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Uma nova gramática para a arte

Por esta fotografia, Rafael foi mantido por dez dias em uma solitária. FOTO: Reprodução/Facebook DHH.

*Por Mariana Tessitore

Símbolo de Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga está na exposição Histórias Afro-atlânticas. O Instituto Tomie Ohtake, que hospeda a exposição junto ao MASP, promoveu em 2017 a mostra Osso, exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Relembre conversa, publicada na época, da jornalista Mariana Tessitore com acadêmicos, curadores e artistas para saber o que eles pensam sobre a relação entre arte e política hoje:

“A arte é a ciência da liberdade”, já dizia Joseph Beuys. Mas como interpretar essa frase do mestre alemão à luz da crise democrática que assola o Brasil? Esse debate ganha fôlego com a inauguração da mostra OSSO: Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Feita em parceria com o IDDD (Instituto de Direito do Direito de Defesa), a mostra debate o caso de Rafael Braga, jovem negro que foi detido nas manifestações de 2013 por portar desinfetante e água sanitária. Braga foi o único condenado no contexto dos protestos, seu caso se tornou um símbolo de luta dos movimentos sociais.

Em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, a exposição apresenta 29 trabalhos, reunindo desde nomes consagrados, como Cildo Meireles e Anna Maria Maiolino, até jovens artistas representados por Moisés Patrício, Paulo Nazareth, entre outros. Junto às obras, também há documentos sobre o caso de Braga. Segundo o curador, Paulo Miyada, os artistas participam da mostra como se estivessem assinando um abaixo-assinado.

“O caso do Rafael é paradigmático por ser um exemplo de uma situação institucionalizada. Ele revela o quanto a cidadania, no Brasil, é desigualmente atribuída, dependendo do grupo social, da raça e etc”. Miyada afirma que há um “consenso de que não está tudo bem no País” e que é preciso entender qual é a “pertinência da arte e da cultura nesse contexto”.

Com uma retórica clara, já enunciada no próprio título, a mostra marca posição, sem precisar recorrer a trabalhos panfletários ou “verborrágicos”, como define o curador. “Privilegiamos obras que não fossem tão discursivas. A palavra ‘osso’ remete ao que há de mais agudo, afiado e conciso na arte contemporânea. É como se cada trabalho equivalesse a um gesto, uma ação direta feita pelo artista”, explica.

Símbolo da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga que será exibido em ‘Histórias Afro-atlânticas’.

Uma das participantes da mostra, Carmela Gross acredita que as obras devem “agudizar” as questões sociais: “A arte sempre é política. Claro que não podemos entender a política num sentido estreito. Trata-se, antes de tudo, de produzir um acontecimento sensível que possa reverberar nos outros”. Nuno Ramos, que exibe a obra Balada, composta por um livro alvejado por uma bala, concorda com a colega.

“Não se faz política apenas quando se trata de uma pauta engajada. Quer dizer, há política em toda obra. A Bossa Nova, por exemplo, tinha uma grande potência política, apesar de não ser uma intenção explícita dos autores”, afirma o artista. Ele ainda chama atenção para os riscos de “leituras enviesadas”: “Não necessariamente as obras mais engajadas serão aquelas que permanecerão, dando conta do seu tempo.  Precisamos interrogar os trabalhos com bastante riqueza para não ficarmos presos ao seu conteúdo”.

Em rumo ao impossível

Para o filósofo e professor da USP, Vladimir Safatle, a força da obra de arte não pode ser reduzida ao seu discurso.“A dimensão política fundamental da arte não está no engajamento explícito, mas na sua capacidade de dar forma ao que é tido como impossível. E isso não é simplesmente uma função utópica da arte, é a sua dimensão mais concreta, ela permite a criação de novas formas de sociabilidade”. Ele explica que aspirar ao impossível significa, sobretudo, pensar em outras maneiras de habitar e sentir o mundo. E, para isso, é preciso criar novas linguagens.

“Hoje, se olharmos nas galerias de arte, há muitos trabalhos que tratam diretamente de problemas sociais. Mas o que talvez nós precisemos seja algo de outra natureza. Um dos motivos do embotamento da nossa imaginação política vem do fato de adotarmos a gramática daquilo contra o qual se combate. Acabamos falando a mesma linguagem, ainda que para fazer frases diferentes. E é óbvio que, dentro desse processo, o jogo já está perdido. Talvez a arte seja um dos poucos discursos que possa nos lembrar disso. Não há instauração política sem criação de uma nova gramática”, pontua.

Na mostra em cartaz no Tomie Ohtake, um trabalho em especial traz a a ideia da arte em busca do impossível. Trata-se do registro de uma exposição que o artista Paulo Bruscky montou em Recife, em 1974. Intitulada Nadaísmo, a mostra não era composta por nenhuma obra, a galeria estava totalmente vazia. O público era convidado a comparecer com um panfleto irônico: “As pessoas chegam à sala e nada acontece. (..) Nada e somente o nada que perturba tanto. Mas então o nada é algo. Se perturba tanto, então não é só algo, como muito. O nada é muito”.

O encontro com o nada, proposto por Bruscky, desarma o espectador, convocando-o a refletir sobre o inesperado. Para Paulo Miyada, é preciso de fato pensar a política de uma forma mais ampla. “Como curador, tento desautomatizar os jeitos em que trago as pautas para os meus projetos. É uma forma de revalorizar a ideia de política como algo que deve ser conquistado e não uma palavra-chave a priori”, pontua.

Perspectiva histórica

Olhar o passado pode ajudar a entender a relação entre a arte e a política hoje. Segundo o professor do departamento de história da USP, Francisco Alambert, a arte moderna se baseava em duas formas de revolução: a social, pautada pelos exemplos das transformações na França, em 1789, e na Rússia, em 1917, e a formal, associada às vanguardas artísticas. “A arte contemporânea, por sua vez, nasce sob o signo da pós-revolução, quando a perspectiva de uma transformação radical nas coisas e na arte, ainda que não desapareça, já não é mais vista como necessária. Daí o desafio da arte contemporânea de ter que procurar o seu lugar político”.

Nessa busca por uma nova gramática, como afirma Safatle, talvez um dos maiores impasses seja a relação dos artistas com o mercado. Alambert  defende que, diferentemente da arte moderna que no início se opunha aos parâmetros oficiais– os quadros de Picasso, por exemplo, chegarem a ser censurados- a produção contemporânea já surge em diálogo com as instituições.

“A política da arte contemporânea é muito contraditória porque, por um lado, os artistas romperam completamente com as linguagens tradicionais. A arte foi para a rua, o corpo, as instalações. Nesse sentido, ela é muito livre. No entanto, essa liberdade é limitada pela condição de mercadoria e pelo fato das obras sempre estarem dentro de uma instituição que as legitime: museus, bienais, galerias. Muito raramente a produção de arte contemporânea está associada a movimentos sociais maiores”, defende o historiador.

Rosana Paulino, ‘O Progresso das Nações’, 2016e

Mesmo que dentro de uma instituição, a mostra OSSO representa essa tentativa de diálogo com outros setores da sociedade civil, sendo uma parceria da arte com a justiça. Segundo o curador, a exposição funciona como um “chamado social” para que cada setor colabore trazendo reflexões. “Esse diálogo foi fundamental para o projeto. E talvez seja algo mais ou menos raro porque geralmente o próprio sistema da arte se retroalimenta e tem todas as suas dinâmicas e reflexões internas”, pontua Miyada.

Nuno Ramos também considera importante que as mostras consigam “dialogar cada vez mais com outras parcelas da sociedade”. Ainda assim, ele comenta que a relação entre arte e política deve ser vista a partir de suas nuances:“ Em um momento em que tudo indica que a função do artista é assumir para si questões éticas, talvez o que devamos fazer seja trair essa expectativa e não assumir nenhum papel. E isso em si já é uma postura política. No fundo, é pensar um pouco a arte como uma forma de solidão, algo que não se identifica com as funções do mundo”.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora

Jaime Lauriano e a desmistificação da democracia racial

O artista Jaime Lauriano conta que começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial". FOTO: Divulgação

 

*Por Mariana Tessitore

“Para eu estar aqui hoje falando, muitas pessoas que vierem da África para serem escravizadas tiveram que morrer.” É assim que o artista Jaime Lauriano começou essa conversa com a ARTE!Brasileiros no final de 2016. Com seus óculos grandes e redondos, e o mapa do continente africano tatuado em seu braço, ele recebeu a reportagem no Ateliê 397, espaço de intervenção cultural sediado na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo.

Lauriano falou sobre a sua atuação como artista iniciada em 2007, após sua formação no curso de artes visuais na Faculdade Belas Artes. Em 2011, sua produção teve um hiato de um ano, no qual trabalhou com marketing político “para entender como a estrutura funcionava por dentro”.

Porém, em 2012 decidiu retornar ao campo das artes, iniciando um projeto que propõe releituras de momentos chaves da história brasileira. No ano passado, a Pinacoteca do Estado de São Paulo adquiriu a sua instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, o que conferiu maior projeção ao artista.

O coletivo é uma questão central para Lauriano. Ele reforça que o seu corpo é fruto de uma ancestralidade, marcada pelas lutas dos grupos marginalizados ao longo da história. “Falar dessa coletividade é uma das responsabilidades que assumi para mim. Não necessariamente tematizando isso, mas afirmando que sou um produtor de origem africana, que algo está gravado no meu corpo. E isso a polícia e a segregação racial me lembram a todo o momento”, conta o artista.

Em seu último projeto, Lauriano reconta a história brasileira a partir de três perspectivas: o trabalho, a dominação do solo e a criação do Estado nação. Esses três pontos foram investigados em exposições que o artista realizou respectivamente no Centro Cultural São Paulo, na Galeria Leme e no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio. Segundo Laureano, o intuito era “buscar no passado as explicações para o que acontece no presente. Queria entender questões como: por que se matam tantos jovens negros? Ou por que até hoje ainda criamos tantos slogans nacionalistas?”.

Para responder a essas indagações, ele foi aos arquivos públicos do Rio e de São Paulo. Lá encontrou diversos documentos, a partir dos quais criou suas obras mais recentes.  Nos últimos anos, o arquivo se tornou uma referência constante nos trabalhos de arte contemporânea. Indagado sobre essa questão, Lauriano comenta: “É uma tentativa de ‘ficcionalizar’ os arquivos para mostrar que a história que nos é contada também é uma ficção. Não se trata de criar uma nova história oficial, mas de apresentar outras possibilidades e perspectivas”.

Em 2014, Lauriano tirou o pó dos arquivos da ditadura militar para criar dois vídeos que apresentou na coletiva I Mostra, no Centro Cultural São Paulo, realizada durante o período da Copa do Mundo no Brasil. Em Morte Súbita, o artista filma pessoas encobrindo o rosto com a camisa da seleção brasileira, enquanto um narrador lê os nomes de 25 desaparecidos políticos da década de 1970. No vídeo, “a câmera faz um travelling, mostrando essas pessoas de perfil, como se estivessem escutando o hino antes de uma partida, tomando um enquadro ou ainda prestes a serem fuziladas”.

 

Na obra, o artista chama atenção para como o esporte pode ser utilizado como instrumento de exaltação patriótica: “Eu quis falar sobre a Copa do Mundo de 1970 porque, ao mesmo tempo em que todos torceram pelo Brasil, esse foi o ano que a ditadura militar conseguiu desbaratar a luta armada. Também foi o período do milagre econômico, a população empolgada com a distribuição de renda pelo consumo. E é muito contraditório porque essa é uma retórica que se dá até hoje em qualquer tipo de governo”.

No ano passado, o artista realizou a exposição Autorretrato em Branco Sobre Preto na Galeria Leme. A mostra foi um marco em sua carreira, funcionando como “um autorretrato, não só meu mais de uma condição social, dessa imposição da sociedade branca sobre os corpos negros, e como isso atravessa a história do Brasil”. Foi lá que ele apresentou a instalação Nesta Terra Em Se Plantando Tudo Dá, composta por uma muda de Pau Brasil plantada dentro de uma estufa. Na obra, há todo um sistema, com irrigação e ventilação, que garante as condições ideais para que a árvore viva. Porém, ao crescer, a árvore provavelmente morrerá por asfixia ou por explodir os vidros da estufa ao aumentar de tamanho.

Lauriano afirma que, assim como na estufa, no Brasil “há as condições ideias para o crescimento, mas a gente aprisiona. O Estado subsidia transporte, saúde, enfim, muitas coisas, mas também cerceia a liberdade, as pessoas têm fronteiras, passaportes, polícias. O primeiro escravizado no Brasil foi o índio para retirar o pau Brasil, que é perversamente a planta que dá nome ao País. Então, aquilo que nomeia a nação é o sinal do primeiro genocídio, a primeira tortura. No trabalho, eu queria pensar tudo isso”.

Jaime Lauriano, ‘Nessa terra, em se plantando, tudo dá’, 2015.

O atual diretor artístico da Pinacoteca, Tadeu Chiarelli, viu a obra na exposição e decidiu adquiri-la para o acervo da instituição. Depois de comprar a peça, Chiarelli fez outras aquisições de obras de artistas afrodescendentes, que comporiam a exposição Territórios, apresentada neste ano na comemoração dos 110 anos da instituição.

Lauriano conta que a partir desse momento, começou “a entender que tinha uma responsabilidade muito grande, por ser um produtor negro de arte contemporânea dentro de uma sociedade de segregação racial, mas que até hoje  prega a meritocracia e a democracia racial como pilares fundadores”.

Para o artista, a inserção do negro no mercado da arte é “um trabalho de formiguinha. Eu, por exemplo, indico pessoas para outras exposições. Entendo que criar uma rede, uma comunidade de pessoas também faz parte do trabalho artístico. Aprendi isso porque ouço muito rap desde criança e isso é muito forte no rap, essa indústria que é abastecida por produtores afro-brasileiros. E eu acho que esse pensamento também precisa estar nas artes plásticas, quanto mais gente conseguirmos trazer juntos, vamos lá sabe? Onde passa boi passa boiada. Abriu uma fresta, vem gente. Eu e algumas pessoas estamos conseguindo abrir essa fresta, esse lugar de diálogo”.

Em sua última exposição, apresentada neste ano no CCBB do Rio, Lauriano continuou propondo conexões entre o passado e o presente. Na obra Calimba, por exemplo, criou carimbos com 25 manchetes de jornais sobre linchamentos realizados no Brasil. Os carimbos remetem à prática adotada pelos senhores de marcar os escravos a ferro. O artista conta um pouco sobre o processo de concepção da obra: “Enquanto eu pesquisava nos jornais, me lembrei dos linchamentos praticados na década de 1920 no sul dos EUA. Eram homens negros espancados, enforcados e pendurados em praças públicas. Essas imagens viravam cartões postais como se fossem paisagens que deveriam ser contempladas. Isso durou cerca de 20 anos. E aqui no Brasil, nesse tempo, estávamos vivendo o auge da democracia racial. Isso também acontecia, só não era divulgado. Tudo isso me fez pensar na violência colonial, em como ela é atualizada hoje nesses linchamentos, que de novo são feitos na praça pública pela sociedade civil, e não pelo Estado. É impressionante como a violência também transita historicamente”.

Lauriano comenta que uma parte do seu trabalho é justamente aparecer na imprensa para questionar os estereótipos associados aos afrodescendentes. “É importante mostrar que existe outro lugar para o jovem negro que não o do suspeito em potencial. Até porque o negro no Brasil hoje nem é mais suspeito, ele já é o acusado, aquele que fez a treta.” Otimista, ele afirma que, devido à presença de artistas como Sonia Gomes, Emanoel Araújo e Paulo Nazareth, o meio das artes tornou-se mais aberto, mesmo que obviamente ainda exista preconceito. Porém com o fortalecimento da discussão, “torna-se muito mais difícil apagar ou silenciar o negro”. Como diz o artista, onde passa boi passa boiada.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora

Ayrson Heráclito, um artista exorcista

Ayrson Heráclito, fotografias da série 'Bori' (2008-2011).

*Por Mariana Tessitore

Praticante do candomblé há mais de vinte anos, Ayrson Heráclito acredita na arte como uma forma de cura. Para o artista baiano, é preciso “exorcizar os fantasmas da sociedade colonial” que ainda assombram o País. Em suas performances, vida, arte e religião se misturam num mesmo caldeirão, onde também entram alimentos da cultura baiana como o açúcar, a carne de charque e o dendê.

Heráclito é um dos cinco artistas brasileiros que participaram da 57ª Bienal de Veneza, em 2017, uma das mostras mais importantes do mundo com inauguração prevista para o mês de maio. Em entrevista à ARTE!Brasileiros no período que ocorreu a Bienal, o baiano fala sobre o trabalho que apresentará na Bienal, a relação entre a  arte e o sagrado, o mito da democracia racial e a convivência com Marina Abramovic, entre outros temas.

ARTE!Brasileiros: Você poderia falar sobre a obra que apresentará na Bienal de Veneza?

Ayrson Heráclito: O trabalho se chama Sacudimentos*, é uma obra que fiz uma parte na Bahia e outra no Senegal. Em 2015, realizei dois rituais, um na Casa da Torre, sede de um grande latifúndio na Bahia, e outra na Casa dos Escravos na Ilha de Goré, no Senegal. O sacudimento é uma espécie de exorcismo que eu faço nesses dois grandes monumentos arquitetônicos, localizados nas duas margens do Atlântico ligadas ao tráfico de escravos e à própria colonização. Eu queria voltar fisicamente e poeticamente a esse passado colonial e a própria história do escravismo para refletir sobre as condições sociais do nosso presente.

Esse ritual do sacudimento é realizado no recôncavo baiano com bastante frequência pelas pessoas ligadas a religiões de matrizes africanas. É uma prática importante a de limpar o espaço e afugentar, sobretudo, os espíritos e mortos, os eguns dos ambientes domésticos. Então quando você muda para uma casa nova, você chama alguém para fazer um sacudimento e tirar  esses espíritos ruins que tendem a permanecer entre os vivos, trazendo infortunas.

Ao fazer esses rituais, eu me perguntava quais eram essas energias de mortos que eu precisava retirar dessas casas. A meu ver, essa morte que ronda os dois lugares foi causada pela própria história da colonização que tem consequências muito atuais tanto no Brasil quanto na África. Eu queria sacudir essa história, exorcizar esse fantasma do colonizador. O resultado dessas ações, registrado em vídeo, será o que eu apresentarei na Bienal.

Ayrson Heráclito, série ‘Sacudimentos’. Performance ‘O Sacudimento da Maison des Esclaves’ (2015).

Quais são as suas expectativas quanto à Bienal? Seu trabalho dialoga com outras obras que estarão na mostra?

Primeiro eu fiquei bastante feliz. Não é todo dia que um artista afro-brasileiro e, sobretudo, nordestino participa de uma mostra como a Bienal de Veneza. Minha obra estará ao lado das de outros artistas que têm práticas parecidas com a minha. É o que a curadora está chamando de pavilhão dos mágicos e dos xamãs, são artistas que trabalham com o ativismo. Porque isso que eu faço, pra mim, é política, uma política de outra perspectiva, um ativismo muito mais místico. Eu acredito na energia dos rituais, do poder de transformação que eles têm no mundo.

Num momento de tantos embates culturais e com a eleição do Trump, qual a importância de uma mostra cujo tema é a convivência?

O tema da Bienal chama atenção para esse momento de crise que estamos vivendo, o mundo todo está passando por profundas transformações. Eu não tenho conhecimento total do projeto, mas a curadora sempre falou que é uma bienal positiva. Porque não adianta apenas criticar sem apontar possibilidades de superação. O pavilhão onde estará a minha obra também é uma resposta à cultura hegemônica europeia, mostrando a complexidade do mundo. Não existe apenas a Europa. E cada região tem formas distintas de trabalhar com os problemas.

Qual a relação do sagrado com o seu trabalho? Como arte e religião se unem na sua produção?

O limite entre a arte e a religião na minha obra é bastante tênue. Eu sou praticante do candomblé há mais de 27 anos. E esse caminho religioso foi paralelo à minha trajetória artística. Eu me considero uma espécie de tradutor desse universo do sagrado. Tradutor no sentido de alguém que aproxima as pessoas de um outro universo, tornando aquilo público para os não iniciados. Eu venho me inspirando muito em artistas que têm essa relação com o sagrado, como, por exemplo, o Mestre Didi aqui na Bahia, que é um artista e sacerdote religioso.

Você costuma falar que a arte pode curar as feridas históricas. Poderia falar um pouco sobre isso?

A história sempre foi muito presente nas minhas pesquisas artísticas, principalmente o processo da escravidão. Eu me tornei uma espécie de artista exorcista. Minha função é sacudir a história, exorcizar os fantasmas. Não tenho uma concepção linear do tempo, então eu realmente acredito que essas energias que estão no passado contaminam a sociedade e atravessam o tempo, entrando na tessitura social. Porém, os escravos também nos deixaram a cura, a solução que está nos rituais religiosos, o poder das folhas, a comunicação com os elementos da natureza. A partir de todo esse conhecimento, eu tento ajudar as pessoas, dar um apoio, fazer uma limpeza e organização energética. Todos os meus trabalhos têm isso, um enfrentamento com a dor do escravismo, a dor colonial. E ao mesmo tempo uma superação dessa dor por meio de algum tipo de performance, ritual, vivência.

No Brasil, nós ainda falamos pouco da história da escravidão?

Com certeza. Caso o Brasil encarasse de fato essa questão, todos entenderiam muito bem o que é uma reparação por meio de políticas afirmativas de cotas. Até hoje, uma boa parte da sociedade brasileira acredita que todos têm o mesmo nível de acesso às coisas. O Brasil ainda vive dominado pelo mito da democracia racial, a ideia de que não existe um jogo duro da desigualdade e um genocídio das juventudes negras pelos policiais. Não podemos nos esquecer dessa ferida da escravidão, mantendo ela aberta para que ela não volte. O Brasil precisa conviver com o seu holocausto, estudá-lo para que a gente não repita as coisas terríveis que aconteceram. Principalmente a juventude precisa aprender quanto foi perverso e o quão violenta é a nossa história.

Os materiais são muito importantes em sua obra. Elementos como carne, açúcar, sêmen e principalmente o dendê aparecem bastante nos seus trabalhos. Por quê?

Fiz essa opção por esses materiais orgânicos porque eles são bastante utilizados dentro dessa filosofia religiosa que é o candomblé. O açúcar foi a matéria que empreguei para falar da crise do antigo sistema colonial português, momento-chave da nossa história. A carne de charque é o ingrediente primordial que é servido para Ogum, um orixá da guerra. Mas também é um alimento resistente, assim como a carne do corpo de nossos escravos que foram marcados a ferro. Já o dendê, eu relaciono à fertilidade, o esperma que gera novos corpos. Esses três materiais orgânicos são essenciais nessa minha gramática artística.

Falando na carne como material, você poderia comentar a sua performance Transmutação da Carne, que hoje é uma das mais conhecidas.

Transmutação da Carne foi um trabalho que surgiu em 2000. A obra foi inspirada em um documento que descreve as torturas que um senhor de engenho submetia seus escravos. Ler esse documento me chocou muito. A partir daí eu concebi o trabalho no qual os performers vestiam a carne de charque e sofriam algumas das torturas descritas no documento. Uma delas era o processo de marcação do corpo a ferro. Esse trabalho se tornou bastante popular porque, em 2015, Marina Abramovic pediu que eu o reapresentasse em sua exposição Terra Comunal, no Sesc Pompeia. A performance fala da carne de charque como uma metáfora desse corpo escravo que sofreu muitas violências, mas resistiu.

E como foi a convivência com a Marina Abramovic?

Foi incrível. Olha que eu já tenho bastante experiência com os rituais do candomblé. Mas fazer o workshop dela foi importantíssimo pra mim. Ficamos uma semana quase sem comer, sem falar, sem ler ou usar celular. Sempre envoltos num espaço da natureza e fazendo exercícios de longa duração. E eu realmente consegui entrar nesses outros níveis que nunca havia acessado, principalmente na esfera religiosa. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Ela realmente influenciou o meu método como performer.

Dentre tantas obras, com quais você mais se identifica?

Essa obra que eu vou apresentar na Bienal, “Os Sacudimentos”, é uma das mais importantes da minha vida. Não sei se no futuro vou conseguir fazer outra tão relevante. Foi um trabalho muito difícil, não só por uma questão de logística, de conseguir autorização dos espaços para fazer essas limpezas, mas também no nível espiritual, de enfrentar esses eguns. Existem outros trabalhos também muito importantes como a performance Bori, na qual eu dou comida sagrada para as cabeças de pessoas. Mas a obra Os Sacudimentos é muito importante porque ela reúne essas duas margens atlânticas, que é algo essencial pra mim.

Você está produzindo algum trabalho agora?

Muitos, graças a Deus. Mas há um em especial que se chama História do Futuro. É uma série de filmes e fotografias sobre as minhas experiências na África. O nome do trabalho é uma referência a um texto do Padre Antônio Viera, de quem eu me aproprio para pensar na relação da África com o futuro.  É uma série que pretendo mostrar logo.

 

*Mariana Tessitore é jornalista e historiadora, trabalha no IMS

Legalização do aborto, uma exigência da mulher latino-americana

Manifestação de mulheres pela legalização do aborto no Rio de Janeiro, em 2016.
Manifestação de mulheres pela legalização do aborto no Rio de Janeiro, em 2016. FOTOS: Fotos Públicas

Nesta semana se vota no Senado argentino a legalização do aborto. Já foi aprovado pela Câmara de Deputados e após uma mobilização organizada e democrática mais de 1 milhão de mulheres, a conquista deste direito está sendo discutido amplamente em todos os países de América Latina. 

Leia no jornal argentino pagina12.com.ar entrevista com a deputada Monica Macha

https://www.pagina12.com.ar/123240-estado-de-alerta

Leia a seguir matéria publicada pelo páginab.com.br em 2017

Mulheres entram e saem do Hospital Pérola Byington, na região central da cidade de São Paulo, com um segredo que provavelmente guardarão para sempre. Chegam sozinhas, com medo e vergonha. A maioria foi vítima de violência sexual e está ali para fazer um aborto. “Se contam para alguém, é para uma amiga. Falar para a família é mais complicado”, diz Daniela Pedroso, chefe do atendimento psicológico do Serviço de Aborto Legal da instituição.

No Brasil, a interrupção da gestação é permitida apenas nos casos em que é decorrente de estupro e se há risco de morte para a mãe. Esse direito existe desde 1940. No entanto, a primeira norma técnica do Ministério da Saúde para regulamentar e implantar devidamente o procedimento na rede pública foi redigida 59 anos depois, em 1999. Já o direito de abortar fetos anencefálicos foi reconhecido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal.

O Pérola Byington é um centro de referência em saúde da mulher e na realização desses procedimentos. “Chegamos a fazer um terço de todos os abortos registrados por ano no País”, diz o médico Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal.

Em 2016, cerca de 320 mulheres foram submetidas pela equipe do médico ao aborto legal, número que é quase o dobro das intervenções feitas no ano anterior. “Se você reunir todos os outros serviços no estado de São Paulo em um ano, eles chegarão a uma fração do que é feito no Pérola. Essa concentração é terrível”, diz Drezett.

A realidade é que ainda são poucos os serviços que praticam o aborto legal e o atendimento integral previsto nesses casos. É o que evidenciam os dados obtidos pela pesquisa Serviços de Aborto Legal no Brasil – um Estudo Nacional, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, professora de Bioética da Universidade de Brasília e pesquisadora do Anis – Instituto de Bioética. Diniz foi uma das principais articuladoras da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que admitiu o aborto em casos de anencefalia em 2012.

A pesquisa mostrou que, entre 2013 e 2015, um total de 5.075 mulheres foram à rede pública em várias partes do País para realizar o procedimento, mas apenas 2.442 tiveram êxito. O estudo não investigou o que aconteceu às mulheres que não conseguiram abortar, mas não é errado imaginar que boa parte foi parar em clínicas clandestinas.

O estudo avaliou 68 centros de referência cadastrados no Ministério da Saúde, dos quais apenas 37 estavam, de fato, realizando o aborto. Em sete estados, não havia serviço disponível e 70% dos atendimentos foram realizados na região Sudeste. Essa ideia é reforçada pelo volume de pacientes de fora de São Paulo atendidas no “Pérola”. Em 2016, elas representaram metade do movimento do serviço. “Cerca de 18% foram encaminhadas por serviços públicos do estado que, publicamente, se dizem aptos a realizar o aborto legal, mas não o fazem”, aponta o obstetra Drezett.

Sobram dificuldades para complicar a vida da mulher que precisa se submeter ao aborto legal. Uma delas é a negativa de alguns médicos em realizar o procedimento. Eles estão amparados pelo código de ética médica e por uma norma técnica que permite rejeitar a tarefa por “objeção de consciência”. A mesma norma, porém, determina aos serviços públicos credenciados que garantam o atendimento em tempo hábil por outro profissional da instituição ou de outro serviço. E mais: a objeção de consciência não é reconhecida na falta de outro médico para atender a mulher, se houver risco de morte ou a omissão do atendimento puder causar danos.

O pedido de documentos que não são mais exigidos legalmente nos casos de violência sexual é outra barreira. Muita gente não sabe, mas não é obrigatório apresentar Boletim de Ocorrência e nem um laudo do Instituto Médico Legal. Apesar disso, 14% dos serviços em atividade ainda pedem tais comprovações, como mostrou o estudo conduzido por Diniz.

Mesmo amparada pela lei, a mulher que chega aos serviços de aborto legal ainda pode ser maltratada. Lamentavelmente, é comum no País encontrar médicos e funcionários dos serviços de saúde capazes de inocular suspeitas sobre a história da violência relatada. Levantamento de 2012 feito com ginecologistas e obstetras brasileiros mostrou que 43% dos médicos declararam objeção de consciência quando não tinham certeza se a mulher estava contando a verdade sobre o estupro.

“A ambiguidade que o aborto legal provoca por ser exceção à regra da criminalização gera essas distorções. Em vez de ouvir, acolher e cuidar da mulher em sofrimento, os profissionais assumem postura policial, promovendo a intromissão de um requisito investigativo no que deveria ser apenas cuidado em saúde”, afirma Diniz.

A resistência dos médicos é mais intensa em relação ao aborto por violência sexual do que à interrupção de uma gestação de risco. “Os profissionais sabem que até 35% de toda mortalidade materna está relacionada a complicações de saúde que se acentuam na gravidez”, diz o médico. A oferta de assistência integral às vítimas da violência sexual é outro desafio.

Mesmo entre os serviços cadastrados pelo Ministério da Saúde, são raros os que prestam atendimento como manda o figurino, conforme aponta Thomaz Gollop, coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto (GEA) e professor livre-docente de Genética Médica pela Universidade de São Paulo.

A integralidade de que fala Gollop engloba o acolhimento, o suporte psicológico, a coleta de material para extração de DNA e possível identificação do agressor, a anticoncepção de emergência, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e, quando indicada, a interrupção da gravidez. “Dos mais de cinco mil municípios do País, apenas 1% teria esse atendimento, ainda que incompleto”, diz Gollop.

O especialista atribui essa escassez a fatores como as pressões políticas de prefeitos, das câmaras de vereadores e de variados cultos religiosos. Some-se a isso a cumplicidade do estado. “Os serviços de saúde têm ignorado essa responsabilidade sem que sejam incomodados pelas autoridades”, aponta o obstetra Drezett.

O “esquecimento” do tema é extensivo às faculdades de medicina, especialmente àquelas ligadas a universidades regidas por religiões. “Como muitos temas ligados aos direitos sexuais e reprodutivos, a questão do aborto deixa de ser discutida e permanece um tabu para a maioria das escolas médicas e médicos em geral”, diz Gollop. “Não faz parte do currículo das faculdades, dos congressos e simpósios da área. E quando incluídos na programação, isso se dá no último dia do evento, quando há mínima audiência.”

Ao chegar nos hospitais com complicações pós-aborto, frequentemente as mulheres são alvo de desconfiança. Muitas postergam ao máximo a ida ao hospital em razão das denúncias feitas à polícia por médicos, funcionários ou agentes dos serviços de saúde. Na visão do juiz e professor José Henrique Torres, professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), quem está cometendo um crime são os acusadores.

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Pelo código de ética médica, a relação de confidencialidade entre médico e paciente não pode ser desrespeitada. “A polícia deveria desconsiderar essas denúncias porque são uma prova ilícita, praticada de forma criminosa. O Ministério Público, em vez de instaurar inquérito para apurar a conduta da mulher, deveria fazê-lo por violação de sigilo profissional e crime de quem fez a denúncia.”

Para Torres, há incompatibilidade entre a legislação brasileira, o sistema internacional de direitos humanos e a assistência e saúde da mulher: “A criminalização em si acarreta mortes de mulheres, sequelas terríveis e tem um custo social muito grande. Não consegue proteger o feto, a vida. Ao contrário, traz prejuízos para a saúde e vida das mulheres”.

Por isso, a questão precisa ser enfrentada de outras formas que não a drástica, severa e repressiva penalização das mulheres. O especialista argumenta que a criminalização contraria diversos princípios constitucionais. “Quando uma sociedade tem um problema a ser enfrentado, deve lançar mão de providências legislativas e políticas públicas antes de criminalizar, o que deveria ser a última alternativa a ser posta em prática pelo estado”, explica.

A proibição do aborto contrariaria ainda o princípio da idoneidade, uma vez que não reduz o índice de procedimentos realizados. “As pesquisas apontam que as mulheres não deixam de fazer o procedimento porque é criminalizado”, diz Torres. O princípio da racionalidade também sai ferido. No caso do aborto, a criminalização empurra as mulheres para o atendimento clandestino, matando-as e deixando sequelas. “O estado não pode causar problemas maiores ainda”, afirma o juiz. A cada ano, no Brasil, são feitos de 700 mil a um milhão de abortos, segundo Torres.

“É uma ilegalidade consentida. Se temos um milhão de abortos praticados, deveríamos ter um milhão de mulheres processadas. Isso não acontece porque a ideia é manter a criminalização como uma ameaça constante contra as mulheres, com o objetivo de controlar o corpo e a sexualidade femininos”, analisa o juiz.

Um caminho a seguir, segundo o especialista, seria a linha adotada em uma decisão do STF, que afirmou, recentemente, não haver crime de aborto até o terceiro mês de gestação. Ainda que diga respeito a um caso específico, é considerada um avanço na descriminalização do ato e pode influenciar magistrados de outras instâncias. Outros países já consentiram o aborto no início da gravidez, como Portugal, Itália, França e Espanha.

“O Brasil possui regras muito restritivas sobre aborto, inspiradas na legislação italiana fascista de Mussolini”, diz Gollop. Além disso, tentativas de retrocesso emergem volta e meia, como a proposta do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB), que queria obrigar as mulheres a ir à delegacia de polícia antes de ter atendimento. “A intenção de Cunha não era punir o agressor, mas ver se a mulher não estava mentindo”, pontua Drezett.

Na opinião da antropóloga Débora Diniz, estamos aquém do que poderíamos. “Mas, por iniciativa das mulheres, o tema tem se mantido em pauta e deve amadurecer”, diz a especialista. Que seja rápido. O aborto clandestino é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Estima-se que tire a vida de 300 brasileiras a cada ano.

Modelo a ser copiado

Daniela Pedroso, chefe de psicologia do Serviço de Aborto Legal do Pérola Byington, ao lado do doutor Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal.
Daniela Pedroso, chefe de psicologia do Serviço de Aborto Legal do Pérola Byington, ao lado do doutor Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. FOTO: Luiza Sigulem

Daniela Pedroso, chefe de psicologia do Serviço de Aborto Legal do Pérola Byington, ao lado do doutor Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. Foto: Luiza Sigulem[/caption]

No Hospital Pérola Byington, o atendimento a quem procura o aborto legal começa com uma conversa para ouvir a história de cada mulher e avaliar se ela está em situação de risco, se precisa de abrigo e assistência social. Depois, é feita uma avaliação emocional, psicológica e das condições de saúde.

A maioria é encaminhada pela polícia, pelo Instituto Médico Legal ou outros serviços de saúde. “Mas estamos vendo um aumento da busca espontânea por atendimento”, diz o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que chefia o Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. Isso seria resultado da divulgação dos serviços pela Internet e funciona como um indicativo de que as mulheres estão menos dependentes de intermediários para encontrar os locais de atendimento.

Feitos os exames, a mulher assinará cinco documentos. Neles, se responsabiliza pelo que é declarado para fazer o aborto legal, autoriza o procedimento e se diz ciente das alternativas. A equipe médica aprova ou não o pedido e, por fim, faz uma avaliação técnica do tempo de gravidez para checar se é compatível com o tempo passado do estupro.

Entre 25% e 30% das mulheres não conseguem aprovação para fazer o aborto legal. O principal motivo é o tempo de gestação superior ao limite técnico para interrompê-la – até a 20ª semana ou até a 22ª se o feto pesar menos de meio quilo. O segundo impedimento mais frequente é a gravidez não ser decorrente de violência sexual.

“Muitas vezes, a mulher foi estuprada e está grávida, mas não do estuprador”, diz Drezett. Depois do procedimento, a psicóloga Daniela Pedroso, que há 20 anos dá suporte às mulheres que vão ao hospital, diz que prevalece um sentimento de alívio.

“Elas sentem que poderão retomar a vida, o trabalho, os estudos – voltar a ser quem eram antes de engravidar.” Segundo a psicóloga, aproximadamente 25% das mulheres pensaram em suicídio. “O trauma é maior em relação ao estupro e à falta de opção para fazer o aborto do que pelo procedimento em si”, diz a especialista.

Pela complexidade da situação, o “Pérola” oferece acompanhamento psicoterapêutico por seis meses a um ano. Metade das mulheres aceita frequentar as sessões.

Registros de um país em conflito

Residência afetada por bombardeio. Vila Mariana, São Paulo, 1924. Foto: Coleção Mons. Jamil Nassif Abib

A mostra que esteve no IMS até julho de 2018,  Conflitos: Fotografia e Violência Política no Brasil 1889-1964,  é uma aula de fotografia, política e História. Negando de forma peremptória a tese oficialista de que o Brasil é uma nação pacífica, a exposição reúne um amplo conjunto de imagens captadas entre dois momentos-chave: a proclamação da República, em 1889, e o Golpe Militar de 1964. A ideia de “mãe gentil” propalada pelo hino nacional e pelos livros escolares se desfaz rapidamente diante da sucessão de registros de conflitos, guerras civis, revoltas, insurreições e muita repressão liderada por um Estado violento nesse intervalo de 75 anos.

Como sintetiza a cientista política Angela Alonso, em um dos textos introdutórios do alentado catálogo da exposição, “os confrontos armados envolvendo governo e Exército bordam nossa história com alta frequência e virulência”. Alguns dos conflitos representados são extremamente conhecidos, como a Guerra de Canudos, a Revolução de 1930 e o suicídio de Getúlio Vargas. Outros passam batido nos livros escolares, como a Revolução de 1924, por exemplo. O mesmo ocorre com as imagens selecionadas. De autorias diversas (assinadas por mestres como Marc Ferrez ou por fotógrafos cuja identidade se perdeu no tempo), essas imagens podem ser lidas de diferentes e enriquecedoras formas.

Em conjunto, elas falam sobre a brutalidade de um país marcado pela violência, no qual “um povo que se insubordina e uma elite que não se civiliza” têm sua relação mediada sempre pelo conflito. Traçam também um interessante painel sobre a diversidade e evolução da imagem fotográfica no país, desde as técnicas mais antigas, em prática no século XIX, até a utilização massiva das imagens pela imprensa, passando por momentos distintos como o uso recorrente do cartão postal e as primeiras experiências com a fotografia em movimento (precursoras do cinema). Em todos os casos, com maior ou menor intensidade, fica evidente o uso político da imagem como arma de convencimento e testemunho. Como lembra Heloisa Espada, curadora da exposição e autora do catálogo juntamente com Angela Alonso, “toda imagem realizada num conflito é interessada”.

Em muitos casos, o que essas imagens registram não é a ação propriamente dita. Temos diante dos olhos o palco dos conflitos, seus atores e as marcas de destruição depois que a violência ocorreu, que sempre coloca de um lado o poder constituído e de outro os derrotados. Da primeira imagem, que registra um grupo que posa antes da degola de um inimigo na Revolução Federalista de 1894, ao registro final, que recorda a brutal repressão e tortura à qual foi submetida o líder comunista Gregório Bezerra em 1964, surge um número amplíssimo de questões, muitas delas tratadas detalhadamente por um diversidade de ensaios reunidos no livro/catálogo.

Do ponto de vista do registro da imagem, é possível notar como a melhoria dos recursos técnicos permite uma captura mais “realista” da cena. A pose dá lugar a uma imagem capturada no calor da hora, como os registros feitos por Evandro Teixeira nas primeiras horas do golpe militar (1964). Isso não se traduz necessariamente em uma maior dramaticidade. Difícil superar o caráter trágico de imagens como as que mostram o corpo do inimigo aniquilado, numa clara estratégia de reafirmação do poder. Vale citar, por exemplo, os registros das cabeças decapitadas de Lampião e outros cangaceiros (foto anônima, 1938) ou do corpo morto e exumado de Antônio Conselheiro (Flávio de Barros, 1897). Nem tampouco que a velocidade do fotojornalismo tenha substituído integralmente o controle da pose e da composição por parte dos fotógrafos, estratégias de organização interna da imagem que se repetem ao longo das décadas.

Outro aspecto que se destaca nessa trajetória, ao mesmo tempo histórica e técnica, é como evoluem de forma quase paralela a maneira de registrar os conflitos e a forma como eles são realizados. Em outras palavras, o avanço tecnológico não tem impacto apenas sobre as formas de registrar e distribuir as imagens, mas também tem seus efeitos sobre as formas de combate. Conflito a conflito, a mostra nos revela como pouco a pouco a faca vai dando lugar ao poder cada vez mais destrutivo de canhões e bombas lançadas dos ares.

Agenda: destaques da semana 23 a 29 de junho

Rogério Reis, série Na Lona, Rio de Janeiro (1987-2002) Campo Grande, 1997, Rio de Janeiro, 1987-2002, Hasselblad com filme Tri-X, 120 mm (sais de prata), Impressão em pigmento mineral sobre papel algodão, 50 x 60 cm

 

Programe-se


Nelson Leirner, ‘Futebol’, 2001

O tridimensional na coleção Marcos Amaro: frente, fundo, em cima, embaixo, lados. Volume, forma e cor, coletiva na Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu, abertura em 23/6.

Exposição inaugural da Fábrica de Arte Marcos Amaro, em Itu. Com curadoria de Ricardo Resende, a mostra traz um recorte do acervo do colecionador, artista e empresário Marcos Amaro. A exposição reúne cerca de 50 trabalhos entre pinturas, esculturas, relevos e instalações. São criações de artistas de gerações e influências distintas, do Barroco à contemporaneidade, passando ainda pelos modernistas.


Rogério Reis, série Na Lona, Rio de Janeiro (1987-2002) Campo Grande, 1997, Rio de Janeiro, 1987-2002, Hasselblad com filme Tri-X, 120 mm (sais de prata), Impressão em pigmento mineral sobre papel algodão, 50 x 60 cm

Histórias Afro-atlânticas, coletiva no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, a partir de 28/6.

Cotada como a grande exposição do ano, apresenta cerca de 400 obras de mais de 200 artistas, tanto do acervo do MASP, quanto de coleções brasileiras e internacionais, incluindo desenhos, pinturas, esculturas, filmes, vídeos, instalações e fotografias, além de documentos e publicações, de arte africana, europeia, latino e norte-americana, caribenha, entre outras. No sábado, 30, parte da mostra também é inaugurada no Instituto Tomie Ohtake.


Héctor Ragni, “Número Uno”, 1936

Construções Sensíveis: a experiência geométrica latino-americana na coleção Ella Fontanals-Cisneros, coletiva no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, abertura em 27/6

A exposição traz ao Brasil um recorte da abstração em nosso continente. Junto ao importante legado do concretismo e neoconcretismo brasileiros, são apresentadas as poéticas abstratas que prosperaram em outros países a partir dos anos 1930. Pensada especialmente para o Brasil, presta uma sutil homenagem à mostra “Arte Agora III, América Latina: Geometria sensível”, destruída num trágico incêndio em 1978, quando ocupava o MAM Rio de Janeiro. Diversos artistas apresentados naquela histórica ocasião estão presentes, junto a artistas contemporâneos que apontam para os rumos da abstração atual.


Bruno Dunley, “No meio”, 2016

Bruno Dunley: No meio e Fabio Miguez: Fragmentos do Real (Atalhos), individuais na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, aberturas em 23/6
Ambos os artistas pertencem a gerações marcadas pela retomada da pintura, 2000 e 80 respectivamente, e compartilham referências históricas do universo pictórico. Todos estes aspectos serão abordados em uma conversa aberta ao público entre os artistas e os críticos Rodrigo Moura e Tadeu Chiarelli, no dia 04 de agosto.


José Alberto Nemer, ‘Sem título’

José Alberto Nemer: Aquarelas recentes – Geometria Residual, individual na Galeria de Arte do Centro Cultural Minas Tênis Clube, abertura em 24/6.

As aquarelas surgiram de forma diferente na vida do artista. “Foi por meio de um processo psicanalítico. Perguntei para a analista se podia fazer um relatório usando aquarelas”, conta Nemer. A partir daí veio a primeira série, intitulada “Ilusões Cotidianas”, exposta, nos anos 1980, em São Paulo e na Bienal de Cuba. O artista se afeiçoou à técnica e não parou mais. Segundo Nemer, a forma da aquarela mostra sua personalidade. “A técnica se adequou à minha introspecção e silêncio. A minha linguagem passou a ser 100% a aquarela”, afirma.

 



 

Leda Catunda “O Nove e o Novilho ll”, 2013,

Transformers: Catunda, Chaves, França, Rauschenberg, coletiva na AURORAS, abertura em 23/6.

A apropriação de imagens é uma prática que se intensificou drasticamente nas ultimas décadas. Desde então, incorporar imagens das mais diversas origens é uma das características da produção contemporânea, frequentemente misturando diferentes materiais e técnicas. A exposição Transformers, no auroras, destaca o uso diverso da imagem que é articulada por Leda Catunda, Arthur Chaves, Pedro França e Robert Rauschenberg.


Manuella Karmann, “Mata”, 2017

Campos Gerais, coletiva na Adelina Galeria, até 24/8.

Josué Mattos, o curador da exposição, reconhece a importância do encontro dos três artistas pelo fato de “residirem áreas em que os biomas sofrem grande degradação. Daniel Caballero e Miguel Penha preservam interesses pela paisagem do cerrado, colocando o assunto em voga em suas investigações. Manuella Karmann, por sua vez, atua diretamente na Serra da Mantiqueira, em área de reflorestamento, resistindo à frenética transformação do bioma em pastagem.”


Yoko Nishio, “Bemtevi”

Luzes indiscretas entre colinas cônicas, coletiva de abertura da Galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, até 8/8.

A proposta de Marcelo Campos com esta exposição é unir trabalhos que tratem de ideias relacionadas à luz, ao corpo e a paisagem. Ele se baseou no relato de viajantes que se deparavam com as cidades brasileiras e em três conceitos que se tornaram evidentes: a luz, a transbordante paisagem e o gentio. A mostra traz Anna Kahn, Brígida Baltar, Claudio Tobinaga, Hugo Houayek, Jimson Vilela, Leo Ayres, Lívia Flores, Osvaldo Gaia, Roberta Carvalho, Robnei Bonifácio, Thiago Ortiz, Tiago Sant’Ana e Yoko Nishio.


 

 

Por um grito de resistência

EM TEMPOS NOS QUAIS A ARTE tem sofrido com reações caluniosas ao se mostrar política, algumas instituições optaram por isentar suas mostras de qualquer tipo de militância. Outras, corajosas, dão aos curadores e artistas a voz necessária para propagar a mensagem desejada. É o caso da curadora Júlia Rebouças, que buscou obras de arte que se encaixassem no que ela define como “estratégia de hackeamento para pensar o nosso momento político”.   

Convidada para fazer a curadoria, Júlia teve pouco tempo para preparar a mostra MitoMotim, que fica em cartaz no Galpão VB até 28 de julho. Essa limitação de prazo fez com que ela optasse por focar sua pesquisa no próprio Acervo Histórico da Associação Videobrasil, o qual já conhece há algum tempo, tendo trabalhado várias vezes com a instituição. “Eu disse ‘vamos fazer um motim com o que temos aqui’”, conta a curadora. A partir daí, todo o processo da exposição foi construído com os braços e os recursos do Videobrasil.

Escolheu um momento específico da história do País para articular sua ideia. Quis, então, olhar para o momento do processo de redemocratização do Brasil, passando pelas décadas de 80 e 90. Para ela, a construção desse período reflete na realidade atual. A insurgência de um grito de resistência diante do que ela considera “tempos difíceis” levou à palavra “motim”: “Motim é levante contra uma institucionalidade. É sempre um desejo de contestação”, declara.

Luiz Roque, Geometria Descritiva, 2012, videoinstalação

Já a palavra “mito” surgiu da contestação sobre os mitos criados no decorrer da história do País, como o do “homem cordial” e o das “harmonia entre três raças”. Desta forma, o palíndromo criado na união das duas palavras se referem, de acordo com ela, a um motim do mito: “É no sentido de pensar que é preciso desconstruir os clichês identitários”.

Utilizando muito da linguagem da televisão, meio muito mais utilizado pela massa na época que nos dias de hoje, buscou também discutir o papel do discurso televisivo nas questões políticas e sociais: “Também é uma discussão sobre comunicação e mídia. Vamos descobrindo quem está representado na mídia”, acrescenta.   

Além das obras do acervo, Júlia convidou outros artistas para participar da exposição, com instalações. “É um conjunto de artistas pelos quais me interesso e acompanho. Eles são os nossos aliados nesse contexto todo”, explica. Para ela, ao mesmo tempo que eles criam diálogos também criam contrastes, mas não se opõem, e considera: “São artistas importantes para o País e que têm uma arte disruptiva e contestadora”. O grupo de convidados é formado por Artur Barrio, Marilá Dardot, Randolpho Lamonier, Rivane Neuenschwander, Sara Ramo e Traplev.


MitoMotim
Até 28 de julho
Galpão VB

Av. Imperatriz Leopoldina, 1150 – Vila Leopoldina, São Paulo


O que nos une?

Capa edição 43 - Sem Título - Moisés Patrício
Obra Sem Título da série "Aceita?", de Moisés Patrício. A obra foi capa da nossa edição 43.

Quando o escritor, educador e presidente argentino Domingos Faustino Sarmiento escreveu, em 1845, Facundo: Civilización y Barbárie, tentou retratar a formação nacional argentina por meio das relações do homem do deserto, “do pampa”, versus o homem da cidade e a força que a colonização europeia teria tido nas cidades. A existência de dois países, um  civilizado – branco, ilustrado, integrado com a Europa – e um bárbaro – a Argentina do analfabetismo, dos mestiços, do isolamento, da violência: uma antítese que colocava em jogo a possibilidade de construir um corpo de nação. A obra é considerada fundadora da literatura argentina pelo pioneirismo na ruptura com os padrões do romanticismo europeu.

Em 1930, Sigmund Freud escreveu O Mal-estar na Cultura (na tradução brasileira editado também como O Mal-estar na Civilização). Nesse texto chave da sua obra, Freud (se concorde ou não) coloca por terra qualquer ilusão sobre a possibilidade dos homens virem a coexistir em paz. Ou qualquer teoria que, vinda de um conceito político, econômico ou sociológico, sugira que o homem consiga se relacionar num encontro cordial, solidário, onde supostamente teríamos acesso a um objetivo superior, deixando de nos comportar como animais.

Para ele, “o instinto agressivo não é uma consequência da propriedade, esta já regia quase sem restrições nas épocas primitivas, quando a propriedade ainda era pouca coisa, [a agressividade] já se manifesta na criança, apenas a propriedade perdeu sua forma anal; constitui o sedimento de todos os vínculos carinhosos e amorosos… Se se eliminasse todo direito pessoal a possuir bens materiais, ainda seriam substituídos pelos privilégios derivados das relações sexuais, que necessariamente devem se transformar em fonte da mais intensa inveja e da mais violenta hostilidade entre os seres humanos.”…”Evidentemente ao homem não lhe é fácil renunciar à satisfação das suas tendências agressivas; não fica nem um pouco confortável sem essa satisfação”.

“Por outra parte, um núcleo cultural mas restringido oferece a vantagem de permitir a satisfação deste instinto através da hostilidade frente a sujeitos que ficaram excluídos daquele [núcleo]. Sempre terá mais facilidade para se vincular mais amorosamente entre sí, com a condição de que sobrem outros em quem descarregar seus golpes” (pag. 3049, El Mal-estar en la cultura, Sigmund Freud, Obras Completas, Biblioteca Nueva Madrid, 1981).

Nossa pulsão pela vida e pela morte bate sempre, mais, no não igual.

Esta edição mostra, através de uma primorosa recapitulação de imagens, arquivos e obras apresentadas por artistas, fotógrafos e pensadores, como no passar do tempo não conseguimos sair do lugar: como os conflitos entre norte e sul, entre classes e poder geopolítico estão sempre a serviço de uma subjugação de uns pelos outros. O preto pelo branco, o colonizado pelo colonizador. E também como, exatamente por conta dessa dificuldade, a arte resulta num suporte permanente para trabalhar o desamparo.

PS: Boas notícias: duas Fundações Privadas, uma que faz 45 anos e outra que inaugura, expõem seus acervos ao público! Isso nos une.

PS2: Acompanhe no paginaB todas as materias da edição ao longo das próximas semanas

Arte feita por negros. Você aceita?

Moisés Patrício, ‘Sem Título’ da Série ‘Aceita?’, 2018

À PORTA DO PRÉDIO onde fica seu ateliê, Moisés Patrício, artista e educador, recebe convidados com um sorriso e um abraço. Todo de branco, o artista por trás da série fotográfica Aceita? e da série de performances Presença Negra, que reúne negros para visitas em grupo a aberturas de galerias de arte, explica que ocupa o local, emprestado por uma amiga, há dois anos.

Patrício é artista e é negro. Para ele, as duas coisas não precisam estar sempre acompanhadas, mas não devem ser esquecidas. “Por que toda vez que um artista que é negro faz uma exposição ou projeto as pessoas chamam de Arte Negra? De alguma forma, isso acaba reduzindo tudo a essa única questão. Ninguém diz arte branca quando o artista é branco”, questiona. Para ele, arte é arte, mas Patrício não foge à critica de seu próprio questionamento, pois muitas vezes artistas brancos, mais velhos e conservadores, manifestaram opiniões como se a arte no Brasil estivesse em momento decadente, em referência à arte afro-brasileira e à arte periférica. “Já ouvi, também, de artistas brancos que ‘a arte não tem cor e que, portanto, não há porque privilegiar alguns artistas porque são negros’”, reproduz. Para ele, isso acontece porque uma parcela da classe artística receia perder seus privilégios.

Em 2014, negros (pretos e pardos) já representavam a maior parte da população brasileira, com 54% das autodeclarações étnico-raciais, mas ainda assim sua presença nos espaços artísticos é baixa. Mesmo com a pouca representatividade na arte, afrodescendentes têm dificuldade em escapar dos estereótipos. Negros costumam ser associados artisticamente, na forma mais comum e cotidiana, a temas como a escravidão, ritos tribais de etnias africanas e às religiões afro-americanas.

Mas o cenário começa a mudar e museus brasileiros estão abrindo as portas para a arte contemporânea de origem afro. Em maio de 2018, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) inaugurou a maior exposição de artistas africanos em São Paulo. Foram 90 obras de artistas de oito países africanos e dois artistas afro-brasileiros. Agora Museu de Arte de São Paulo (Masp), considerado cartão postal da cidade, terá pela primeira vez todo o seu espaço dedicado à exposição Histórias Afro-atlânticas. E não acaba aí. O Instituto Tomie Ohtake, no bairro de Pinheiros, outra instituição bastante popular na capital paulista, firmou parceria para expor, junto ao Masp, cerca de 400 obras de mais de 200 artistas na Afro-atlânticas.

Moisés Patrício, ‘Sem Título’ da série ‘Aceita?’, 2017

Moisés está entre os 200 artistas da exposição. No Masp, são de autoria do artista. E o destaque é para sua série fotográfica Aceita?.

A mão preta que envelhece

Andar pela cidade de São Paulo é estar diante de finais e começos o tempo todo. Dos trabalhadores que dão vida à cidade logo nas primeiras horas da manhã, antes mesmo do sol nascer, aos resíduos do consumo dos produtos cotidianos da vida urbana. Embalagens plásticas, papeis, garrafas, roupas, móveis: é possível encontrar todo tipo de objeto nas esquinas da cidade. O lixo, para Patrício, diz muito. A série de fotos Aceita? expõe a inquietação do artista paulistano com a cidade, com tudo aquilo que, segundo ele, deixamos de ver quando descartamos os plásticos, as vidas e uma variedade de bens com ou sem valor.

Moisés explica que a série nasce do seu desespero em ser assimilado pela sociedade ao seu redor e das reflexões sobre a mão de obra do período escravocrata e, atualmente, servil. “A série nasce, também, da busca de olhar para a mão como obra artística. Ela nasce do meu desespero de ser assimilado pela sociedade. De um modo geral, na faculdade, tive muita dificuldade de encontrar minha poética, porque tudo estava ligado a um universo pelo qual sinto mais dor do que amor. Passei quatro anos estudando e me embranquecendo”, conta.  Para se reencontrar, o artista produziu uma serie de autorretratos de nu artístico e outra de fotografias de partes do seu corpo. Mas foi caminhando pela cidade que encontrou o tom. “Eu aprendo e apreendo de outra forma, minha aprendizagem esta muito ligada à dança, à comida, ao tempo das coisas, de fazer junto, olhando. Fui educado assim no terreiro [de Candomblé]. Então, lá, você canta e dança para ter acesso ao conhecimento”.

Filho de Exu no Candomblé, orixá ligado à comunicação, movimentos do corpo, ao caminhar, ao facilitar o trânsito de corpos e ideias, Moisés se deparou com a cidade e seu próprio corpo como obra. Fez uma, duas, três fotos e, então, nasceu a série Aceita?, que busca, entre tantas coisas, discutir o descarte provocado pelo consumo e se apropria desse desprezo como metáfora para o que chamou de “descarte do jovem negro no Brasil”. 

O artista nasceu na periferia. Aos nove anos teve contato com a arte pela primeira vez, ingressando nas aulas promovidas pelo artista argentino Juan José Balzi, que morreu em 2018, aos 89 anos. “Ele [Balzi] disponibilizava os materiais, levava tintas, papeis e jornais para nós. Ele tinha um enfoque político e fazia questão de levar os jornais da semana para compartilhar com a gente. Nos ensinava técnicas de desenho e de pintura, e nos ajudava a desenvolver leitura crítica. Balzi intercalava os encontros no bairro com idas aos museus da cidade, como Pinacoteca, por exemplo”. Hoje, com 33 anos, Moisés conta que conheceu a arte na sua forma mais libertadora, diferente dos formatos engessados que estudou na ECA-USP, Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

Durante os quatro anos em que estudou, Moisés viveu sua maior crise enquanto artista. Sendo um jovem negro, de periferia, a arte europeia, majoritariamente branca, não proporcionava identificação. “Existe uma prepotência, uma arrogância do ser professor de uma universidade pública para um aluno negro. Eles se deparam com uma deficiência, uma falha e aí a minha maior frustração era que essa insuficiência me impedia de desbravar junto [com os professores] esses temas. Eu os colocava na parede e dizia ‘olha, eu não tenho uma afinidade com o Expressionismo alemão. Onde estão as outras referências?’”. A resposta, segundo Patrício, era de que seu olhar estava condicionado. “Eles costumavam dizer ‘vem aqui, vou te ensinar’. Eu ficava naquele lugar de [ser] muito pequeno, sem crescimento”, critica.

Apesar disso, o cenário mudou, ainda que pouco, para melhor. De acordo com ele, nos últimos quatro anos surgiu um grupo de artistas e estudantes negros da instituição que, juntos, criaram o coletivo Opa Negra, que promove ações de empoderamento e valorização do saber negro. Depois de se reencontrar, ele voltou à ECA como palestrante e, a partir de junho, ocupará no Masp um espaço que já foi menos aberto ao não-branco.

Apesar de ter sido idealizada como uma série de 200 fotos, Aceita? evoluiu para algo mais. Hoje, Moisés planeja chegar às mil fotos e seguir contando. Ele explica que a série continua trazendo reflexões atuais e importantes à sua vida, e que, além disso, enquanto negro, criado na periferia, ele deseja ver sua mão envelhecer a cada novo clique.

Comodato com a B3 leva novidades ao acervo do MASP

Benedito Calixto, 'Porto de Santos', 1890. FOTO: Jorge Bastos

Uma ideia de muitos anos, segundo o assistente curatorial Guilherme Giufrida, acaba de ganhar forma e espaço no MASP. Um comodato, empréstimo por tempo determinado, com a B3, Bolsa de Valores de São Paulo (junção entre a BM&FBOVESPA e a Cetip) colocou no acervo do museu obras que estarão sob seus cuidados pelos próximos 30 anos. É o terceiro comodato acordado pela instituição desde que Heitor Martins assumiu sua presidência, em 2014.

Uma parte dessas obras podem ser vistas em exposição aberta no dia 14 de junho. Acervo em transformação: Comodato MASP B3 reúne 25 obras da seleção de 66 que foram selecionadas pelos curadores Adriano Pedrosa e Olivia Ardui. A curadora conta que a maioria delas vem dos escritórios da B3 em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Ao longo dos anos, todos os trabalhos foram catalogados, inclusive alguns foram expostos em áreas destinadas para exibição na Bolsa e foram cedidos para integrar exposições em instituições. Essa coleção já era sabida pela curadoria do MASP há alguns anos. “Acho que a B3 também estava nesse momento de transformação interna, com reforma do prédio. Então foi o contexto ideal para que eles também atentassem para a importância dessa coleção e de elas não serem apenas vistas pelos frequentadores do escritório da Bolsa”, conta Guilherme.

Além das obras de arte, o acervo da B3 conta com outros elementos como objetos de design e mobiliário, dentre outros. “Recebemos a lista do inventário da coleção e apontamos para algumas linhas que gostaríamos de ter”, explica Olívia. A partir daí, começaram a fazer visitas nos prédios da Bolsa com o departamento de restauro e de conservação. Algumas das obras estão, inclusive, sendo restauradas para serem exibidas posteriormente.

Para Guilherme, o comodato “preenche lacunas importantes de artistas que já existiam no museu e introduzem artistas que não estava contemplados no acervo”. A iniciativa trouxe novidades como Lygia Clark, Ione Saldanha e Abraham Palatnik. O comodato, como um todo, reúne nomes e obras expressivas da arte acadêmica, modernista e abstrata: além dos já citados, mais alguns deles são Edmund Pink, Benedito Calixto, Anita Malfatti e Emiliano Di Cavalcanti.

Neste ponto, como o próprio Guilherme pontua, o MASP tentou manter certo equilíbrio entre as escolas, com uma ênfase maior no modernismo, pois “é uma fase significativa da arte brasileira que tem algumas ausências no museu”, preenchidas com o comodato. Entretanto, o balanceamento permite que o público também veja expoentes da arte abstrata, “algo que não é tão comum nas exposições do museu, posto que os cavaletes têm um foco em arte figurativa ou com diálogo com a figuração”.

A exposição que comemora o comodato, em homenagem aos ex-conselheiros da BM&F e BOVESPA, fica em cartaz até 29 de julho. Apesar disso, já existe uma obra da coleção nos cavaletes. Em breve, outras também integrarão a exposição do 2º andar do Masp, fazendo parte da rotatividade do Acervo em Transformação.