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Está muito difícil fazer cultura no Brasil

Lenora de Barros, "Homenagem a George Segal", 1984/2006.

 

O que há além da arte nas imagens de Ana Maria Maiolino na série Poemação da década de 70, na obra “O que sobra”, onde ela corta sua língua, seu nariz? O que há além de uma imagem perturbadora, instigante? Na fala dela “são imagens, reflexos de emoções que se sustentam na resistência. Uso meu próprio corpo não como uma metáfora, mas como uma verdade, algo que pertence ao domínio do real, dado que, em um momento de repressão e tortura como o da ditadura, todos os corpos tornam-se um na dor”. [A pele de Anna: Anna Maria Maiolino. Ed.Cosac Naify, 2016]. Ou nas obras de inúmeras mulheres que se utilizaram da ironia só para denunciar o lugar de invisibilidade em que foram colocadas num mundo de homens.

O que há além da arte nas obras de artistas que construíram seu trabalho baseando-se nas pesquisas de documentos secretos. Colocando luz no não dito, no censurado, no apagado.

O que há além da arte no Século XXI, numa Bienal que se constrói em torno de um novo mapa global. E outra que decide ter maioria negra no seu grupo curatorial. E quando artistas de diversos lugares do mundo, usam das mesmas metáforas visuais, em diferentes suportes para denunciar a xenofobia de seus países para com imigrantes. Países esses, na sua maioria de colonizadores.

A transcendência, um dos arcabouços da arte, hoje está impregnada não só pela força da aura, ou pela poética de que nos encanta e sim, também, pela sua capacidade de trazer a tona silêncios e memórias, num tempo acelerado que não quer saber.

Esta edição que acompanha a realização do nosso V Seminário Internacional, coincide com a abertura de exposições onde a radicalidade aparece das mais variadas formas.

Ficou muito difícil fazer cultura no Brasil. Nossa cultura está sendo queimada, literalmente. Não se trata apenas de descaso, é desinvestimento planejado, é uma escolha e, afinal, uma escolha de pessoas ineptas de pessoas cujos interesses são somente individuais, e predadores. São pessoas capazes de cumprir com a missão da destruição.

Pensar em cultura é pensar no outro. É pensar em como criar pontes, como enxergar o outro e como ouvir, como fazer conhecer, como incluir.

Tudo isso, aqui, está desaparecendo.

Existem dois Brasis: um que quer cuidar da memória, aprender com os erros e crescer; o outro quer fazer de conta que o diferente não existe. Para que cuidar ou investir no trabalho de educadores, de pesquisadores? Para que cuidar das obras de artistas se elas não estão à venda? Se elas não estão à venda, elas não valem nada.

Que dizer da vida, então?

Esse Brasil regido pela ambição, o poder e o obscurantismo está nos matando. O incêndio do Museu Nacional, que acabou com obras milenares, nos pegou em cheio porque ele foi um sintoma. Um sintoma que alerta para o que está se deixando de fazer e, pior, para o que está sendo feito.

A arte é uma ferramenta, um grito que nos permite continuar e ir em frente.

Nesse sentido, talvez não exista nada… além da arte.

O vídeo que abre a exposição Mulheres Radicais, em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo, Me gritaron negra!, da artista e poeta afro-peruana, Victoria Eugenia Santa Cruz, é um tapa na cara.

Histórias Afro-atlânticas traz debate necessário de forma convencional

Titus Kaphar, Space to Forget (Espaço para Esquecer), 2014

Ao expor “a arte do mundo colonizado ou pós-colonial, mostrando a obra dos marginalizados ou das minorias, desenterrando ‘passados’ esquecidos ou abandonados – tais projetos curatoriais acabam apoiando a centralidade do museu ocidental”, afirma o indiano Homi Bhabha, em citação usada por Adriano Pedrosa no catálogo de Histórias Afro-Atlânticas, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake (Ito) e no Museu de Arte de São Paulo (Masp) até 21 de outubro.

A questão é essencial quando museus por todo mundo buscam ampliar seus públicos dialogando com comunidades até então distantes e sem presença no cotidiano dessas instituições. Contudo, como é possível se aproximar desses públicos usando uma linguagem museológica que pertence a uma tradição que lhes foi negligenciada e, por que não dizer, mesmo negada? É possível uma virada efetiva nas políticas de inclusão dos museus sem de fato rever suas próprias práticas?

Histórias Afro-Atlânticas, organizada por cinco curadores, é superlativa nos números – mais de 400 obras, oito módulos, ocupando quase por inteiro duas instituições – mas pouco arrojada quando se trata de pensar em como se tratar de um tema mais que necessário sem recorrer aos mesmos dispositivos expositivos convencionais de sempre.

O Masp de Adriano Pedrosa tem se caracterizado por render uma série de homenagens a Lina Bo Bardi (1914 – 1992), a figura mais inovadora quando se trata de repensar o museu, mas incapaz de propor novos modelos no século 21.

A necessidade e urgência do tema de Histórias Afro-Atlânticas é inegável, especialmente em um país com maioria negra, com essa população sub-representada em todos os níveis de poder, especialmente o das artes. Por isso, a famosa faixa Onde estão os negros?, do coletivo Frente 3 de Fevereiro, que na abertura da mostra foi exposta no Ito, e em julho, no Masp, se torna uma pergunta mais que eloquente.

Afinal, nos círculos de poder de ambas as instituições, onde estão os negros?. Entre os cinco curadores – Pedrosa, Ayrson Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo – eles são minoria, mas ao menos estão presentes. Contudo, no conselho, na direção do museu, na curadoria permanente, a questão se torna pertinente mas inconclusa.

Não há dúvida que a pesquisa é extensa e a mostra abarca uma compilação abrangente de obras, desde as imensas pinturas de Albert Eckout (1610 – 1665) retratando um casal de escravos, em 1641, uma das primeiras imagens produzidas na América, até trabalhos comissionados para a mostra. Contudo, o procedimento que vem sendo adotado nas exposições do Masp, em agrupar trabalhos por temáticas, em módulos como Ritos e Ritmos, onde há uma exaustão de pinturas retratando festas e cerimônias afro, simplifica por demais as obras, além de as transformarem em ilustrações de um conceito.

Dos oito módulos da exposição, o mais vibrante, tanto por seu conteúdo temático, como pela forma expositiva, é Resistências e Ativismos, com curadoria de Menezes e Schwarcz. Nele, a tônica está em representações que apontam para o empoderamento negro, tanto através das religiões afro, em imagens de Pierre Verger, quanto dos Panteras Negras, em foto atribuída a Blair Stapp. Entre os destaques ainda está a pintura “Mãe Preta ou A fúria de Iansã”, de Sidney Amaral, morto precocemente no ano passado. Não há aqui um agrupamento meramente formal, como ocorre nos módulos do Masp, mas uma reunião de intensos diálogos.

Histórias Afro-Atlânticas é uma espécie de continuação de Histórias Mestiças, realizada no próprio Ito, há quatro anos, organizado então por Pedrosa e Schwarcz, na época curadores
independentes. Agora, ambos participando de uma instituição do porte do Masp, era de se esperar que a mostra não ficasse apenas em uma revisão da história da arte, mas em novas atitudes dentro do museu. Essa questão não parece respondida com a mostra.

Isabelle Borges: Campos Sintéticos

The Plan, nr. 11, 2018

por Tereza de Arruda, de Berlim, setembro 2018

 

Aartista Isabelle Borges residente em Berlim há duas décadas apresenta sua mostra individual Campos Sintéticos idealizada para a Galeria Emmathomas sob curadoria de Ricardo Resende. Este é seu retorno a São Paulo após a mostra individual Seta do Tempo (Arrow of Time) realizada em janeiro de 2013 no MUBE – Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia, em São Paulo.

A artista mantém-se fiel à expansão da pintura por ela cultuada em intervenções espaciais, colagens e objetos oriundos de sua visão pluralizada. A pintura de Isabelle Borges exalta elementos subjetivos e orgânicos delimitados por formas, traços e contornos definidos criando uma dinâmica própria e diálogo entre obra e público através de seu caráter envolvente como em uma imagem tridimensional ou mesmo escultural.

Sua produção é norteada por tendências respaldadas na tradição artística brasileira e alemã como por exemplo o concretismo e seus infinitos desdobramentos conceituais e estéticos. O concretismo que surgiu na Europa e teve seu apogeu na década de 60 quando Max Bill lecionava na Escola de Design de Ulm atingiu o Brasil quase que   simultaneamente e foi propagado por artistas locais como Lygia Clark, Amilcar de Castro, Franz Weissmann e Lygia Pape.

The Plan, nr. 11, 2018. Acrílica sobre tela e instalação

O concretismo é repleto de raciocínio e ciência, características visíveis também nas pinturas elaboradas por Isabelle Borges que tem cálculos de matemática como alicerce de sua obra a exemplo de um origami. Esta técnica de dobradura inclusive deixou de ser propagada por artesões nos últimos anos a fim de atender a ciência, tecnologia e indústria a exemplo da cátedra criada no MIT, renomado Instituto de Tecnologia de Massachussets, o qual difundiu esta técnica através de um programa específico de computador  formalizando novo princípio de matemática criando ferramentas específicas para que o mundo possa se “desdobrar” de forma mais efetiva.

Circle, nr. 5, 2018

Em Campos Sintéticos o espectador é recepcionado por uma vasta intervenção espacial efêmera concebida para o espaço da galeria e ao mesmo tempo atuando como suporte das pinturas que a complementam. Aos poucos os elementos pictóricos criam autonomia e podem ser observados isoladamente. Neles traços, cores e formas se complementam e contrapõem expandindo sua área de atuação através de reflexos, sombras e planos inusitados como no conto o Jardim das Veredas de Jorge Luis Borges que a inspirou onde supostamente todos os caminhos interpretativos são provisórios e simultaneamente plurais.

 

 

Diferentes perspectivas globais de experimentação no V Seminário da ARTE!Brasileiros

 

Realizado na quinta-feira, dia 6 de setembro, no Auditório Ibirapuera, o V Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, intitulado “Arte Além da Arte”, contou com a participação de importantes artistas, curadores, diretores de museus e historiadores de arte de vários países. O evento começou pela manhã com a projeção do trabalho “Again”, do alemão Mario Pfeifer, e com o painel “Geopolítica e Arte” e seguiu à tarde com a mesa “A Arte Além da Arte”, com participação de Gabriel Péres-Barreiro, Nydia Gutierrez, Paulo Tavares e Anneliek Sijbrandij.

Gabriel Péres-Barreiro, curador da 33a Bienal de São Paulo

Primeiro a fazer sua apresentação, Péres-Barreiro, curador da 33a Bienal de São Paulo, falou sobre a proposta curatorial que resultou na mostra “Afinidades Afetivas”, em exposição até dezembro no Pavilhão do Parque Ibirapuera. Na verdade, mais do que explicar a linha curatorial, ele se propôs a falar um pouco sobre o processo de criação da mostra. “Todos vocês podem ir lá ver e formar suas próprias opiniões, ter suas próprias experiências, então não faz sentido eu explicar como é esta bienal.”

Perés-Barreiro se propôs, assim, a fazer uma breve reflexão sobre o estado atual da curadoria contemporânea. “Quando você é chamado para fazer uma bienal já surge toda uma especulação sobre qual vai ser a temática, quem serão os artistas e qual vai ser o conteúdo. Como se, a partir do convite, isso tudo já fosse uma certeza. Eu quis fazer um trabalho em que o processo em si fosse criativo e gerasse os conteúdos, algo que não se limitasse ao poder autoral do curador e dos circuitos e pessoas que esse curador conhecesse.”

Assim se deu a proposta de dividir a curadoria da mostra – algo que Barreiro já havia tentado em escalas menores – com outros artistas, como modo de fugir de modelos de bienais “que muitas vezes estão ficando repetitivas”, disse ele. “Essa figura do artista curador não é novidade, mas forma uma certa história paralela a essa coisa do curador profissional, de uma curadoria que se dá de cima para baixo.”

Daí surgiu o convite aos sete artistas que dividem com Barreiro a curadoria da 33a Bienal, numa tentativa de trabalho horizontal e que fugisse da exposição de “discurso único”. “Gostaria de pensar que hoje estejamos prontos para pensar uma mostra que tenha diversidade na sua própria estrutura”, disse Barreiro.

O curador ressaltou ainda características positivas que enxerga nas estruturas das duas principais Bienais que acontecem no Brasil, a de São Paulo e a do Mercosul, ou seja, “a estabilidade e as condições de trabalho oferecidas, tanto para curadores quanto para os artistas”. Barreiro afirmou que, em suas organizações e condutas, estes eventos estão muito mais consolidados do que muitos outros mundo afora. “O que a gente propõe é realizado exatamente como queremos, com todo o apoio.”

Barreiro destacou também a importância do programa educativo da Bienal de São Paulo, que faz com que a mostra tenha força durante todo o período em exibição e um número enorme de visitações. “Há bienais pelo mundo em que no começo estão todas as celebridade do universo da arte, todas as obras bem cuidadas, e depois elas ficam abandonadas e vazias. Isso não acontece aqui.”

Por fim, Barreiro falou sobre a estranheza de estar comemorando a abertura desta bienal produzida com toda a estrutura necessária e com bons recursos na mesma semana em que o Museu Nacional pegou fogo no Rio de Janeiro. “É muito triste, é muito difícil viver esse momento de celebração, em uma instituição que funciona, assistindo tamanha tragédia acontecendo em outra que ficou abandonada pelo Estado.”

A segunda fala do painel foi da venezuelana Nydia Gutierrez, diretora artística do Museu de Antioquia, em Medellín, na Colômbia, e diretora-artística do Encontro Internacional de Arte de Medellín (MDE15). Gutierrez iniciou sua apresentação falando sobre a localização do Museu de Antioquia em uma cidade que foi, nos anos 1980 e 1990, uma das mais violentas do mundo, dada a guerra de cartéis de drogas que tomou conta da Colômbia. Como consequência, no entanto, houve a partir dos anos 2000 uma enorme reação da sociedade e de prefeituras que ajudaram a revitalizar Medellín.

Sobre este período, Gutierrez falou também da importância de o museu ter recebido uma enorme coleção de obras de Fernando Botero, doada em 2000, não só pela qualidade artística do pintor e escultor, mas por esta coleção atrair um vasto público para as atividades da instituição desde então. Foi neste momento que Antioquia passou a ser o museu mais popular da cidade e pode se mudar para um grande edifício no centro da cidade.

Segundo a diretora, a instituição, com 137 anos de existência, quer definir-se hoje como um museu contemporâneo a partir do modo como trabalha e interage com seu entorno. “Mas entendemos a contemporaneidade a partir da instituição, não do objeto. Ou seja, não somos um museu de arte contemporânea, mas um museu contemporâneo, que abriga a coleção histórica mais importante da região”, afirmou. “Pois cuidar de uma coleção histórica implica um permanente reconhecimento do presente que atualize continuamente a visão do passado.”

Além desta premissa de “revisar criticamente os legados que nos foram deixados”, como explicou Gutierrez, há também o compromisso de se voltar para as populações mais oprimidas e vulneráveis e de dialogar com o entorno urbano. “O compromisso social é um dever para o museu.” Isso se dá, por exemplo, no trabalho em diálogo com as populações de Medellín e com o território onde o museu está localizado, no centro histórico. “Mas não devemos esquecer que somos uma instituição de arte, não uma ONG ou outro tipo de organização.”

A partir daí a diretora falou de uma série de projetos realizados pelo museu ao longo dos anos, como o Encontro Internacional de Arte de Medellín de 2015, intitulado “Histórias Locais/ Práticas Globais”. Para além das exposições no museu, outras mostras se espalharam por espaços independentes da cidade, na tentativa de dialogar com o maior número possível de pessoas, muitas vezes também em espaços públicos e abertos.

Após Péres-Barreiro e Gutierrez, foi a vez da holandesa Anneliek Sijbrandij falar sobre o projeto Verbier Art Summit, fundado por ela e realizado desde 2017 na cidade suíça de Verbier, nos Alpes, a 1500 metros de altitude. O evento, que reúne influentes artistas, pensadores, galeristas e colecionadores de vários cantos do mundo e que a cada edição se pauta em um grande tema, se propõe a ser um espaço multidisciplinar de discussão e inovação que, segundo Sijbrandij, “possa trazer de volta o valor cultural da arte”.

Para a diretora, a busca é por realizar conversas aprofundadas que possam ter influências reais no mundo da arte ao debater as complexidades do sistema vigente. Segundo Sijbrandij, a localização do evento em uma pequena cidade em meio às montanhas nevadas da Suíça possibilita que os participantes se distanciem de suas vidas cotidianas. “Isolados das distrações da vida urbana, as pessoas podem focar, trocar ideias, socializar e se conectar.”

Iniciativa independente realizada por uma organização não lucrativa, o Summit debateu, nas edições anteriores, o crescimento dos museus e a arte na era digital. O primeiro evento teve curadoria de Beatrix Ruf, do Stedelijk Museum Amsterdam, e o segundo de Daniel Birnbaum, do Moderna Museet Stockholm.

A próxima edição, de 2019, tem curadoria do alemão radicado no Brasil Jochen Volz, curador da 32a Bienal de São Paulo e atual diretor da Pinacoteca. Intitulado “We are many: art, the political and multiple truths”, o Summit debaterá as múltiplas narrativas artísticas e políticas em um mundo marcado pela incerteza. Participarão, entre outros, os artistas Tania Bruguera, Grada Kilomba, Ernesto Neto e Naine Terena, a curadora Gabi Ngcobo, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a diretora da Tate, Maria Balshaw, e o neurocientista Wolf Singer.

Para alcançar um público maior do que os participantes que conseguem se deslocar para Verbier, o Summit disponibiliza online todas as discussões e debates, em geral com live streaming, e organiza todo ano uma publicação impressa.

O último participante a falar no painel “Arte Além da Arte” foi Paulo Tavares, co-curador da próxima Bienal de Arquitetura de Chicago e professor da Universidade de Brasília. Tavares iniciou sua fala propondo uma pergunta: “Se a cidade e o território são direitos, pode ser a arquitetura concebida como uma forma de advocacia deste direito? E o que isso significa?”.

O arquiteto e curador apresentou o projeto Memória da Terra, relacionado ao processo de deslocamento forçado dos índios Xavante do Mato Grosso, no qual, justamente, a arquitetura – “o desenho, a modelagem, o mapeamento” – são utilizados como instrumento de advocacia de direitos.

“É preciso dizer que o processo de modernização do território brasileiro tem uma fundação intrinsicamente colonial”, disse ele. Tavares afirmou que o projeto de destruição ambiental vivido pelo Brasil no século 20, especialmente no período da ditadura militar, foi também um projeto arquitetônico de território. Ele discorreu sobre o que foi chamado de “processo de pacificação”, ou seja, a criação de postos indígenas que concentraram as populações ameríndias e, retirando-as de seus territórios originais, liberaram as terras para exploração.

Dada a dificuldade de mapear fisicamente o desaparecimento de populações indígenas, justamente pela falta de registros governamentais, o projeto Memória da Terra passou a investigar a remoção forçada dos povos Xavante de seus territórios a partir das imagens existentes. Com fotos feitas por jornalistas da época sobre a “conquista” das terras indígenas, Tavares e os outros integrantes do projeto passaram a fazer uma espécie de “arqueologia da imagem”, utilizando estratégias da arquitetura para reconstituir o mapa dessas aldeias desaparecidas.

Assim, relacionando o desenho das aldeias – sempre uma espécie de estrutura em arco – vistos nas fotos com imagens de satélites antigas recentemente tornadas públicas pelos EUA, os pesquisadores do projeto conseguiram mapear as aldeias. Também se utilizaram das marcas que se podem ver nos territórios, como assinaturas no chão, definidas pelo padrão botânico. “As árvores cresceram na mesma estrutura em arco em que eram desenhadas as aldeias. Assim, a história desse povo continua registrada na própria composição botânica da floresta.”

Esse desenho botânico, portanto, é fruto direto da arquitetura dessas aldeias, explicou Tavares. “São produtos das ruínas, mas são ruínas vivas. Podemos então entender árvores e plantas como monumentos históricos? Pode ser a floresta considerada um patrimônio urbano, arquitetônico? Pode ela ser vista como cultura, não natureza?”

Considerando a resposta positiva para estas questões, o projeto se desdobrou em um relatório que, junto com as outras provas colhidas pelo Ministério Público, servem como “material evidenciário” para uma petição que foi feita ao Iphan e a Unesco para que este solo seja considerado um patrimônio arquitetônico. O trabalho tem sido feito também em parceria com as populações indígenas da região, como mostrou Tavares ao longo de sua exposição.

Morre Almir Mavignier, expoente do construtivismo

Geometría é a matriz da obra de Almir da Silva Mavignier, artista carioca que morreu no início deste mês em Hamburgo, onde morava. Ele é um dos nomes seminais da abstração geométrica brasileira e, com Mário Pedrosa, Ivan Serpa e Abraham Palatnik criou o núcleo de arte construtiva do Rio de Janeiro, no fim dos anos 1940.

Sua aproximação natural com o geometrismo começa ainda no Brasil, quando problematiza a rigidez e a interpretação gestual do formato inflexível do movimento, ao qual esteve ligado toda sua vida. Recordo que em 1987, quando visitei Mavignier em Hamburgo, na Alemanha, com Ana Mae Barbosa e o crítico Reynaldo Roels, em sua casa ateliê, compreendi o universo de Mavignier, o registro visual e linguístico inspirados em uma estrutura lírica, limpa e asséptica. O movimento corporal, seu modo simples, mas refinado de receber e falar português sem sotaque, apesar dos mais de 50 anos de Alemanha, tudo parecia extensão de sua elegante obra. Assim como Geraldo de Barros e Alexandre Wollner, Mavignier também cursou e ensinou na Escola Superior da Forma, de Ulm, na qual Max Bill, premiado na 1ª Bienal de São Paulo em 1951, foi seu professor.

Falar da produção de Mavignier requer imaginação analítica. A arte para ele é como um olho com retina repleta de ângulos, linhas, pontos, que ilustram um perfeccionismo formal pouco visto na arte brasileira. Sua trajetória  começa em 1946 no Rio de Janeiro, onde estuda pintura com Árpád Szenes e, cinco anos depois, já expõe no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde tem contato com as obras de Willi BaumeisterRichard Paul LohseCamille Graeser e Verena Loewensberg que o influenciam fortemente. Seu interesse por outsiders o aproxima da psicanalista Nise da Silveira e, entre 1946 e 1951, monta um ateliê no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio. A vivência com esses pacientes reforça sua ideia de que a fantasia criativa nasce no interior do indivíduo. Nos anos iniciais, Mavignier produz trabalhos abstratos, desenvolvidos entre a forma geométrica e a figuração orgânica. A experiência com Nise da Silveira o aproxima do crítico Mário Pedrosa e dos artistas Ivan Serpa e Abraham Palatnik, o que muda radicalmente seu trabalho. Mavignier se deixa influenciar pela tese de Pedrosa A Influência da Teoria da Gestalt sobre a Obra de Arte que o faz compreender que o conteúdo de uma forma não se encontra na sua associação com formas da natureza. “Esse conhecimento me permitiu abandonar uma pintura naturalista e iniciar uma pintura de pesquisas concretas de formas livres de associações”.

Destino natural de muitos artistas na época, em 1951 Mavignier muda-se para Paris e, no ano seguinte para Zurique, onde conhece Max Bill, que assumiria a direção da famosa Faculdade de Design de Ulm. Nessa época parece que sua essência era a insatisfação. Uma energia contida, o desejo de descobrir o novo, parecia tomar conta de Mavignier, que já deixara o Rio de Janeiro, Paris, Zurique e decidiu mudar para Ulm. Foi desencorajado por Max Bill, que acreditava que a pequena cidade seria um desafio enorme para um jovem que acabara de deixar a efervescente Paris dos anos 50. Max Bill dizia que “morar em Ulm é para uma nova geração alemã do pós-guerra que foi separada da cultura europeia e não para artistas românticos que vivem em Paris”.

Determinado, Mavignier não lhe deu ouvidos, foi para lá e provou o contrário. Adapta-se facilmente ao ritmo lento da cidade, torna-se bom aluno de Max Bill, Josef AlbersMax Bense, entre outros, torna-se depois professor e faz nome como artista. Mais tarde, transfere-se para Hamburgo onde é convidado a ensinar na Faculdade de Arte. Como designer gráfico, notabiliza-se pela produção de cartazes, que inicia quando estuda com Max Bill, nos quais incorpora novas pesquisas formais. No final dos anos 50, esses cartazes assumem caráter “modular”, como os definia e, em vários deles usa a repetição para transformar elementos compositivos e cromáticos em constantes matemáticas.

Em 1958, Mavignier se aproxima do Grupo Zero, que teve ramificação na Alemanha. Participa de alguns projetos com seus integrantes e, um ano depois, cria seu próprio estúdio em Ulm e se destaca especialmente como designer gráfico. Mavignier permanece na cidade até 1958 quando já atuava como professor na famosa escola. São dessa época imagens pontuais, que parecem vibrar opticamente. A partir de 1960, surgem os famosos “cartazes aditivos”, cada um pensado para ser apresentado ao lado de uma impressão de si mesmo, estabelecendo um trabalho repetitivo e contínuo.

Em nossa conversa em Hamburgo, Mavignier comentou que sua passagem por Ulm e seus professores foram determinantes para desenvolver um trabalho que mais tarde o lançaria no circuito internacional. Sua obra é marcante pela cor que não é apenas um portador de significado. Meu interesse está nas questões de percepção ótica que experimento nas pinturas”.

Mavignier nasceu em 1º de maio de 1925, no Rio de Janeiro e se identificava com a data, mas sem qualquer conotação ideológica. “Produzir diariamente me mantém vivo”. O tempo prova que sua máxima é verdadeira, Mavignier morre aos 93 anos e deixa uma extensa obra reconhecida no Brasil e na Alemanha. Ao contrário do que alguns jornalistas de arte, equivocadamente, insistem em afirmar, alguns artistas brasileiros participam da Documenta de Kassel, desde sua criação em 1955 (ano do chamado milagre econômico alemão) e não só a partir de 1991, como vem sendo publicado constantemente. A prova disso é que Mavignier foi convidado, como brasileiro, por duas vezes, em 1964 e 1968. Na conversa com ele e com o livro Künstlerlexiton mit Registren zu Documenta 1-8, editado pela Verlag Weber & Weidemeyer (Kassel 1987) descubro o que pouca gente do circuito de arte sabe. Na mostra inaugural de 1955 já estava Alberto Di Fiori; em 1959 Fayga Ostrower e Arthur Luiz Pisa; em 1964 Almir Mavignier; em 1968 Almir Mavignier outra vez e Sérgio Camargo (sala montada com ajuda de Maria Bonomi); e em 1977 León Hirszman (cineasta).

As últimas mostras mais significativas de Mavignier foram no Museu de Arte Concreta em Ingolstadt, em 2003, e um ano depois no Museu de Arte Aplicada de Frankfurt com seus Cartazes Aditivos. A Dan galeria de São Paulo, organiza a mostra Momentos de Luz, com cartaz e catálogo e premiados pela APCA. Em sua filial em Nova York, a Galeria Nara Roesler mostrou Almir Mavignier: Forma Privilegiada, em março/abril deste ano.

Com sua morte, o Museu de Ulm organiza uma retrospectiva com obras representativas de vários períodos de Mavignier, o artista que compreendeu que “o presente é tão veloz que não se pode deixar escapá-lo”.

 

 

 

 

 

 

Um Flavio-Shiró por completo

The Biginning, 2012-2103

No início dos anos 2000, a Pinakotheke projetou uma trilogia de livros que homenageasse grandes artistas nipo-brasileiros. A iniciativa tomou forma em parceria com a BTG Pactual. O início se deu em uma reunião da obra de Manabu Mabe produzida durante a década de 50. O livro seguinte homenageou o construtivismo de Tomie Ohtake. Para encerrar a trilogia, um mergulho na trajetória de Flávio-Shiró foi produzido.

Em ocasião da exposição que homenageou os 90 anos de nascimento de Shiró na sede paulistana da galeria – a partir de 24 de setembro na carioca –, a Pinakotheke decidiu  atualizar o volume, lançado em 2015, que traz a obra do artista nascido na ilha de Hokkaido, no Japão. A versão atual, de julho de 2018, agrega uma série de novos trabalhos de Flávio, incluindo os produzidos no ano vigente.

Com apresentação de Max Perlingeiro, diretor da galeria, o livro tem como fio condutor um texto de Paulo Herkenhoff sobre o artista, também autor dos textos nos outros livros da coletânea. Exímio conhecedor e apreciador da arte nipo-brasileira, o crítico já produziu, em 2008, uma exposição com cerca de 400 obras que demonstravam a relação Brasil-Japão no Instituto Tomie Ohtake. Além disso, Paulo tem uma relação próxima de Shiró há mais de 40 anos, conta Perligeiro. Desta forma, não há dúvidas de que a presença dos escritos de Herkenhoff no livro é parte essencial.

Na década de 1960, o artista exibia suas obras em paris, Nova York, Rio de Janeiro e Chile

O livro cuida de pontuar, mesmo de forma não explícita, todas as influências que Shiró tem dos lugares por onde passou. Especialmente daqueles onde se fixou como morador e teve uma vivência a qual passa a suas obras. É notável uma França, um Japão e um Brasil em sua produção. Desta forma, ter esses pontos definem a capacidade do artista de se colocar em um espaço.

Para Max, é importante se voltar a um percurso como o de Shiró, que “é um artista indescritível, com uma erudição incrível”. E aí está outro ponto importante do livro, que não mede nenhum esforço para oferecer ao público uma visão privilegiada de quadros de um artista que ao longo da vida se alimentou das imagens do teatro e do cinema, inclusive tendo contato com nomes como Akira Kuroswa.

Esgotada desde 2015, a primeira edição do livro podia ser encontrada até mesmo sendo leiloadas. Isso demonstra a importância da obra de um artista como Shiró ser catalogada. Além de tudo, sem dúvidas, o atualização do livro e a exposição-homenagem neste momento da vida de Shiró mostram, acima de uma compilação de seu trabalho, a grandiosidade de um artista que, aos 90 anos de idade, continua pintando com uma consciência indiscutível daquilo que faz.

“Escolhi você para fazer meu último livro e minha última exposição”, é assim que, segundo Perlingeiro, Shiró fala jocoso quando se encontram. O galerista rebate: “Todo último é o penúltimo”. Com a energia de Shiró, produzindo constantemente, não há como negar que essa é apenas a primeira atualização deste livro.

Flavio-Shiró, Edições Pinakotheke, 216 páginas, R$90

 

Memória restaurada e rumos ampliados

Diana caçadora, réplica da obra do escultor francês Jean-Antoine Houdon (1742–1828) feita pelos alunos do Liceu de Artes e Ofícios De são paulo. Restaurada após ser depredada no Vale do Anhangabaú, agora faz parte dos jardins do novo Liceu. Foto: Hélio Campos Mello

*Por Angélica de Moraes, colaboradora

 

Quando aconteceu o incêndio do Centro Cultural do Liceu de Artes e Ofícios, em 2014, a tristeza dos que prezam o patrimônio histórico e artístico do país foi enorme. A História da cidade de São Paulo foi gravemente atingida. Embora grande parte da construção e o acervo que ela abrigava restassem destruídos pelo fogo, a memória da instituição centenária, fundada em 1873, pôde ser pesquisada em várias fontes e coleções privadas. Renasceu em detalhes, em fotos de época, objetos de decoração e móveis de refinado desenho e execução. Emocionantes detalhes, que garantem visita prazerosa ao passado de um projeto dedicado ao ensino técnico de qualidade, que chega ao presente com cursos atualizados para o futuro: os desafios do design com computação gráfica e da internet das coisas.

O prédio, nas cercanias do Parque da Luz, foi revitalizado por projeto de restauro e reconstrução comandado pelo arquiteto Ricardo Julião. Ganhou amplos espaços iluminados por luz natural e pé direito de 11 metros, adequados às demandas atuais. Tudo pontuado por referências ao tempo aderido a detalhes como o uso dos tijolos originais nas colunas. Parte da estrutura metálica que queimou foi recuperada e pintada. Não mais apóia o peso da construção: ancora a memória construtiva do conjunto, de grande leveza visual.

A reabertura do espaço expositivo do Liceu acontece com uma curadoria de Denise Mattar articulada em três momentos O Ontem, o Hoje e o Amanhã e duas mostras simultâneas e complementares, em cartaz desde final de agosto. Uma, sob curadoria da designer Fernanda Sarmento, denominada “Design Brasil Século XXI”, fica em cartaz por quatro meses e é uma afinada prospecção de projetos de móveis que reduzem o impacto ambiental de sua produção. O elenco coloca lado a lado nomes consagrados como os irmãos Campana e certeiras apostas em jovens talentos.

A outra mostra, denominada “História e Memória”, resultou de pesquisa que ocupou Denise e sua equipe por mais de dois anos e ficará em cartaz até agosto de 2019. O minucioso levantamento da instituição centenária, fundada em 1873 por um grupo de prósperos empresários ligados à cafeicultura, rendeu uma linha do tempo que costura todo o percurso da mostra. Os 145 anos do Liceu, com seus personagens e obras, são materializados em fotografias e ampliações fotográficas entremeadas com objetos (móveis, luminárias, desenhos e instrumentos de trabalho).

A marcenaria e ao lado, os novos salões. Foto: Patricia Rousseaux

Há fotos curiosíssimas, como o almoço oferecido pelo Liceu à equipe de artesãos que fez a fundição da estátua eqüestre de Duque de Caxias, obra do escultor modernista Victor Brecheret (1894-1955) instalada na praça Princesa Isabel. O local do almoço: o interior da barriga do cavalo, ainda sem a metade superior.

O Liceu surge aos olhos dos visitantes como história viva e importante testemunho de um projeto exemplar de qualificação de mão de obra para atender a demanda por marcenaria e serralheria de alta qualidade na época em que a cidade se sofisticava.O período mais importante desses começos, situa Denise, “foi entre 1895 e 1928, quando o arquiteto Ramos de Azevedo orientava os trabalhos de acabamento de seus prédios no Liceu”.

Moldes originais feitos na serralheria do Liceu

Foi nas oficinas do Liceu que se faziam os móveis e elementos decorativos dos ambientes que ainda constituem o centro antigo da cidade. Foi lá que foram feitas as poltronas em veludo vermelho esculpidas em madeira do Theatro Municipal, assim como o desenho e a fundição das sinuosas grades de ferro das antigas sedes centrais do Banco do Brasil e outros prédios da região mais antiga da metrópole.

A coleção de gessos com réplicas em tamanho natural de famosas esculturas da História da Arte, que serviram de modelo para aulas de desenho, foram muito atingidas pelo fogo. Livio de Vivo, presidente do Conselho do Liceu, lembra que, das 28 peças existentes na coleção, restaram apenas oito. Quatro delas estão na exposição, com destaque para uma cópia da Pietá de Michelangelo, restaurada por Júlio Moraes, nome de excelência no setor no país.

A renomada escola ligada ao Liceu, que ganhou muitos prêmios internacionais (Saint Louis, EUA; Turim, Itália, etc…), oferece ensino médio regular pago e curso técnico gratuito em período semi-integral para alunos carentes. Neste segundo semestre de 2018, passa a ter cursos de teoria e prática para soluções tecnológicas avançadas em automação industrial e internet das coisas. “A Liceu Tech atualiza e desenvolve a missão de excelência iniciada pelo Liceu”, observa Patrícia Macedo, diretora da escola. Os alunos fazem estágio em empresas parceiras, porta de entrada para o mercado de trabalho. O Brasil que deu certo está a ensinar o Brasil que precisa dar certo.

Pufe Balanço branco de Nido Campolongo na exposição de design

Carmela Gross

Grande Hotel, Neón. Saguão de entrada Sesc 24 de Maio, São Paulo

Em plena ditadura militar, na Bienal de São Paulo de 1968, a artista Carmela Gross apresentou três obras, entre elas “Barril”, uma referência ao instrumento de tortura usado na época pela polícia para provocar uma situação de afogamento nos presos.

A obra foi apresentada justamente na Bienal do Boicote, assim chamada porque muitos artistas deixaram de participar da mostra em sinal de protesto contra a situação vivida pelo país. “Como instrumento de tortura, ele [o barril] já era, por sua vez, resíduo da indústria norte-americana do petróleo. Metáfora reduzida ao mínimo, quase uma não metáfora, mas que implicava a dominação estrangeira e a dependência brasileira, inclusive, nas práticas clandestinas da ditadura”. O depoimento atual, que após 50 anos apresenta um Brasil ainda submisso aos EUA e com a democracia ameaçada, é da própria artista no livro “Carmela Gross”.

A nova publicação traça um panorama da obra de Gross desde 1967 até 2017, portanto uma visão ampla de 50 anos de carreira, apresentando 76 obras de forma detalhada, muitas delas com relatos da artista, como é o caso de “Barril”.

Gross tem sido uma artista com forte presença na cidade de São Paulo, seja em mostras temporárias como a Bienal de São Paulo (1968, 1989 e 2002), seja em obras de caráter permanente, caso de “Grande Hotel”, a mais recente apresentada no livro. Ela se encontra no Sesc 24 de Maio, projetado por Paulo Mendes da Rocha, inaugurado no ano passado no centro da cidade. “O letreiro luminoso GRANDE HOTEL, instalado na praça de entrada do edifício, combina a descoberta de um sítio perdido com a evocação de uma promessa – a da cidade como o lugar maior de seus habitantes”, descreve a artista na publicação.

Luminosos criados a partir de luzes neon ocupam muito da obra de Gross, uma maneira de estabelecer vínculos com as formas de comunicação da própria cidade, subvertidos, contudo, conforme seu desejo. Ela escreveu Hotel sobre a Bienal de São Paulo, em 2002, uma forma que pode apontar tanto para o caráter temporário e passageiro da mostra, como para o caráter limitante e de privilégios que ela encerra.

Esse é um bom exemplo, aliás, dessa relação muito estreita entre a poética da artista e os códigos urbanos, uma linha dominante na publicação, que também ocorre com a apropriação das placas metálicas que em geral denominam nomes de rua, mas na obra de Gross se transformam em estratégias para nomear os que nem sempre possuem visibilidade.

Figurantes, 25 placas de ferro esmaltado

“Figurantes” (2015) retrata bem essa possibilidade, já que: “Alude a um cortejo insólito de dúbias figuras. São aquelas listadas por Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte (1852), como membros da Sociedade 10 de Dezembro, constituída de biscateiros, herdeiros arruinados, vagabundos e desocupados de toda ordem”, segundo relato de Gross no livro.

É bastante generosa essa maneira de abordar a carreira de Gross, usando junto às imagens das obras seus próprios depoimentos em primeira pessoa para se conhecer o processo de criação da artista, suas inspirações e objetivos. Afinal, a arte contemporânea nem sempre é de fácil comunicação, mas os textos claros e precisos da artista são uma maneira de dar algumas pistas além da própria visibilidade de cada trabalho.

Essa preocupação reflexiva se expande ainda mais na segunda parte do livro organizado pelo curador Douglas de Freitas. “Carmela Gross” reúne ainda uma entrevista da artista conduzida por ele e três ensaios escritos pelos curadores Paulo Miyada, Luisa Duarte e Clarissa Diniz.

Editora Cobogó, 280 págs., R$ 150

Os preciosos retratos de Bob Wolfenson

Rita Lee, 1976, São Paulo

Referência no sofisticado mundo da moda brasileira, o fotógrafo apresenta sua retrospectiva, Bob Wolfenson: Retratos, no Espaço Cultural Porto Seguro, com mais de 200 fotos, feitas em 45 anos de trabalho. A exposição abre no dia 23 de agosto e permanece em cartaz até 9 de dezembro de 2018.

Bob nasceu no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, e começou sua carreira aos 16 anos como uma espécie de office boy na então pujante Editora Abril, no Estúdio Abril, que foi, comandado por Chico Albuquerque, a meca da fotografia de moda.

Entrou como office boy e saiu fotógrafo. Aos 20 anos, abriu seu próprio estúdio com dois amigos, Dudu Tresca e Leonardo Costa. Anos depois, deixou o Brasil e foi trabalhar em Nova York, no estúdio de Bill King, incensado fotógrafo que, entre outras mega celebridades, colocou Twiggy e Cindy Crawford na capa da Vogue americana.

Ficou um tempo por lá e trouxe a experiência americana na bagagem, o que facilitou bastante sua vida por aqui. Tanto que, recém chegado, já foi chamado para fotografar para a Vogue brasileira. A partir de então, seu sucesso foi crescente.

Se Nova York fez bem a sua carreira, o Bom Retiro fez bem ao seu caráter.

Hoje com uma composição étnica mais variada, com predominância coreana e boliviana, quando Bob ganhou sua primeira câmera de seu pai, era o bairro dos judeus. De familia progressista, dona de malharia, ele cursou o Colégio de Aplicação, da Faculdade de Filosofia da USP, e depois fez Ciências Sociais, curso que interrompeu quando a fotografia tomou as rédeas de seu tempo.

Mas a formação humanista fez bem.

Em um ramo onde os egos costumam padecer de gigantismo, Bob cuida bem do seu. Isso fica evidente no contato pessoal e é verbalizado no livro que escreveu em 2009 para a Editora Campus, Cartas a um jovem fotógrafo.

Na publicação de pouco mais de 200 páginas, ele diz na introdução: “… só posso e quero falar daquele que sou – sem nenhuma afetação narcísica, assim espero”.  E mais adiante ressalta que escreve “para contar um pouco dessa profissão, do ambiente que a cerca e das armadilhas, do ego e do mercado…”.

O senso crítico e o bom humor aparecem quando se refere à fase pós experiência novaiorquina:

“Não me lembro direito de tudo o que fiz nesse período, mas algumas destas fotos eram muito ruins.”

Com o mesmo espírito relata os bastidores da foto de Oscar Niemeyer, exposta na retrospectiva. No escritório do arquiteto, no Rio, ele pediu para Niemeyer deitar em uma poltrona, projeto de sua autoria. A resposta veio torta: ”Isso eu não faço. Não deito”.  Aí Bob sugeriu que ele, então, sentasse na tal poltrona. A resposta, mais torta ainda: “Não sento”. Para acabar logo com o sofrimento, Bob conta que ,enquanto se virava para colocar um fundo branco atrás de Niemeyer, o arquiteto provocava: “Por que você fotografa homens? Se eu fosse você, só fotografava mulher”.

“Mas é o que eu mais faço”, respondeu.

Apesar de tudo, o fotógrafo gostou do resultado.

Bem humorado, Bob já disse que deixou o Bom Retiro mas o Bom Retiro não o deixou.

E, como uma imprevista comprovação disso, agora, passados alguns anos, a retrospectiva de sua carreira está a poucas quadras de onde ele nasceu e viveu sua infância e juventude.

As mais de 200 fotos que compõem a exposição têm Rodrigo Villela como curador e estão no Espaço Cultural Porto Seguro, destino obrigatório no roteiro cultural de São Paulo, que fica na Alameda Barão de Piracicaba, na fronteira entre os bairros dos Campos Elísios e do Bom Retiro, e a pouco mais de dez quarteirões de distância da rua Afonso Pena com rua Guarani, onde o fotógrafo passou a infância. Para Rodrigo Villela, o trabalho de curadoria foi árduo mas prazeroso. Para chegar nas fotos escolhidas, mais de mil foram vistas. A mais antiga é de José Celso Martinez Corrêa, de 1973, e a de Sebastião Salgado foi feita há alguns meses.

“Com um arco temporal tão extenso, podemos observar no trabalho de Bob também uma crônica de costumes, um viés possível inclusive para uma apreciação histórica”, destaca o curador.

E se é uma curiosa coincidência a mostra estar a poucas quadras de onde Bob nasceu é também interessante que haja outra importante retrospectiva na cidade com alguma relação com ele, mesmo que tênue. Em sua fase americana, para conseguir o emprego com Bill King,  Wolfenson mandou cartas com o mesmo pedido para outros fotógrafos, como Richard Avedon, Arthur Elgort, Barry Lategan e Irving Penn. Só King respondeu.

Irving, um dos que não respondeu, tem também sua retrospectiva, Irving Penn: centenário, com mais de 200 fotos, em São Paulo, na Avenida Paulista, no IMS, Instituto Moreira Salles. Um pouco mais distante do Bom Retiro. Mas também imperdível.

Agenda: confira os destaques da semana 15 a 21 de setembro

 

INSTITUIÇÕES

Ernesto de Sousa, frame de ‘Happy People’, 1969

FUSO: Anual de Video Arte Internacional de Lisboa, coletiva no Galpão VB, em 15/9.

Sempre no final do mês de agosto, com entrada gratuita, o FUSO saúda as noites do verão português com obras em vídeo que cruzam as artes plásticas, a performance, o cinema, a literatura e os meios digitais, propondo uma nova abertura à imagem em movimento do século 21.

No Galpão VB, serão exibidos dois programas derivados da mostra. O primeiro, curado por Marta Mestre, se concentra na produção portuguesa contemporânea e apresenta uma seleção de obras premiadas em suas diferentes edições. O segundo programa, curado por Isabel Alves, traz três obras históricas de Ernesto de Sousa, autor incontornável na produção audiovisual em Portugal.


Maíra Dietrich, ‘Miragem’, 2017

Maíra Dietrich: Visão Periférica, individual no Paço das Artes, abertura em 18/9.

Integrante da Temporada de Projetos do Paço das Artes, a exposição é constituída por três obras: a peça sonora que dá nome à mostra, composta por cinco falantes sincronizados; “papelzinho”, uma projeção de slides com imagens de processos de trabalho realizados de 2008 a 2018; e o trabalho “Ptit Poema”, que são anotações curtas realizadas diretamente sobre o espaço. Segundo a artista, “visão periférica é o nome dado a toda percepção visual  que ocorre fora do foco ocular, a visão não-central, a habilidade de perceber o que está ao redor da mira, um exercício de compreender e se colocar em relação ao contexto que nos circunda”. Trata-se, também, de um termo adotado pela artista para definir sua metodologia de trabalho, que consiste em relacionar o que é visto e ouvido em diferentes
espaços de tempo.


Millôr Fernandesm Desenho para publicação em IstoÉ, 15.08.1990. IMAGEM: Acervo Millôr Fernandes / IMS

Millôr: Obra Gráfica, individual no IMS Paulista, abertura em 18/9.

A mostra divide em cinco grandes conjuntos a obra gráfica de Millôr, dos autorretratos à crítica implacável da vida brasileira, passando pelas relações humanas, o prazer de desenhar e a imensa e importante produção do “Pif-Paf”, seção que manteve na revista O Cruzeiro entre 1945 e 1963. O acervo de Millôr, que reúne mais de seis mil desenhos e seu arquivo pessoal, está sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2013.


Leila Ao sul do futuro #1, 2018

Leila Danziger: Ao Sul do Futuro, individual no Museu Lasar Segall, abertura em 15/9.

O que Leila Danziger propõe em sua pesquisa como artista visual e poeta é um convite a um olhar cético, fruto dos traumas históricos que nos trazem ao agora. Para alcançarmos isso, é preciso termos um pé no aqui (presente) e o outro no lá (passado).

As narrativas acerca do processo de migração não apenas de sua família, mas de milhares de judeus-alemães que enxergavam o Brasil como território para um novo começo, são centrais nesta exposição.


Projeto de Paulo Mendes da Rocha exposto na ocupação. FOTO: Rovena Rosa/Ag. Brasil.

Ocupação Paulo Mendes da Rocha, Itaú Cultural de São Paulo, até 14/11

Com curadoria do arquiteto Guilherme Wisnik e do instituto, a mostra reúne croquis, fotografias, maquetes, textos críticos e depoimentos de Mendes da Rocha que expõem sua obra e suas perspectivas criativas. O tema que guia a exposição são as águas, elemento que atravessa o trabalho do urbanista e professor de várias formas: desde o imaginário dos rios e dos mares até a proposta de um sistema fluvial para a América Latina, passando pela piscina como ideal de espaço público.


C+P Arquitetura; Rodrigo Calvino e Diego Portas, Hostel Villa 25, vencedor do segundo lugar. FOTO: Federico Cairoli.

Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel, coletiva no Instituto Tomie Ohtake, até 23 de setembro.

A seleção dos projetos foi feita por um júri formado pelos arquitetos Adriana Benguela, Fábio Mariz Gonçalves, José Lira, Marcos Boldarini e Priscyla Gomes. Os 13 projetos finalistas, selecionados entre os 244 inscritos, provenientes de 17 estados brasileiros e Distrito Federal, fazem parte da exposição.


Jaime Lauriano, ‘Combate #1’, 2017. FOTO: Filipe Berndt

Quem não luta tá morto, coletiva no Museu de Arte do Rio, abertura em 15/9.

Assinada por Moacir dos Anjos, um dos mais importantes curadores do país, com passagens pelas Bienais de São Paulo e Veneza, a mostra faz parte do programa de comemoração dos 5 anos da instituição.
Sem ter pretensão de apresentar um panorama conclusivo, exposição traz exemplos do pensamento utópico que marca a arte brasileira recente. Trabalhos artísticos realizados em momentos passados também estarão presentes, além de propostas e ações realizadas por grupos comunitários, associações e outras articulações da sociedade civil que visam a construção de estruturas de atuação política e social.

Raffaello Sanzio, Scuola di Atene, 1508-11

Rafael e a Definição da Beleza: Da Divina Proporção à Graça, coletiva no Centro Cultural FIESP, abertura em 18/9.

Com curadoria de Elisa Byington e produção da Base7 Projetos Culturais, a mostra se antecipa às celebrações que marcam os 500 anos de morte de Rafael, em 2020. A exposição traz obras de grandes mestres do Renascimento de diversas coleções italianas como a Galleria Nazionale da Umbria e de Modena, a Galleria Borghese e o Palazzo Barberini de Roma, a Santa Casa e o Museo del Tesoro de Loreto, e o Museo Nazionale di Capodimonti de Nápoles. Conta também com obras inéditas da coleção Yunes, de São Paulo, da Fundação Eva Klabin, do Rio de Janeiro, e um conjunto de mais de 50 gravuras produzidas no ateliê de Rafael e seus discípulos que hoje integra o acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


Lawrence Weiner, ‘Deep Blue Sky’, 2007.

Tarefas infinitas, coletiva no Sesc Pompéia, até 30/09

A mostra já passou pela Europa e chegou ao Brasil em agosto, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc e na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Exposição, Fórum de debates e visitas mediadas com convidados especiais compõem a programação.

O conceito da exposição Tarefas Infinitas “quando a arte e o livro se ilimitam”, originalmente realizado em Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian, norteia-se pela apresentação do livro enquanto laboratório de experiências estéticas, um meio que abre infinitas possibilidades à arte, além de questionar a definição e função do livro a priori.


GALERIAS

Yuri Firmeza . Ouro Branco, Inferno Verde #1, 2018

Com o ar pesado demais pra respirar, coletiva na Galeria Athena, abertura em 20/09

Coletiva com curadoria de Lisette Lagnado reúne obras de André Griffo, Anna Bella Geiger, Antonio Dias, Antonio Manuel, Artur Barrio, Franz Weissmann, Igor Vidor, Iole de Freitas, Lais Myrrha, Laura Belém, Leonilson, Leticia Parente | Matheus Rocha Pitta, Rubens Gerchman.


Delson Uchôa, Fiacão, 2009

Delson Uchôa: Autofagia, Corrupio no Olhar, individual na Zipper Galeria, abertura em 20/9.

Nas obras reunidas nesta seleção, é possível identificar alguns pontos de partida do artista: padrões, formas geométricas e tonalidades recorrentes na produção de Delson nos anos 1980. A variedade de materiais também está presente – lona, lá, algodão, camurça, madeira, plástico e metal mesclam-se à pintura acrílica como testemunhos de um arquivo objetual reunido pelo artista.


Rubens Azevedo, Sem Título

Grandes nomes, pequenos formatos, coletiva na galeria MAPA, abertura em 18/9.

“O petit format é um clássico noutras culturas, ele é a maneira mais rápida e concisa de seduzir o espectador, com maestria e versatilidade. Esta exposição mostra como artistas de épocas diferentes, e que divulgamos, admiramos, e/ou perseguimos, trabalham essa questão específica.”, escreve o curador João Pedrosa.


 

Lourival Cuquinha | Apólice do Apocalipse, 2018

Lourival Cuquinha: Dos meus comunistas, cuido eu, individual na OMA Galeria, até 28/10.

trabalho de forte crítica política e social, Cuquinha discute em sua poética a liberdade do individuo frente ao meio social e capital, questionando assim até mesmo a prática do mercado de arte, tendo um trabalho transgressor o artista se posiciona de forma provocativa diante de um sistema movido pelo poder econômico.


EXTERNA

Regina Parra, simulação de exibição da obra É Preciso Continuar

8ª Mostra 3M de Arte, coletiva no Largo da Batata, abertura em 15/8.

A mostra ao ar livre busca a valorização artística do trabalho pertencente a um projeto consistente que é realizado há oito anos e já apresentou renomados artistas nacionais e internacionais: Guto Lacaz, Giselle Beiguelman, Paulo Bruscky, Nicola Constantino e Bill Viola.


Obra de Bruno Novaes na mostra

Aluga-se Triplex, no Edifício Maria Paula, Sé, até 27/10

Com curadoria de Márcio Harum, a mostra traz trabalhos que serão exibidos nos três andares do endereço, como esculturas, colagens, desenhos, instalação, fotografias, objetos e uma obra performático-cênica. A programação é aberta ao público e conta com oficinas artísticas e educativas voltadas à formação de jovens e adultos, falas, debates, visitas mediadas com especialistas do campo da arte, etc.

O projeto reúne membros do Grupo Aluga-se mais convidados num triplex no centro da cidade de São Paulo. Com curadoria de Márcio Harum, os trabalhos perpassam por questões de memória e política. Participam Yara Dewachter, Evandro Prado, Giba Gomes, José Rufino, Laerte Ramos, Zé Carlos Garcia e outros.