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Vozes sobre a gestão cultural

*Por Patricia Rousseaux e Jamyle Rkain

Na ocasião da conceitualização do Seminário Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos, além dos palestrantes que somaram ao evento, fomos atrás de inúmeros profissionais que vêm trabalhando junto às dificuldades enfrentadas pela cultura no nosso país.

Aqui, uma entrevista com Lucimara Letelier, ​fundadora e diretora do Museu Vivo, consultoria de inovação e sustentabilidade econômica em museus e cultura, co-idealizadora do HiperMuseus. Ela atua há 20 anos em gestão cultural, social e de museus, com projetos com mais de 40 organizações, como Museu da Língua Portuguesa, Museu da Imigração, Museu Villa Lobos, Oi Futuro, Museu do Amanhã, MAR e Espaço BNDES. É mestre em Administração Cultural pela Boston University, foi diretora adjunta de Artes do British Council, diretora de captação da ActionAid. É conselheira no ICOM Brasil e ICOM MPR, ActionAid e ABGC.

ARTE!Brasileiros — Lucimara, como surgiu a ideia de criar a consultoria Museu Vivo?
LUCIMARA LETELIER Com 20 anos de atuação na área em Gestão Cultural, Gestão de Museus e Direitos Humanos, senti a necessidade de criar uma plataforma que sintetizasse um pouco de tudo que tinha observado com as dificuldades e aprendido no caminho. Nesse sentido, passei um ano e meio estudando o Programa da Unesco para líderes, agentes de mudança, voltado para a Agenda 20/30. Esse é um programa que tenta discutir sobre os limites planetários, quais são as causas mais urgentes, discussões a serviço de um processo de transição no mundo, mas de fato voltado para ambientalistas, empreendedores sociais, agentes de pactos sociais. Ao fazer o curso que eles propõem, o Gaia Education me chamou muito a atenção, que não houvesse nenhuma discussão em volta de agentes de mudança no setor cultural e de museus. Nesse momento decidi tentar ver como essas pautas poderiam conversar com a área museológica, cruzar conhecimento e trazer oxigênio para os museus, que estão morrendo. Tentando pensar soluções orgânicas.

Como se implementa isso na prática?
Pesquisamos modelos de instituições e resolvemos criar uma plataforma que proponha soluções de sustentabilidade para a cultura. Montamos uma consultoria em rede que tenta lançar mão de várias áreas para criar essas soluções. Que novas habilidades, que novas linguagens são necessárias percorrer?

Sim, mas não lhes escapa que, na maioria das vezes, se trata de um problema econômico.
Acho que você está trazendo uma situação limite, que é a ausência de política pública. Na nossa opinião, hoje tem que ter uma pizza mista, com diversificação de recursos. Durante muitos anos tivemos repasses diretos e indiretos, como Lei Rouanet ou o repasse que se faz às OS, que sempre deixam a instituição “esperando” e sem reação ou exigência de pensar em outras alternativas. Esse sistema, no Brasil, está falido. Eu acho que não houve uma mobilização pública, civil, que entenda que a sustentabilidade é um ato político.

O MAR, por exemplo, que passa por uma crise financeira importante, tem uma enorme capilaridade e uma enorme relação participativa. Mas achamos que não há uma verdadeira busca de como tornar campanhas de teor progressista em campanhas capazes de gerar recursos. Nós temos pessoas progressistas, essas pessoas têm que estar envolvidas ao ponto de se sentirem parte do lugar que está sendo sustentado.

Lucimara Letelier, fundadora do Museu Vivo.

Vocês já operacionalizaram esta ideia de alguma forma?
Sim. Montamos uma parceria com a benfeitoria.com, uma plataforma de crowdfunding com experiência em campanhas de financiamento coletivo; a SITAWI — Finanças do Bem, que gerencia o fundo, e nós, que gerenciamos as propostas com o conhecimento da gestão cultural. As três — Museu Vivo, benfeitoria.com e SITAWI — são organizações que têm suas próprias expertises. Por outro lado, o BNDES tem uma linha de financiamento para campanhas de sustentabilidade de investimentos de até R$ 300 mil. Assim, nas campanhas de matchfunding, a cada R$ 1 que os cidadãos colocam, o BNDES coloca mais R$2. Nesta linha, já criamos, por exemplo, duas campanhas: uma para o Museu do Inconsciente e outra para o Museu Bispo do Rosário, que envolvem a preservação das obras e restauros.

Como parte do projeto, a instituição, depois, recebe uma consultoria para trabalhar com o mailing que foi produzido nessa iniciativa. Uma coisa é um doador chegar para uma campanha, outra é o que fazer com seus dados. Na verdade, ele se torna um ente econômico. Na bilheteria, você apenas “vende um evento, uma atividade”. Nesta proposta, as pessoas “compram uma ideia”. E poder reter seus dados colabora com a possibilidade de continuar lhe oferendo serviços de apoio à instituição. 

As pessoas no crowdfunding deixam o dinheiro para uma campanha, na bilheteria deixam o dinheiro para um evento, para uma atividade. É diferente, porque no primeiro caso está entregando um dinheiro para uma causa que quer apoiar. Na bilheteria, é apenas um custo. No Children’s Museum, onde trabalhei, eles consideram muito fortemente a pessoa que entra no museu como um ente econômico. Quando você entra para comprar um ingresso, assim como uma telecom, criam uma relação econômica com essa pessoa. Acho que seria importantíssimo que as empresas de tecnologia, por exemplo, além de pagar patrocínios, fossem capazes de oferecer knowhow para os museus.

Sobre o título do nosso seminário, como você sintetizaria esses desafios?
A instituição se entender como causa; ter uma escuta para seus problemas como de co-curadoria; trabalhar a conexão cultural casada com políticas públicas e privadas, trazer o conhecimento de cultura empreendedora nos gestores.

Gestão em tempos de tragédias

Diretora-executiva de Inhotim desde o último abril, Renata Bittencourt chegou ao instituto três meses depois do rompimento da Barragem do Feijão, na cidade de Brumadinho. Anteriormente, dentre outras coisas, ela havia sido diretora de Processos Museais do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), de 2017 a 2019, e secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural em 2016, ambos no extinto Ministério da Cultura (MinC). Ela é mestra e doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), graduada em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Renata se especializou em Estudos de Museus de Arte e Gestão de Processos de Comunicação e Cultura pela Universidade de São Paulo (USP).

Renata Bittencourt, diretora executiva de Inhotim. FOTO: William Gomes

A lama da tragédia humana e ambiental não chegou ao grande museu a céu aberto, mas afetou o funcionamento de várias formas. Em entrevista ao site da ARTE!Brasileiros em junho deste ano, Renata afirmou que alguns de seus principais objetivos ao chegar em Inhotim era estimular a volta de visitação e estreitar laços com a comunidade local. Após o ocorrido em Brumadinho, o instituto assumiu um papel de compromisso social importante na vida da cidade, ação que a diretora conhece bem, pois entre 1997 e 1998 foi bolsista da organização Fulbright para observação de programas voltados a essa esfera: “Um desafio que acho importante ressaltar, que é importante para Inhotim em específico, mas acho que é para muitos outros espaços também, é o desafio da conexão com os territórios onde as instituições estão inseridos”, ela comenta.

No contexto da chegada de Renata ao instituto, foi iniciada uma nova fase do programa Nosso Inhotim, que cadastrou até agora aproximadamente 1500 moradores do município de Brumadinho para entrada gratuita na instituição e 50% de desconto nas atividades que ocorrem no espaço. Antes, os moradores tinham apenas o direito à meia-entrada. “Existe um desejo e uma ação nossa para uma reconexão ainda mais forte, uma criação de vínculo ainda mais forte com a cidade”. Ela ressalta que isso envolve desde os artistas até o reforço de ligações com as escolas da região e um alcance aos moradores de modo geral, sendo assim uma via de troca, onde a instituição abre suas portas e a cidade realiza um gesto de dizer aquilo que é interessante para Brumadinho: “Essa abertura para o território hoje ajuda a definir o que Inhotim é”.

Para a diretora, uma das principais situações ao chegar em Inhotim foi ver com ainda mais nitidez o fato de instituições serem feitas por pessoas. “Inhotim viveu essa tragédia muito na pele porque a pele de Inhotim é feita dessas 600 pessoas que trabalham aqui”, diz. Ela conta que a ideia de que uma gestão precisa, em todas suas esferas e decisões, ser humanizada foi uma reflexão provocada por esse acontecimento.

Decolonizando a gestão

Dentro da esfera de gestão de instituições culturais públicas e privadas no país, é importante ressaltar que Renata Bittencourt é uma das únicas pessoas negras à frente de uma instituição de grande importância no país. O fato está relacionado a um racismo institucional infelizmente ainda muito arraigado na sociedade brasileira. Renata destaca que é importante que sua posição neste momento sirva para criar uma interlocução nesse aspecto e ressalta pessoas como Rosana Paulino, Renata Felinto, Janaina Barros, Amanda Carneiro e Hélio Menezes, que não necessariamente atuam como gestores mas têm voz ativa no meio artístico: “A mim me dá uma impressão de que há caminhos que se abrem”.

Claudinei Roberto da Silva, professor e curador independente. FOTO: Antonio Trivelin.

Neste ponto, o curador, artista plástico e professor Claudinei Roberto da Silva afirma que o que se pode “perceber é aquilo que é fácil de ser constatado: existe uma competência negro-brasileira que foi historicamente negligenciada”. Ele é formado em Artes Plásticas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), ex-coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil, além de atuar como curador independente e professor de desenho, pintura e História da Arte em instituições pelo país. Ele ressalta que a preocupação em incluir essa competência hoje existe, mas em uma proporção que poderia ser maior. Ele destaca a falta de pessoas negras em cargos de gerência em instituições pelo país e afirma: “A instituição não é decolonial porque promove simpósio de diáspora afro-atlântica, ela vai ser decolonial quando tiver negros, negras e indígenas em cargos de diretoria”.

De acordo com Claudinei, não existe a possibilidade de se falar de decolonialismo sem trabalhar antes a ideia de anticolonialismo: “Fica muito difícil tratar de decolonialismo sem falar de hegemonia, sem falar de hegemonia cultural e de branquitude. As pessoas precisam reconhecer o atraso delas nesse momento da História”. Suas observações são a partir do que ele enxerga em São Paulo. Ele aponta a extrema importância de se fazer um esforço para trazer à tona uma história, registrá-la em livros, em catálogos ou em documentos “extraordinariamente bem realizados”, mas que nada é mais fundamental do que observar se no corpo de funcionários de instituições museais a presença negra está contemplada.

Cresce o restauro e preservação da obra de Bispo do Rosário no Rio

O "Veleiro" de Bispo do Rosário.

Diagnosticado como esquizofrênico paranoico, Arthur Bispo do Rosário viveu por quase 50 anos, entre entradas e saídas, como interno de hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. Aproveitou-se dos materiais precários que o cercavam para recriar o mundo em uma obra inestimável. A partir dos fios dos seus próprios uniformes, criou mantos e tecidos. Concebeu também esculturas e murais cobertos de objetos que colecionava compulsivamente, montando todo um universo paralelo.

Falecido em julho de 1989, o artista tem tido sua obra revisitada, restaurada, higienizada e catalogada desde o fim de 2016. Em setembro de 2019, o acervo de Bispo do Rosário foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em decisão unânime de seu conselho consultivo.

Com patrocínio da Fundação Marcos Amaro (FMA), o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, vai incorporar ao seu atual espaço, onde funciona hoje a área expositiva e o acervo em restauro, um dos pavilhões da antiga Colônia Juliano Moreira, hospital  onde o artista viveu por muitos anos. A edificação, que terá que ser totalmente restaurada, abriga a cela ocupada por Bispo, que a encarava como uma espécie de ateliê.

“As paredes da cela onde viveu Bispo do Rosário estão completamente tomadas por desenhos que foram cobertos por camadas de tinta ao longo dos anos. Vamos retirá-las pouco a pouco, em um processo de restauração da camada original de tinta, na tentativa de revelar todo o universo criativo do Bispo impresso naquelas paredes”, afirma Ricardo Resende, curador do Museu e também da FMA. Depois de restaurada, a cela funcionará como espaço expositivo permanente para as obras do artista sergipano. “A ideia é justamente apresentar ao público seus trabalhos em sua ambiência natural, onde foi criada – até mesmo porque a obra do Bispo ganha sentido, significado e potência de proporções imensuráveis quando contextualizada naquela paisagem do manicômio”, comenta.

Para o início do projeto de restauração do pavilhão, a Fundação Marcos Amaro doou à instituição carioca o montante de R$ 350 mil. Em 2017, a fundação apoiou a readequação e renovação da atual reserva técnica do Museu. No início de 2018, os incentivos foram para a readequação das atuais salas expositivas, garantindo melhores condições museológicas de exibição para a obra. “Com esse apoio, a FMA reafirma o seu propósito em não somente impulsionar a produção contemporânea com criação de prêmios e residências voltados a jovens artistas e em atividade, mas também pela preservação e conservação da arte contemporânea brasileira”, afirma Raquel Fayad, diretora geral da fundação.

“Esse procedimento é o maior já realizado em obras de arte contemporânea no Brasil. O método consiste na retirada do oxigênio de estrutura construída justamente para este fim, uma bolha hermeticamente fechada, onde foi acomodada em sua primeira etapa a metade da obra de Bispo do Rosário. De lá, através de um mecanismo, foi retirado de seu interior todo o oxigênio deixando apenas o hidrogênio”, explica Ricardo Resende. “Esse processo garante uma eficaz eliminação de cupins, fungos ou qualquer outro microrganismo por asfixia. Trata-se de uma tecnologia que não afeta a obra, que é extremamente frágil, e requer o máximo de cuidado.”

Atualmente, está em exibição na sede do Museu a mostra UTOPIAS: A vida para todos os tempos e glória, contemplada no Edital do Produtor Cultural de 2018 – ISS, que dá continuidade à proposta do Museu de garantia e ampliação do acesso à arte e à cultura fora dos eixos convencionais da cidade. Com curadoria de Diana Kolker e Ricardo Resende, a exposição apresenta obras de artistas integrantes do Atelier Gaia, vinculados ao Museu Bispo do Rosário, e das obras desenvolvidas pelas artistas Pola Fernandez, Val Souza, Ercilia Stanciany, Veridiana Zurita e Seu Hernandes José da Silva, convidados a participar do programa de residência Casa B.

O trabalho de Pola Fernandez foi também exibido na ocasião da abertura da exposição Bispo do Rosário: As Coisas do Mundo, aberta na Fábrica de Arte Marcos Amaro – FAMA, em Itu, no mês de setembro.

“Sempre Gay”, a voz transgressora de jovens artistas

Liz Under, Mudo, 2016
Liz Under, Mudo, 2016

Sempre Gay: meninas de azul e meninos de rosa aborda conceitual e artisticamente a resistência de jovens artistas diante de situações de ódio, discriminação e apagamentos. Organizada pela Transarte, galeria voltada a projetos com temática LGBTQ e à arte transgressora, a exposição reúne Liz Under, Bia Leite, Eduardo Mafea e Pedro Stephan, com trabalhos de pura militância.

A arte contemporânea desenvolveu uma estratégia de aproximação com o cotidiano. A narrativa de todos eles não separa a arte da vida, e a contrassenha para a sobrevivência é manter-se em estado de alerta permanente diante de uma sociedade violenta para gays, mulheres, negros, indígenas e pobres. Os trabalhos nascem espontaneamente, sem se preocupar com a fatura, e a maioria deles espelha situações vivenciadas. Liz Under, 24 anos, abre a exposição com fotos de uma performance com lençóis vermelhos com fendas vaginais, realizada em seu estúdio em Salvador, onde morava e trabalhava. O ensaio protagonizado por ela coloca o espectador como voyeur de uma imersão sensual. Liz vive em Araraquara e nos três anos que passou em Salvador estudou e começou na arte fazendo grafites pelas ruas e cartazes lambe-lambe. Foi lá que experimentou na pele o desafio de fazer uma arte transgressora. “Mesmo dentro do Museu de Arte Moderna, onde fiz curso de litografia, não escapei de uma sociedade opressora”. Sua aversão pelo mundo machista inspirou um desenho com a imagem de um gato com um pênis atravessado na boca, que irritou seus colegas de curso. “Começaram a me tratar mal, a chamar o gato de Miserável. A pressão era tal que eu chegava a me vestir de homem para conseguir me impor naquele ambiente machista e discriminatório”. Liz também sofreu com as gravuras de suas musas emparedadas. “Na história da arte os homens pintam mulheres nuas para deleite masculino e eu coloco minhas musas no papel na busca da construção do seu próprio prazer, do seu próprio afeto”. Quando Liz expôs esses trabalhos na 5ª Bienal de Gravura Lívio Abramo, em Araraquara, foi agredida moralmente por um jornalista local, conhecido pelo seu sobrenome, Madalena. “Revoltado, ele me ofendeu e classificou meu trabalho como ‘arte vadia’. Eu adorei o nome, nem precisei pensar em outro título, fiquei com o dele”. Ela lembra que hoje no Brasil temos a legitimação da violência que vem de quem está no poder. A artista fala de uma necropolítica instalada com poder social e político para decidir quem vive e quem morre. “Os alvos preferidos são os LGBTQ, pessoas negras e pobres”.

Bia Beite, série Naoparanao
Bia Beite, série Naoparanao

Assim como a obra de Liz é considerada inadequada socialmente por uma classe conservadora, o trabalho de Bia Leite também provoca insultos. Ela ganhou as páginas do noticiário quando sua pintura Criança Viada foi censurada na exposição Queermuseu no Centro Cultural Santander de Porto Alegre. Sob protestos de alguns visitantes a exposição foi fechada e ela perseguida e ameaçada de morte. A mostra só foi liberada depois de criado um programa de arrecadação promovido pelo Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde a mostra foi exposta com filas homéricas. A pintura que horrorizou os gaúchos traz impressos vários xingamentos preconceituosos sofridos pelos homossexuais desde a infância. Bia foi descoberta e premiada pelo Edital Transarte LGBT, em 2015 e agora acaba de firmar um contrato de exclusividade com a galeria, onde expõe nesta mostra pinturas inspiradas em alienígenas e em um poster japonês de filme de terror, do diretor John Carpenter. Sua pintura lembra os traços neoexpressionistas da década de 80, com cores corrosivas e citações do universo pop.

Sob influência também expressionista, Eduardo Mafea defende seu trabalho como mergulho no dualismo do homem gay e a ligação compulsória ao universo machista do futebol, esporte apreciado pelas famílias como símbolo de virilidade. Com outras preocupações, Pedro Stephan, apaixonado pelo Rio de Janeiro, autor de tetos homoeróticas, mostra pela primeira vez o ensaio Lâmpadas de Mercúrio, que pode ser visto como uma fotonovela não narrativa tendo como cenário o Parque do Flamengo, local carioca onde vive desde a infância quando passeava por lá de bicicleta. As 30 imagens do ensaio mostram amigos de Stephan clicados em 2005 em cenas amorosas. “Tentei subverter o clichê provando que a pegação não é só sacanagem, pode ser também romance”.

A diretora da Transarte, Maria Helena Peres escreve em um de seus catálogos que precisamos estar atentos ao Brasil que vem propondo a cura gay, que fecha exposições, bate e mata travestis e cria monstros dentro dos integrantes do movimento LGBTQ.

Retrospectiva leva 50 obras de Fernanda Gomes à Pinacoteca de SP

Trabalho de Fernanda Gomes. Foto: Divulgação

As sete salas climatizadas da Pinacoteca do Estado, usualmente reservadas para mostras de caráter histórico, transformaram-se nas últimas três semanas em um espaço experimental potente, tomado em seu conjunto por uma série de intervenções da artista carioca Fernanda Gomes. O resultado é uma exposição que aponta simultaneamente para o passado e para o futuro: ao mesmo que resume uma trajetória bem-sucedida que se estende por mais de três décadas, aponta também para a persistência e radicalização de um caminho ousado, de investigação dos limites da ação artística, de incorporação e subversão de elementos e procedimentos mais próximos da vida cotidiana do que do universo hermético da arte. “A arte existe antes que se possa nomear arte”, defende ela.

Assemelhando-se a um quebra-cabeças composto por diferentes peças reunidas ao longo do tempo (o trabalho mais antigo data de 1973, quando Fernanda tinha apenas 12 anos) que se articulam por meio de um pensamento semelhante, a exposição desafia o olhar do público. E o incita a descobrir relações pouco prováveis, diferenças sutis, conexões raras entre elementos na maioria das vezes banais.

Algumas características são marcantes em sua produção: a escala, normalmente diminuta ou reduzida a um tamanho confortável, íntimo; o uso exclusivo do branco, em suas mais variadas tonalidades, e das cores naturais da madeira; a reapropriação e reconfiguração de elementos de descarte; uma tendência quase obsessiva de procurar configurações geométricas, equilíbrios instáveis ou associações improváveis entre esses componentes; e uma tendência permanente ao enxugamento, à redução, a um tipo de articulação que valoriza o que há de mais singelo nas coisas. Há uma economia, uma resistência do precário e do sintético, em todos os sentidos.

A combinação desses elementos – ao qual se soma uma dose de bom humor e um meticuloso trabalho com a luz – acaba por abrir novos caminhos de pensamento visual, que assusta aquele espectador que procura uma chave racional para a compreensão do que têm diante dos olhos, ao mesmo tempo que fascina o público infantil. “Ficamos reféns da palavra como possibilidade de expressão”, explica ela. Além de resistir a uma exigência de uma lógica discursiva (não à toa nem o conjunto da exposição nem as obras individuais têm títulos), o trabalho de Fernanda Gomes possui a curiosa característica de não submeter-se à lógica do excesso da imagem, que parece dominar a produção contemporânea. Fotografá-lo é tarefa difícil para a própria autora, demonstrando a importância da relação direta entre público e obra.

Quando arte é resistência

Na modesta entrada da rua Álvaro de Carvalho, 427, no centro de São Paulo, é dona Irene Silva quem faz as honras da casa. Moradora de lá, é ela quem cuida da entrada, durante o dia, por onde cerca de 500 moradores de 120 famílias passam diariamente para entrar na Ocupação 9 de Julho, gerida pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC).

Além da entrada, dona Irene também cuida do jardim e da horta da ocupação, “mãos ótimas que quando plantam tudo dá”, como escreveu o artista Lourival Cuquinha, ao responder minha mensagem solicitando o nome dela.

É dona Irene, com sorriso no rosto, que indica como chegar na galeria Reocupa, onde ocorre a mostra O Que Não é Floresta é Prisão Política, com cerca de cem artistas, entre eles o próprio Cuquina. Arte no vão central de um espaço de resistência. Eu me senti em Bacurau.

A mostra, em cartaz de quarta a domingo, das 14h às 20h, ocorre desde setembro com 74 artistas, sendo que outros 15 foram agregados em outubro e, agora em novembro, outro grupo será adicionado. Não se sabe exatamente até quando a mostra permanece, mas é seguro que segue até o fim do ano.

Artista é o termo adequado para denominar quem dela participa, mesmo que nem todos ali têm na arte sua principal atividade. Há desde figuras reconhecidas internacionalmente no circuito da arte, como Ernesto Neto e Renata Lucas, em meio a outros que vivem e produzem na própria Ocupação, enquanto outros se destacam em áreas próximas, como a fotojornalista Marlene Bergamo ou o filósofo Peter Pál Pelbart. No entanto, ali é o lugar mais adequado para por em prática a famosa expressão de Joseph Beuys, que “todo ser humano é um artista”.

Apesar dos 89 nomes indicados nos mapas que indicam a disposição das obras na mostra, ao menos outras duas dezenas também participam com intervenções ao longo de outros oito andares da ocupação – a galeria Reocupa é de fato no térreo do edifício, onde está a entrada para a avenida 9 de julho, que não se encontra em uso, e todo seu entorno.

Com 14 andares, o prédio foi construído como sede do INSS em São Paulo, inaugurado em 1943. Projetado por Jayme Fonseca Rodrigues, o edifício é um dos ícones da arquitetura paulistana durante a Era Vargas, presidente homenageado com busto na entrada, que desapareceu ao longo da história recente. Desde 1997, ocupações passaram a ocorrer ali, depois de 20 anos de abandono, e a atual, organizada pelo MSTC, teve início em 2016.

Nela, artistas vêm colaborando de forma orgânica desde o início. O Aparelhamento, por exemplo, que surgiu em 2016, quando a Funarte começou a ser desativada pelo governo Temer, ajudou a organizar a cozinha comunitária, que prepara almoços festivos uma vez por mês, e tem sido importante para a manutenção das condições do edifício.

Vista do espaço da galeria reocupa, que recebe a exposição “O que não é floresta é prisão política”.

Na galeria, quem fala das obras é Felipe Figueiredo, monitor e ativista que vive na Ocupação desde seus primeiros momentos, em 2016, e que sabe não só de cada trabalho, mas da própria história do movimento. Ele desenvolve sua narrativa contando desde a importância de levar colchões nas primeiras horas de uma ocupação a estimular o visitante a ouvir Serenata de Amor, de Georgia Miessa, uma compilação de canções machistas na música popular brasileira, desde 1920.

Vivendo na Ocupação, Felipe garante um vínculo estreito entre produção artística e seu contexto. Não que os trabalhos sejam colocados ali alheios ao espaço, como se ele fosse um cubo branco. Longe disso. Mas é justamente esse caráter vital desencadeado pela ocupação que dá particularidade e relevância, e a voz de Felipe é essencial. Mas entrar na Reocupa é também sentir o cheiro das comidas sendo preparadas nos andares acima, dos produtos de limpeza em uso, é ouvir as crianças brincando, é ver o tempo desgastando um edifício que já foi público e se encontrava abandonado. Tudo muito distante dos espaços tradicionais e higienizados da arte. Tudo muito mais potente.

Não só o ambiente é libertário, como as próprias estratégias de curadoria, a começar pela seleção do nome da mostra. Quando desce do primeiro andar para a Reocupa, pode-se ler a troca de mensagens no grupo de artistas que participam da mostra para a escolha do nome. “É a nossa vaza-jato”, explica Cuquinha, ao descrever o processo de transparência assumido, mesmo que os nomes estejam apagados. O importante é o processo, afinal.

A maioria dos artistas ali presentes tem colaborado na ocupação de forma atuante e sistemática, seja na cozinha, seja em outras funções. Mas não necessariamente. Quem inaugurou o espaço, aliás, foi o carioca Nelson Félix, no ano passado, paralelamente à sua presença na Bienal de São Paulo, a convite do Aparelhamento.

A atual mostra levou quatro meses para ser concebida e, como o nome indica, parte de duas questões bastante atuais: a floresta como espaço de sobrevivência frente às queimadas e ao genocídio indígena, e as atuais prisões políticas, que vão de Lula a outras lideranças populares, como Preta Ferreira, filha de Carmem Silva, do MSTC.

Não por acaso, obviamente, Lula, Carmem e Preta são lembradas neste cenário, presentes em diversos trabalhos, incluindo aí obras de Surpresinha de Uva, o nome dado para quando a autoria não é essencial e uma obra é criada coletivamente.

Mas o essencial realmente é perceber como essa exposição dá início a uma nova chave de posicionamento artístico, estimulado através de uma rede de colaboração fora do circuito institucional tradicional e longe do circuito comercial convencional de galerias e feiras, porque lá há obras vendidas para manutenção do espaço e auxílio à ocupação, apontando que é possível se repensar a relação de vendas na arte. Nesse sentido, a Galeria Reocupa se soma a outras estratégias envolvendo artistas, como a Casa Chama, em São Paulo e Lanchonete<>Lanchonete, no Rio de Janeiro. Se os tempos atuais parecem pesadelos constantes, O Que Não é Floresta é Prisão Política mostra que o sonho ainda tem espaço e pode ser viável. E dona Irene ainda se despede sorrindo com um convite: “Volte Sempre!”

Art Basel Miami Beach: estreia de grandes escalas

Artur Lescher, "Rio Máquina", 2010. FOTO: Fernando Laszlo

A edição de Miami Beach da tradicional feira Art Basel começou a aquecer o mercado desde que anunciou o setor Meridians, em outubro, no qual serão exibidas obras de grande escala. A galeria Nara Roesler é a única brasileira que participará dessa estreia, levando uma obra de Artur Lescher. São, ao todo, 34 trabalhos exibidos na seção, que tem curadoria de Magalí Arriola, crítica e curadora, atual diretora do Museo Tamayo, na Cidade do México. Todos os trabalhos poderão ser conferidos durante o período da feira, entre 5 e 8 de dezembro, no Miami Beach Convention Center. Meridians será montado no Grand Ballroom do espaço.

Além de Lescher, obras de artistas como a argentina Luciana Lamothe, os cubanos Flavio Garciandía e Ana Mendieta, o colombiano Antonio Suárez Londoño e os mexicanos Jose Dávila, Miguel Calderón, Pepe Mar e Tercerunquinto poderão ser vistas em Meridians. A curadoria não seguiu um tema específico para a escolha das obras apresentadas. “Dada a singularidade de cada projeto, o Meridians articula uma troca muito orgânica de ideias e posições, revelando sobreposições conceituais, temas e interesses que surgiram da forte seleção de projetos deste ano”, afirmou Arriola durante o anúncio do projeto.

Em entrevista ao site da Art Basel, a curadora disse que ” desafio era não me forçar a organizar um programa clássico com base em um argumento coerente. Em vez disso, eu queria criar uma paisagem que permitisse que os trabalhos dialogassem entre si”. Entre os destaques da exposição está a performance Pinwheel, da estadunidense Tina Girouard, que foi apresentada apenas uma vez em 1977 e será realizada novamente agora na feira.

Na parte de expositores, as galerias brasileiras aparecem como de costume. As casas Jaqueline Martins e Luciana Brito anunciaram que farão uma participação conjunta na feira, levando os artistas Robert Barry, Lydia Okumura, Augusto de Campos e Geraldo de Barros. É a primeira vez na história da feira que duas galerias estão dividindo um estande no espaço principal do evento, provocando diálogos entre artistas que representam: “O projeto conjunto busca criar um espaço onde tanto as intersecções quanto as diferenças entre suas produções possam ser percebidas pelo visitante”, diz o comunicado.

A carioca Anita Schwartz Galeria de Arte irá fazer um estande solo com obras do artista Paulo Vivacqua. As obras Babbling Forms e Corale funcionam como  poemas musicais, conta a galerista. “Eles lidam com o mesmo ponto de partida: os alto-falantes, que estabelecem uma contrapartida entre si”, explica. “Enquanto Corale enfatiza a forma, com uma composição de esculturas feitas a partir de alto-falantes coloridos em nuances de cor, o Babbling Forms está profundamente envolvido com a função da linguagem, onde sons ‘pré-verbais’ conversam”. A interação entre eles se concentra na investigação artística relacionada ao modo como as ideias preconcebidas da escultura desaparecem e mudam para direções inesperadas. O artista considera a transmissão do som e do silêncio como um estado musical que adquire concretude e presença em espaço — música como escultura.

Por sua vez, a Casa Triângulo levará alguns de seus artistas para a feira e aposta em  Ascânio MMM e Mariana Palma. De acordo com a diretora da galeria, Camila Siqueira, serão levadas esculturas de Ascânio produzidas entre as décadas de 60 e 70. “Para reforçar a importância histórica da produção dele nesse período”, afirma. Em 2020, Mariana Palma terá uma individual no Instituto Tomie Ohtake. Assim, a galeria também foca em suas pinturas que exploram uma exuberância de cores.

Nunca, Ai Lovi, 2019.

Nos arredores

A Galeria Kogan Amaro estreia na SCOPE, uma das principais feiras do circuito contemporâneo, que chega a sua 19ª edição em 2019. A diretora da galeria, Marlise Corsato, pesquisou outras feiras em Miami, em ocasião de suas visitas à Art Basel. Por ser uma feira internacional que está há bastante tempo no mercado, já estabelecida, mas com uma pegada mais jovem, leve e despojada, Marlise apostou na SCOPE para a estreia da galeria em uma feira fora do Brasil: “Senti que para nós seria interessante começar numa feira internacional nesse estilo”.

Daniel Mullen, Mundano, Nunca e Samuel de Saboia são os quatro artistas que estarão no estande da Kogan Amaro, a única brasileira a participar dessa feira. Mundano e Nunca ainda realizarão trabalhos ao ar livre em Miami. As ações foram promovidas em razão da participação na feira, incorporando os artistas, que trabalham a linguagem da street art, à cidade.

FAMA tem intensa programação no último final de semana de novembro

Marcia Pastore, detalhe de "Transposição". FOTO: Hugo Curti

Neste sábado, 30 de novembro, a Fábrica de Arte Marcos Amaro (FAMA) inaugura um novo espaço dedicado à land art. O FAMA Campo, situado na zona rural de Mairinque, interior do estado de São Paulo, terá inauguração com obra inédita de Marcia Pastore, intitulada Transposição. “Onde o céu encontra-se com o chão e o ar com a terra” é a frase que define a raiz desse novo projeto, que se propõe a abrigar intervenções de artistas na paisagem com esculturas efêmeras.

A Fundação Marcos Amaro, que gere a FAMA, a Galeria Kogan Amaro e, agora, a FAMA Campo oferecem transporte com saída de São Paulo, às 14h30, partindo da Galeria Kogan Amaro (Alameda Franca, 1054 – Jardim Paulista, São Paulo, SP). As vagas são limitadas. Inscreva-se clicando aqui.

Além da programação no novo espaço, a sede da FAMA em Itu realizará abertura de duas exposições coletivas, às 10h, intituladas Arte na Academia e Meios e Processos. Também haverá a abertura de uma individual de Gilberto Salvador, intitulada A Onda, a água e o mundo flutuante, a partir das 14h. O público ainda poderá conferir ativação de obra de Renata Lucas, às 12h, e performances ao longo do dia.

Quem for acompanhar as atividades em Itu poderá retirar senha para transporte que parte para Mairinque. Serão distribuídas a partir das 13h e a saída está marcada para as 15h.

Saiba mais no site da FAMA.

Mostra de Cássio Loredano inaugura espaço do Instituto José Resende em São Paulo

Machado de Assis por Cássio Loredano. Foto: Divulgação

Poucos meses após inaugurar sua sede na cidade de São José do Barreiro (SP), em maio deste ano, o Instituto José Resende (IJR) abre as portas de seu escritório paulistano, no bairro da Vila Nova Conceição, neste dia 30 de novembro. Ao abrir o novo espaço com uma mostra inédita do ilustrador e caricaturista Cássio Loredano, o instituto mostra sua vocação para, além de difundir a vasta obra do escultor José Resende, colocá-la em dialogo com a produção de outros artistas.

A exposição de Loredano – que estará aberta para visitação aos sábados e mediante agendamento nos outros dias – é ao mesmo tempo uma homenagem e um resgate. Com seus traços marcantes presentes por quase 50 anos na imprensa brasileira e internacional, o ilustrador apresenta uma série de caricaturas de Machado de Assis (1839-1908), dando sequência a uma pesquisa já antiga sobre o escritor.

Os trabalhos agora reunidos no IJR paulistano traçam uma espécie de percurso pela vida do escritor, partindo desde as imagens de sua juventude, até o final de sua vida. “Quero ver a alma do Machado. De vez em quando vejo que ele se entrega”, diz o desenhista no texto de divulgação da mostra.

Machado de Assis por Cássio Loredano. Foto: Divulgação

Além dos trabalhos de Loredano, a abertura do instituto terá expostas obras de Resende e outros trabalhos do acervo do marchand Paulo Fernandes – de Rodin a Miguel Rio Branco – que há décadas administra a obra do escultor e que já realizou exposições de Loredano no passado. “O diálogo entre a obra gráfica de Loredano e a elegância e coerência formal do trabalho escultórico de Resende sublinham a importância de pensar a arte de forma mais ampla, iluminando relações mais distantes do campo formal, porém próximas em termos de procedimento”, diz o texto de apresentação.

A mostra seguirá ainda para a sede do IJR em São José do Barreiro, no espaço de 1,2 mil m2 que passou por uma ligeira reconfiguração. O Instituto acaba de ganhar duas novas esculturas monumentais de Resende, uma instalada no km 260 da Rodovia dos Tropeiros – parte da antiga e histórica rota entre Rio e São Paulo –, que sinaliza o acesso ao centro, e outra peça semelhante incorporada ao jardim de esculturas do instituto, ampliando o número de peças exibidas aos visitantes.

Mostra de Cássio Loredano
Instituto José Resende – Rua Dr. Esdras Pacheco Ferreira, 37 – Vila Nova Conceição, São Paulo. Tel (21) 99964 4701
De 30 de novembro de 2019 a 13 de fevereiro de 2020

14ª Bienal de Curitiba e as urgências atuais

AES+F, Inverso Mundus, 2015
AES+F, Inverso Mundus, 2015

Os conflitos sociopolíticos contemporâneos emergem nesta Bienal de Curitiba, inaugurada em 21 de setembro. As obras vão desde a arte russa contemporânea e seus estilhaços no sistema até as que denunciam diásporas forçadas por conflitos, racismo, perseguições. Sob o tema Fronteiras em Aberto, a edição traz também interseções poéticas com sugestões e interesses puramente artísticos, mas chamam atenção as propostas engaja das na máxima: “criar é resistir”. O tema geral nasce inspirado pelas comemorações dos 30 anos da queda do muro de Berlim, que reconfigurou parte do mundo, em particular o Leste Europeu.

O volume de obras chega a 400, executadas por cerca de 100 artistas, e testemunha a mutação da arte contemporânea que transforma o espaço em um lugar de vestígios, indícios a serem decifrados. Desta vez a Bienal de Curitiba, cujo eixo central é o Museu Oscar Niemeyer, dilata suas bordas e chega a outras cidades e países.

A porosidade da arte é sensível às mudanças da sociedade e às questões contemporâneas de toda ordem. Tereza de Arruda, brasileira que vive na Alemanha, e o espanhol Adolfo Montejo Navas assinam a curadoria geral e entendem fronteira como elemento muito além do espaço geográfico. Um grupo de curadores estrangeiros se junta a eles: Massimo Scaringella (Itália/Argentina), Gabriela Urtiaga (Argentina), Ernestine White (África do Sul), Esebjia Bannan (Rússia) e Julie Dumont (Bélgica).

Sethembile Msezane, performance Hosue of Reflexão
Sethembile Msezane, performance “Hosue of Reflexão”

Mais de vinte anos depois do apartheid, a sul-africana Sethembile Msezane tornou-se uma militante por meio de suas performances denunciadoras da inviabilidade da mulher negra em seu país. Suas performances mesclam ritualismo, ativismo e costumam ocupar espaços públicos com muita audiência. Sentada no chão de sua tenda coberta por panos vermelhos transparentes, ela recebeu individualmente os visitantes da Bienal que quisessem pensar sobre o momento em que estamos vivendo. Certamente Sethembile ficou horrorizada com o que ouviu sobre o Brasil. Ao se tornar artista, ela passou a militar contra o racismo, opressão e a falta de oportunidade aos negros. “Tendo vivido na Cidade do Cabo por cerca de cinco anos, senti uma profunda sensação de deslocamento e invisibilidade”. Suas conversas com o público foram acompanhadas por um músico que executava canções típicas de sua região.

Arthur Omar, Série "A Origem do Rosto"
Arthur Omar, Série “A Origem do Rosto”

Imagine um olho inquieto que quer denunciar as mazelas do mundo por meio de cenas entrecortadas do ciberespaço. É assim que trabalha a retina de Hito Steyerl, cineasta, crítica cultural e ciberartista alemã, um dos nomes de destaque desta Bienal. O aspecto marcante de Factory of the Sun é o foco nos privilegiados do sistema, que ela chama de “pessoas do mundo” e nos seres humanos forçados à diáspora. O vídeo na verdade é um game temperado com denúncias e humor em que a personagem principal, Yulia, um tipo cyborg, faz a narração em que discute, entre outros temas, o exílio forçado de sua família judia para a Rússia. Um dos pontos fortes do discurso é a maneira como ela simula a infiltração e a influência do dinheiro no mundo da arte. Hito tornou-se conhecida por assumir uma posição política, sem medo de desafiar o poder do mercado. A artista tem exposto em vários países e representou a Alemanha na Bienal de Veneza de 2015.

Hito Steyerl, “Factory of the Sun”

A Rússia, Índia, China e África do Sul estão reunidas no segmento Brics, com curadoria de Ernestine White-Mifetu, Esenija Bannan, Lu Zhengyuan e Tereza de Arruda. Humor e crítica ao sistema movem o coletivo russo AES + F que provoca a intersecção de fotografia, vídeo e tecnologia digital. Com o trabalho multimídia Inverso Mundus, o grupo dramatiza críticas entre essas mídias, algumas nonsense, mergulhando na história da arte e nas questões sociais limites do mundo atual. AES + F ficou conhecido depois de representar o pavilhão russo na Bienal de Veneza de 2007, com o provocativo Last Riot.

Bienais são territórios heterogêneos com fragmentação nas maneiras de produzir. Nessas grandes mostras não há dimensões limites para se apresentar uma obra, nem escalas. Cruzeiro do Sul (1969/1970), a minúscula escultura de Cildo Meireles, um bloquinho de madeira que pode ser apreciado na ponta de um dedo indicador, cresce sob um holofote ao tomar o centro da sala. O artista demarca um território, em um sentido político, e faz conexão com os pontos da constelação de mesmo nome. Essa obra, desde a sua criação, já provocou inúmeras interpretações e continua em aberto. No segmento Entremundos, entre outros da mostra, apresentam-se vários brasileiros, entre eles Arthur Omar, com sete trabalhos da série A Origem do Rosto e um fragmento do vídeo Os Cavalos de Goya, feito com imagens de um jogo de hóquei em que a bola é uma carcaça de animal. Trabalhando limites, Regina Vater apresenta Bordas (2019) uma longa e delicada escultura que parece moldar os desenhos territoriais nascidos pelas fronteiras, instrumentos de regulação territorial.

Vista de parte da Bienal de Curitiba dedicada a artistas brasileiros.
No centro, em evidência, obra de Regina Vater, “Bordas”, 2019

Na terra nada é permanente. Os contornos territoriais se desmancham, se movem de acordo com conflitos, arranjos políticos, acidentes geográficos. A ideia de movimentação constante levou a 14ª Bienal de Curitiba a tomar carona em todos os ônibus municipais, onde até dia 1º de março projeta uma série de vídeos durante as viagens, presenteando um público novo, diferente dos que normalmente transitam pelas feiras e bienais.

O primeiro Leonilson

Leonilson
Sem título, 1981, lápis de cor, lápis metálico, guache e aquarela sobre, papel 32,5 x 36,5 cm

Foi no final dos anos 1970, que dois estudantes de artes plásticas, ao entrarem em uma galeria, se deram conta que arte não diz respeito apenas à criação. “O que mais chamou a nossa atenção foi o preço do trabalho. Era um negócio totalmente fora da realidade, da realidade do Brasil daquela época. Não é possível, não custa isso, deve estar errado!”, conta Luiz Zerbini, hoje ironicamente um dos mais caros artistas brasileiros, lembrando da visita com José Leonilson a uma mostra de Antonio Dias (1944-2018).

O depoimento, contudo, serve como um preambulo à amizade que acabaria se desenvolvendo entre Leonilson (1957-1993) e Dias, em Milão, logo em seguida. Foram laços tão fortes que levariam, décadas depois, o então artista valioso a comprar obras do amigo prematuramente falecido em decorrência da Aids, tornando possível, hoje, a mostra Leonilson por Antonio Dias — Perfil de uma coleção, que entre 11 de novembro e 14 de dezembro está em cartaz na Pinakotheke São Paulo (rua Ministro Nelson Hungria, 200), após ter passado pela sede carioca.

Se tudo começou com o choque dos altos valores, como narra Zerbini no catálogo da exposição, foi no outono de 1981 que Leonilson de fato encontraria Antonio Dias, em sua casa em Milão, por indicação de outro brasileiro, Arthur Luiz Piza (1928–2017), que vivia em Paris.

Em outro depoimento no catálogo da mostra, agora de Paola Chieregato, ela conta como Dias influenciou o então jovem artista recém-chegado à sua casa em Milão, que já estava pronto para voltar para Jericoacoara — Leonilson é cearense —, com uma pasta cheia de desenhos embaixo dos braços. “Foi aí, naquela casa de Milão na frente do castelo, que Leonilson foi impulsionado por seu mentor para que tomasse finalmente as rédeas de sua profissão de artista nas próprias mãos e, assim, com coragem e determinação, foi se apresentando na cena italiana”, conta Paola, viúva de Dias.

Foi ele, nesse contexto, quem indicou a galeria de Enzo Cannaviello para Leonilson, que comprou seus trabalhos e o inseriu em algumas mostras, além do pai da Transvanguarda, Achille Bonito Oliva. A amizade se fortaleceu e, mesmo Antonio Dias vivendo na Europa, ambos se encontravam regularmente. Uma carta de 3 de maio de 1993, enviada pouco antes da morte de Leonilson, mostra o apreço de Dias pelo amigo, ao falar de duas obras de Leonilson que havia trazido para sua residência permanente, em Colônia, na Alemanha: “Agora, penso em você todo dia. (…) gostaria muito de lhe rever e dizer novamente que eu gosto mesmo de lhe ter como amigo”.

Não deu tempo, mas após a morte de Leonilson, Dias passou a buscar adquirir seus trabalhos, especialmente os vendidos em Milão, com a ajuda de Paola, a “garimpeira”, como ele a chamava. A mostra na Pinakotheke reúne, assim, os 38 desenhos e pinturas da coleção de Antonio Dias, exposição que começou a ser planejada em 2015, quando Dias preparava sua individual na Galeria Multiarte, em Fortaleza. Quatro obras pertencentes a outras coleções particulares complementam a exposição.

Trata-se, portanto, de uma faceta um tanto desconhecida de Leonilson, tomando-se em conta as recentes mostras a ele dedicadas no Brasil, um recorte de seu início de carreira, com a maior parte das obras vindas dos anos 1981 e 1982. Há apenas um bordado dos anos 1990, por exemplo, técnica que dá a ele maior projeção e reconhecimento, especialmente pelo caráter autobiográfico que ele imprime aos seus últimos anos.

As obras na mostra são mais experimentais, como um políptico em papel colorido, que lembram mesmo certos trabalhos do próprio Antonio Dias. Por outro lado, a escultura Ponte, de 1982, traz já uma imagem que ficará recorrente em sua carreira.

Os trabalhos em exposição de fato apresentam uma alegria, que contrastam com a melancolia do final de carreira, em parte assim vistos pelo tom das fitas deixadas pelo artista. Nesse diário gravado, que gerou dois filmes, Leonilson projeta uma imagem contestada por Zerbini no catálogo, que o levava a planejar a destruição das fitas, junto com Antonio Dias: “Achávamos, e acho ainda, que elas propagam uma imagem que não corresponde à realidade. Leonilson foi uma das pessoas mais engraçadas, inteligentes e rápidas de raciocínio que conheci. Dono de um humor rasgante, cruel.” E Zerbini conclui defendendo que “o sofrimento que a doença causou não há de contaminar o seu trabalho, mas, para isso, não deveríamos repercutir, supervalorizar o momento em que ele aparece mais fragilizado”.