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Uma entrevista histórica com Tim Maia

"Os cientistas, esses arqueólogos, esse pessoal aí, acham que nós já passamos por uma era glacial. Outros dizem que passamos por… Eu acredito que nós já passamos por umas quatro ou mais, devido ao tempo que o mundo tem", afirmou Tim.

De uma longa entrevista, só um trecho muito pequeno havia sido publicado. Durante a conversa, em 1995, o cantor não poupou ninguém. Tudo que não entrou, foi publicado 14 anos mais tarde na Revista Brasileiros. Hoje, páginaB! resgata uma entrevista histórica de Tim Maia.

*Por Márcio Gaspar

Era o início do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso como presidente. O Plano Real completava um ano, com governo e população comemorando a queda da inflação − de 40% para os então quase inacreditáveis 2% ao mês; o real em paridade com o dólar e a consequente farra da classe média no exterior. Era 1995 e a música brasileira chorava a recente perda de Tom Jobim (em dezembro de 1994), enquanto os Mamonas Assassinas dominavam o rádio e a TV. Em um apart-hotel dos Jardins, em São Paulo, Tim Maia recebia os jornalistas Marcio Gaspar e Lauro Lisboa Garcia para uma entrevista cujo mote era o lançamento do disco Nova Era Glacial. Lauro, repórter do “Caderno 2″ de O Estado de S. Paulo, que publicaria poucos dias depois alguns trechos da conversa; e Marcio, da Qualis, efêmera revista especializada em música, que fecharia suas portas antes da publicação da entrevista.

A maior parte da memorável conversa com Tim Maia, que morreria três anos depois (em 15 de março de 1998, aos 56 anos), permanecia inédita até agora. É possível ouvir trechos da entrevista no blog www.afroencias.com.br. Os jornalistas encontraram um Tim Maia surpreendentemente bem disposto às 9 horas daquela manhã. E como era de seu feitio, o cantor não mediu as palavras. Além do imenso talento musical, a autenticidade de Tim Maia era outra de suas melhores qualidades.

Marcio Gaspar – Que história é essa de acordar tão cedo? Nova fase, bem mais saudável?
Tim Maia –
 Não, sempre acordei cedo. Mas agora, tô acordando cedo mesmo porque… eu acho que isso é negócio de velhice, sabia? Que nem galo. Galo velho empoleira cedo, né? E acorda mais cedo. Acho que é isso, deve ser a idade. Eu sempre acordei cedo… às vezes, nem dormia (risos).
M.G. – Você costuma ouvir seus discos antigos?
T.M. – 
Tô ouvindo agora… É o maior barato, sabia? Como sou um cara que sempre grava músicas falando de algo que aconteceu, aí dá pra lembrar. Lembrar das “cumadizinhas”, dos momentos legais e dos momentos tristes também.

M.G. – Entre esses discos, qual você acha o mais legal?
T.M. –
 O cantado em inglês (Tim Maia, 1978) é o que eu gosto mais.

Lauro Lisboa Garcia – Nesse novo disco, você gravou “Corcovado” e “Meditação” em inglês, e já tinha gravado as duas em português. Por que gravar em inglês?
T.M. – 
Foi uma homenagem ao Antonio Carlos Jobim. Essa versão que está saindo aí tem cinco anos. A voz em português, gravei em cima da voz que havia colocado em inglês. É essa aí, no Tim Maia Bossa Nova. Eu tenho isso em CD também, mas lancei pela Vitória Régia (selo do próprio Tim). Foi o único disco que não dei pra Continental. Aquilo ali é minha aposentadoria, entendeu?

L.L.G. – Vendeu bem esse disco?
T.M. – 
Vendeu. Eu sempre digo que vendeu menos, que nem as gravadoras falam pra não pagar direitos autorais. Eu também digo que vendeu menos. E não tem jeito de provar, né? Nem eles.

M.G. – Quantos discos você calcula que já vendeu até hoje?
T.M. –
 Acho que bem menos que Chitãozinho e Xororó, viu? O Roberto (Carlos) também vende mais. Mas, mais ou menos que nem Jorge Ben, Fábio Jr., a gente vende assim, igual, na mesma base. Cem mil discos, cada disco. Ainda bem.

M.G. – Aquela fase da BMG vendeu pra caramba, né?
T.M. – 
Não. Vendeu mais ou menos porque a BMG é que nem aquele produto, Denorex (xampu anticaspa): “É, mas não é”. A BMG faz mais disco pra outras pessoas. Aquela fábrica de discos que fabrica para outros, já não é mais aquela coisa do idealismo… Quer dizer, idealismo artístico nenhuma delas tem mais.

L.L.G. – Tim, como ficaram os seus direitos em relação aos discos que você produziu pela Seroma (a editora do cantor)?
T.M. – 
Olha bem, esses discos que estão sendo lançados pela Continental/Warner são discos que eu autorizei e estou ganhando uma mínima porcentagem, aquele levadinho que a gente ganha sempre. A Polygram lançou sem autorização. Eu tô com duas ações contra a Polygram. Uma pro primeiro disco, aquele A Arte não sei quê (A Arte de Tim Maia, 1988). E agora, onze CDs… Eles lançaram um CD meu agora… Meu não, nosso, é do Cassiano, Hyldon e eu. São os “reis do grilo”. Esse disco devia se chamar “Os reis do grilo”, porque eu sou o rei do grilo, o Cassiano é o deus do grilo e o Hyldon é o grilo (gargalhadas). E agora, lançaram mais um grilado também, botaram mais um: Luiz Melodia. Aliás, esse CD – foi disco e virou CD -, Tim Maia, Hyldon e Cassiano, tem na capa uma fotografia de natureza. Interessante… acho que acharam a gente feio demais, acharam parecido com assaltante. Sei que, porra… não colocaram nem a cara da gente, achei aquilo tão… a Polygram… eles fazem isso. A Sony Music também. A Sony pegou agora uns direitos que tinha que pagar para a Seroma e pagou diretamente aos compositores, o Michel e o Gilson (Mendonça, autores de “Descobridor dos Sete Mares”). Pô, deu mó confusão, tive de acionar eles também, briguei com os compositores. Logo após, o Lulu Santos grava a mesma música, estoura. Washington Olivetto colocou num negócio da Rider aí, tocou. É muito relativo isso, entendeu?

L.L.G. – Mas, você não achou ruim o Lulu Santos regravar “Descobridor dos Sete Mares”, né? Você já tinha gravado uma música dele (“Como uma Onda”)…
T.M. – 
Não, não. Quer dizer, esse lance da W/Brasil era isso: eu gravaria uma música do Lulu Santos, depois ele gravaria uma música minha. Só que o Washington escolheu essa música e não procurou saber se a música era minha ou não. A música é de Gilson e Michel. Aí, deu uma confusão e eu já tava em atrito com eles, né? Devido a uma gravação da Deborah Blond, Bland, Blondor…

M.G. – Deborah Blando.
T.M. –
 Deborah Blando. Ela gravou essa música num disco promocional da Coca-Cola, que vendeu cem mil cópias e criou lá R$ 13 mil, R$ 15 mil de direitos. Eles teriam de pagar pra mim os R$ 15 mil para eu tirar meus 25% da editora e pagar aos compositores. Aí, eles pagaram direto. Aconteceu a mesma coisa com a Som Livre, na música “Paixão Antiga”, que é do Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. Então, tem esse lance do desrespeito das gravadoras com os compositores e artistas. Por isso, eu tô acionando o Bonifácio Sobrinho (Boni, então diretor de programação da Rede Globo). E em todas as ações que estamos movendo contra o Bonifácio Sobrinho, o senhor Roberto Marinho está sendo arrolado.

M.G. – Você está banido da Globo?
T.M. – 
Eu acho que eles tentaram me banir por algum tempo, mas agora não vai acontecer mais porque eu cheguei à conclusão que tenho de lutar pelos meus direitos. Eu quero que isso seja um exemplo pra outros artistas. Tô movendo uma ação criminal e uma ação cível contra o Bonifácio Sobrinho. Porém, eu me comuniquei com ele antes, dizendo que nós iríamos mover a ação, como se faz. É de praxe você chegar e diplomaticamente avisar o cara: “Ou dá ou desce!”, entendeu? Mandei uma carta pra ele; ele não falou nada. A mesma carta nós endereçamos pro Roberto Marinho; ele também não falou nada. Aí, mandamos uma outra carta… Todas essas cartas, registramos em cartório, pra valer na ordem judicial também. Eles não deram a mínima. Então, agora estamos entrando com uma ação cível e uma criminal. Porque eu acho que o que ele tá fazendo é crime, entendeu? Tá me boicotando. E é um boicote assim vitalício, sacumé? Não é um boicote tipo: “Você não vai cantar aqui durante três meses porque você nos sacaneou”. Eles alegam que eu não fui no programa do Fausto Silva e isso tira a moral dele… Não tira, ele é um ditador. O Boni é um ditador. Ele pode me acionar por eu estar chamando ele de ditador, mas tudo bem. O Mariozinho Rocha (na época, diretor musical da Rede Globo) já me acionou duas vezes. Me acionou criminalmente porque eu falei que ele recebia R$ 10 mil por cada música que se coloca na novela. Aí, um cara lá do Jornal do Brasil – eu sempre me esqueço o nome dele, o filho da puta do… – me perguntou: “É verdade que o Mariozinho recebe dez?”; falei: “Não, recebe quinze!” (gargalhada). Quer dizer, eu vou acionar eles pra acabar com essa farsa, com essa mentira, que o mundo todo sabe que todo mundo recebe jabaculê no Brasil, né?

M.G. – Mas ninguém fala.
T.M. – 
É aquele negócio da minha música (“Nova Era Glacial“), né? “Todo mundo sabe, mas ninguém quer dizer.” Então, por exemplo, o Lauro tava falando: “Pô, você lançou esse disco (Voltou Clarear, 1994) meio na incógnita, meio na moita”.

L.L.G. – Não, é que o disco saiu e não teve grande repercussão.
T.M. – 
Não teve nada de repercussão porque… você vê a coisa? Essa música (“Voltou Clarear”) tá tendo a maior repercussão nos shows. O apelido dessa música é “melô do último a saber”. Acho que todo mundo se identifica com esse negócio de corno; o brasileiro é o rei do chifre. As mulheres, principalmente, se identificam, porque são chifradas também, né? Essa música não tocou porque não paguei jabá pra ninguém. Inclusive, a música anterior, “Como uma Onda”, tocou pra cacete. Aí que eu fiquei sabendo também quanto custa o jabaculê, né? Os jabás são fortes, cara…

L.L.G. – De rádio?
T.M. –
 Rádio… rádios que nem tinham isso vivem exclusivamente de jabaculê. Porque não é a rádio que vive. Quem vive disso são os programadores e os próprios locutores de cada horário. Acho que o dono da rádio nem ganha nenhum tostão com isso…, mas é demais, cara. Tem rádio que pede R$ 40 mil por uma música.

L.L.G. – Pra tocar por quanto tempo?
T.M. – 
Um mês. Trinta dias, quarenta mil reais. Mas aí, estoura a música, né? Porque ele executa dez vezes por dia, aquela porra “nhem, nhem, nhem” no ouvido do cara… Nas televisões, a mesmíssima coisa. É jabá pra todo mundo… O Silvio Santos tem menos. Acho que os programas dele são muito ruins, então não dá pra ele, entendeu (gargalhadas)? O Silvio Santos é ruim demais. O Show do Silvio Santos, meu amigo… Outra coisa que eu gostaria de falar, quero mandar um recado pro Caçulinha. O Caçulinha tinha um conjunto maravilhoso no Canal 7; porra, acompanhava aqueles artistas todinhos: Elis Regina, Jair Rodrigues, esse pessoal todinho. Pô, um cara muito simpático… o Caçulinha é super benquisto no meio artístico. Não sei por que ele atura aquilo, cara! Agora, colocaram ele com um negócio de chifre, já viu? Tem um chifre na cabeça dele, cara! Você não viu não? Uma vez, botaram ele na geladeira, não sei se você viu, botaram na geladeira! É, um pinguim na geladeira,com aquele pianinho. E fica o Faustão, o programa inteirinho sacaneando o “coiso”… E ele mesmo não toca nada naquele programa! Tem uma hora que ele faz: “Toca, Caçulinha”! (imitando o Fausto Silva): “Ó o nariz do Caçulinha! O Caçulinha é um babaca!”. O Caçulinha é o saco de esporro, o saco de pancada… Pô, por quê? Gostaria até de convidar o Caçulinha pra tocar com a gente na banda Vitória Régia; a gente arruma uma sanfoninha pra ele, pode até vir com o pianinho dele, coitado… Ele não precisa daquilo, é um cara de renome! Antes do Fausto Silva chegar, o Caçulinha já estava aí há anos… Acho aquilo tão ridículo… Deviam botar o Bonifácio Sobrinho lá de chifre e o Roberto Marinho dentro da geladeira. Isso eles não fazem. Fica lá o Faustinho puxando o saco do Roberto Marinho. “Oi, seu Robertinho. Como vai, tudo bem? Tudo bem, seu Roberto?” Isso é uma coisa que denigre a imagem de um músico, saca? O músico fica esculachado, o músico é um saco de piadas. Músico é pra tocar música! Não pra ficar ali, sendo motivo de chacota.

M.G. – Você sempre batalhou pelo reconhecimento do músico, sempre exigiu a banda Vitória Régia em todos os seus shows, contratos, créditos, etc. Mas, ao mesmo tempo, se o cara erra num show, você já: “Porra, não sei o quê…”. Roupa suja não se deve lavar em casa?
T.M. – 
É totalmente espontâneo. Não tem nada de esporro, não. É um toque na hora que me fere. Aquilo me fere. Não tem esse negócio de esporro no músico, isso é mais folclore. O lance é mais com técnico de som; o músico, não. Agora, quando tem uma mancadinha… Cara, isso é totalmente espontâneo.

M.G. – É que você toca tudo também, né?
T.M. – 
Toco uns instrumentozinhos. Hoje mesmo estamos com um problema aqui pra programar uma bateria, que é mó merda. Temos que programar uma bateria porque o baterista “sartou de banda”… Esses esporros todinhos que eu dei em músico não chegam nem à milésima parte que cada um fez comigo. Oito músicos me acionaram! Só um me levou R$ 117 mil, de uma vez só! Cento e doze mil reais porque eu perdi a causa, mais cinco de FGH… FG… FGTS. Outro, que é trompetista, é sargento dos bombeiros até hoje, me acionou também e já levou R$ 100 mil. Tentei lutar e tudo mais… E teve um bebum que chegou agora. Entrou ano passado, totalmente bêbado, caído na vala… e eu ainda gastei R$ 5 mil com o advogado do cara. Tem de ver os advogados! Eles achacam mais que os próprios caras! Aí, o advogado chega: “Vai dar cinquinho”. Cinquinho, filho?! “Você sabe como é que é.” Eu fui acionado por oito músicos! Eu falava com a mãe de um deles no telefone: “Oi, como vai a senhora?”; (fazendo voz de mulher) “Oi, Tim Maia! Toma conta do meu filho”. “Pois não, minha senhora. Se a senhora soubesse… já tinha matado e entregado num caixãozinho: seu filho tá aí, eu tomei conta dele.” Tinha outro, trombonista, que eu levava o filho em casa. Me acionaram…

M.G. – Mas tem também aqueles que estão com você há bastante tempo, né?
T.M. – 
Agora não tem mais. Só tem o Chumbinho (Paulo Roberto, baixista), porque o Tinho (João Batista Martins, saxofonista), que estava há dez anos, saiu semana passada. Porque tinha o show do Tim e tinha o show do Tinho. Isso é um problema, sabe? Músico… raro é o músico amigo, entendeu? Por exemplo, vou gravar com Os Cariocas agora, semana que vem. Os Cariocas… trinta anos cantando juntos. Cantam porque gostam de cantar, sabe? Eles ensaiam o dia inteiro. Trinta anos juntos e aquele negócio ali, tudo por música. Não é de mentira não, é tudo por música, coisa seriíssima, cara! Isso é músico, entendeu? E tem gente que toca há não sei quantos anos… por exemplo, o caso do Caçulinha. É um ótimo músico, mas não evoluiu porque só agora começou a comprar uns tecladinhos. Mas também, como é que faz? Se sujeita a um negócio daqueles…

L.L.G. – E o público da televisão acaba nem sabendo o valor que ele tem. 
T.M. – 
É, ele toca bem, é um cara musical pra caralho. Então… o negócio do músico é relativo pra caramba, entendeu? Tem uma amiga minha que fala que músico, advogado e pedreiro é foda (gargalhada). E é verdade, cara! E o único que trabalha deles – mas que enrola um pouco – é o pedreiro. Porque esse ainda faz, pelo menos, o cara faz. Te enrola, mas é uma pessoa humilde, que quer te dar uma facadinha a mais porque você tem mais que ele, né? Mas, advogado e músico, meu filho… Outro dia, numa matéria o cara perguntou: “E o negócio dos advogados, como é que você faz?”. “Ah, tô com três agora. Eu mando um, outro pra vigiar aquele e aquele pra vigiar o que eu mandei depois.” Pô, os caras ficaram putos comigo lá no Rio! A Ordem dos Advogados falou: “Ô, Tim Maia, que negócio é esse, rapaz? Você faz uma declaração dessa, é brincadeira”. Mando logo três. E mesmo assim, ainda é bem difícil.

M.G. – Você vai fazer seu songbook ou ainda acha que isso é pé na cova?
T.M. – 
É meio, né? Songbook não é tanto não, mas biografia… É que nem aquele especial da Globo que tinha antigamente. Quando o cara já tava bem baleado, a Globo fazia um especial com o cara. Aí, semana que vem o cara, bum!. Aí solta o especial, né? O cara morreu uma semana antes, deve estar fresquinho…

M.G. – Como você entrou naquela história da seita Cultura Racional, do livro Universo em Desencanto?
T.M. –
 Fase mística, né (risos)? Tomei cinquenta mescalinas e queria ser sócio de São Francisco de Assis (gargalhadas), paz e amor, aquele negócio de hippie: todo mundo ia a pé pra Bahia, aquele negócio “paz e amor, muito LSD”… Eu entrei naquela pra tomar umas mescalinas. Papei cinquenta. Aí, viajei pra cacete e no meio da viagem falei: “Ah, vou virar pra Jesus, Ave Maria” (gargalhadas)… Aí, entrei nessa. A Cultura Racional falava que era uma preparação para a gente entrar em contato com os seres extraterrenos. Eu, como gosto de negócio de ufologia… Sou ligado nessas desde garoto e entrei naquela lá pra ver se era isso mesmo, mas não era. Era um negócio de espiritismo, entendeu? Tinha outros artistas: Jackson do Pandeiro, até o Procópio Ferreira, coitado, antes de falecer, entrou na onda do Universo em Desencanto. Aquilo é uma loucura… O Lúcio Mauro, um bocado de artista, sabe? Altamiro Carrilho… Todo mundo na jogada.

M.G. – Você não acha que você deve atrair quem quer armar pra cima de você por causa da fama de maluco?
T.M. – 
Claro, justamente. Eles pensam que a gente tá dormindo, mas tá sempre acordado. Existem vários empresários que já armaram pra ganhar dinheiro comigo. Teve um empresário uma vez, em Campinas, que na hora de entrar no palco, ele falou: “Tim Maia, é o seguinte, aí” – naquela época o show era duzentos, não sei o que era, mas era duzentos – “te dou cenzinho agora e tu volta pro hotel…”. Eu: “Tu tá maluco, cara? São quatro da manhã!”. Nesse dia, foram 32 mulheres pro hospital e nós fomos retirados lá do ginásio no tal do tático móvel. Pessoal muito educado que vai chegando assim: “Filho da puta!”. Isso é o mínimo que eles falam, né? Era tudo preto ainda. “Vai, crioulo filho da puta!” E isso tudo com um cassetete que dá choque. Eles encostam o cassetete na pessoa e “tchen!”. Mas nós fomos retirados desse clube por um tático móvel, às cinco horas da manhã, porque teve uma porrada geral no clube, porque o cara armou duzentos e no final queria cenzinho, metade do cachê. Tem uns caras de show aí que são meus amigos até hoje, mas que fizeram um boato que porra… Minha mãe ainda era viva, foi mó problema, minha mãe passou mal. Disseram que eu tava com câncer no cérebro. As pessoas ligavam pra minha casa, uma loucura, até o dia que me mataram mesmo: “Tim Maia morreu”. Falaram pra minha irmã: “A senhora sabia que seu irmão faleceu?”. (Ela): “Meu irmão tá dormindo aqui, doidão!”. Tem essse folclore que é uma merda. É que nem aquele negócio de dar esporro nos músicos. O que os músicos arrumaram de confusão ninguém fala. Eles já me levaram quase R$ 400 mil, cara. Troço pra você comprar três apartamentos. O meu carro é um Monza, cara. Poderia estar com um Mitsubishi 446, um BMW, blá blá blá, e tô pagando músico, R$ 100 mil cada um. Esse dos R$ 117 mil foi foda. Sabe o que é o cara te levar R$ 117 mil? Dinheiro que eu economizei minha vida inteira! Fui acionado por oito músicos. Eu tentei tudo. Sabe o que eles falaram pra mim? “Tim Maia, você perdeu o prazo.” Prazo?! Tinha vez de ter dois julgamentos numa tarde só. Tinha de arrumar dois advogados…

L.L.G. – Seis, no caso, né?
T.M. – 
Seis! Só com esse processo aí dos músicos, eu já me envolvi com uns 12 advogados. A gente vai tentando empurrar com a barriga, né? Mas não tem jeito.

L.L.G. – Você tem composto mais. Queria que falasse um pouco dessas últimas músicas e principalmente dessa “Nova Era Glacial”.
T.M. – 
“Nova Era Glacial” é uma música que fala sobre uma possível ou provável era glacial. Acredito que vai esfriar porque a gente vê as notícias aí e nota que o negócio tá mudando. Eu acho que nós estamos entrando numa nova era glacial. Existe até uma polêmica entre os cientistas aí: uns dizem que a Terra está esquentando. Mas eu acho que está esfriando. Esse aquecimento é justamente um aquecimento pra vir o frio. E parece que o negócio vai esfriar mesmo. Não sei daqui a quanto tempo, entendeu? É nesse milênio agora. Eu não tô prevendo nada, mas “derrepentemente” nesse milênio eu tenho certeza que vai ter uma nova era glacial. Mas tem tempo pra caralho.

L.L.G. – De onde você concluiu isso?
T.M. – 
Os cientistas, esses arqueólogos, esse pessoal aí, acham que nós já passamos por uma era glacial. Outros dizem que passamos por… Eu acredito que nós já passamos por umas quatro ou mais, devido ao tempo que o mundo tem. O ser humano tem 60 mil anos. A Terra tem quatro bilhões. Então, eu acredito que nós já passamos por várias eras glaciais, dilúvio, Arca de Noé. Arca de Noé foi um grande dilúvio, né? E me parece que está acontecendo a mesma coisa. Esse efeito estufa, esse negócio de camada de ozônio, sabe como é que é? Isso tá esquentando pra depois esfriar. Eu acredito que seja isso. É uma coisa intuitiva, né? Mas também muitas pessoas defendem essa tese; não sou eu só. Existem milhares de cientistas que acreditam que o mundo está entrando numa nova era glacial.

L.L.G. – Você tem interesse por ciência?
T.M. –
 Meu interesse é totalmente ufológico, transcendental. Eu não tenho interesse por nada daqui. Acho que aqui tá muito confuso… Eu tava falando ontem aqui com outros repórteres de uma outra revista aí, que existem seres intraterrenos, cara. Isso aí é comprovado, isso aí todo mundo sabe. Existem seres que habitam o centro da Terra. Existem pessoas que acreditam em astrologia, essas coisas que não têm nada a ver. Astrologia não tem nada a ver com nada! Porra, astrologia é uma coisa árabe, eles olharam para as estrelas e concluíram que não sei que lá, não sei que lá, baseados em quê, cara? Que a Terra seria o centro do Universo. Aí, viram que não é nada disso, é apenas um Roberto Marinho, um Paulo Maluf, um Roberto Carlos, um Tim Maia, um Maguila, é um ninho onde moram essas coisas, essas pessoas. Pô, Erasmo Carlos, esses negócios assim. É um ninhozinho, um negocinho, uma bolinha onde moram esses bobões aí. E o troço é grande. Eu falei aqui ontem disso para os repórteres: nós somos visitados por noventa seres diferentes, de diversas galáxias, diversas dimensões e existem outras coisas! Existem seres do futuro, mas aí já é uma outra coisa. O que eu tô falando é coisa atual, seres extraterrenos de outras galáxias. E seres que vêm da nossa própria Terra, que habitam o centro da Terra. Eles se chamam os lunares. São seres brancos porque eles não veem o Sol. O que não é verdade mesmo é tomar ayahuasca e dizer que é Santo Daime – isso aí é mó mentira, viu (risos)? É ayahuasca mesmo, aquilo é mó viagem! Sorvete vira beterraba, helicóptero vira máquina de passar roupa, morou? E dão pra criança. Isso aí, não. Faz um mal tremendo ao fígado! Pior troço que tem pro fígado é a chacrona, que eles chamam de Santo Daime. De Santo, o Daime não tem nada! Chama-se ayahuasca, os índios adoram! Toma aquela porra, fica viajando pra caralho. Aí, isso não tem nada a ver com a realidade, isso aí já é uma coisa totalmente mística mesmo – uma erva que faz você viajar, pensando que aqui tá aqui e aqui não tá, tá lá. E fica aquela confusão do cacete. Eu digo assim, conscientemente, caretinha, sem tomar nada, sem nenhum ritual, sem incenso – também não tem incenso – nem batidas de matraca. Então, o negócio é totalmente cosmológico, é verdade mesmo. Eu tava falando pros caras ontem que existem mulheres aí que já transaram com seres estranhos, tem de tudo por aí.

L.L.G. – Eu achei um compacto simples seu, em inglês. Era só Tim. Sem sobrenome. Aquele foi seu primeiro disco?
T.M. – 
Foi o primeiro, gravado aqui em São Paulo, pela Fermata.

L.L.G. – Isso foi antes de você ir para os Estados Unidos?
T.M. – 
Não, foi quando eu voltei.

M.G. – Quando você foi pra lá, afinal?
T.M. – 
Fiquei três anos sem falar uma palavra em português. Eu fui em 1959 e voltei em 1964.

M.G. – Voltou ou foi “voltado”, Tim?
T.M. – 
Fui voltado. Mas já tô bem, tô com quatro anos de visto no meu passaporte, já fui pra lá três vezes depois que fui deportado. Mas fiquei dez anos sem poder voltar. A minha relação com os Estados Unidos é totalmente emocional, sentimental; não tem nada a ver com ganhar dinheiro, com carreira, nada disso. Talvez no futuro…

M.G. – Mas acho que daria o maior pé uma carreira lá, né?
T.M. – 
Eu acho que daria.

L.L.G. – Você já pensou em lançar esse disco em inglês nos Estados Unidos?
T.M. – 
Pois é. Esse eu tô regravando pra lançar lá. Já gravei muito em inglês, músicas minhas e de outros, mas gostaria de gravar mais ainda. Além dessas de bossa nova, porque essas da bossa nova… Eles fizeram umas letrinhas assim muito intelectualizadas “quiet nights of quiet stars“… Pô, ninguém fala isso em inglês. O cara fala “baby I love you”, “come back to me”, “don’t go away”.

L.L.G. – Dessas que você escolheu pro segundo disco de bossa nova, você vai cantar alguma em inglês?
T.M. – 
Não, tudo em português. Porque não funciona isso. Tem de ser em português aqui e em inglês pra eles lá fora.

L.L.G. – Você disse também que queria evitar gravar músicas que o João Gilberto já tivesse gravado. É isso?
T.M. – 
Não, isso é brincadeira, é só sacanagem. Eu acho o João Gilberto um excelente músico e cantor, mas de personalidade, acho ele assim… quatro-quatro-meia. Quatro-quatro meia é uma fração; 4,46, não chega a ser cinco. Tá entre o quatro e o cinco – quatro-quatro-meia.

M.G. – Como rolou o lance de gravar com a Elis?
T.M. –
 Com a Elis Regina, eu já havia gravado dois compactos. E o Erasmo, a Rita, o Serginho e o Arnaldo, dos Mutantes, me levaram pra Polygram. Quando eu cheguei lá, o pessoal já me conhecia, já sabia o jeito que eu cantava, eu já tava com as músicas prontas, já tinha rolado o lance com o Cassiano. Tanto é que eu gravei “Primavera” em agosto de 1969 e tentei de tudo pra soltar o disco na primavera, mas saiu em janeiro de 1970. Aí, aquele puta janeiro fervendo e eu cantando “É primavera…” a 40 graus. Mas aí estourou. Quando estourou, o pessoal da gravadora me chamou: “Tim Maia, rápido, vamos gravar um LP”. Aquela coisa de gravadora, né?

L.L.G. – Daí, desse primeiro LP, tocou praticamente tudo.
T.M. – 
No Rio de Janeiro, ficamos 22 semanas em primeiro lugar. Por isso, eu acho que vendi mais do que 200 mil.

M.G. – E daí pintou a gravação com a Elis?
T.M. –
 Foi uma armação do Nelson Motta, do falecido Ronaldo Bôscoli, do Miele… saiu no disco dela. Mas uma coisa que eu não achei legal, e que ainda vem um monte de gente hoje me perguntar: “Elis Regina te lançou?” Peraí, eu que lancei Roberto Carlos, como é que pode ela me lançar? Vamos com calma. Mas aí saíram com essa: “Elis Regina lança Tim Maia”. Isso foi uma armação, mas ela não teve nada com isso. Eu gostava muito dela e sinto que poderia ter gravado mais coisas com ela. Ela era muito musical, era musical demais… Até hoje falo: pra mim, a melhor mesmo foi Elis. A Rosana canta bem também, mas a Rosana é muito perturbada, muito confusa, pôs silicone até no… É a rainha do silicone. E tão bonita, tão gostosa… A Rosana canta bem, a Jane Duboc canta mais ou menos, mas é muito inibida, aquela menina, a Cláudia, cantava bem, mas excedia. A Elis Regina, não; ela ia no ponto mesmo. E tinha uma cabeça legal, inteligente. Mas as pessoas achavam que não. Era aquele negócio: “Ah, é muito temperamental…”. Tudo babaca que não tem sentimento nenhum, que não cria porra nenhuma, que não consegue se expressar com nada, quando vê uma pessoa que se expressa… É o tal negócio do Van Gogh: louco, maluco, mas depois o quadro dele tá custando 60 milhões de dólares. Mas na época, quase mataram o cara.

L.L.G. – E a tua opinião a respeito da Marisa Monte?
T.M. – 
Engraçado, a Marisa Monte tá cantando igualzinho à Gal Costa, não entendi porra nenhuma.

L.L.G. – Mas a Gal do começo de carreira, né?
T.M. – 
É. Uma vez eu ouvi a Marisa Monte e parecia a Zizi Possi, daí eu conheci a Marisa, fizemos até amizade. Não é que eu tô magoado com ela, mas olha: o “Chocolate”, ela gravou, canta nos shows, mas fez um negócio que eu não gostei, ela canta “não quero cocaína, me liguei…”, não tem nada a ver, a música não tem isso. O Lulu Santos também botou Porto de Galinhas (na “Descobridor dos Sete Mares”) onde não tinha Porto de Galinhas porra nenhuma, eles modificam totalmente. Eu acho que, quando você se propõe a gravar uma música de uma pessoa, inclusive quando aquela música já foi gravada, você tem de obedecer aquele critério, aquela forma, senão fica uma coisa…

M.G. – Aliás, você mudou uma palavra na “Aquarela do Brasil”…
T.M. –
 Só se eu errei…, também, é letra pra cacete. Eu não sei onde esse rapaz tava com a cabeça quando fez essa letra. “O coqueiro que dá coco” é demais, né? Vai dar o quê? Laranja? O Ari Barroso … que Deus o tenha em bom lugar.

L.L.G. – Tim, esse disco de bossa nova saiu faz menos de um ano, agora você está lançando outro e tem mais dois em projeto para esse ano?
T.M. –
 Olha, eu sou diretor-presidente da Vitória Régia Discos, a única que paga aos domingos após as 21 horas. Eu sou o único artista da casa, então não tem jeito… Eu gostaria de ter o Stevie Wonder com a gente também, mas…

L.L.G. – Ah, o Ray Charles está vindo aí agora. Convida ele…
T.M. – 
Mas ele tá vendendo pouco disco. Prefiro o Leandro e Leonardo, que tão vendendo muito mais (risos).

M.G. – Tim, você era de uma turma, há muito tempo, com Roberto, Erasmo, Jorge Ben e depois de uma outra galera – Cassiano, Hyldon…
T.M. –
 É, esse é o segundo time.

M.G. – Aquele time anterior se deu bem; o segundo não. Por quê?
T.M. –
 Bom, aí é aquele negócio: “Por que Tostines vende mais? Porque é fresquinho. E por que é fresquinho? Porque vende mais”. Você quer ver uma coisa? Eu fiz outro dia o programa do Jô Soares e brinquei lá com a idade da rapaziada. Depois, disse que teve uma época que o Roberto Carlos andou fumando cachimbo e usava uma capa estranha, enquanto o Erasmo andou querendo entrar na Academia de Letras. Eu falei: “Calma aí que aqui ninguém estudou porra nenhuma, para com esse negócio porque aqui, intelectual ninguém é”. Eu disse isso lá no Jô Soares e completei: “A gente não tem curso nenhum, o único que temos, e mesmo assim incompleto, é o curso de datilografia do Colégio Ultra”. Daí, no outro dia, liguei pro Jorge Ben e ele tava puto, todo zangadinho. Eu perguntei: “O que aconteceu, Jorge?”. E ele: “Sabe o que é Tim? É que a minha tia assistiu o Jô Soares e me disse que você falou mal de mim”. Eu falei: “Mas o que é isso rapaz, eu nunca falei mal de você, que babaquice”. Daí, eu chamei a mulher dele no telefone, a Domingas, e ela me disse: “Não Tim, não liga não, isso aí é a tia do Jorge que é muito fofoqueira…”. Daí, eu descobri que ele tava puto era com o lance da idade que eu falei. Porque ele diz que tem 46… se ele tem 46, eu tenho 38. O que eu queria explicar é que o Jorge Ben não fazia parte da nossa turma, da primeira. Eu conheci ele um pouco depois. Mas eu acho que ele se grilou porque eu falei que a gente não tinha cultura. E ele também não tem mesmo, não estudou porra nenhuma…

L.L.G. – Você e o Jorge Ben ressurgiram meio que juntos, uns três anos atrás…
T.M. – 
Não, isso também é uma outra coisa que eu quero retificar. Nós não ressurgimos, ele é que ressurgiu. Eu só não tava na mídia, não tava na Globo. Eu dou esse exemplo: fiz cinco anos de Chic Show aqui em São Paulo, dois shows por ano. Teve vez que colocamos 23 mil pessoas lá no Palmeiras, teve uma outra que quebraram não sei o quê lá e o cara nem queria mais alugar pro Tião do Chic Show. Depois, eu gravei com a Sandra de Sá e ia fazer um show com ela. Mas ela tava meio estrela, não apareceu, e eu tomei o maior preju por causa do Marcos Lázaro. Agora tem o tal do (Manoel) Poladian. A cada hora pia um, e tudo com esses nomes esquisitos, não tem nenhum Pereira ou Silva. Lázaro, Poladian… Eu fiquei sabendo uma do Poladian que é demais: ele leva um ônibus cheio de cambista. Chega no local, ele mesmo compra os ingressos e daí vende pelo triplo do preço.

L.L.G. – Eu relacionei você com o Jorge porque tem um disco seu que está sendo relançado agora que tem várias músicas no estilo discoteque. Agora, o Jorge está regravando sucessos antigos dele com estilo dance music. Você chegou a ouvir isso?
T.M. –
 Eu acho uma tremenda besteira o que eles estão fazendo. Isso não tá com nada. A pipoca tá na mão, todo mundo quer pipoca… Calça Lee tá na moda, todo mundo quer calça Lee… E aí, numa dessa, o cara pode se queimar, o Jorge Ben pode se queimar. Porque a música dele não tem nada a ver com house, a música dele já é uma house normal e todo mundo dança normal, não precisa botar um bumbão lá, um bate-estaca pra fazer alguma coisa. Um cara me propôs isso, mas eu disse: “Solta o ‘Nova Era Glacial‘ aí a todo vapor e vamos ver se não vai todo mundo pra pista”. Não precisa tum-tum-tum pra imitar americano mais ainda e com algo que tira a musicalidade da coisa. Eu já podia ter feito isso, já me convidaram pra fazer isso. Numa matéria que eu li no jornal ontem, o Lulu Santos tava me elogiando: “O Tim Maia é o maior”. Obrigado, muito obrigado. Daí fala o cara, o tal do DJ Memê. Ó o nome do cara: Memê. E ele manda o seguinte: “Ah eu gosto do Tim Maia, sempre fui fã dele, mas agora ele deu de cantar essas músicas brega…”. E eu pensei xiii… olha o cara, olha o Memê… ele toca o que mesmo? Toca oboé, toca tímpano, toca violino?

M.G. – Ele toca toca-discos.
T.M. –
 É, ele toca toca-discos. Toca disco ao contrário. Estudou pra cacete, se concentrou pra fazer aquele nhé-nhé-nhé… Como é que um Memê desses vai falar da gente? Eu lancei o Roberto Carlos, fiz um monte de coisa, um monte de parada aí, altas jogadas. Esse é o cara que tá com o Lulu Santos. Quer dizer, eu também já tô achando que o Lulu Santos tá indo prum caminho… Tem de tomar cuidado. Já tá velho, tá de cabelo branco… Esse negócio de funk, de house, deixa pros outros. E outra coisa: esse negócio de funk brasileiro… O rap brasileiro é uma vergonha. Principalmente o rap carioca, mas o paulista também. Imita o americano, fica aquele negão fazendo aquelas coisas (cantarola um típico “funk-falado” carioca). Isso é funk? Isso é rap? O rap é cheio de agá, o rap na verdade é jamaicano e é muito além do que é feito aqui. Por isso que eu acho que o Brasil está precisando urgentemente de cursos de música, de escolas de música. Outra coisa que eu gostaria de falar é que o Brasil está precisando urgentemente de uma universidade para pretos, para negros, uma universidade afro-brasileira. Porque nós temos universidade de tudo que é jeito aí, universidade de padre, universidade de bispo Macedo, precisamos da universidade para negros. Pode entrar branco e japonês também, sem discriminação, mas dando prioridade ao negro. Porque preto não tem como, não tem onde estudar, ele não passa do primeiro grau. Então, eu acho que no Brasil, em lugares diferentes, tem de ter a universidade afro-brasileira. Isso é um grilo do cacete, tem de botar o preto pra estudar; senão, a gente vai ficar sempre por baixo. A Globo, agora, bota lá o (Antônio) Pitanga na novela, aquela família preta, mas não tem nada a ver, continua a discriminação indireta.

M.G. – Você falou aí do Roberto Carlos… Você não acha que estava na hora de ele se tocar e gravar um disco novo, ao invés de ficar repetindo o mesmo há dez anos?
T.M. –
 Mas eu acho que o Roberto Carlos tá certo. Ele tá aí há trinta anos fazendo sucesso. E a minha mãe gostava dele demais. Até a minha mãe falecer, ele ligou pra ela todo Natal, fazia aquela média, ele conhece meus irmãos todinhos, minhas irmãs, assim como eu também conheço os dele. Nós fomos criados juntos. Por isso, eu achei muito estranho quando eu voltei dos Estados Unidos, ele me deu a maior podada. Porque quando eu voltei, precisava de um apoio. Teve até uma etapa (prisão) que eu puxei lá nos Estados Unidos, de oito meses, por causa de umas cadeirinhas que eu roubei pra uma gravação. A gente ia fazer uma gravação e daí eu fui roubar as cadeiras pra comprar um incentivo pra rapaziada. Mas nem cheguei a comprar o incentivo; já dancei nas cadeiras (risos). Pedi uma ajuda, mas pra quê? Nossa, achei aquilo tão estranho. Eu não conheço os filhos do Roberto Carlos, só conheço a mais velha, a Ana Paula, filha da Nice. Ele também não conhece meus filhos. Eu já tenho neta, ele também.

M.G. – Você tem quantos filhos?
T.M. – 
Eu tenho três filhos e, agora, uma neta.

M.G. – Algum deles mora com você?
T.M. –
 Já moraram. Um morou. E o do meio tá sempre na minha casa. Mas o mais novo, não; o mais novo mora com a minha irmã. Ela tomou o meu filho desde criança. Aliás, eu não criei nenhum dos meus três filhos. Só facada mesmo – de 10 mil, de 100 mil -, eu só financio. A minha neta é filha do Zé Carlos, o mais velho. Ela é lindinha, muito bacana. Eu preservo esse negócio de família. Ontem mesmo, tava falando com o filho do Erasmo no telefone… e lembrei uma vez que o Erasmo me deu cinco calças Saint-Tropez, daquelas que aparece a bunda quando você entra no táxi, sabe. Imagina, eu com cento e não sei quantos quilos e com aquela calça… Eu conto sempre isso pro filho do Erasmo, o Gugu. Então, eu sinto esse negócio da família e lamento que pessoas que foram criadas juntas como eu, o Roberto, o Erasmo, um não conheça pessoalmente os filhos do outro. As minhas irmãs adoram eles, a mãe do Ed Motta gosta muito do Roberto.

M.G. – E o Ed Motta, você se dá com ele?
T.M. – 
Não, não me dou não.

M.G. – Você acha que ele é seu sucessor?
T.M. – 
Eu acho tão horrível esse negócio de sucessor… Isso é coisa de ditador.

L.L.G. – E herdeiro, pode ser?
T.M. – 
Isso de herdeiro também é ruim. E ruim inclusive pra ele, porque ele entrou nessa e se deu mal com isso.

L.L.G. – E ele andou falando muito mal de você…
T.M. – 
Pois é, um troço tão estranho… meu sobrinho, pô.

M.G. – E ele tem talento, né?
T.M. – 
Tem, ele canta bem. É musical, mas muito enrolado, estranho pra caramba. O Ed parou de falar comigo e eu não gosto muito de falar disso porque eu sou muito amigo da mãe dele, é a minha irmã que eu considero muito.

M.G. – Tim, o Fernando Gabeira está com um projeto de liberar a maconha. Você é a favor ou contra?
T.M. – 
Sinceramente, cara, o Fernando Gabeira já foi uma coisa, virou outra e agora já é outra totalmente diferente. Quando ele sequestrou aquele embaixador, porra… dei o maior apoio, entendeu? Aí, veio com esse negócio de Partido Verde, já ficou meio quatro-quatro-meia e agora diluiu demais. A maconha já tá liberada, a cocaína e a pena de morte também. Isso já tá liberado no Brasil faz tempo. Quer mais maconha do que no Brasil? O Brasil é o maior produtor de maconha do mundo! Ninguém planta mais maconha do que o Brasil. E Pernambuco é o Estado onde mais se planta maconha no mundo. E o brasileiro é o maior maconheiro do mundo! Alcoólatra também, por excelência, mas queima um fumo violento! Todo brasileiro queima fumo: vai lá no Norte, puta que o pariu, todo mundo gosta… No Sul, também adoram. Todos, todo mundo! Então acho que é uma demagogia do cacete. Poderia se plantar isso aí e colher bons frutos, uma maconha boa, THC bem forte…

M.G. – É, mas ainda tem os coitadinhos que vão em cana só por causa de um baseadinho…
T.M. –
 É uma estupidez. Mas me parece que o negócio vai liberar mais agora, pelo menos em casa. Tem aquela moça que tá sendo julgada agora lá na Turquia. Ela disse que não sabia que o que deram pra ela era maconha… que ingenuidade (risos). Ela só sabe que o nome do cara era Pedro, mais nada. Quem te deu a maconha? O Pedro. Quem te deu a brizola? O Jorge… mas não sei. E os caras que vieram receber a brizola? Hummm, não sei, não conheço (risos). Coitadinha, tá em maus lençóis. Mas naquele filme, Expresso da Meia-Noite, o cara tá levando cinco quilos de haxixe, e eu pensei que era heroína… O haxixe é a melhor coisa que tem pra acalmar os ânimos, não faz mal pra ninguém, é bom pra glaucoma. Acho uma estupidez, uma demagogia do cacete, proibir fumo, entendeu? O fumo é uma planta, uma coisa natural… Eu fui intimado duas vezes nessa semana, pra ir na polícia. Eu não vou em lugar nenhum. Tem um cara lá que foi preso, deram porrada no cara pra ele dizer que trazia haxixe pra mim. Daí, em juízo, o cara falou que não era nada disso, que levou porrada na delegacia, na 27ª, lá em Brás de Pina, no Rio de Janeiro. Daí, fui intimado e mandei meus advogados lá…

M.G. – Os três, né?
T.M. – 
Dessa vez foram dois (risos). Mas foram lá pra explicar… Volta e meia tentam me envolver nessas porras aí, cara, e por causa de haxixe. Ainda se fosse cocaína, heroína… mas haxixe? É uma estupidez. THC… cannabis… Proibir a cannabis e liberar o álcool é a maior loucura, uma coisa porca, suja, imunda, mentirosa! Porque o álcool destrói o ser humano em poucos anos, em meses. Se você beber mesmo, o teu figueiredo não aguenta. Eu mesmo, não posso beber mais. E olha que eu não bebia muito, hein? Eu só bebia quando fazia show e quando andava de avião.

M.G. – Mas como você fazia muito show e andava muito de avião… (risos).
T.M. –
 É, fiz show o ano inteiro, andei de avião o ano inteiro, bebi o ano inteiro (risos). Mas deu um negócio no figueiredo aqui… Não posso beber de jeito nenhum. O Roberto bebe muito mais do que eu, o Erasmo tá tomando três garrafinhas daquelas pequenininhas por dia… Jair Rodrigues bebe muito mais do que eu e, depois, diz que é careta. Mas quer dizer, devido a beber quantidades excessivas, eu quase dancei. Então pô… Eu tenho um amigo que queima fumo há trinta anos e não é viciado ainda (risos).

Agenda: confira os destaques da semana 10 a 16/3

Maria Auxiliadora, 'A preparação das meninas', 1972
Maria Auxiliadora, ‘A preparação das meninas’, 1972

Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência, individual no MASP, a partir de 10/3

Organizada em sete núcleos, referentes aos temas recorrentes na obra de Maria Auxiliadora, a exposição no MASP acontece após 37 anos passados desde a última individual da artista. Resgatando a obra de Maria, o MASP traz os núcleos Candomblé, Manifestações, Autorretratos, Casais, Rural, Urbano e Interiores. Segundo o museu, “esta mostra tem o objetivo de renovar o interesse por esta artista brasileira fundamental, para além das preconceituosas, paternalistas e redutoras categorias de ‘arte naïf’ ou ‘primitiva’.” Também no MASP e no mesmo dia, estará aberta para visitação a exposição Imagens do Aleijadinho, que reúne dezenas de obras do artista mineiro Antônio Francisco Lisboa.


Beth Lesser, 'Michael Palmer', 1984.
Beth Lesser, ‘Michael Palmer’, 1984.

Jamaica, Jamaica, coletiva no Sesc 24 de Maio, a partir de 15/3.

Com a intenção de abrir o leque de imagens quando se pensa em Jamaica, a exposição no Sesc 24 de maio traz uma variedade de imagens que vão muito além de Bob Marley. A complexa história do país se estende para além da música, e suas raízes penetram profundamente nos dias da escravização do povo negro, remetendo as formas tradicionais de canção e dança herdadas da colonização. A curadoria é de Sébastien Carayol.


Alfredo Volpi, 'Bandeiras e Mastros', década de 70
Alfredo Volpi, ‘Bandeiras e Mastros’, década de 70

Volpi, individual no Museu de Arte Moderna da Bahia, a partir de 16/3.

Sob curadoria de Sylvio Nery, a capital baiana receberá 33 obras de Alfredo Volpi, que compreendem um período de atividade do pintor que vai de 1940 a década de 1970. A exposição no Museu de Arte Moderna da Bahia é fruto de um esforço do museu para fomentar a arte e colocar Salvador no circuito artístico do Brasil com mais afinco. A exposição é uma grande parceria entre instituições, com realização do MAM-BA e produção e apoio do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna, da Galeria Almeida & Dale, ambos de São Paulo, e da Paulo Darzé Galeria de Arte, de Salvador.


Cícero Alves dos Santos, 'O bocudo', 2014.
Cícero Alves dos Santos, ‘O bocudo’, 2014.

Véio: A imaginação da madeira, individual no Itaú Cultural, abertura em 14/3

O Itaú Cultural apresenta uma exposição que reúne parte da vasta obra do escultor Véio, nascido em 1947 no interior do Sergipe – onde vive até hoje. Com curadoria de Agnaldo Farias e Carlos Augusto Calil, Véio – a Imaginação da Madeira traz para o público, pela primeira vez fora do sertão sergipano, peças da coleção que o artista mantém em sua casa e que dialogam com o cotidiano do povo sertanejo.

Erwin Olaf, The Dancing School, 2004.
Erwin Olaf, The Dancing School, 2004.

Erwin Olaf: Tensão, individual no Museu da Imagem e do Som em São Paulo, abertura em 10/3

Tensão apresenta 22 fotos e sete videoinstalações produzidas por Erwin Olaf nos últimos quinze anos. A obra do artista busca reconhecer, traços essenciais da vida contemporânea, como o isolamento e a solidão, as barreiras de comunicação que separam os indivíduos, a busca frustrada por prazer, o embate de desejos, a velocidade da passagem do tempo e os padrões impostos pela publicidade e pela indústria da moda.

Guto Lacaz, 'mondrimobile', 2001
Guto Lacaz, ‘mondrimobile’, 2001

O Lugar do Centro, coletiva na Central Galeria, abertura em 10/3

A exposição O Lugar do Centro inaugura o novo espaço da Central Galeria – no histórico prédio do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), localizado no centro da cidade – discorre pontualmente sobre as acepções da palavra “centro” e seus diversos domínios, derivados da geometria, da composição, do urbanismo, da mecânica, da geopolítica, etc. A seleção de obras, consequentemente, perpassa diversas mídias, como vídeo, pintura, objetos e instalações, todas elas tratando, à sua maneira, de uma ideia de centro”. A coletiva tem curadoria do artista Artur Lescher e participam doze artistas: Eduardo Basualdo, Laura Belém, Nelson Felix, Marcius Galan, Cao Guimarães, Carmela Gross, Guto Lacaz, Laura Lima, Milton Machado, Odires Mihlaslo, Rodrigo Sassi, Otavio Schipper e o Coletivo Situações de Rua.

 

Diário de um homem são

O diretor e ator Nelson Baskerville em seu apartamento na Aclimação, em São Paulo. Foto: Diego Rousseaux

*Por Gustavo Fioratti

Quando tinha 11 anos, Nelson Baskerville tomou uma surra de seu pai por ter quebrado uma cadeira, e a aparente gratuidade da violência contida na situação rondou, como uma incógnita, a memória do ator e diretor, inclusive durante a vida adulta. Com o passar do tempo, ele foi ressignificando esse dado biográfico até chegar à beira de uma conclusão.

Para entender a razão da surra é preciso saber que a mãe de Baskerville morreu durante seu parto e que o pai teria represado o ódio até aquele momento. “Aos poucos, entendi que ele não engoliu o fato de que sua mulher tivesse sido substituída por aquela coisa torta e sem jeito que era eu”, diz o diretor, um homem grande, de cabelos grisalhos e bagunçados. Eram 17 horas, e ele estava almoçando em um café no bairro paulistano do Bom Retiro, vizinho à Casa do Povo, centro cultural onde ensaia A Vida, espetáculo no qual falará sobre este episódio doloroso.

Não se trata de um exercício solitário de autobiografia. Em cena, outros seis atores expõem traumas novos ou antigos que determinaram rumos em suas trajetórias. Felipe Schermann fala sobre uma doença que acometeu seu pai; Camila Rafantti, sobre o parto da filha; Nuno Carvalho performa sobre a perda de 40 quilos após uma separação; Hercules Morais descreve a situação em que foi proibido de usar a piscina de um condomínio em São Paulo, onde seu pai trabalhava como zelador; e Tamirys Ohanna nos coloca diante de uma mulher negra que se muda da cidade paulista de Cubatão para São Paulo, com todas as situações políticas que a mudança implica.

Tampouco é um tipo de experiência isolado de um contexto artístico mais amplo. A ação de performar a exposição das próprias feridas consolidou-se no cenário teatral mais recente praticamente como um gênero. De 2010 para cá, grupos como a Cia Brasileira, a Kunyn e a mineira Luna Lunera abriram espaço a espetáculos criados com depoimentos. Em São Paulo, a atriz Janaina Leite também apostou em criações decalcadas na exposição da memória. Acompanhado com interesse pela crítica e dentro do próprio cenário teatral, os espetáculos autobiográficos, diz Baskerville, desatam dramaturgicamente um nó de natureza temporal. Para ele, esse tipo de criação evidencia a capacidade do presente de ressignificar o que já passou. “A cada instante, nosso passado se torna diferente”, ele sintetiza. A ideia é que, quando pensamos em algo, a lembrança resgatada se torna automaticamente diferente.

Não será a primeira vez que Baskerville traz para a cena a memória do episódio da cadeira, que já havia sido representado em Luis Antonio – Gabriela (2011), seu espetáculo mais longevo e, como ele reconhece, o de maior sucesso – a peça foi premiada com um Shell por sua direção. Voltar à questão, diz o diretor, reforça o sentido performático do teatro, de reelaborar continuamente o que está guardado e que, apenas aparentemente, se aquietou.

Haverá, na peça, outro dado biográfico importante e de impacto: a memória da figura do irmão (bem como sua impermanência diante da  passagem do tempo). Com estrutura que busca a relação do teatro épico, distanciado do drama convencional, Luis Antonio – Gabriela colocou o público em contato com a personalidade complexa de Luis Antonio, primogênito de seis irmãos, que abusou de Nelson quando ele era criança. Depois, na passagem para a vida adulta, Luis Antonio torna-se travesti e, abandonado pela própria família, parte para a Espanha, onde se distancia por definitivo de todos. Houve, em 2002, a falsa notícia de que Gabriela (agora com o nome escolhido para a vida artística) havia morrido, o que levou uma de suas irmãs a buscar informações. Ela estava viva. Não houve uma reaproximação entre Baskerville e Gabriela, porém, e ela morreu em 2006. “A última vez que eu o vi foi quando nós precisamos que ele assinasse um formal de partilha do meu pai, logo depois que ele morreu, em 1984. Foi quando percebi que ele não sabia que meu pai tinha morrido”, diz Baskerville, usando o gênero masculino (outra impressão relacionada ao tempo). “Depois nunca mais o vi. Quando ele saiu de casa, nós ficamos com essa coisa de que ele nos fazia mal, porque abusou de mim ou porque em Santos éramos conhecidos como a família da bicha. A princípio, foi um alívio quando ele se foi, e é aí que reside toda a coisa triste dessa história”, resume o diretor.

Integrantes da companhia Mungunzá em cena de Luis Antonio – Gabriela. Foto: Divulgação

Há uma diferença estrutural entre Luis Antonio – Gabriela e A Vida. O novo espetáculo é todo composto de módulos. As cenas funcionam com certa autonomia, mas se conjugam de formas diversas, conforme os resultados de um sorteio realizado a cada sessão. “Parti da ideia de Schopenhauer sobre uma aparente aleatoriedade da vida; não estamos falando exatamente de destino aqui, porque não é como se as coisas já estivessem traçadas, mas sim como se tudo fosse traçado a cada momento conforme as coisas acontecessem”, diz o diretor. “Queria criar um espetáculo que pudesse ser aleatório e ao mesmo tempo ensaiado, partindo de experiências biográficas minhas e dos atores (de sua companhia Antikatártika). A questão da biografia é que sempre consigo ver a vida e entendê-la por meio dessas experiências”, diz.

Reestruturar suas memórias em ce­na levou Baskerville a procurar por um analista também. Com a decisão, o diretor destitui a arte de um papel totalmente terapêutico. “Achava que a arte me salvaria dos meus problemas existenciais e da minha depressão. Percebi, porém, que eu estava empurrando com a barriga um monte de coisa”, conclui o diretor.

Psicanálise em cena

Há uma questão de relevância para o público que vê em cena um ator ou um autor tendo de lidar com os próprios traumas. Se há traços de psicanálise em trabalhos do gênero, de que forma os desenlaces ou mesmo essa percepção de que o presente ressignifica o passado podem ser compartilhados com espectadores que, frequentemente, assistem a apenas uma das sessões e não seus desdobramentos, seus efeitos e curas? Um espetáculo em transformação não dependeria de um acompanhamento mais contínuo por parte da plateia?

Baskerville acha que o espectador capta “alguma coisa sem saber exatamente o que é”. “Nunca fui textocêntrico, nunca transferi a responsabilidade total do espetáculo às palavras. A tentativa é de se atingir alguma coisa além do racional”, justifica. “A gente não tem controle sobre a absorção da plateia. O que acho que podemos estabelecer é a comunicação ‘celular’, nem que seja através de um arrepio, de imagens, sensações e situações que vêm à tona depois que o público vai para casa. Acho que a sensação primária da plateia é a de que estamos nos expondo e expondo as nossas vidas. De que não se trata de ficção ou algo meramente baseado em fatos reais. Acredito que a ficção, na maioria dos eventos artísticos, se afastou do humano.”

Do encontro entre todas as histórias do novo espetáculo também surgiram contextos políticos como pano de fundo, dos quais sobressai o debate sobre a cultura da opressão à mulher. Segundo Baskerville, nos ensaios em que os atores expuseram suas memórias, detectou-se a reincidência de histórias de abuso moral ou sexual sofrido pelas atrizes que participam da composição da peça. Entre essas histórias também está a de Taís Medeiros. “Ela descreve como as mães das amigas proibiram suas filhas de brincar com ela porque a sua mãe era separada do marido. Hoje, ela tem 36 anos. A gente está falando dos anos 1980”, conta.

Além de A Vida, Baskerville prepara uma adaptação do romance Uísque e Vergonha, de Juliana Frank, a seis mãos  – com as atrizes Alessandra Negrini e Erika Puga. Novamente, ele se depara com as questões da feminilidade e das lutas políticas da mulher, dessa vez por meio da ótica de uma adolescente que sai de casa para ir morar na rua.

Noemi Marinho e Pascoal da Conceição na peça 1 Gaivota – É Impossível Viver sem Teatro. Foto: Lígia Jardim/Divulgação

O mau gosto em cena

Após a entrevista no café, o diretor partiu para a Casa do Povo, onde o elenco da peça e a equipe técnica esperavam por ele. No meio do ensaio, ele ria a cada música dos anos 1980 que tocava na trilha da peça, justamente porque havia sido questionado, minutos antes, sobre a evidente influência que seus trabalhos carregam da década marcada pelo uso de ombreiras e de polainas. “Fui forjado nos anos 1980”, respondeu. “Tenho como antecedentes a formação no rock progressivo, as drogas lisérgicas, Pink Floyd, The Who. Vim de uma época em que os jovens se reuniam em volta de um disco. Deitávamos e ficávamos ouvindo Pink Floyd.”

Os anos 1980, para ele, também ficaram registrados como os anos que transformaram sua vida em “outra coisa”. “Prestei EAD (Escola de Arte Dramática, em São Paulo) e, milagrosamente, passei com 18 anos. Meu pai praticamente me deserdou. Eu era um menino de classe média alta que, de repente, estava trabalhando na lanchonete do cursinho do politécnico”, diz. Na EAD, brincava-se que Baskerville cumpria uma cota, porque ele tinha jeito e beleza de galã de novela.

Depois de formado, o ator teve um período de trânsito intenso entre o teatro e a televisão. Trabalhou em Filme Triste (1983), direção de Vladimir Capella, República dos Mendigos (1982), direção de Celso Frateschi, e Notícias Silenciosas (1991), de Hamilton Vaz Pereira. Na TV, participou das novelas Pedra sobre Pedra, Éramos Seis, O Rei do GadoCanoa do Bagre e Chiquititas, entre outras. Durante a entrevista, porém, colocou em destaque a relação profissional com o diretor e dramaturgo Fauzi Arapi (1938-2013), que o dirigiu em Às Margens do IpirangaRisco de PaixãoRua Dez e Uma Lição Longe Demais. “Fauzi me fez pirar, ele me enlouqueceu a ponto de, em 1988, eu fugir para Londres. Acho que foi a primeira pessoa que apontou para mim e disse ‘tem alguma coisa errada aí’ ”, diz Baskerville.

Nesse período, o diretor também ganhou a vida fazendo comerciais de TV, dos quais destaca uma produção luxuosa para a Vodka Orloff, que tinha um aeroporto como cenário. “Graças a Deus não consigo encontrar esses comerciais em nenhum lugar”, diz, envergonhado. Ele pensa que suas decisões profissionais causaram conflito ideológico com Arap. “Eu precisava sobreviver, ele sabia disso, mas dizia que a matéria com que o ator trabalha era o corpo e que não podíamos tratá-lo como mera mercadoria. Nunca ninguém exigiu tanto de mim como ele.

Pintura de Baskerville, cuja obra visual se dedica a tipos urbanos e faz lembrar a arte bizantina. Foto: Arquivo Pessoal

Em Londres, Baskerville deu uma pausa na profissão. Trabalhou como peão de obra, pintor de parede e babá, entre outras atividades. Classifica essa experiência como “maravilhosa e muito dura”, e ela o fez perceber que deveria retornar ao Brasil (e para o teatro). Em 1991, começa a dar aula no Teatro Escola Célia Helena, em São Paulo, onde permaneceu por cerca de 20 anos. No período, escreveu uma peça que considera uma experiência ruim, chamada Jogo da Velha (1998), coautoria de Michel Fernandes e dirigida por Atílio Ricó. “Foi um fracasso. É uma peça que leio hoje e questiono o que me levou a escrevê-la”, conta. Foi também uma tentativa de ganhar dinheiro que naufragou. Baskerville foi “expelido” do circuito comercial nesse episódio.

Foi no Teatro Escola Célia Helena que ele aprendeu a dirigir, depois de assinar espetáculos realizados por mais de 80 turmas de formandos. Também foi com ex-alunos da instituição que ele criou sua companhia Antikatártika, com a qual produziu 17 x Nelson Parte 1 – O Inferno de Todos Nós, uma experiência de colocar 17 peças de Nelson Rodrigues no liquidificador, com dezenas de personagens passando pelo palco, e depois Camino Real, de Tennessee Williams. “As duas produções procuraram inserções épicas em textos tradicionalmente dramáticos”, explica. O teatro épico, em resumo, é uma forma que recusa repetir a imersão emotiva do modelo realista e que permite ao espectador distanciar-se do enredo durante sua própria evolução. Teve expressão na Rússia no momento pós-revolução e aparece ainda com mais força no teatro do alemão Bertolt Brecht (1898-1956). O ruído com a obra de Rodrigues acontece porque o autor cria a partir de uma aproximação com o melodrama. Tennessee Williams, da mesma maneira, dedica-se ao realismo. Não são teatros tradicionalmente relacionados ao épico, mas à atmosfera dos enredos psicológicos.

A pesquisa sobre o teatro épico de­senvolvida por Baskerville nessas duas e em outras experiências culmina em Luis Antonio – Gabriela, que, como ele mesmo lembra, “tem só dois diálogos na forma dramática tradicional” –aquela em que um personagem se dirige a outro. Isso significa que, em boa parte do espetáculo, o diálogo se dá diretamente com a plateia.

Esse contato imediato é reforçado pelas conversas com o público depois do espetáculo. “(A atriz cubana e transexual, morta no ano passado) Phedra de Córdoba me procurou depois, por exemplo”, ele conta. “Eu a conhecia como artista do grupo Os Satyros. Ela viu o espetáculo, ficou louca, queria falar comigo de qualquer jeito. Quando  mexemos na história do Luis Antonio, começamos a receber inúmeros depoimentos de outras travestis. Uma coisa que me chamou atenção é que muitos deles também relatam que foram abusados sexualmente”, diz.

Baskerville defende que sua metodologia de pesquisa permite um posicionamento político incisivo, embora indireto em seu discurso. “A tentativa é de abrir uma fissura sem querer colocar nenhum tipo de ideia preestabelecida. Quero que o espectador saia do espetáculo se sentindo exposto; acho que há uma cura na questão da exposição. Eu vejo um pastor chutanto a cabeça de um mendigo, moleques que batem em gays com lâmpadas e muitas outras coisas horríveis. Minha forma de protesto é por via específica. No teatro, tento fazer um resgate do humano, se é que já fomos humanos alguma vez”, provoca.

Cena de ‘A Vida’, na qual os atores usam de suas próprias experiências biográficas para compor a peça. Foto: Lígia Jardim/Divulgação

Esteticamente, as peças de Baskerville são sujas, carregadas de referências, uma característica que mais uma vez o leva a falar sobre a influência dos anos 1980. A cafonice, o mau gosto e o kitsch povoam as cenografias de seus espetáculos, em estudos que primam mais pelo excesso do que pela sim­plicidade. “O mau gosto eu peguei do Nelson Rodrigues. Ele dizia ter um mau gosto agressivo, e eu comungo isso com ele”, confidencia, sobre o autor que lhe rendeu ainda 17 x Nelson – Parte IISe Não É EternoNão É Amor e Os 7 Gatinhos, ambas de 2012.

A vida, “ela própria”, se cerca de mau gosto, ele defende. “Por isso critico o teatro que quer ser arrumadinho. E essa postura vem dos anos 1980, uma década em que tudo ainda era bagunçado, a gente não sabia para onde ia”, analisa. Para o diretor, os anos 1980 esboçam uma reconstrução de questões importantes que haviam sido interrompidas pelo regime militar e que só mais recentemente voltam a ganhar expressão. Nos anos 1970, o esfacelamento dos circuitos de pesquisa pela situação política e pela censura trouxe, na década seguinte, formas antigas ao cenário, com narrativas lineares, populares, embora muitas vezes densas. É o caso de Suburbano Coração, peça de Naum Alves de Souza, que Baskerville reencenou em 2015, centrada na figura de Lovemar, mulher em busca de um amor, que se frustra com o próprio romantismo ao se relacionar com um professor, um pastor, um cantor e um caminhoneiro.

O reconhecimento, pela crítica, da meticulosidade com que Baskerville cria seus espetáculos nem sempre encontra correspondente, porém, quando o assunto é o texto. Em uma crítica para As Estrelas Cadentes do Meu Céu São Feitas de Bombas do Inimigo (2013), cujo texto amarra depoimentos de jovens sobre conflitos armados, o crítico Luis Fernando Ramos, para o jornal Folha de S.Paulo, aponta que “fragilidades na dramaturgia não são supridas pela inventividade das cenas geradas e pelo desempenho dos atores”, por exemplo.

Diários de motocicleta

Na vida pessoal, Baskerville é um entusiasta do pop, o que se reflete inclusive em suas pinturas (sim, ele mantém uma produção de fôlego paralela ao teatro). Seus quadros são povoados por figuras que vivem à margem da sociedade burguesa e aristocrática, espécies de demônios perdidos em ambientes urbanos, todos eles forjados por traços que as HQs herdaram do expressionismo, cheias de imperfeições, manchas e distorções indiscretas.

A psicodelia e o rock parecem, o tempo todo, correr por trás das criações do diretor, como uma irrigação do inconsciente. Não é só Pink Floyd, The Who e The Cure que ele carrega na bagagem de suas referências e de sua formação. Recentemente, o filme Easy Rider passou a fazer ainda mais sentido. Baskerville comprou uma mo­to e passou a fazer longas viagens pela América Latina, na companhia de um velho amigo de palco, o ator Jairo Mattos, que ele conheceu durante a temporada de Notícias Silenciosas, no Rio dos anos 1990.

Baskerville é um sujeito diplomático, diz Mattos, “prima pelo diálogo mais do que pelo conflito”, e o aparente desinteresse com a elegância esconde um universo organizado e metódico. Até 2015, ele usava óculos remendados com fita isolante. A atriz Aldine Müller, que atuou em Suburbano Coração, protestou contra o desleixo e presenteou-o com dois modelos. Um deles é o mesmo que Baskerville usa ainda hoje. Tem lentes de diâmetro curto, o que lhe confere a aparência de um Sigmund Freud destemperado. O outro par de óculos ele perdeu.

Mattos conta que Bakerville teimou em comprar uma Harley Davidson pa­ra que eles pudessem pegar estrada, mas que aos poucos foi convencido de que uma BMW era a melhor opção. Feita a troca, começaram as viagens. Uma delas foi para a Patagônia, com trechos de até dez horas sem parada. “Ele é corajoso, topou fazer a viagem sem ter experiência e passou bem no teste; essa é uma viagem muito dura e com grandes diferenças de temperatura”, narra o amigo, que tem o projeto de transformar as viagens em um programa de TV.

Entre as inúmeras histórias que ele conta e que renderiam um reality sobre dois tiozões motoqueiros loucos por farra e paisagens, surge na memória de Mattos o episódio de uma ventania de 80 km/hora. A estrada que pegaram na Argentina tinha, em diversos pontos, altares com imagens de Gauchito Gil, mistura de figura mitológica e religiosa popular no país. Mattos conta que parou em um desses altares para pedir que o vento diminuísse e garante que seu pedido foi atendido meia hora depois. Talvez seja o maior confronto de visão entre os dois amigos: para Mattos, Baskerville é demasiado cético e, por isso, nunca confirmou a ninguém a versão do companheiro de estrada. “Ao contrário, ele nega que tenha acontecido.”

Segundo Fernando Fecchio, que Baskerville dirigiu em A Geladeira, peça do teatro grotesco escrita pelo argentino Copi (1939-1987) e que tem como protagonista um homem em confronto com uma vida solitária, o diretor “tem muito amor pelo trabalho, se envolve muito com as pessoas e abre um diálogo muito franco com os atores e toda a equipe, que em geral é sempre a mesma”, diz. “Isso enriquece demais o trabalho. O rigor acaba aparecendo como uma consequência, porque todos se contagiam”, elogia.

Para Aldine Müller, a paciência é uma qualidade inegável do diretor. “O Nelson é ator. Por isso, diferentemente de outros diretores, que apenas passam para o ator o que eles imaginam do trabalho mas não o levam propriamente até o re­sultado que esperam, o Nel­son vai te conduzindo, vai te propondo exer­cí­cios e especificando pacien­te­mente o que ele pretende”, diz.

No depoimento de Fecchio está contida uma qualidade que talvez atravesse todos os trabalhos de Baskerville. Em sua trajetória, não só de artista, mas de professor, ele agregou pessoas, gêneros, estéticas, situações. Do caos e da inquietação, puxa um fio condutor.

 

2018 deve definir destino de Inhotim

Instituição precisa de soluções para continuar em pleno funcionamento. Na foto, a escultura "Inmensa", de Cildo Meireles. (foto: Tibério França)

Em um ano para lá de difícil na cena das artes visuais, marcado por censuras e protestos idiotizantes, 2017 terminou com uma péssima notícia: a queda do mecenas Bernardo Paz, gerando incerteza no futuro de Inhotim.

A notícia não merece ser considerada de fato uma surpresa na história da arte brasileira, já que todas as iniciativas importantes que tiveram origem na iniciativa privada não se sustentaram de forma pacífica após a morte, queda ou falência de seu criador.

Foi assim com o Museu de Arte de São Paulo, Masp, criado por Assis Chateaubriand, e o Museu de Arte Moderna de São Paula e a Bienal de São Paulo, ambos surgidos por desejo de Ciccillo Matarazzo, para citar dois casos paulistanos. Todas essas instituições atravessaram e atravessam períodos de turbulência financeira ou ética, sem uma estrutura que lhes assegure vida permanente.

Na raiz dessas crises encontra-se a mesma dificuldade agora enfrentada por Inhotim: retrato de seu criador, Bernardo Paz, como será possível garantir continuidade a um projeto tão pessoal?

Instalação Narcissus garden, Yayoi Kusama
Instalação Narcissus garden, Yayoi Kusama, 1966. (foto: Inhotim.org.br)

O comprometimento do empresário com o local parecia inequívoco. Inhotim foi inaugurado em 2004, de forma estrondosa, com aviões fretados para levar os 700 convidados ao espaço onde guias, vestidos como se estivem no Jurassic Park, serviam espumante fartamente. Nesse primeiro momento, o parque foi alvo de críticas por expor artistas vistos em qualquer coleção internacional e sem relação com o local. Aos poucos, Paz foi alterando o sentido do local, focando a produção brasileira, reforçando os laços entre arte e natureza, convidando artistas para criarem obras em diálogo com a exuberância do contexto.

A inauguração do pavilhão de Claudia Andujar, há dois anos, pode ser vista como o ápice desse processo. Não há artista que melhor exprima a relação entre meio ambiente e arte que ela e seu pavilhão, não só merecido como necessário, frente ao massacre que os índios seguem sofrendo no Brasil.

Contudo, assim como os mecenas que saíram de cena e deixaram as instituições a deriva, a ausência de Paz será sentido a curto prazo. Afinal, residente do parque, figura permanente no almoço do restaurante Tambaqui, ele garantia um padrão de qualidade que dificilmente será mantido.

Inhotim já é uma Oscip, organização civil de interesse público, mas sem um patrono a altura de Paz, dificilmente o desenvolvimento do parque será garantido. A fragilidade dos Museus de Arte Moderna, tanto carioca quanto paulista, a trajetória irregular do Masp e as crises constantes da Bienal apontam que deixar o melhor espaço de arte contemporânea do Brasil nas mãos da iniciativa privada é temerário.

Na cidade de São Paulo, é inegável, a instituição com trajetória mais sólida e consistência é a Pinacoteca do Estado, apesar de sua recente semi-privatização, sendo transformada em OS (organização social). A Pinacoteca, em seus mais de cem anos, teve diretores importantes como Aracy Amaral, Fabio Magalhães, Emanoel Araújo, Marcelo Araújo e Ivo Mesquita, tendo uma política de aquisição de acervos e exposições sem paradigmas. A Pinacoteca sediu um debate importante sobre arte construtiva quando Amaral era diretora, se abriu às performances na gestão de Magalhães, conquistou público massivo com Emanoel por ocasião da mostra de Rodin e assim sucessivamente. Agora, com o alemão Jochen Volz a frente, ela inaugura uma nova fase mais internacional, o que era necessário.

A Galeria Lygia Pape
A Galeria Lygia Pape, instalada em Inhotim. (foto: Inhotim.org.br)

No entanto, é inegável que o que Inhotim se tornou a grande referência da arte brasileira no país, com artistas que não são vistos de maneira adequada no resto do circuito, como Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Miguel Rio Branco, Tunga, Adriana Varejão e Andujar, para citar aqueles com pavilhões permanentes.

E essa permanência não merece estar fincada na visão patrimonialista da elite brasileira, que sempre mistura privado e público com fins escusos.

Até agora, a direção de Inhotim vem buscando manter os patrocínios já logrados anteriormente, mas instituições de arte como Inhotim, para sobreviver dignamente precisam do apoio de políticas governamentais consistentes.

Nesse sentido, parece estarrecedor que o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) não tenha tido algum tipo de atuação visível para viabilizar a manutenção de Inhotim. Tanto ele como o governo de Minas Gerais precisam entrar nesse debate de forma decisiva, ou a abertura do local, com os guias vestidos como em um parque pré-histórica, terá sido apenas o prenúncio de um fim desastroso.

 

Leonardo Cohen: entre a Bíblia e o Kamasutra

Cohen tenta finalizar uma letra em sua casa em Los Angeles. A foto, de 1982, é de Dominique Isserman.

Havana, 17 de março de 1961. Da janela de seu hotel, o jovem autor de dois elogiados livros de poesia vê tropas correndo pelas ruas e ouve a artilharia antiaérea. Deixara a barba crescer ao estilo de Che Guevara e vestia-se como um legítimo guerrilheiro. Como diz a biógrafa Sylvie Simmons, no livro I’m Your Man (editora BestSeller), ele se sentia atraído pelas ideias comunistas da mesma forma que se sentia atraído “pelas ideias messiânicas da Bíblia”. A experiência algo bizarra na invasão da Baía dos Porcos, e nas noites em que vagou pelas vielas e becos da capital cubana “com um caderno numa das mãos e uma faca de caça na outra”, rendeu alguns poemas, ao menos uma canção, Field  Commander Cohen ( Nosso espião mais importante/Ferido na linha de batalha/Jogando ácido de paraquedas em festas diplomáticas”) e a tentativa de um romance, The Famous Havana Diary. Mas principalmente mostra como Leonard Cohen, talvez o mais original sedutor da canção, sempre esteve em busca de algo que aplacasse sua inquietação e angústia.

“Pode ser qualquer coisa que funcione, vinho, catolicismo, budismo, LSD”, disse certa vez, sem mencionar o amor das mulheres, quase sempre correspondido (que o digam Joni ­Mitchell, Nico, Janis Joplin e, entre tantas outras, a atriz Rebecca De Mornay). Aos 13 anos aprendeu hipnotismo num livro e experimentou seus novos conhecimentos com a bela governanta que trabalhava em sua casa. O truque funcionou e ela docilmente tirou as roupas.  A revelação mágica daquele corpo teve efeito tão grande sobre o aspirante a escritor quanto os ensinamentos do avô, rabino importante em Montréal, onde Cohen nasceu. Diria-se que a hipnose voltou-se contra o hipnotizador. A cena depois foi descrita em seu primeiro romance, A Brincadeira Favorita , de 1963, publicado no Brasil pela Cosac Naify. Como se fechasse um ciclo, na música Because of, uma das melhores de Dear Heather, disco lançado quando já tinha 70 anos, ele entoa os versos (em tradução livre): “Por causa de algumas canções/ Em que falei de seus mistérios/As mulheres têm sido/Excepcionalmente gentis/com minha velhice./Elas arrumam um lugar secreto/Em suas vidas ocupadas/E me levam até lá./Então ficam nuas/Cada qual à sua maneira/e dizem,/Olhe para mim, Leonard/Olhe para mim pela última vez./E inclinando-se sobre a cama/Me cobrem/Como se eu fosse um bebê com frio”.

A hipnose também funcionava muito nos espetáculos ao vivo, em que a plateia entrava num estado de comunhão e adoração, cantando cada verso de So Long Marianne ou Hallelujah, duas de suas mais famosas canções, com os olhos fechados ou fixos naquela figura elegante que se movia lentamente no palco e parecia se dirigir a cada um com atenção especial. Depois que a manager Kelly Lynch sumiu com todo seu dinheiro (cerca de US$ 5 milhões), aproveitando-se dos seis anos em que ele ficou meditando num mosteiro budista, iniciou uma série de turnês mundiais, que duraram de 2008 a 2013. Mesmo nesse último ano, já visivelmente cansado e talvez doente, emagrecido em seu terno de listras e sob o indefectível chapéu Fedora, o Captain Mandrax de outros tempos, quando entornava três garrafas de Chatêau Latour no camarim, se entregava de corpo e alma ao público, em shows que duravam três horas e meia. Chegava a ajoelhar-se no chão, com o punho fechado, num gesto de intensidade que poderia parecer teatral não fosse a verdade em sua voz. Vinte anos antes, em Paris, voltou seis vezes para o bis. O público francês espelhava sua rara disposição e não se cansava de aplaudir, de pé, como se o tempo tivesse deixado de existir. Não à toa, dizia-se, meio brincando, “que se uma francesa tivesse apenas um disco, seria um do Leonard Cohen”.

leonard cohen
Cohen se apresenta no festival da Ilha de Wight para 600 mil pessoas. Era 1970, ele tinha lançado dois discos apenas, mas já era adorado na Inglaterra. Sua banda,The Army, foi assim batizada porque a turnê às vezes parecia uma batalha: na Alemanha alguém da plateia apontou uma arma para o cantor. O fato de ele ter recebido a multidão com a saudação nazista não deve ter ajudado. Foto: Reprodução do encarte de Leonard Cohen: Live at the Isle of Wight 1970.

A primeira vez

Curiosamente, sua primeira aparição em um show como artista solo quase durou alguns segundos apenas. Convidado pela cantora folk Judy Collins, que havia gravado Suzanne com sucesso, ele tremia tanto, “como uma vara”, que pediu desculpas e abandonou o palco, só voltando depois de encorajado pela linda amiga. Para a biógrafa Simmons ele revelou, com o humor fino e autoderrisório que lhe era peculiar: “De alguma forma consegui terminar e achei que ia cometer suicídio. Ninguém sabia o que fazer ou dizer. Acho que alguém pegou a minha mão e me tirou do palco. Todos nos bastidores sentiram muita pena de mim e não conseguiram acreditar em como eu estava feliz, no quanto estava aliviado por ter dado errado. Eu nunca tinha sido tão livre”.

A música surgiu bem cedo em sua vida. Seu pai era o bem-sucedido dono de uma confecção de roupas finas (“já nasci num terno”, diria mais tarde) e sua mãe “uma judia russa, de generoso espírito tchekcoviano ”. Teve aulas de piano quando criança e, já adolescente, tocou clarinete na escola e em casas noturnas, onde “vivia cantando e bebendo”. Na mesma época se encantou com a poesia de Yeats e Garcia Lorca – este, seu grande ídolo, ao lado de Ray Charles e Hank Williams -, e começou a escrever seus primeiros versos. Comprou também um violão, com o qual aprendeu a tocar canções socialistas (“os socialistas eram os únicos que tocavam violão naquela época”), baladas escocesas, flamenco, o folk de Woody Guthrie e o folk-blues de Leadbelly.  No segundo ano da faculdade, fundou com dois amigos a banda de covers Buckskin Boys. Tocavam basicamente um country bem-comportado, em igrejas e escolas. Até que descobriram o calipso no pequeno bairro negro de Montréal e Cohen começou a improvisar naquele ritmo, cantando sobre as pessoas que passavam na rua.

Porém, a música só se tornou sua atividade principal quando tinha 32 anos e gravou, entre 1967 e 1968, o primeiro disco, Songs of Leonard Cohen. Quatro meses mais velho que Elvis, era um ancião no meio. Antes, publicou seis livros, quatro de poesia e dois romances, pelos quais recebeu críticas em geral bem favoráveis. No Canadá era já bem conhecido, pois fazia leituras em turnês com outros poetas, dentre eles o amigo e grande mentor Irving Layton. Também se apresentava com uma banda de jazz de até 12 instrumentistas, que era o que mais gostava. Seu jeito meio tímido, com que falava seriamente coisas às vezes surreais ou irônicas, desconcertava e seduzia quem o via. Como em suas canções, os poemas e histórias têm muitas nuances e ambiguidades, são a um só tempo tristes e engraçados, metafísicos e eróticos, engajados e hedonistas. Basta ver os títulos de alguns de seus livros para se ter uma ideia: Flowers for HitlerThe Energy of SlavesBeautiful Losers. Cohen gostava de brincar com os contrastes e de inverter expectativas. Beautiful Losers, seu segundo romance (em fase de tradução para o português), de 1966, foi o que fez mais barulho. Em linhas gerais, conta a história de um triângulo amoroso entre um antropólogo, um separatista por Québec e uma descendente dos índios iroqueses. Um dos três se mata, outro, com sífilis, enlouquece. O estilo é caleidoscópico, vai do surrealismo à pornografia, sem, no entanto, perder o fio da meada. Um crítico disse que era “uma mistura de James Joyce com Henry Miller”. Mas é uma obra única, como quase tudo que Cohen fazia.

Entre os fãs do livro, estava um certo Lou Reed, que Leonard conheceu quando decidiu se mudar para Nova York, justamente para tentar se tornar músico, já que a literatura lhe rendia muitos elogios mas pouco dinheiro. Instalado no mítico Chelsea Hotel, que intitula outra de suas canções mais conhecidas, Chelsea Hotel nº2 – estão nela as famosas linhas contando o caso com Janis (cantadas com candura e afeto, apesar da crueza da descrição): “Você me chupava na cama desfeita/enquanto a limousine te esperava na esquina” –, passou a frequentar a Factory de Andy Warhol e trocar ideias com Patti Smith, a quem considerava, com entusiasmo (e razão), “um gênio, absolutamente brilhante, vai se tornar uma grande potência!”. Numa das noitadas, fez uma jam com Jimi Hendrix. Tocaram Suzanne, uma das favoritas do guitarrista: “Ele era uma figura gloriosa, e foi muito gentil comigo, tocando sem distorções para que minha voz aparecesse”. O encontro mais importante, no entanto, foi com o produtor John Hammond, que havia descoberto Bob Dylan e Billie Holiday para a Columbia Records. Alertado pelos rumores, foi ao pequeno aposento de Leonard no quarto andar do Chelsea e, olhando a estranha combinação de livros no criado-mudo, em que conviviam, lado a lado, Myra Breckinridge, de Gore Vidal, romance satírico sobre uma transsexual, e um tomo do filósofo Martin Buber sobre a iluminação judaica, sentou-se na beira da cama e pediu para ouvir algumas composições. Depois de três músicas – entre elas, claro, Suzanne –, Hammond foi categórico: “Vamos assinar um contrato agora. Bob Dylan que se cuide!”

De 2008 a 2013, Cohen fez incontáveis shows no mundo inteiro para cobrir o roubo de sua manager. Acabou sendo um prazer para todos.

O falso rival

Dylan, obviamente, nunca teve que “se cuidar”. Mas ambos sempre foram muito comparados. O perfil básico é o mesmo: judeus, literatos, obcecados por metáforas bíblicas, tendo partido os dois do folk mais engajado para depois seguir caminhos próprios. As diferenças, porém, também são grandes, e há até quem defenda que Cohen é quem merecia o Nobel de literatura. A verdade é que Dylan sempre esteve mais próximo da poesia beat de Allen Ginsberg e proto-beat de Walt Whitman, com versos enormes, muitas imagens espalhadas, numa tendência para a entropia vertiginosa, utilizando-se de formas mais improvisadas ou aparentemente desalinhadas, ao passo que seu amigo canadense, a quem admirava muito, buscava a carpintaria exata, a concisão, formas mais tradicionais da canção, inspirado não apenas pelo blues, country e folk, mas também pelas baladas europeias de contadores de histórias como Jacques Brel e Edith Piaf, sem mencionar o decisivo flamenco, que aprendeu brevemente de um espanhol suicida, e moldou seu dedilhar pouco ortodoxo. Mais próximo do rock, Dylan sempre fez mais sucesso, principalmente nos EUA, onde Cohen nunca foi muito bem compreendido (o que diz muito sobre os americanos). Houve até um produtor que, ao ouvir Various Positions, o disco de 1984, em que se encontra não apenas Hallelujah como Dance me to the End of Love, disse: “Olha, Leonard, eu sei que você é genial, só não sei se é bom o suficiente”, e não lançou o disco na terra de Trump, deixando para os europeus, que sempre foram muito mais fiéis a Cohen, o prazer de comprá-lo e ouvi-lo em suas casas. Um tempo depois, ao receber um dos muitos prêmios em sua vida (que inclui também um literário, o Príncipe de Astúrias), Cohen falou em seu discurso: “Fico sempre muito comovido com a modéstia do interesse da gravadora pelos meus discos”.

Certa vez, quando se encontraram num café em Paris, nos anos 1980, tiveram uma conversa reveladora do jeito como cada um encarava o ofício. Dylan adorava Hallelujah, a qual considerava “linda como uma oração”, e perguntou a Cohen quanto tempo ele tinha demorado para compô-la. Envergonhado de admitir que tinha sido mais de cinco anos, baixou para dois. E perguntou por sua vez, em quanto tempo Dylan tinha feito I and I. “Quinze minutos”, foi a resposta já tradicionalmente imodesta do gênio de Duluth. Numa outra conversa entre os dois, recontada deliciosamente por David Remnick na última entrevista que Cohen deu pouco antes de morrer, para a New Yorker, Dylan teria dito, enquanto dirigia o carro  para mostrar uma fazenda que comprara: “Para mim, você é o número 1. Eu sou o número zero”. Com sua gentileza lendária e cavalheirismo, Cohen concordou prontamente.

Na mesma matéria, Dylan mostra grande conhecimento da obra do falso rival, e faz uma avaliação generosa: “Quando as pessoas falam de Leonard esquecem de mencionar suas melodias, que, para mim, são tão geniais quanto suas letras. Mesmo as linhas de contraponto dão um aspecto celestial para as canções. Acho que ninguém chega perto disso na música moderna”. E faz uma análise detalhada de Sisters of Mercy, do primeiro álbum, além de elogiar músicas bem mais recentes, como Going Home e Show me the Place. “Suas canções são profundas e verdadeiras, sempre multidimensionais, que fazem você sentir mas também pensar”, diz. Compara Cohen a Irving Berlin: “Ambos ouvem melodias que a maioria de nós mal consegue ouvir. Ele é um músico ex­tremamente sofisticado”. ­Remnick também conversou com Suzanne Ve­ga, que se  saiu com uma boa definição a respeito do segredo nas músicas de Leonard, não muito distante do que disse o cantor roufenho de Like a Rolling Stone: “São uma combinação de detalhes bem realistas e um senso de mistério”. O próprio Cohen, que sempre declarou a dificuldade de escrever as letras, dizendo que chegava a levar anos, e que já se pegou batendo a cabeça no chão para fechar um verso,  mencionou a importância dos detalhes nos seus escritos. (Há mil outros “segredos”, claro, como a combinação de vozes femininas e angelicais no coro, e sua voz cavernosa, resultado de milhões de cigarros fumados. Ou o uso surpreendente de um sintetizador barato, em contraste com a sutileza e lirismo das letras.)

Paraísos artificiais e reais

Esse mistério vem muito de sua “conexão com as esferas”, uma espiritualidade que, mesclada à curiosidade sensual, desembocou num híbrido perfeito de romantismo e ironia, humor e desespero, a carnalidade mais terrena e a busca religiosa. Muito desse mistério se forjou na ilha de Hydra, para onde foi no final dos anos 1960, fugindo da chuva depressiva de Londres, carregando basicamente sua Olivetti e o famoso casaco de chuva azul. O sol dispensou o casaco, mas a Olivetti permaneceu firme na mesinha de madeira colocada na varanda da casa caiada de branco que comprou com a herança de uma tia-avó. Sua vida era frugal como a de um monge hedonista. Tinha ainda duas cadeiras, “como as pintadas por Van Gogh”, uma cama, alguns livros, velas, garrafas de vinho, um violão e uma vitrola, em que discos de Bessie Smith, Robert Johnson e Nina Simone giravam até derreter. Ele também derretia sob o efeito de ácidos, haxixe ou anfetamina, e literalmente conversava com as margaridas enquanto tentava escrever, debruçado sobre a máquina. “Era uma viagem atrás da outra tentando enxergar Deus. Geralmente tudo acabava numa ressaca horrível.” A modelo norueguesa Marianne Ihlen, sua primeira e mais conhecida musa, é quem cuidava da casa. Com algo de mítico e primitivo, como notou Remnick, a  ilha, em que os carros eram proibidos e a eletricidade uma dúvida constante, lembrada por Henry Miller em sua “beleza nua e selvagem”, reunia boêmios e artistas, “amantes em todos os graus de paixão e angústia, e platônicos frustrados”, bem ao gosto do jovem bardo, que se sentia verdadeiramente à vontade no berço de nossa confusão mitológica

Impossível não pensar nos fulgores ensolarados de Hydra quando se depara com o disco que ele gravou bem próximo da morte, na sala de sua casa, com produção do filho Adam (ele deixou também a filha Lorca, ambos frutos do casamento com Suzanne Elrod. Há ainda uma neta, filha do cantor Rufus Wainwright). O contraste é muito forte. Intitulado You Want it Darker, algo como “você quer mais escuro”, é uma prestação de contas com a vida e uma aceitação serena do fim – certamente conquistada na severa disciplina do mosteiro em Monte Baldy, Los Angeles, sob a batuta de Roshi, o minúsculo mestre zen que foi seu amigo e guia espiritual por 40 anos -, não sem alguma dose de humor e até sarcasmo. Deus, ou Jesus, aparece tanto como um jogador quanto como um traficante ou um curandeiro. A esperança, que já existiu, mesmo numa canção tão ácida como The Future (“Há uma rachadura em tudo/É assim que entra a luz”), é nula: “Um milhão de velas queimam pelo amor que nunca vem”. O coro brada “Hineni”, palavra em hebreu usada por Abraão quando aceitou o sacrifício de seu filho (tão bem descrito pelo próprio Cohen na canção The Story of Isaac), para na sequência, de modo determinado, ele afirmar: “Estou pronto, Senhor”. Só quem tem coração de gelo não se arrepia. Faz lembrar também uma música anterior, do excelente Old Ideas, de 2012, The Darkness, em que diz: “‘Peguei’ a escuridão/Bebendo da sua taça/Não tenho futuro/Me restam poucos dias/O presente já não é prazeroso/Tenho coisas demais para fazer”.

A morte já vinha mostrando seu capuz e sua foice. Pressentindo-a, o cantor e compositor falou para Remnick que não tem medo dela: “só espero que não seja muito desconfortável”. No final de julho deste ano, Cohen recebeu um e-mail em que um amigo próximo de Marianne contava que ela estava muito mal (ela viria a morrer pouco depois). Sua comovente resposta viralizou na internet: “Bem, Marianne, chegou o momento em que estamos tão velhos que nossos corpos já estão se desfazendo. Acho que em breve seguirei seu caminho. Saiba que estou tão perto de você que se estender a mão talvez consiga tocar a minha. E eu sempre te amei pela sua beleza e sabedoria, mas não preciso repetir isso, pois é algo que você sabe muito bem. Só quero te desejar uma muito boa viagem. Adeus, minha querida amiga. Com amor infinito, te vejo na estrada”.

Desse jeito, a tão temida estrada parece realmente bonita.

MAIS

Assista a três vídeos sobre Leonard Cohen selecionados por Daniel de Mesquita Benevides:

Leonard recita algumas poesias no documentário Ladies and Gentlemen, Mr. Leonard Cohen

Cohen canta Suzanne e explica o motivo de ter perdido os direitos sobre a música

Uma performance da música Hallelujah na turnê de 2013

A ira de Vigna

elvira vigna
"São todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados", comenta Elvira sobre seus livros. Foto: Diego Rousseaux

Escritora, jornalista e ilustradora brasileira, Elvira Vigna foi diagnosticada com um câncer agressivo em 2012 e acabou falecendo em julho de 2017. Deixou, porém, inéditos a serem publicados, entre texto e artes. Agora, a editora todavia lança o livro de contos Kafkianas, com apresentação de Carolina Vigna Prado e posfácio de André Conti.

Leia uma das últimas entrevistas dadas por Elvira, concedida a Daniel de Mesquita Benevides e publicada na edição 9 da CULTURA!Brasileiros, em março de 2017:

Há muitos e muitos anos, Bob Dylan concedeu uma entrevista a um repórter brasileiro. Com uma condição: que fossem feitas cinco perguntas apenas. O pobre jornalista, que conhecia a fundo a obra do bardo, caprichou. Ao se ver diante do hoje Prêmio Nobel de Literatura, o que ouviu como respostas foram apenas dois no, dois yes e um perhaps. Elvira Vigna não é Bob Dylan, evidentemente. Mas o humor talvez se assemelhe. Sua exigência para dar entrevista é que ela fosse feita por e-mail. Explicou que não gosta muito de falar. Justo. Mandadas as perguntas, suas respostas foram gentilmente imediatas. Mas capciosa­mente curtas. Este jornalista viu-se, então, de calças não menos curtas. Sorte es­tar­mos no verão.

É fato que a fama de mal-humorada a persegue. Mas quem a conhece melhor diz que Elvira no fundo é doce. E realmente arredia, por timidez ou por não lidar bem com protocolos, diplomacias e que tais. “Acho que ela é única em vários sentidos. Como pessoa, ela não transige, não faz concessões, é muito coerente com o que acredita, é muito feminista, muito de esquerda, é firme na ideia de uma literatura literária, não feita para venda, mas para transformar. E ela age assim. Não aceita convites para eventos em que não acredita. As pessoas têm de se adaptar a ela, ela não se adapta às pessoas. Como escritora é a mesma coisa. O texto dela tem uma potência, diz exatamente aquilo que pensa”, afirma a escritora e crítica Noemi Jaffe.

Um prólogo faz-se necessário. Vigna é uma das vozes mais interessantes da nossa literatura. Seus livros, como ela mesma diz, “são todos iguais. Falam sempre de morte, vazio e solidão. Mas são muito engraçados.” É dis­cutível, porém, se são mes­mo todos iguais. Há sempre uma nova experiência com o narrador ou narradores. A questão de como contar uma história é central em sua obra e surge das maneiras mais diversas. Mudam cenários, cenas e motivações. Já a graça a que ela se refere existe, de fato, mas é muito peculiar, não para todos os gostos. O leitor precisa entrar na dela, sintonizar em seu canal, seguir o fluxo no mesmo diapasão. Vale o esforço.

Sua trajetória é também peculiar. Foi tarifeira da Air France em Paris, tem diploma da Universidade de Nancy em Literatura, curso feito num convênio com a UFRJ, e trabalhou em todos os principais jornais brasileiros, Correio da ManhãJornal do BrasilO GloboFolha de S.PauloO Estado de S.Paulo. Ilustrou e escreveu vários livros infantis, pelos quais ganhou alguns prêmios, incluindo um Jabuti e um APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte). Fez duas exposições com suas gravuras. Teve algumas editoras, todas falidas. Por uma delas publicou, entre 1970 e 1972, uma pérola do desbunde jornalístico, A Pomba, algo como uma versão mais erotizada de O Pasquim. Tem também uma novela em quadrinhos, algumas peças não encenadas, roteiros não filmados e crônicas (na falta de uma palavra melhor). De 1988 para cá, escreveu dez romances adultos, todos bastante elogiados pela crítica. Nada a Dizer, de 2010, ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras; Por Escrito, de 2014, foi segundo lugar no Oceanos (antigo Portugal Telecom); e o mais recente, Como se Estivéssemos em Palimpsesto de Putas, venceu o prêmio da APCA.

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As capas do primeiro ano da revista A Pomba, editada por Elvira entre 1970 e 1972. Foto: Divulgação

Putas, apelido já aceito, é, talvez, o livro mais acessível que já escreveu. Não que sua escrita seja exatamente difícil. É… idiossincrática. Num dos textos da série Morrendo de Rir, publicados pela revista Pessoa, que podem ser lidos em seu site, vigna.com.br, Elvira conta o seguinte episódio, que explica, em parte, e de forma muito direta, o que foi dito até agora: “Minha agente, a Anja, um amor de alemoa, é categórica: Não faço mais sucesso porque: 1) sou mulher, feminista e velha; 2) escrevo esquisito; 3) não sorrio pras pessoas pra quem devia sorrir. Sendo que, acrescenta, desiludida, se eu sorrisse, os dois primeiros itens não teriam tanta importância”.

Uma das chaves para a compreensão do livro está no título: o formato lembra, realmente, um palimpsesto. Personagens e histórias se acumulam em camadas que parecem se repetir, mas a cada órbita narrativa ganham novos significados e, antes de serem cobertos por outros fatos e palavras, deixam vestígios de sua passagem. O enredo é simples (suas implicações é que são complexas): João, sujeito razoavelmente rico, egoísta, casado com Lola, gosta de sair com putas. Talvez seja um vício, que se retroalimenta porque sempre insatisfatório. Ficamos sabendo de suas desventuras sexuais através da narradora. É para ela que ele conta, com seu jeito meio autista, de sua prospecção pela rua Augusta, o que inclui o velho castelinho kitsch da boate Kilt, e das explorações por inferninhos em Brasília ou Rio. As conversas de mão única se dão numa editora prestes a falir. Ambos tomam uísque caubói em copinhos de plástico, ela no sofá, ele em sua mesa. Xerazade invertida, João parece querer evitar algum destino ruim ao relatar suas dezenas e uma noites. Ouvinte calada, ela talvez tente seduzi-lo com seu silêncio. É, reiterando o vaticínio da autora, um encontro de solidões, numa situação de vacuidade, com a morte rondando. Dito assim, parece leitura para cortar os pulsos, mas Elvira tem razão: é muito engraçado também. A ideia de palimpsesto ainda está em sua gênese: ela jogou fora toda uma versão anterior do livro, insatisfeita com o tom.

“João e a moça no sofá (eu) eram reais, e são mais reais agora.” Tudo o que escreve é baseado em coisas “vividas, vistas ou ouvidas.” No site Estudos Lusófonos, do professor Leonardo Tonus, há um ótimo depoimento seu: “Tenho muita clareza sobre o motivo de eu fazer literatura. Pretendo, com ela, tornar minhas as histórias que fui obrigada a viver. Só tem um jeito de elas se tornarem minhas: é passarem pelos outros. Essa tentativa se dá no ‘mundo comum’, um termo da Hanna Arendt que designa o espaço das diferenças que me separam e me aproximam desse outro. É, portanto, um espaço da intersubjetividade, esse, onde minha literatura existe. Ou seja, para que ela se dê, é preciso que haja um outro, uma outra maneira, que não a minha, de viver a vida. Aí reconheço a minha como sendo minha. (…) A má notícia é que essa literatura – minha e de outros colegas do contemporâneo – é árdua. Não só para nós, os escritores que a propomos, mas também para esse outro, o leitor, que é convidado a participar daquilo que ainda não está pronto, que nunca fica pronto, daquilo que não só não tem um significado a oferecer como, pelo contrário, se declara falho, necessitado de sócios para sua ressignificação contínua. Esse compartilhar, esse admitir insuficiências e necessidades, a admissão de que precisamos da alteridade para viver, isso exige esforço. Alteridade vem de alterar. E alterar, principalmente alterar a si mesmo, dá um enorme trabalho”.

A dívida com o jornalismo e as madeleines da vida é evidente. O famoso gatilho de Proust também dispara suas narrativas no aspecto mais fugidio, subjetivo. Mas não se pense em autoficção. À minha pergunta, “Narradora e autora… qual a distância?”, sua resposta é caracteristicamente ambígua e concreta: “Bem medida ou, pelo menos, bem procurada. O narrador nunca é eu, nem foi. É alguém que tem uma distância precisa de mim hoje, de mim em qualquer outra época. Uma proximidade afetiva: sabe de mim, gosta de mim. Mas consegue me ver. O narrador é um lugar de onde aquilo que quero compartilhar pode existir. É muito difícil de achar, pelo menos por esta que vos fala”. Continuo: “Achei especialmente interessante o que escreveu sobre as imagens serem mais incompletas, porém mais polissêmicas. As palavras e mesmo a memória parecem insuficientes também. A literatura seria uma tentativa de dar algum sentido a tudo isso?”. A resposta surge na tela como névoa passageira. E estranhamente precisa: “É, exatamente. Mundos incomple­tos, polissêmicos. A insuficiência co­­mo medida de con­vivência”. Em outra situação, pontuou, como se temesse ser mal compreendida e sentisse a ne­cessidade de deixar mais clara essa “insuficiência” de que fala: “A literatura serve para te desestabilizar, para te botar mal, com dúvida”.

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Autorretrato. Ilustradora premiada, Elvira estudou gravura na Escola de Belas Artes, no Rio

Para Cristhiano Aguiar, jornalista, editor, crítico literário e professor do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie, “ela tenta escrever contra a literatura”. E acrescenta, concordando com Noemi: “Acho que ela também questiona uma posição social ‘careta’ – tradicional e formal – do escritor. Ela retira a formalidade, retira a idealização. Acho que ela tam­bém quer retirar, na escrita e na postura dela, uma aura de intensa legitimidade. Ela quer ‘desgourmetizar’ a literatura, eu acho”. Já o crítico Manuel da Costa Pinto tem opinião semelhante, mas num sentido menos positivo: “Ela tem o pessimismo de um Graciliano Ramos, de um Dalton Trevisan, embora seja mais urbana. Sua obsessão feminista com a questão das diferenças de gênero, com a brutalidade das relações sociais, beira às vezes o caricatural. É mais uma postura do que algo com autenticidade. Ela quer épater le bourgeois, só que o burguês não se choca mais”. Às aproximações de Ma­nuel, que, não obstante, vê grandes méritos nos livros de Vigna, se poderia acrescentar o nome de Raduan Nassar, em especial aquele de Um Copo de Cólera, cuja virulência, ora seca, ora lírica, com­bina com os descaminhos amorosos e sexuais nas tramas vignianas.

A publicação A Pomba pode ter feito, em menor escala, esse papel de épater os burgueses. Momento único da chamada imprensa nanica, era bastante subversiva para a época, ainda que os censores, pouco espertos, não percebessem. Numa entrevista para o blog português Som À Letra, ela conta: “A censura liberava as edições para a gráfica sem notar que quando falávamos do nazifascismo alemão estávamos falando deles”. A redação ficava em seu apartamento, no Rio. Elvira, à época com 20 e poucos anos, cuidava mais da produção, e seu então companheiro, Eduardo Prado, da edição. O ambiente era de descontração total, com muita risada e jogatinas de pôquer rolando soltas: “Ninguém fechava a porta. O edifício estava em construção e, na verdade, ainda não tínhamos licença da prefeitura para habitar o apartamento em obras. Então era um movimento constante o dia inteiro, e não só de jornalistas, mas também de pedreiros e operários. Não tinha nada que pudesse ser chamado de rotina”. O cartunista Quino uma vez passou por lá. Joel Silveira, Domingos Oliveira e Ziraldo eram alguns dos colaboradores. As capas sempre traziam nus, que também ocupavam as páginas internas. Era uma provocação aos tempos conservadores da ditadura e também à revista masculina Fairplay, que tinha demitido o casal. Nada convencional, claro. Havia também nus masculinos, “o que era um escândalo”, e os modelos eram muitas vezes negros ou pessoas comuns, bem distantes do padrão das revistas comerciais. Os textos falavam de psicanálise a literatura, entre mil temas, sempre com humor e inteligência.

Começou a escrever por causa de uma de suas editoras, a Bonde, que cometia a “imprudência” de só publicar autores novos. Escolheu de início a literatura infantil, porque queria se comunicar com os dois filhos, a quem “não entendia”. No fim das contas, eles a entenderam tanto que hoje também encararam o sonho das pequenas editoras: David Nicolau fundou a Estado da Arte e Carolina acaba de abrir a Uva e Limão. Quando cresceram, abandonou seu monstrinho Adrúbal (personagem criado por ela) e, em 1988, lançou um primeiro livro de temática adulta. Sete Anos e um Dia, disponível na íntegra em seu site, trata de quatro amigos no período pós-abertura. Um entrevero com a editora, José Olympio, fez com que abandonasse a literatura pelo jornalismo por quase uma década. A volta se deu pela Companhia das Letras, onde está até hoje. Ela mandou vários originais pelo correio e Maria Emília Bender, que viria a editar todos os seus livros a partir dali, se interessou: “Seus livros não são exatamente fáceis. Ela sempre encobre as coisas, tem sempre um mistério, um segredo, e um segredo que às vezes é tão secreto que fica quase criptografado. É uma voz muito particular, diferente de tudo o que eu já tinha lido. Tem zero pieguice. Muitas vezes ela é cruel, o que eu acho bem interessante. É uma literatura áspera, que morde. E ela não é nada óbvia. Sua opção preferencial é pelas mulheres e pelos losers urbanos, ex-strippers, transexuais de subúrbio, jornalistas do terceiro escalão. Há uma indefinição nas coisas, pode ter acontecido algo criminoso ou não. É cerebral e visceral ao mesmo tempo, e esse é o ouro dela”, diz Bender.

Grande parte da crítica considera o Putas seu melhor livro. Noemi Jaffe, que ainda não o leu, fica por ora com Por Escrito: “Gosto muito da polifonia no Por Escrito. Cada personagem tem uma voz muito própria. É difícil ser polifônico e manter a individualidade dos personagens. Ela é fera. É impressionante como ela vai passando de uma situação para outra sem que a gente perceba as passagens”. Já a própria escritora – e também Costa Pinto – prefere uma cria menos beneficiada pelos pequenos holofotes da mídia. Como declarou em conversa pública com Manuel: “A um Passoé um livro único, e é o melhor que eu fiz. É um comentário sobre a peça A Tempestade, de Shakespeare, em que a ficção se desmancha em pleno palco. Um personagem conta a história do outro, mentindo. Quero reeditar no ano que vem, não sei se vou conseguir, é um livro de não venda, acadêmico, para estudioso de literatura.” Ao contrário, parece promissor.

Diálogos com Rosane Borges: gênero, raça, visibilidade e poder

Rosane Borges tem 43 anos e nasceu em São Luís, Maranhão. Desde a adolescência esteve envolvida em atividades de movimentos negros e discussões políticas, lutou e ainda luta para mitigar e obstruir os efeitos do machismo e do racismo estrutural e institucional nos âmbitos privado e individual.

Na academia, entre o jornalismo e a comunicação enquanto ciência, a hoje doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, passou a refletir sobre o que é ser uma comunicadora negra.

Ao PáginaB!, explicou que a sua formação política data da participação em diretório e centro acadêmico universitário.

Atualmente, Borges integra o grupo de pesquisa Midiato, da ECA (Escola de Comunicação e Artes) da USP. Em seu currículo, ainda, consta a coordenação do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra da Fundação Palmares, um dos órgãos do Ministério da Cultura.

Em Diálogos, Rosane Borges discute gênero, raça, visibilidade e poder sob a luz dos movimentos de minorias e da disputa de narrativas dentro e fora da Academia e nas redes sociais.

Pombagiras e a Multidão de Mulheres

'Lua Com Ovo II', (1992), de Mario Cravo Neto.

*Por Maria Gabriela Saldanha

Neste 8 de março, com o avanço conservador que propaga o ódio a minorias, respondendo pelo acirramento da perseguição às religiões de matriz africana e pela extinção de direitos conquistados pelas mulheres ao longo dos anos, teríamos muito a aprender com as sacerdotisas destas religiões a respeito de mulheridade e resistência, se nos abríssemos às suas vivências e à riqueza simbólica de sua ancestralidade.

Algumas referências muito interessantes para repensarmos a autonomia das mulheres no mundo estão presentes no conjunto de saberes arquivados sob o imaginário de Pombajira (“Pombagira”, em grafia popular). Muitas vezes, bem antes que qualquer discurso feminista pudesse alcançar essas mulheres, os saberes transmitidos oralmente no âmbito de seu cotidiano religioso e comunitário foram as únicas ferramentas de sobrevivência.

Conforme definição de Luiz Antonio Simas, historiador e pesquisador de manifestações populares: “Do ponto de vista da etimologia, a palavra Pombajira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Aluvaiá, Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu”.

Então temos uma forma de mulheridade disponível no inconsciente coletivo de diversos povos que é dona dos caminhos. Isso é suficiente para manter viva a memória e o desejo de um modo de ser mulher que rompa com o confinamento patriarcal na dimensão privada e no estereótipo de feminilidade, percebendo-se livre física, emocional, social e espiritualmente para ir a toda parte. Por essa perspectiva, quando entendemos que Pombagiras regem as estradas, talvez estejamos falando simbolicamente sobre mulheres ocupando todos os espaços; se elas podem também bloquear passagens, o seu “não” é definitivo, de modo que qualquer perturbação a ele obstruirá o fluxo da vida e dos interesses coletivos; quando falamos sobre encruzilhadas (cruzamentos, opções) evocamos um sistema de escolhas que contemple as mulheres; quando nós relacionamos tais entidades ao cemitério (mundo dos mortos), que têm suas próprias ruas e esquinas, estamos destacando o trânsito nas próprias sombras, ou seja, sabendo caminhar em nós mesmas, em nossos labirintos psíquicos, atentas às marcas das diversas formas de violência para que não condicionem o nosso caminhar.

Por outro lado, a força vital simbolizada nas Pombagiras é a da plena consciência do corpo e da sexualidade não referenciada no pecado ou na cultura de objetificação/abuso, mas na qualidade de potência. O que vai na contramão de toda a socialização feminina, já que misoginia é uma forma de opressão estrutural construída especificamente sobre o corpo do ser humano nascido mulher, que é castrado de muitas maneiras ao longo da vida para corresponder ao projeto de submissão para ele previsto em muitos níveis. Isso implica dizer que Pombagira nos restitui a noção – inegociável – de que o corpo da mulher somente a ela deveria pertencer e que essa é a condição fundamental para que os caminhos existam. Os caminhos para a evolução de todos nós, uma vez que a libertação das mulheres alavanca toda a coletividade e garante o pleno desenvolvimento das próximas gerações.

 

*Maria Gabriela Saldanha é escritora e ativista feminista.

Laura Ferrari – A “parteira” zen

A yoga transformou a vida dessa paulistana quando ela menos esperava. Executiva, professora de inglês, Laura da Silva Prado Ferrari vivia o cotidiano a mil por hora da cidade de São Paulo: estresse, correria e muitas dores no corpo. Laura lembrou de como as aulas de yoga faziam bem e resolveu voltar à prática. O que era um escape e um exercício para segurar a barra do dia-a-dia virou profissão. Fez faculdade, especializou-se no assunto e começou a dar aulas para idosos. Depois, gestantes. Hoje, seu universo lida com preparar uma vida para chegar ao mundo. Bem diferente do ambiente de livros e dicionários de antigamente. Laura mergulhou no mundo da cultura oriental e percebeu que existe vida em equilíbrio. Acredita que a yoga deveria ser disciplina escolar, como matemática e português, e também critica a forma dos hospitais lidarem com a maternidade no mundo moderno. Por isso, ajuda mães a darem à luz da forma mais natural possível. Sem cortes, sem invasões.

Laura Finocchiaro – A fiel do underground

Conversar com a cantora e compositora gaúcha Laura Finocchiaro é dar um mergulho nos anos 1980 e começo dos 1990. É lembrar-se, mais especificamente, de uma época em que a noite de São Paulo pululava com dezenas de casas noturnas alternativas. É também se aproximar do mundo pop e conhecer uma figura que está nos bastidores de vários programas de TV. Laura impressionou Cazuza, que chegou a gravar uma música sua; chamou a atenção da cena underground e tocou no Rock in Rio, no mesmo palco em que mitos, do calibre de Prince, passaram. Um começo de carreira meteórico desaguou na produção de trilhas sonoras para televisão e, mais recentemente, em experiências com a música eletrônica. De volta aos palcos, Laura apresentou seu show Avoar, no mítico Madame Satã, onde ela deu seus primeiros passos no mundo da música. A Brasileiros acompanhou tudo.