caçada, pesca. Elas têm contato com armas, ferramentas. A brincadeira do indígena é imitando o adulto. O meu filho é indígena, meu marido também, e eu muitas vezes me peguei com medo do meu filho mexendo com ponta de flecha, arco. E hoje eu vejo que ele tem 17 anos e nunca se machucou no mato.

A educação indígena no Brasil está neste processo: de descobrir o que é melhor para cada povo.

Ninguém acha que índio precisa ficar no museu, isso não existe, o ser humano desenvolveu. A gente encontra os indígenas em uma etapa. Dali eles vão para frente, de uma maneira ou de outra. Temos que ter cuidado em como influenciar para que esse ir para frente seja bom para eles. É um exercício constante de se questionar. Infelizmente temos pouca gente na Funai para discutir isso.

E qual a perspectiva daqui para frente? A senhora vê como uma prioridade do governo tratar desta questão?

Prioridade não é, está muito longe disso, porque tem pouca gente com conhecimento e disposição para discutir essas questões. Na educação somos formados com modelos pedagógicos, que temos que largar e pensar em uma educação para cada povo. Isso dá muito trabalho, exige muito tempo. Tem que aprender a ouvir as pessoas. A elaboração de um calendário, por exemplo. Tem comunidade que durante as épocas de temporais, com os bichos de caça desovando, fica na praia aproveitar. Então como que o aluno vai freqüentar a sala de aula nesse período? Sem contar que até 10, 11 anos, idade na qual a criança está sendo criada pelos avós, a escola não pode entrar com português, tem que registrar os conhecimentos que os avós estão transmitindo. Precisa ter perspicácia, paciência para formalizar esses processos que já existem. Tem muitos municípios que tem abertura para isso, mas faltam técnicos. É um desafio muito grande. Não conseguimos acompanhar todos, mas é por isso que fazemos os seminários de educação.

Existe algum modelo funcionando que a senhora avalie positivamente?

Cada caso é um caso. O que acontece no Rio Negro não se aplica a nossa região. Os rios têm características diferentes,  povos que vivem de formas diferentes. A concepção dessa educação não está pronta, espero que nunca esteja – senão vamos cair no caos que é a educação publica com todos os seus problemas. Não queremos que a escola indígena se afaste da realidade dos que vivem ali, não pode ser um elemento estranho, tem que ser construída a partir da vida deles. É lento. Eu vou caducar, meus filhos também e os indígenas ainda vão estar construindo. A vida deles é muito dinâmica e isso se reflete na educação deles também. É muito legal trabalhar com comunidades que dão uma importância à educação que a gente não dá, justamente porque a educação é algo do dia a dia. Graças a deus não separaram uma coisa da outra, como a gente fez.

Sonhar a Síria

"Uma Síria íntegra territorialmente é a derrota do projeto de fragmentação do mundo árabe em pseudo-nações sectárias, étnicas ou religiosas". Foto: Manu Gomez/ Fotomovimiento via Fotos Públicas

Não há inocentes na política internacional. Se aparecer algum, será imediatamente devorado, junto com os ingênuos.

Ali também todo mundo mente, em alguma medida, quase todo o tempo.

Nós, aqui de fora, tentamos adivinhar nas reentrâncias dos discursos mais ou menos bem urdidos a real intenção da raposa, o próximo passo do lobo, o bote da cobra, o truque que está a armar a hiena enquanto esfrega as patas e abre seu sorriso.

Não só não temos acesso à verdade por trás das palavras; tampouco temos como apreender a total realidade do que se passa nos vários campos da ação, nos vários teatros, alguém diria.

Estamos condenados a montar quebra-cabeças incompletos com fragmentos de informação e com aquilo que arrancamos das entrelinhas dos muitos discursos que nos são servidos. Fazemos nossas melhores apostas.

Essa tem sido a nossa sina também em relação à Síria, nos últimos cinco anos.

Os jogos ali continuam abertos; a imagem que nos revelaria o quebra-cabeça se um dia o viéssemos a completar muda a cada instante.

No último lance, em Viena, sob a condução de Estados Unidos e Rússia, reuniu-se uma parte daqueles cujos gestos e palavras espreitamos e tentamos decifrar. Foram a isso levados, em parte ao menos, pelos efeitos da entrada em força da Rússia no conflito armado.

Diz-se que há um acordo de princípio sobre o que deve ser o futuro: a manutenção da unidade territorial da Síria; a construção de um sistema democrático apoiado em instituições fortes; a laicidade do Estado.

Ainda que mintam, se mentem, descrevem a Síria que se deve sonhar.

Nada menos se deve querer que emerja depois de tanta dor, tanto sangue.

Uma Síria íntegra territorialmente é a derrota do projeto de fragmentação do mundo árabe em pseudo-nações sectárias, étnicas ou religiosas. É uma Síria de todos os seus cidadãos, muçulmanos, cristãos, curdos. É uma Síria que comporta a pluralidade dentro de sua identidade una.

Uma Síria de instituições é um país que se liberta da necessidade, da inevitabilidade dos homens únicos salvadores.

Uma Síria laica, ainda que multirreligiosa é a garantia da igualdade de todos perante o Estado.

 

Ricardo Lísias e a profissionalização do escritor

Há quase cinco anos, Lísias falou à Revista Brasileiros sobre seu livro 'Divórcio'. Assista ao final do texto.

É comum que seja perguntado a um escritor qual é o seu emprego. No geral, não se pode conceber que o emprego de um escritor seja baseado em sua própria escrita. Isso porque, no Brasil, a profissionalização do escritor não é uma realidade, exceto para uma minoria.

O paulistano Ricardo Lísias é um desses que consegue viver de literatura. Não apenas dos direitos autorais – embora os seus ainda tenham um bom valor, considerando a média do mercado -, mas de tudo o que envolve sua atividade, como eventos, traduções e pesquisa. “Eu vivo, sim. Não dá pra dizer que seja da melhor forma possível”, brinca Lísias.

Ele é um dos participantes do Ciclo Profissão: Escritor, realizado na Estação das Letras, no Rio de Janeiro, no sábado (14). A atividade, que tem curadoria de Michelle Strzoda, traz em seu escopo justamente a ideia da formação de escritores e de tudo o que envolve o meio.

Em um momento em que artistas e técnicos de espetáculos lutam para não terem seu direito a um registro extinto pelo Superior Tribunal Federal, com um movimento intitulado Profissão Artista, Ricardo aborda o fato de escritores serem uma classe que não tem registro. Segundo ele, o registro traria uma facilidade aos escritores, que sofrem com burocracias para participarem de eventos, por exemplo.

“Muitos lugares exigem que o autor tenha pessoa jurídica (PJ) para poder participar de atividades”, conta Lísias, que, pouco antes da entrevista, tinha acabado de ser desconvidado de um evento por esse motivo, já que não possui PJ. Ainda sobre a luta dos artistas e técnicos de espetáculos, ele afirma: “Minha preocupação é que isso está sendo feito em um momento de subtração de direitos”.

Para o autor, a profissionalização do escritor só será possível quando surgir no Brasil uma quantidade maior de público-leitor de literatura: “Temos um público-leitor de entretenimento, mas de literatura – a considerada como arte – não é tão amplo”. Ricardo concorda, então, que a questão deve-se passar pela educação de base escolar, que formaria esse público leitor. Segundo ele, isso possibilitaria que existissem mais pessoas dispostas a participar de eventos como encontros com escritores, por exemplo.

Ricardo também acredita que uma das saídas para que haja essa profissionalização é ter cursos de escrita criativa melhor incorporados no país. “Acho que a universidade deveria ter esses cursos, que eu saiba só tem um na PUC do Rio Grande do Sul”. Em outros lugares do país, cursos de escrita criativa não fazem parte de um currículo fixo.


Leia trecho de entrevista cedida a Daniel de Mesquita Benevides para a edição 74 da Revista Brasileiros, no qual Lísias fala sobre sua literatura:

Brasileiros – Você falou que escrever foi uma forma de terapia, de resistência?

Ricardo – Não sei se foi uma forma de resistência. Escrevi alguns textos posteriores a um trauma que eu tive, textos de ficção, não sei se de resistência como comprovação de que eu era capaz de continuar o trabalho, talvez.

Brasileiros – O que te move a escrever?

Ricardo – Acredito que é algo que eu faça mais ou menos bem, escrevo todos os dias de manhã há mais ou menos 12 anos e isso me faz sentir melhor. Descarto textos, raramente eu publico, mas em dez anos acho que houve 20 dias que eu não tenha escrito. Mesmo no dia de Natal ou Ano Novo. Hoje, por exemplo, eu escrevi. Quando não dá, aí é um dia ruim para mim.


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Angeli – confissões de um cartunista

Angeli
O cartunista Angeli no ateliê de seu apartamento, em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Em longa conversa com a Brasileiros (e sem papas na língua, como era de se esperar), Arnaldo Angeli Filho, o pai de personagens símbolos dos anos 1980, como Rê Bordosa, Os Skrotinhos, Meiaoito e Nanico, Walter Ego, Mara Tara e Osgarmo, relembrou sua trajetória errante, lamentou, de olhos marejados, a perda do amigo Glauco, falou da transformação recente do amigo Laerte, e deu nomes àqueles que considera como “ratos sujos” da política.

Em tempos de aparente retração conservadora, Angeli continua a defender a liberdade de ser politicamente incorreto, como o punk Bob Cuspe, e reitera, como os hippies Wood e Stock, a deliciosa tese de que “só o Grande Orgasmo Universal salvará a humanidade!”.

Com 40 anos de carreira e mais de 30 mil trabalhos publicados, o cartunista paulistano terá um expressivo recorte de sua produção exposto na Ocupação Angeli do Itaú Cultural, instituto sediado em São Paulo.

A mostra, que reproduzirá o ambiente do estúdio do artista, exibirá mais de 800 obras. Será aberta em 15 de março e permanecerá no Itaú Cultural até 29 de abril de 2012.

Enfrentando uma rotina de trabalho intenso e apenas quatro horas diárias de sono, em meio a copiosas baforadas de seus cigarros – Angeli comemora ao dizer que partiu de 4 para 2 maços diários –, o cartunista afirma querer envelhecer com dignidade, e que cada vez mais abrirá mão de novos personagens, deixando o caminho livre para as futuras gerações de cartunistas do País – sucessores que certamente têm e terão nele a figura de um herói.

Funileiro, bandido, cartunista

Filho de um modesto casal de imigrantes italianos, o pai funileiro, a mãe costureira, Angeli veio ao mundo em 31 de agosto de 1956. Quatorze anos mais tarde, como office-boy, descobriu os encantos e as contradições de sua cidade e também deu os primeiros passos da carreira de cartunista nas páginas da extinta revista Senhor.

Nossa conversa tem início com a recordação da alienação de suburbano que o fazia acreditar que São Paulo se limitava a seu bairro: “Por um bom tempo, achei que minha vida e São Paulo eram só aquele mundinho da Casa Verde. Até que aos 14 anos atravessei o Tietê (as margens do rio), conheci o Centro e descobri que a cidade e as experiências que ela podia me proporcionar eram algo que ia muito além. O mesmo aconteceu com quase todos os meus amigos de infância, um deles, o Toninho Mendes, que tempos depois foi o editor da Chiclete com Banana, pelo mesmo motivo: o primeiro emprego de office-boy”, defende.

O cartunista aos 15 anos, em retrato de 1971. Foto: arquivo pessoal.

Vizinho de um bar frequentado por traficantes, Angeli enfrentou um turbulento rito de passagem para a adolescência, anestesiado pelo consumo de maconha. Admirava o ofício do avô, um humilde ferreiro, que potencializou sua paixão pelo desenho, mas temia a oficina de funilaria do pai, possível reduto profissional de um garoto que pouco ou nada se importava com sua formação, por conta da recorrente sensação de deslocamento em sala de aula.

“Meu avô era ferreiro, um trabalho que aparentemente não tem nada a ver com arte, mas ele desenhava aqueles portões art noveau e pesquisava muito. Fazia esboços, era um tremendo desenhista, e eu apreciava esse universo dele. Por outro lado, meu pai era funileiro, e eu tinha quase certeza de que também iria acabar me tornando um, o que já era uma boa perspectiva, porque eu vivia em um ambiente muito propício para transformar alguém em bandido. Cheguei a tomar conta de uma banca de jornal de um vizinho em troca de parangas de fumo. Havia um bar frequentado por traficantes ao lado da minha casa. Eu descia a escadinha do sobrado dos meus pais e dava de cara com esse ambiente todos os dias.”

Enfatizando o que classifica como uma “vocação para a delinquência”, Angeli revela os motivos que o levaram ao precoce fim de sua carreira estudantil, depois de repetir por três vezes a 5a série do primário e ser expulso: “Minha família obviamente dava importância à educação dos filhos, mas acabou desistindo de mim. Pudera! Fui, várias vezes, expulso da escola por questões idiotas: brigava com um menino e era advertido; batia em outro e acabava expulso. Minha mãe ficava puta comigo, mas eu não conseguia me dedicar. Às vésperas de completar 14 anos e ainda na 5a série, estava fadado a ficar ao lado de uma turma três, quatro anos mais nova do que eu. Sabia que se eu ficasse ali, cedo ou tarde ia querer bater em todos e aterrorizar a pivetada”, recorda.

Nem funileiro nem bandido, Angeli teve a vida transformada da noite para o dia quando, em 1975, foi um dos premiados no 2o Salão de Humor de Piracicaba, encerrado no dia em que ele completou 18 anos. A premiação o aproximou da chargista Hilde Weber, alemã, radicada no Brasil. Hilde trabalhava para o jornal O Estado de S. Paulo e era ex-mulher do jornalista Cláudio Abramo, então editor da Folha de S. Paulo. Por recomendação de Hilde ao ex-marido, Angeli foi parar na Folha, onde reina, como chargista e cartunista, há quase 40 anos: “Foi lá que me tornei homem e gente”, admite.

Em 1972, aos 16 anos, no Jardim São Bento, bairro nobre do distrito da Casa Verde. Foto: Arquivo pessoal

Com o abandono dos estudos, a descoberta do rock e da cultura underground, Angeli passou a apostar cada vez mais em uma formação empírica, baseada em experiências cotidianas e uma rede de intensa troca de informações que o livrou da sensação de deslocamento que engessava sua desenvoltura na educação formal.

Um caminho de transformações, pavimentado com o desbunde de excessos e amizades valiosas, como a do poeta Roberto Piva: “A paixão pelo rock envolvia muito mais do que música, era uma questão comportamental e também uma forma de aproximar pessoas com interesses parecidos. Um dos pontos de encontro dessa turma era o vão livre do Masp. Foi lá que conheci Roberto Piva e nos tornamos amigos. Piva foi o mentor dessa turma. Ele organizava shows e uma série de saraus de literatura beat, e só aí é que fui encontrar a minha escola. Mas esse era também um período difícil, em que roqueiro brasileiro ainda tinha cara de bandido e veado. Lembro que no auge do glitter rock, eu tinha uma calça de cetim coral e andava com ela em plena Casa Verde. Me chamavam de veado, mas eu não comprava briga. Encarava essas provocações como algo legal, me sentia desafiador. Hoje, jamais vestiria aquela calça”, sorri.

Riviera, Rê Bordosa, Meiaoito

A consolidação da carreira de Angeli na virada dos anos 1970 para os 80 coincidiu com uma transição geracional no País. Saíam de cena emepebistas esquerdistas e hippies anacrônicos para dar lugar a punks e pós-punks reunidos em históricos inferninhos de São Paulo, como os clubes Madame Satã, Ácido Plástico, Carbono 14 e Radar Tantã, e bares como o Riviera, antros de uma fauna transgressora que, às vésperas da paranoia da AIDS, dispensava pudores e mergulhava de cabeça em comportamentos libertinos e progressistas, ignorando antigos tabus, como o sexo sem paranoias e o uso de drogas sem o ônus da autopenitência.

O próprio Angeli, cocainômano por uma década e adepto de um comportamento sexual poligâmico, soube debochar como ninguém desses anos loucos e, assim, pode retratar a década de 1980 como um cronista. Aventura que teve como laboratório um dos mais tradicionais bares da boemia paulistana.

“No Riviera, conheci outros cartunistas, escritores, poetas, jornalistas, todo tipo de gente. Foi uma escola. Antes da minha geração, ele era frequentado pela turma do Caetano, Gil, Chico. Aprendi muito, briguei, quebrei o bar, roubei vinho, criei personagens inspirados em frequentadores, casei e me separei lá dentro. Lamentei muito o fim do Riviera. Ele deveria ter sido tombado pelo patrimônio histórico dos malucos de São Paulo. Foi lá que me formei e aprendi muito daquilo que não consegui aprender na escola. Ficava de orelha em pé, pegando as conversas e tentando entender tudo o que ouvia.”

 

Angeli, Salão do Humor de Piracicaba, 1975
O trabalho premiado, em 1975, no Salão do Humor de Piracicaba. Foto: arquivo pessoal

Esse apreço pela observação, a insolência e a urgência em compreender o mundo a sua volta, eram atitudes típicas de alguém tão carente de rumos, mas também hábitos críticos deflagrados por sua enorme paixão pelo cartunista Robert Crumb, ídolo que, desde os anos 1960, quando impôs à contracultura impagáveis personagens como Fritz, The Cat e Mr. Natural, tornou-se guru de sucessivas gerações de cartunistas espalhados ao redor do mundo.

No documentário Crumb, de Terry Zwigoff, o cartunista norte-americano confessa que a paixão pelos quadrinhos o redimiu de uma possível condição de loucura. Não seria exagero dizer que, no caso de Angeli, desenhar foi a redenção urgente para uma vida ordinária ou até mesmo uma vida de crimes.

Em 1992, no Festival Treviso Comics, em Treviso, na Itália, Angeli teve a honra de expor seu trabalho no mesmo espaço em que Crumb e outro de seus mentores, o pai dos Freak Brothers, Gilbert Shelton, foram homenageados.

“Eu tinha verdadeira adoração pelo Crumb, e ele foi decisivo para me convencer de que eu teria de fazer algo autoral, falar da minha vida, das coisas que eu gostava, das raivas que eu tinha, do meu desprezo à burguesia, mas eu estava fazendo charge política na Folha, em uma época em que não se podia apontar o dedo ou desenhar generais. Foi então que falei que queria sair da charge e comecei a produzir tiras. Só havia tiras americanas na Folha, e os embriões da Chiclete com Banana surgiram nesse novo espaço que defendi. A observação crítica é o que me levou aos personagens. O Laerte foi do partidão (o Partido Comunista Brasileiro) e chegou a me levar a algumas reuniões comunistas, mas me incomodava essa coisa da militância. Tive a ideia de fazer o Meiaoito, um guerrilheiro de merda, de balcão de bar, e foi então que percebi que poderia criar outros personagens com a mesma visão. A resposta do público veio rapidamente.”

Muito além de ser tão somente o fundador de uma revista “porralouca”, Angeli fez por sua geração o que fez Carlos Zéfiro anteriormente com seus Catecismos – uma série de quadrinhos pornográficos, em preto e branco, disputados a tapas nos anos 1970. Mas ao sexo de Zéfiro, Angeli acrescentou doses cavalares de drogas, rock’n’roll e cultura subversiva, como quando decidiu convidar o poeta Claudio Willer, tradutor da primeira versão brasileira do clássico poema Uivo, de Allen Ginsberg, para colaborar com a revista e deixar bem claro de onde vinha o hippie que derivou no punk e descambou no heavy metal, que tanto fazia alguns leitores estreitos da Chiclete com Banana literalmente baterem cabeça sem o pré-requisito dos decibéis das guitarras metaleiras.

Rê Bordosa, a Porralouca, em meio à fauna noturna inspirada na boêmia do Riviera. Foto: Arquivo pessoal

“Desde aquela época, eu já defendia que a saída para o homem é o sexo, que só o ‘Grande Orgasmo Universal’ pode salvar a humanidade. Falava de sexo, de drogas, e depois que fiz todos esses personagens, enfim pude reconhecer que eu era um verdadeiro autor. Em pouco tempo, alcançamos marcas históricas de vendagem, e chegamos a colocar 110 mil exemplares na rua. Em meio a tantos leitores, a seção de cartas da Chiclete só tinha metaleiro, uns headbangers estreitos, e eu comecei a pensar: ‘Porra, vamos tentar abrir um pouco mais a cabeça desses moleques, colocar um pouco mais de postura na revista’. Encomendei para o Cláudio Willer uma série em capítulos sobre a geração beat (movimento literário norte-americano surgido no final dos anos 1950, que reuniu autores como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg). Todo mundo falava dos hippies, dos punks, mas ninguém aqui sabia de onde esses caras tinham vindo. O embrião de tudo isso estava no comportamento libertário dos beats.”

Ao longo dos cinco anos em que foi publicada pela Circo, a Chiclete com Banana experimentou um sucesso comercial que possibilitou à editora lançar outras duas publicações, as revistas Geraldão, do impagável e inútil personagem de Glauco, e a Piratas do Tietê, que libertou do espaço limitado das tirinhas da Folha de S. Paulo o traço inconfundível de Laerte. Uma história de ascensão meteórica e queda vertiginosa, antecipada com a traumática chegada de Fernando Collor ao Planalto.

“Vendíamos 80 mil exemplares, e, no mês seguinte ao plano da Zélia, despencamos para sete mil. Nunca tivemos anunciantes, a receita era feita nas bancas. Mas eu já achava que devíamos parar por ali. Se virasse uma revista muito profissional, perderia o encanto. Ficou para a história.”

Ratos sujos e redemocratização

Inimigo número um de certas aves de rapina que sobrevoam a capital do Brasil, Angeli desenvolveu, em paralelo aos cartuns, uma brilhante carreira de chargista político. Acompanhou de perto as transformações que o País experimentou desde os anos 1970, e mensura com propriedade erros e acertos de todos os presidentes que conduziram o Brasil depois da morte de Tancredo Neves.

Capa da “Chiclete Com Banana” com a personagem Rê Bordosa. Foto: Reprodução / Circus

Demonstra antipatia pela postura “mauricinha” e soberba dos tucanos, mas também rechaça o que considera convenções antiéticas que levaram Lula ao poder e que mantiveram o presidente sindicalista como um personagem inabalável ao longo de oito anos.

“Tirando o Sarney, o Collor, e a sucessão de erros dos dois, acho que até o Itamar, de alguma forma, colaborou com o País. O FHC também fez coisas importantes, mas eu não suporto essa escolinha do PSDB. Eles têm o nariz muito empinado: ‘Oh, eu fiz Sorbonne’. ‘Participei de palestras com o Sartre!’. O FHC fez esse filme propondo debates sobre a maconha, aplaudo, mas essas questões têm de ser levadas à esfera política quando se está no poder, para que elas realmente sejam transformadas. Não adianta ter essa postura agora que ele está fora do governo. O Brasil avançou com o Lula, mas ele também tolerou um monte de coisas graves, negociou com vários lados e, algumas vezes, seguiu o caminho errado. A Dilma está tendo pulso mais firme do que ele com relação a corrupção. O Lula fez coisas bem importantes, mas fez também outras bem negativas, como se aliar à corja do PMDB, um partido de ratos sujos, que vivem à sombra do MDB da ditadura, e que vende, até hoje, a ideia de que reformularam o Brasil. Temos uma oposição de ratos, e não são aqueles ratinhos branquinhos, fofinhos, são ratões gordos e sujos procriando filhotes. Estão aí o neto do ACM, o filho do Cesar Maia e tantos outros…”

Crise, perdas e mutações

Aos 55 anos, três casamentos e dois filhos da segunda relação – o sonoplasta e artista gráfico Pedro, 30, e a professora de educação física Sofia, 26 –, Angeli é casado com a arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru, 35. Braço direito do cartunista, Carolina assina a curadoria da retrospectiva Ocupação Angeli, no Itaú Cultural.

A exposição é oportuna para um balanço da carreira do cartunista. Angeli é sereno e justo ao mensurar a importância de seus personagens, no entanto, ainda mais generoso ao admitir que o momento é de tirar o pé do acelerador e dar passagem para os novos artistas que vêm por aí.

“Estou em um momento de baixa criatividade, não sei exatamente o que desenhar e não me agrada mais a ideia de criar personagens, pois acho que os meus já cumpriram seu papel. Há algum tempo vem surgindo uma nova geração de cartunistas, bastante influenciada por mim, pelo Laerte e pelo Glauco. Olho o trabalho dessa molecada e, francamente, me pergunto ‘Por que é que eu vou continuar fazendo isso? Eu já fiz isso! Por que é que eu vou concorrer com um moleque que está começando a descobrir o caminho dele agora?’. Para mim, é fundamental envelhecer com dignidade.”

Meiaoito e nanico
Tirinha da antológica dupla Meiaoito e Nanico. Foto: arquivo pessoal

A propósito do seu comentário, questionado sobre o que acha dos esforços empenhados por jovens cartunistas para regulamentar a profissão, Angeli defende que envelhecer com dignidade também passa por condições dignas de vida profissional, mas se diz alheio a assembleias reivindicatórias de sua categoria.

“Acho válido, mas, sendo bem sincero, prefiro não frequentar. Acho um puta saco ficar em um ambiente desses, onde só se fala de cartum. Regulamentar a profissão e dar garantias mínimas é fundamental, mas também acho que uma profissionalização excessiva tirar parte essencial do encanto do ofício.”

Los Três Amigos
Los Três Amigos: Laerte, Angeli e Glauco, em foto, de 1987, de Leonardo Crescenti.

Encerramos a entrevista com dois assuntos polêmicos e inevitáveis: a trágica perda do amigo Glauco e, o mais ameno deles, a recente mutação de Laerte: “Me divirto com isso, porque o Laerte já tinha essa coisa, vivia falando ‘acho que sou bi, sou gay’, mas acho que só agora ele encontrou uma saída. E eu também estou precisando achar alguma, que não sei qual é, mas com certeza não será me travestir de mulher. Já o Glauco foi o cara que mais fez jus ao predicado hippie. Éramos meio carrancudos, veio o Glauco com aquelas tirinhas, e eu, mesmo na minha fase mais riponga, não conseguia fazer essa piada por piada que ele sempre fez. Eu tinha a pretensão de ter algum viés político, só que a piada pela piada do Glauco era algo brilhante. A amizade que tivemos trouxe muito frescor a nossos trabalhos. A perda do Glauco é uma ausência profunda. Ele cumpria um papel importante e ficou esse vazio”.

Nossa conversa foi registrada em São Paulo, no bairro nobre de Higienópolis. Angeli, como Artacho Jurado (que projetou o cultuado prédio onde vive o cartunista e era odiado por seus pares por não ter formação em arquitetura), também driblou convenções para impor, a fórceps, seu grande talento. Reduto simbólico, convenhamos.

* Perfil originalmente publicado em maio de 2012, capa da edição 56 da revista Brasileiros

Segue o baile

Na Patuá Discos, no bairro da Vila Madalena, em SP, com discos de Airto Moreira e Flora Purim, Jorge Ben e Sambalanço Trio, os DJs MZK, Ramiro Z e Paulão - os dois últimos, sócios da loja. Foto: Luiza Sigulem

Segregados nos bairros periféricos de São Paulo nos anos 1970, os bailes black foram redescobertos na segunda metade dos anos 1990 por um novo público. Essa movimentação, dispersa em clubes da região central da cidade e na boemia da Vila Madalena, foi testemunhada – e protagonizada – por personagens como os DJs Paulão e MZK, pontas de lança de pesquisas que reafirmaram a herança da música negra em nosso País.

Paulo Sakae Tahira, o DJ Paulão, saiu da zona norte de São Paulo, aos 17 anos, em 1991, para viver em Campinas, onde estudou Ciências Sociais, na Unicamp. Mesmo determinado a concluir a formação de cientista político, ao começar a atuar em programas da Rádio Muda, braço de comunicação interna da universidade, logo descobriu que a música falaria mais alto. “Antes de chegar no segundo ano eu já sabia que não era aquilo que queria para minha vida, mas que devia aproveitar ao máximo tudo que a faculdade tinha a oferecer”, diz.

Paulão fez mesmo bom proveito da Rádio Muda. Com o intercâmbio entre alunos, propiciado pela ex­­periência de produtor, pro­gramador e locutor da emis­sora, construiu uma rede de contatos com alunos, radicados na Unicamp, de todas as regiões do País e da América Latina, que expandiu suas pesquisas musicais. O acesso a trabalhos de artistas, álbuns e compactos obscuros, assemelhados pela força rítmica, levou Paulão a desenvolver a faceta de DJ. Nas pistas conduzidas por ele, em noites como a Festa Black, improvisada no campus e em espaços alternativos, de centenas a 1,5 mil jovens, se entregaram ao embalo irresistível da música negra no biênio 1995/1996.

Quatro anos mais tarde, em 1999, Maurício Zuffo Kulmann, o DJ MZK, também artista gráfico, iniciou, em quatro noites avulsas no Hotel Cambridge, a festa Jive. Na pista regida por ele e os amigos Magrão e Don KB, um misto quente de sonoridades de matriz afro, que ia do funk ao samba-rock, do jazz latino aos grooves globais, da música lounge às trilhas sonoras de cinema e de novelas. Com o sucesso da empreitada, eles migraram o baile para uma sala comercial no térreo de um edifício da rua Caio Prado, no centro de São Paulo. O espaço, dos irmãos Márcio e Alex Ceccin, o Don KB, foi batizado de Jive e logo atraiu uma seleta fauna noturna.

“O público era de artistas, músicos, jornalistas. Uma rede de frequentadores que influenciou o crescimento da festa. Algo bom, porque a gente também tinha a liberdade de ou­sar e tocar o set que quisesse”, diz MZK. A incursão na Caio Prado, no entanto, teve vida efêmera. Corria o sexto mês de bailes semanais quando, depois de impasses com a fiscalização da Prefeitura e pressão da vizinhança, a aventura teve fim. “O dia em que o primeiro Jive foi fechado, o Luiz Melodia estava lá, um baita clima legal, mas a polícia chegou e acabou com tudo”, recorda. Em outros endereços, fixos e itinerantes, no entanto, a festa Jive durou dez anos.

Filho de um caminhoneiro de ascendência japonesa, Eizo Tahira, e de uma dona de casa, Maria Salomé Vaz Santos, Paulão cresceu na zona norte da cidade e teve pouca influência dos pais em sua formação musical – segundo ele, a trilha sonora de casa era um misto de música sertaneja e oriental. A vocação para a discotecagem, no entanto, deu vestígios desde a mais tenra idade. “Com 7 anos, em 1980, eu pegava minha vitrolinha Sonata, uns discos de trilhas de novela e ficava tocando no quintal de casa.”

Trinta e três anos depois, em 2013, o predicado de garimpador de relíquias levou Paulão a lançar, em LP, a coletânea Brazuca!, pela gravadora holandesa Kindred Spirits. Com mais de três mil cópias circulando pelo mundo, o álbum, que está sendo reeditado e terá um segundo volume, foi recomendado pelo jornal francês Libération como essencial para conhecer o melhor da música brasileira no ano da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Com 12 faixas, o álbum reúne composições lançadas entre 1966 e 1978, por artistas como Evinha, Toni Tornado, Arnaud Rodrigues, Di Melo, Elza Soares, Silvio Cesar e Noriel Vilela.

Nascido na Vila Universitária, vizinha da USP, na zona oeste de São Paulo, MZK teve na adolescência uma grande influência para se tornar DJ: os bailes black organizados por uma modesta equipe local municiada apenas de luz negra e estrobo. Com recursos ainda mais precários, ele decidiu fazer com amigos seus primeiros bailinhos de garagem. “Descolamos uns soquetes de luz, lâmpadas coloridas e gravamos as músicas em fitas K-7. Eu já tinha a influência do funk e da disco music, mas não era um conhecedor desses sons. Não cheguei a participar daquela parada da São Bento (a cena de hip-hop surgida na estação de metrô que, nos anos 1980, foi embrionária do rap brasileiro), mas acompanhava tudo de perto. Ouvia os primeiros discos do Thaíde e DJ Hum, os Beastie Boys, Malcoln McLaren, Kool Moe Dee, Kurtis Blow e RUN-DMC.”

Depois de um período em que morou em Santos, predominado pelo interesse em rock, MZK voltou a São Paulo e integrou uma banda de surf-music com o sugestivo nome de Los Sea Dux, tocando maracas. Com a expansão das influências musicais do grupo, que incorporou grooves de diversos gêneros, veio o desejo de discotecar novamente. Ao lado de Magrão, contrabaixista do trio e futuro parceiro nas noites do Jive, MZK começou a fazer a trilha sonora que antecedia as apresentações do combo. Experiência embrionária da Jive, uma das festas que impulsionaram um culto jamais visto ao samba-rock. De mero estilo de dança, os sons que embalavam a negritude dos anos 1970 foram elevados ao status de gênero musical, por meio de bandas como Clube do Balanço, Os Opalas, Farufyno, Sandália de Prata e Sambasonics.

A banda Sambasonics, criada pelo guitarrista Marcelo Munhoz, em registro de 2001, ano de sua fundação. Foto: Dimitri Lee

Descobertas semelhantes surgiram nas pesquisas das DJs Ju Salty e Prila Paiva, criadoras, em 2010, da festa Chica Chica Bum. Como Ramiro e Pinhel, elas também se conheceram por meio de sites de compartilhamento. Em 1990, Ju também foi cooptada pelo rap. “Ailton, um grande amigo, me presenteou com uma fitinha K-7 do álbum Hip- Hop Na Veia, do Thaíde e DJ Hum, e amei o que ouvi. No mesmo período, comecei a sair na noite paulistana e passei a frequentar a Der Tempel, uma casa de rock, mas que, na pista, misturava tudo. Claro, não rolava música negra na essência, mas tocavam muito hip-hop. Tanto que a primeira vez que ouvi Racionais MCs foi lá. Lembro que fui correndo perguntar para o DJ o que estava tocando. A música era Hey Boy”. De ouvinte compulsiva a DJ, Ju iniciou a carreira em 2006, em clubes como Tríade e CB, onde fez as noites Versão Brasileira, com o cantor e compositor Rômulo Fróes, e Tiki, ao lado de João Gordo.

Em festas amadoras na faculdade, Prila experimentou situações divisoras para sua formação de DJ. “Em 2000, eu ingressei na Unesp para estudar Artes Visuais e comecei a discotecar nas festas organizadas pela turma. Eram eventos grandes com 500 pessoas. Veio daí o meu entendimento sobre o que é ser DJ. Foi também nessa época que mergulhei nos ritmos de matriz africana e latino-americanos, mesclados à psicodelia. Marva Whitney, Gal Costa, Elza Soares, Trio Ternura, Wilson das Neves, Djalma Corrêa, Geovana, James Brown, Kool and The Gang, Sly and The Family Stone, Jimi Hendrix, Mongo Santa Maria, entre outros, costuram até hoje minhas sessões. Busco a maestria da história da música que é contada com a alma”, diz.

As DJs Ju Salty e Prila Paiva, da festa Chica Chica Bum. Foto: Arquivo Pessoal

Ju e Prila fazem parte de movimentação ascendente. Antes restrito a iniciativas isoladas, como as festas da pioneira DJ Sonia Abreu, iniciadas, em 1977, em 1977, na Papagaio Disco Club, a presença feminina atrás dos toca-discos é fenômeno visível na noite paulistana, em bailes como os do coletivo Mulheril, que reúne dezenas de colaboradoras; Veraneio, das DJs Laylah Arruda, Laura Mercy e Raffa Jazz; Pitangueira, das DJs Dé Schw, Mariana Boaventura e Gabriela Ubaldo; Macumbia, também de Gabriela; e Viva o Vinil, da paraibana DJ Kylt, radicada em São Paulo.

Ju, no entanto, considera que essa evolução ainda é tímida. “Acho legal que exista hoje um número crescente de mulheres DJs, mas essa movimentação ainda é pequena, se comparada com a hegemonia masculina. Infelizmente, esse é um reflexo das dificuldades que a gente vive em uma sociedade machista e misógina. Somos minoria, mas sigo fazendo o que gosto, porque sei que a música tem a força de aglutinar as pessoas. A partir do momento que descobri que eu tinha o poder de uni-las através do som, essa paixão sempre me moveu”, diz.

Prila reitera a opinião da parceira de Chica Chica Bum. “Das instituições públicas às domésticas, vivemos em um Estado masculino. Vejo pouco intercâmbio entre produtores e DJs que incluam as mulheres pela perspectiva criativa. Muitas vezes, elas são incluídas nas redes culturais para atender protocolos de consciência de quem se diz não machista. Ao mesmo tempo, é incrível como coletivos de mulheres têm transformado as coisas por insistência e resistência. Mas esse trânsito precisa fluir mais. Concluo, deixando um salve à DJ Sônia Abreu, desbra­vadora do universo dos bailes, mulher sonhadora, que saltou o muro do preconceito com sua Kombi mágica e sua coleção de discos, levando suas Ondas Tropicais para o espaço público na década de 1980.”

Com esses oito personagens, encerramos aqui as duas reportagens dedicadas à história dos bailes black e sua herança para a noite de São Paulo. Vale lembrar, como afirmamos na primeira matéria, que centenas de anônimos também construíram essa narrativa. Um salve a todos eles!

MAIS
Leia Negro é Lindo, primeiro capítulo desta reportagem

Mostra no MAC-USP revela sobrevivência pálida e burocrática

Daniel de Paula. 'Testemunho', 2015. Testemunhos de rocha resultantes de sondagens geotécnicas executadas para obras públicas de mobilidade urbana do estado de São Paulo, dispostos em ordem cronológica segundo períodos geológicos

Curadorias com temas genéricos são modelos preguiçosos, mas recorrentes no atual sistema da arte. É uma receita fácil: escolhe-se um tema abrangente, selecionam-se obras de vários períodos com artistas de várias gerações, nacionais e internacionais, e reúne-se tudo com um texto cheio de citações. “Matriz do tempo real”, que esteve em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP é um ótimo exemplo dessa prática.

Organizada por Jacopo Crivelli Visconti, a exposição não só revela esse tipo de exercício curatorial de nível básico, como também toda a perversão dos mecanismos de lei de incentivo e da precariedade dos museus públicos brasileiros.

A começar pelo conceito: O texto que introduz “Matriz do tempo real” é pretensioso ao afirmar que ela é “concebida na interação entre reflexões e inspirações diversas, que vão dos conceitualismos dos anos 1960 e suas reverberações a produção artística das décadas seguintes”. Espera-se, portanto, uma pesquisa de fôlego sobre o tema e, novamente citando o texto curatorial, como o tempo “se faz presente de uma maneira quase física”.

Entre projeto e execução, é normal que existam adaptações, mas se há algo que de fato a mostra não entrega é uma presença física que se traduza em algum tipo de experiência do tempo efetiva. O que se vê, nesse sentido, é uma série de ilustrações do tema, com um percurso que banaliza cada obra a apenas uma camada – o tempo –, reduzindo toda sua complexidade. É o caso, por exemplo, de On Kawara, visto em apenas uma pintura da série “Today”, realizada diariamente de 4 de janeiro de 1966 a 12 de janeiro de 2013, meses antes de sua morte.

A obra tinha oito tamanhos possíveis, três cores estabelecidas pelo artista e se não fosse terminada no mesmo dia, tinha que ser destruída. A língua utilizada também dependia do local onde o artista se encontrava e teve início em uma época do questionamento dos suportes tradicionais, sendo que Kawara conseguiu pintar mesmo que de forma conceitual. A simplificação de uma obra com tantas leituras possíveis, reduzindo-a uma data é lamentável, assim como falar do tempo sem uma experiência de duração é ainda contraditório.

Mas os problemas não param aí. A primeira obra que se vê na mostra, “Certificado de autenticidade de Time Spoken”, de Ian Wilson, pertence e está identificada como “coleção moraes-barbosa”, sendo que Visconti é curador da coleção. Foi por algo semelhante que uma das curadoras mais renomadas na Europa, Beatrix Ruf, renunciou ao cargo de diretora do museu Stedelijk, em Amsterdã, quando veio a público que ela misturava atividades privadas com o museu. É o tipo caso de conflito de interesses, afinal Visconti está dando visibilidade, portanto valor, a uma obra particular com a qual ele tem relação.

Com isso, novamente, o Museu de Arte Contemporânea da USP terceiriza seu espaço para projetos externos, com contornos problemáticos, como ocorreu com “Os desígnios da arte contemporânea no Brasil”, em abril do ano passado, quando seu curador expunha suas próprias obras  – dando visibilidade e valor a elas – além de outras identificadas como do patrocinador.

É compreensível que um museu público sem recursos suficientes para um programa adequado busque parceiros. Contudo, terceirizar seu espaço, permitindo que mostras sejam ali montadas sem qualquer tipo de controle e ainda bancada por dinheiro de lei de incentivo – no caso “Matriz do tempo real” tem R$ 750 mil de apoio do Itaú – revela a incapacidade do museu em exercer sua função pública.

Para um museu com caráter universitário, que nos anos 1960 e 1970, sob a direção de Walter Zanini, mesmo sem dinheiro, foi o centro da produção experimental da cidade, é como ter perdido o sentido de sua função e se rendido a uma sobrevivência pálida e burocrática.

Instituto Goethe realiza “Conferência Ecos do Atlântico Sul” em Salvador

Ana Hupe: 'Texto Vivo' é a colagem de todos os escritos, incluindo troca de mensagens eletrônicas, realizados em 3 semanas de residência no La Ene, Buenos Aires, Argentina em 2013

Em 2015, o Instituto Goethe lançou o projeto Episódios do Sul, que promoveu durante três anos uma serie de debates, pesquisas, programas de intercâmbio, produções artísticas e encontros internacionais, cujo principal foco foi a descolonização do pensamento.

Artistas, curadores, acadêmicos e diversos agentes culturais, principalmente da América Latina da Ásia e África, debateram o “inconformismo” com a historia colonial, a necessidade de discutir a existência ou não de uma historia da arte global e quais poderiam ser os caminhos de aquisição e mediação do conhecimento.

Foram vários encontros. O Episódio Museal, por exemplo, permitiu em 2016 e 2017, que diretores de Museus de diferentes continentes trocassem ideias sobre o futuro global dos museus, reunindo-se em Salvador, no Brasil, Santa Cruz e La Paz na Bolivia e Johanesburgo na África do Sul.

Todos os eventos, embora partindo de questões diferentes, foram permeados pela intenção de pensar o sul, a “partir dele mesmo”.

Como diria o antropólogo indiano Arjun Appadurai, “em vez de pensar uma teoria do sul que gera formas de pensar tradicionais do norte, um ‘ao sul da teoria’ que dará origem a uma outra arquitetura da cultura global”. (ARTE!36)

Agora, a partir de abril de 2018, o Goethe dá sequência ao seu investimento cultural e promove a “CONFERÊNCIA ECOS DO ATLÂNTICO SUL, sobre o futuro das relações transatlânticas do Sul”, – https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/sup/echoes.html –

A conferência vai abordar desde diferentes perspectivas, multidisciplinares, multiespaciais e multitemporais, o futuro das relações transatlânticas do Sul, partindo da base do papel da Europa no passado, presente e futuro.

Na definição do Instituto, até o século 15, o Atlântico representava uma fronteira perceptível entre a África e a Europa de um lado e a América do outro. Com o descobrimento se rompe essa fronteira e se da inicio a uma história de colonização, escravização, exploração, migração e enriquecimento da Europa. Isto criou um vínculo indissolúvel entre os três continentes. A medida que as relações de poder e as relações politicas mudam, os interesses de intercambio entre os três continentes vem aumentando.

Qual a importância do Triângulo Transatlântico no século 21? Que tipo de posição a Europa vai assumir frente à África e à América do Sul, depois de ter feito o papel de hegemonia colonial – em diferentes nuances – durante os últimos 500 anos? Como lidar com conhecimentos e descobertas do passado em relação às futuras trajetórias?

Como determinar os desenvolvimentos sociais, econômicos, políticos e culturais nas respectivas regiões do mundo? Que histórias abrem caminho para o futuro e que estratégias culturais e inovações podem melhorar a vida na Terra de maneira substancial e sustentável?

Para apresentar seus trabalhos e dialogar entre sí sobre “Novas historiografias”, “Migração e desalojamento”, “Sociedades civis do futuro”, “Democracia”,“Arte e ciência como formas híbridas de produção de conhecimento”, estarão presentes mais de 50 artistas, acadêmicos e intelectuais de diferentes países do mundo.

Dentre eles, Lilia Moritz Schwarcz, professora de antropologia na Universidade de São Paulo e bolsista global de Princeton. Lilia foi bolsista da Fundação Guggenheim (2006/2007) e professor visitante em Oxford, Leiden, Brown, École des Hautes Études en Sciences Sociales e Universidade de Columbia.  Publicou vários livros sobre os temas em discussão, como Retrato em Branco e Negro (1987), O sol do Brasil (2008); Lima Barreto. Triste visionário (2017); entre eles três em inglês: Espetáculo de raças (1999);  A barba dos imperadores: D. Pedro II um rei tropical, (Farrar Strauss e Giroux, 2004), e Brasil: uma biografia-com Heloisa Starling (Companhia, 2016/Penguin, Espanha 2016; Farrar Strauss e Giroux e Penguin UK, a ser publicada em 2018). Ela foi curadora de algumas exposições como: Nicolas-Antoine Taunay: uma tradução francesa dos trópicos (2008).

Bonaventure Ndikung, PhD, biotecnólogo e curador independente. É fundador e director do SAVVY Contemporary Berlin um espécie de Laboratório cujo objetivo é promover o diálogo entre “arte ocidental“ e “arte não-ocidental“. Bonaventure é editor-chefe no SAVVY Journal para textos críticos sobre arte contemporânea Africana. Ele já foi curador da dOCUMENTA 14 e é curador convidado da Dak’Art Bienal 2018 em Senegal.

Elisa Larkin Nascimento, PhD em psicologia na universidade de São Paulo, assim como Mestre em artes na Universidade de Buffalo, (USA). Diretora do IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros, se dedica à guarda, preservação e difusão do acervo documental e museológico de Abdias Nascimento, como base para atividades educativas e culturais em relação à herança africana na diáspora. No seminário, pretende apresentar aos colegas um pouco do conteúdo desse acervo e trocar ideias sobre a gravidade do quadro de genocídio do negro brasileiro, que Abdias denunciou há 40 anos no livro que teve uma nova edição, bem como sobre como potencializar o uso do acervo em ações culturais e educativas que podem contribuir para o combate ao racismo e a intolerância religiosa.

O Professor emérito e catedrático de Inglês e Estudos Americanos no centro de graduação da Universidade de Nova Iorque. Robert Fitzgerald Reid-Pharr, PhD em Estudos Americanos, Mestre em Estudos Afro-americanos pela Universidade de Yale e um Bacharel em Ciências Políticas pela Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Um especialista em cultura afro-americana e um proeminente estudioso no campo de estudos de raça e sexualidade, ele é autor de quatro livros: Conjugal Union: The Body, the House, and the Black American, Oxford University Press, 1999; Black, Gay, Man: Essays, NYU Press, 2001, for which he won the 2002 Randy Shilts Publishing Triangle Award for Gay Non-Fiction; Once You Go Black: Choice, Desire, and the Black American Intellectual, NYU Press, 2007; and Archives of Flesh: African America, Spain, and Post Humanist Critique, NYU Press.

Ana Hupe, brasileira, uma das artistas presentes se dedica a pesquisar e construir projetos de memoria e contra-memoria da migração. Ela é PHd em Artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atualmente mora em Berlim onde cursa um ano de doutorado como aluna convidada na Udk, Universitat der Kunste com orientação da artista Hito Steyerl. Como artista residente convidada, no período da Conferência Echos do Atlântico Sul, ela vai participar com uma exposição na Vila Sul, do Goethe em Salvador. Seu trabalho deverá abordar uma pesquisa sobre os ”retornados” que são os brasileiros ou africanos que resolveram ou foram obrigados a voltar para África no fim do século XIX inicio do século XX. Para Hupe interessam historias de “não pertencimento”, os inmigrantes no Brasil idealizavam o outro lado do Atlântico e ao chegar na África eram Brasileiros. Mas lá formaram comunidades brasileiras potentes como Lagos, Togo, Benim e Gana. Seu mais recente trabalho foi “Muito futuro para uma só memória”, que ocupou a Galeria Massangana – Fundação Joaquim Nabuco em Recife, com curadoria de Moacir dos Anjos.

ARTE!Brasileiros vai acompanhar o evento e trazer para o público a essência do debate.


Katharina Von Ruckteschell, diretora do Goethe Institut São Paulo e também diretora regional da instituição na América do Sul.

Conversamos com Katharina Von Ruckteschell, diretora do Goethe Institut São Paulo e também diretora regional da instituição na América do Sul quem persegue, no seu trabalho, o que entende por vocação do Instituto, a troca de conhecimento.

ARTE! Existe por parte do Goethe Institut um trabalho enorme já desde Episódios do Sul, um projeto extremamente complexo que envolve três continentes, América do Sul e África historicamente colonizados pela Europa. É fato que partimos de uma desigualdade. Como é possível compensar essa disparidade em um evento como este.

A ideia do projeto “Ecos do Atlântico Sul” é lançar um olhar para a relação triangular entre Europa, África e América do Sul/Caribe a partir de várias perspectivas. É claro que há uma relação histórica. Desde o início, foi a Europa que impôs a desigualdade e dependência nas relações entre os continentes no Norte e no Sul, através da colonização. A escravidão e as outras explorações econômicas aprofundaram a desiguladade e as dependências. Mesmo as independências políticas alcançadas em ambos os continentes não puderam até agora muda-las – até agora. O mundo e sua ordem mudam significativamente. O “Sul” começa a se emancipar do “Norte”, fronteiras que se formaram consistentemente pela escravidão agora começam a diminuir devido às raízes culturais comuns, mas também por visões mútuas do futuro. A desigualdade pode existir ainda. Mas por quanto tempo será assim e em que medida uma Europa ainda ignorante, será capaz de tomar parte nesta relação triangular? Convidar acadêmicos, intelectuais cientistas e artistas vindos dos três continentes, que abordam essas questões, para se reunir e trocar perspectivas numa base comum, pode ser um ponto de partida para enxergar possibilidades futuras.

O projeto anterior, Episodio Museal, tinha um objetivo claro: reunir diretores de museus e curadores para pensar novas práticas no mesmo eixo geográfico. Quais são os principais agentes que vão tomar parte do projeto agora? E com que objetivo. Qual o campo que se pretende emular dessa vez?

A “conferência” como a chamamos, tenta estimular e apoiar projetos de pesquisa, arte ou literatura que abordam a questão do “Atlântico Sul”. “Atlântico Sul” representa uma relação entre continentes que no passado foi opressiva e violenta, hoje é tensa e problemática e amanhã poderia ser pior que no passado ou presente. Mas pode também ser muito melhor. O projeto “Episódios do Sul”, incluindo o “Episódio Museal” tiveram base na tese de que olhar as coisas a partir de diferentes perspectivas pode torna-las mais claras e ajuda a encontrar novos caminhos para o futuro. A “conferência” irá reunir essas diferentes perspectivas e disciplinas e formatos a fim de discutir a questão de como e em quais formatos avançaremos de forma mais concreta. Uma discussão sobre diferentes narrativas da história da escravidão, por exemplo, pode evoluir para um projeto concreto sobre reconciliação das vítimas. Eu espero que, após a conferência, surjam diferentes ideias que possam vir a se tornar projetos.

Espera-se alguma atividade prática a partir desse projeto, seja a publicação de um livro ou alguma parceria entre universidades?

Estou certa de que somente o encontro de participantes vindos de diferentes contextos, países, culturas e disciplinas, trabalhando sobre um mesmo tema irá criar uma rede que irá colaborar e encontrar apoiadores. Além disso, eu espero que projetos concretos, que já existem ou que estão sendo desenvolvidos recentemente, possam ser realizados nos próximos anos. “Ecos do Atlântico Sul” está planejado para durar três anos e tenho esperança de que vá crescer em visibilidade e em participantes.

 

*Colaborou Fabio Cypriano

Insidiosa, desigualdade de gênero se repete no mundo da arte

Maria Auxiliadora da Silva, 'A preparação das meninas', 1972.

Com o mês de março, ressurge uma questão antiga e premente: a menor representatividade das mulheres na cena artística brasileira. Ao olhar para a programação das principais instituições e galerias é possível notar uma ênfase na presença de artistas mulheres. A lista é ampla e inclui importantes nomes da arte brasileira, de diferentes gerações. Dentre as atrações destacam-se a mostra de Anna Bella Geiger, na Caixa Cultural SP, a de Jeanete Musatti, na Galeria Bolsa de Arte e a de Laura Vinci, na Galeria Nara Roesler. Os museus também reservam boas surpresas: Mira Schendel no MAM; Maria Auxiliadora, no Masp; Josely Carvalho no MAC; e Hilma af Klint (1862-1944) na Pinacoteca do Estado (ver pág. 32). Tal densidade, no entanto, não encobre a estrutura desigual, que se perpetua ano após ano.

Sendo a maioria dos alunos nos cursos de artes visuais, as mulheres são pior representadas em todas as instâncias. Ainda faltam estudos aprofundados, mas algumas informações quantitativas evidenciam as distorções. Segundo a pesquisadora Bruna Fetter, não há registro de instituição nacional que tenha em seus acervos mais do que 30% de obras de artistas mulheres em suas coleções. O exame da lista de artistas representados pelas principais galerias do País também mostra um peso muito maior de artistas homens. E uma pesquisa recente, divulgada pela página #arteparaquem, do Instagram, revela que dentre as principais instituições culturais paulistanas, apenas o Vídeobrasil tem uma maioria de mulheres tomando decisões. Em segundo lugar estaria a Bienal, onde 73% dos postos de decisão são ocupados por homens. Nas outras, o desequilíbrio é ainda maior.

Mas nem sempre a teia da invisibilidade é tão evidente. Muitas vezes as barreiras são mais insidiosas, mascaradas. E usualmente estão associadas a outras formas de exclusão, relacionadas não apenas ao gênero, mas também a questões raciais e geopolíticas. A celebrada chegada de Tarsila do Amaral ao Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, é um exemplo desse lento processo de absorção das minorias pelo mainstream. A situação é ainda mais difícil quando problemas agudos como a discriminação de gênero e raça constituem o cerne do trabalho. É o caso, por exemplo, de Maria Auxiliadora (1935-1974), relembrada agora pelo Masp dentro do eixo curatorial “Histórias Transatlânticas”, escolhido pelo museu para nortear sua programação de 2018 (em 2019 será a vez da instituição se debruçar sobre a arte das mulheres). Associada de forma simplista ao rótulo de “primitiva”, a pintora autodidata desenvolveu uma obra bastante combativa, dando visibilidade à cultura negra e popular. Descoberta pela grande crítica (Mario Schenberg e Pietro Maria Bardi) ela teve um momento de expressivo sucesso nas décadas de 1970 e 1980, para depois cair novamente no ostracismo, para só agora ter esse resgate tardio e necessário.

Lenora de Barros, ‘Homenagem a George Segal (Homage to George Segal)’, 1984

A mesma instabilidade, que deixou Maria do Rosário à mercê das marés do mercado, afeta a maioria das artistas contemporâneas. Com uma exposição em cartaz em Nova York e uma retrospectiva agendada para o mês de dezembro também na Pinacoteca (instituição que de longe realiza a programação mais feminista de 2018), Rosana Paulino lembra que durante anos teve seu trabalho – baseado em experiências vividas por ela e por grupos próximos, como as mulheres negras – mais reconhecido no exterior do que no País. Ela conta ter recebido vários convites para estabelecer residência fora e que só ficou por teimosia. “Resolvi ficar porque achei que a cena brasileira necessitava de discussões como a que eu propunha. E confesso que não me arrependo desta escolha. É muito bom, surpreendente até, ver a produção que está vindo por aí. Achei que não veria isto em vida. E é claro que isto reflete em minha produção, quando opto por discutir temas que a sociedade brasileira sempre varreu para debaixo do tapete, como as marcas deixadas pela escravidão no país”, afirma.

A artista considera que essa maior abertura decorre do caráter urgente das questões com que trabalha e de uma maior liberdade de escolha do caminho a ser seguido. “Vivemos uma abertura maior para outras formas de pensar e produzir arte”, diz ela. Essa mudança decorre de múltiplos fatores, como uma maior consciência política e social, o arrefecimento do formalismo como caminho único e a internacionalização da produção. “Não dá mais para ignorar esta nova postura mundial, fingir que isto não existe, com o risco de ficar preso no século XX quando o resto do mundo já entrou no XXI”, constata.

Esse descompasso histórico, a necessidade de dar continuidade a mobilizações iniciadas décadas atrás, é algo também levantado por Josely Carvalho, cuja exposição “Diário de Cheiros – Teto de Vidro” é um dos destaques da temporada no MAC. A artista, que muda para os EUA após o golpe militar e vive em Nova York desde a década de 1970, onde se engaja no movimento feminista de arte contemporânea, se diz “assombrada por estarmos falando a mesma coisa do que nos anos 1980”. Incomodada com o fato de ter sido longamente rotulada de “feminista” no Brasil, ela acredita que vivemos um momento propício para desestabilizar o comodismo. E existem várias armas para isso. “Hoje estou no cheiro, mas é o cheiro da sensibilidade feminina, é algo que não se retém. Assim espero conseguir diminuir essa briga por espaço, por poder”, afirma ela ao falar sobre as instalações olfativas que criou para o projeto do MAC. A exposição “Radical Women”, que a Pinacoteca exibe no segundo semestre (depois de uma temporada no Museu do Brooklin) é, segundo ela, uma inciativa que promete trazer a tona com intensidade a necessidade de lutar por um espaço mais igualitário, as estratégias coletivas e artísticas adotadas pelas artistas pioneiras dos anos 1960 e 1970 e suas semelhanças com as políticas atuais de luta.

Outro caminho que vem ganhando força, e não apenas no circuito das artes, é a união das mulheres em torno de bandeiras comuns, criando mecanismos de denúncia e também políticas efetivas de ocupação de espaço. A CODEM.RED – Cooperação de Mulheres em rede é uma dessas ações, que vem congregando artistas de todo o Brasil e inclusive do exterior. Dentre suas propostas estão o fomento do suporte mútuo e solidário, a criação de um grande banco de dados com o perfil das associadas e a oferta de assistência jurídica às associadas. “Em menos de duas semanas já temos a aderência de quase 110 mulheres por todo país: PE, SP, PR, RS, RJ e DF”, conta Ana Luísa Lima, uma das responsáveis pela iniciativa.

A presença do mistério em São Bernardo

Lula São Bernardo
O ex-presidente Lula durante a missa campal em homenagem a ex-primeira dama Marisa Letícia, realizada no último sábado (7), em São Bernardo do Campo (SP). Foto: Paulo Pinto / Fotos Públicas

Ele se atomizou e implodiu a todos. Repito, a ele e a todos. A energia foi gigantesca. Imanência e emanência nuclear. E tudo vibrava mesmo, de tocar e dar choque. Energia nuclear. Eu não sou místico, mas alguma coisa muito mística, muito além do Lula, aconteceu em São Bernardo do Campo no último sábado (7).

Atravessou um trem no meio da cidade, que atravessou a cada um ali. Um pau-de-arara vindo do sertão, que virou uma locomotiva carregada de minério, pra depois ser aço e carro no corpo de todos os presentes. Metalúrgica. E foi de verdade. Foi uma mistura de sentimentos, um bololô em ondas fortes, peitos batendo e vozes que não saiam das gargantas. Simplesmente não saiam. Era assim, foi assim.

Daí berros, berros cortantes e vigorosos como de recém nascidos. E, no fim, era ele quem estava, desde o inicio, ao mesmo tempo acalmando a turba e chamando pra luta, pra briga. Dali, daquele palco, iria pra cadeia, coisa de minutos. Um preso falando. Passei a entender porque algumas vozes não saiam mais, estavam presas já. Desceria a escada do caminhão, e, pêi, xilindró.

Era morte e era vida. E era ali. Não tinha texto grego. Não tinha Homero, Shakespeare, Marlowe. Até pensei no Leon Hirszman e no Gianfrancesco Guarnieri encenando o drama das greves do ABC nos palcos e no cinema. Nada dava conta. Afora a política toda e suas inconfessáveis negociações, algo muito maior estava sem qualquer máscara ou era encenação. Estava acontecendo uma verdade. Era a esposa sendo chorada pelo Padre operário, a homilia pensada pelo irmão Gilberto Carvalho e ele, Lula, querendo uma musica apenas, Asa Branca, canção do casal.

Do casal??? Um hino do Brasil dos Lulas. “Quando o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação”. Lembrei de meu pai, que acha essa estrofe uma das mais lindas e pensei na minha avó, mãe do meu pai, baiana de Santa Rita de Cássia, que nos deixou há 2 anos. Lembrei também que tivemos um dia um Ministro da Cultura que dizem que é um orixá, o Gilberto Gil. Quis cerveja nessa hora. Achei.

Era ele indo pra cadeia. Eram os medíocres, eram os fascistas fazendo isso. Era a mentira operando. Estávamos todos lá associados à escória. Eu, que nem batizado quando nasci fui, via a Cruz na batina do Padre operário e na pregação da Pastora, e escutava os berros de recém-nascido das pessoas pedindo pra ele resistir, com olhar temente à Deus. Olhava pro Suplicy sendo atendido por médicos, olhava pro Haddad e para o cenário paradoxal do apocalipse que fazia morrer e, ao mesmo tempo, nascer algo.

Acho que todos viraram Lula mesmo em São Bernardo naquele sábado. Estamos todos indo pra cadeia, todos estamos nos sentindo muito mal, injustiçados. Empatia, entender o sofrimento do outro, simpatia, sofrer junto do outro. Missa-Culto-Comunhão. Mãos dadas.

Não existe parto sem dor, nem vida sem parto. Era dramático como é um trabalho de parto. Sangue, placenta, berros e dor. Havia risco. Foi à fórceps!

Olhava pra sede, antes barracão. O útero-sindicato estava lá. Dali nasceu algo. Dali nasceu muita coisa que foi inscrita na Constituição. Dali nasceu o EU do homem mais potente que este Brasil produziu. E ele, frágil e forte, correu pro ninho, pra debaixo da asa dos amigos, pro boteco onde bebia com eles. Somente da fonte sairia pra escuridão. E a polícia, os algozes carcomidos, os Pôncio-Moro, lá, babando, no cio.

Começo a olhar pro céu. Começo a achar que o Épico está lá mesmo. Questiono minha psicose. Questiono minha individualidade. Pergunto se estou dissociando. Deixo me ir? É possível mesmo isso estar acontecendo assim? Não seria um palco grego? Uma tourada? Quem escreveu esse enredo? Se eu pego, vai ter que apanhar! Juro vingança. Blasfemo. Retiro. Peço perdão. Começo a entender o processo de morte e vida ali. Começo a ver algum tempo e alguma transitoriedade neste lugar.

Corte: Domingo, São Paulo.

Sigo descerebrado. Drummond, “domingo descobri que Deus é triste. É infinita a solidão de Deus sentado ao lado de….si”. Um pai totêmico que se vai, deixando o trono vazio, solitário como um elevador quebrado em um dia de domingo. São vários cantores de lamento e a Mercedes Sosa cantando Balderrama desde cedo. E o Gonzaga, Assum Preto – pássaro na gaiola.

Uma cela em Curitiba e fogos por Sao Paulo. Foguetório do desprezo.

A saudade antes trazia fogos, uma canção antiga lembra. Era assim que se comemorava quando alguém voltava em muitos lugares Brasil afora. “A barulheira que a saudade tinha”. Maria Bethânia cantando ao lado da mãe. Agora é a barulheira do desamor. Foguetório do desprezo.

Corte: voltamos ao sábado, São Bernardo

Mas sim, sim, houve transe naquele sábado… Muitos desmaios. Após falar, dizer que viraria ideia, Lula vai carregado pelos recém-nascidos até o sindicato-útero, fazendo-se carne para o banquete dos filhos. Se faz alimento e deixa vago o trono. Tragédia absoluta! Luz e terror! Eu tremia, não conseguia foco para as fotos que tentei deste deleite antropofágico. Me preocupei em me alimentar, vejo. Ainda bem.

Findo o banquete, um berro vem de dentro ao fecharem as portas do sindicato! – MÉDICO! MÉDICO para o Presidente! Era um pico de pressão. Era o Mercadante desesperado. E foi um pico de pressão. Minhas pernas não seguraram. Ajoelhei sem querer, minhas pernas bambearam mesmo. Uma mulher me ajudou a levantar. Ela estava fraca de lagrimas. Nos abraçamos muito órfãos. Somos Lula. Ele se deixou devorar.

Aldo Zaiden é psicanalista e integra o coletivo Precisamos Falar Sobre o Fascismo. Siga a página do grupo no Facebook.