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Preservação e salvaguarda

Preservação e salvaguarda
Por Carlos Lemos*

Inicialmente, gostaríamos de agradecer vivamente ao amigo Orandi Momesso, que nos permitiu ter acesso à sua preciosa coleção de arte sacra brasileira e a oportunidade de escrever algumas reflexões sobre o tema registradas nesse belíssimo livro, que ora contemplamos.

Não poderíamos deixar de mencionar aqui o saudoso Luciano Momesso, sempre atencioso e prestativo, que muito nos auxiliou na organização do vasto material de estudo e que ao longo do processo de elaboração desse livro se tornou também nosso querido amigo.
Hoje, na nossa fala, abordaremos a questão da importância do colecionismo como forma de preservação do acervo artístico e cultural brasileiro e, sobretudo, na ação de salvaguarda da nossa memória social. Sob esse aspecto, consideramos fundamental a disposição dos colecionadores de aquisição seletiva de obras, que podem incluir desde grandes artistas a artesãos, de arte erudita a popular, de objetos diversos, de modo a construir um mosaico de toda a diversidade da arte e cultura nacional.

Essa significativa coleção de Orandi Momesso, composta de 420 peças de arte sacra brasileira, que se estendem do século 16 até ao 20, abriga imagens de barro e de madeira, pertinentes tanto às atividades litúrgicas quanto às devoções católicas, e se configura como exemplar para demonstrar esse pressuposto.

Acredito ter sido convidado por Orandi para essa empreitada desafiadora de me debruçar sobre a sua rica e variada coleção de obras sacras pela experiência que adquirimos quando da montagem e organização do Museu de Arte Sacra de São Paulo, no início dos anos 1980, e, também, pelos meus textos constantes nas obras Escultura Colonial Brasileira, de 1979, organizada por Ladi Biezus, e A Imaginária Paulista, publicada em 1999, por ocasião da exposição de mesmo nome ocorrida aqui na Pinacoteca, da qual fomos curadores.

No entanto, o nosso interesse sobre o tema vem de muito mais longe, quando, de certa forma, nos tornamos também um colecionador ocasional e curioso, em busca de imagens para os nossos estudos percorrendo e vasculhando o interior paulista e de outros rincões do Brasil, como Minas Gerais e Goiás.

Assim, no nosso entendimento, a palavra colecionismo constitui uma atividade ampla ligada à constituição de uma coleção, que é uma reunião ordenada de objetos de determinado tipo, por razões diversas: gosto particular, interesse histórico, artístico, científico, entre outros. Já dentro do vasto campo da imaginária sacra e religiosa, cada colecionador estabelece critérios orientadores que definirão o caráter da sua própria coleção, como por exemplo: colecionar imagens só de Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo; ou esculturas de um mesmo santo ou de outras entidades constantes na hagiologia devocional católica; ou do santo de devoção pessoal; ou apenas modelagens de barro queimado de pequeno porte para presépios etc. Outros critérios também podem ser adotados para a seleção, como o cronológico, que escolhe somente imagens produzidas em um determinado período ou século; ou então se concentrar apenas nas obras de um artista ou santeiro preferido. Enfim, o número de opções é infindável.

As coleções de arte sacra, em princípio, são abertas porque não sabemos quantos santos habitam o Paraíso e, ainda, quantas canonizações virão; mas nada impede que alguém queira colecionar apenas imagens de Nossa Senhora. Nesse caso, o tema é fechado, mas a quantidade, não. Cabe-nos imaginar sobre o comportamento do colecionador quanto ao tamanho de sua coleção: colecionar apenas raridades, isto é, imagens antiquíssimas, aquelas antigas ou velhas, de autores eruditos, cujas assinaturas valem muito. Outros selecionam peças pelos seus estilos ou pela sua representatividade no quadro social de São Paulo daqueles tempos iniciais.

No caso, o interesse dessa coleção está focado na diversidade da arte sacra brasileira, com ênfase na paulista, e incorpora desde exemplares de altar até pequenos bentinhos de devoção para uso pessoal e ex-votos. Essa notável coleção de arte sacra, constituída ao longo de muitos anos por Orandi, coletou originais vindos desde ateliês eruditos de ordens religiosas até às mais humildes tendas de santeiros populares, como a dos paulistas caipiras. É importante mencionar também aqui que a mesma inclui peças fundamentais de acervos pertencentes outrora aos colecionadores Francisco Roberto e João Marino.

Como pudemos enxergar nesta coleção de Orandi, ele só teve uma preocupação: guardar a memória devocional de nossa população, reunindo peças, desde as eruditas, saídas das mãos de artistas de ordens religiosas, como também, de seus seguidores, feitas ininterruptamente até as imagens nascidas nas oficinas de santeiros autodidatas alheios, inclusive, às questões estilísticas. Nesse caso, estaria resguardando as mãos do povo expressas, sobretudo, na madeira entalhada conservada à vista sem decorações.

Conseguiu reunir mais de uma centena de imagens de Nossa Senhora, desde aquelas valiosíssimas dos freis beneditinos do século 17 até as mais modestas de madeira do século 19, passando por aquelas estereotipadas “paulistinhas” de barro.

Mas, o principal de tudo é a isenção do colecionador. Alcançou uma coleção, talvez a maior de todas, sem o temor de afrontar o comportamento e o pensamento vigente do comércio de antiguidades, que iguala todos os santos de madeira aos fetiches de “nó de pinho”. Neste livro, ele traz ao público sua coleção inigualável de obras de madeira e terracota de fonte eminentemente popular, que está tratando de ampliá-la com peças contemporâneas.


*Carlos Alberto Cerqueira Lemos (São Paulo, 1925) é um arquiteto, historiador de arquitetura, pintor e professor brasileiro.

Cicatrizes à mostra

Venal Balbina, 2018
Venal Balbina, 2018

O colapso ambiental e suas cicatrizes – geográficas, sociais e políticas – são, há muito tempo, o grande fio condutor de Renata Padovan. A própria artista não se lembra do início desse processo. “Sempre trabalhei com coisas naturais, matéria orgânica, e não dá para separar a natureza dessa questão ambiental”, diz ela, que também ancora esse interesse numa memória infantil. Renata testemunhou, bem menina, a construção da represa de Barra Bonita, viu as águas subindo, deixando de fora apenas as copas das árvores, nas quais macacos se refugiavam gritando e sendo salvos por um homem que ia e vinha nadando.

Outros projetos, baseados numa ideia irracional de progresso, tornaram-se, décadas depois, elementos centrais da produção de Renata. É o caso das represas de Balbina e Belo Monte que, além de destruírem brutalmente o meio ambiente, não geram a energia prometida, por terem sido implantadas em terrenos onde não há quedas d’água, e que renderam trabalhos como A Escala do Desastre, de 2013. O processo de Renata é uma mistura fluida de pesquisa teórica e imersão nos terrenos físico e humano, coletando imagens e narrativas que ela reconfigura em vídeos, fotos, objetos e instalações. A parceria com instituições voltadas para a conexão entre arte e ecologia, como o Labverde, são fundamentais para a construção de sua poética.

Atualmente, a artista vem investigando o que parece ser uma nova e terrível frente de expansão exploratória: os oceanos. Um de seus trabalhos mais recentes é a série Para você saber onde está pisando, um conjunto de tapetes que reconfiguram mapas que representam graficamente os alvos de projetos de mineração e extração de petróleo, como o do terreno alvo de pesquisas petrolíferas perto da foz do Amazonas ou aquele que explicita a partilha do fundo do Oceano Atlântico entre diversos países e anuncia novas catástrofes ambientais, distante dos olhos de todos.

A invisibilidade de questões aterradoras ao redor do mundo é algo que surpreende e move a artista, que conta seu espanto ao perceber que ninguém sabia que um mar tinha secado em decorrência da ação nefasta do homem. No início de 2015, Renata Padovan decide investigar esse desastre e parte para a Ásia Central levando apenas estudos preliminares e algumas ideias na bagagem, para ver de perto o trágico desaparecimento do Mar do Aral, consumido ao longo de anos pela política irresponsável de seu uso para irrigação, implementada a partir dos anos 1960 pelo governo soviético. O que já foi considerado o quarto maior lago do mundo (o título de mar vem do fato de ele ser salgado), hoje se reduz a uma pequena mancha de água salinizada e contaminada por resíduos tóxicos, cercada por uma cena árida, pontuada aqui e ali por vestígios carcomidos de barcos e restos da cidade pesqueira que antigamente tirava dali o seu sustento.

Ao cotejar, no filme Sereia do Aral, a descrição do que ocorreu com o Aral com imagens históricas da indústria pesqueira ainda em operação várias décadas atrás, a artista expõe o caráter trágico do desastre e a estratégia velada por parte das autoridades de ignorar o assunto. De forma complementar, a performance Retornando a água ao Mar mostra a artista no esforço impossível de regar a areia seca, expressando mais um impotente e desesperançoso gesto do que a possibilidade de reverter o desastre, detonando visualmente um processo de crítica e reflexão sobre o mundo. ✱

Múltiplos sujeitos

Santiago Yahuarcani
Pintor peruano, Santiago Yahuarcani e sua companheira, joga os políticos no inferno.

Entre as múltiplas vozes que tentam dar conta do mundo contemporâneo, algumas se encontram na 60ª Bienal de Veneza. Movimentos sociais antirracistas, obras de artistas LGBTQIA+ e saberes ancestrais transformam gritos de alerta em obras de arte. Em um momento de crise financeira na Europa, nos Estados Unidos e em vários outros países, há poucas obras de grandes dimensões e de boas ideias. Com ataques e defesas, o conjunto é diferente de tudo o que os críticos já propuseram em anos anteriores para a bienal mais icônica do gênero.

O título Straniere Ovunque – Estrangeiros por toda parte é um ponto de vista que sintetiza o pensamento do curador brasileiro Adriano Pedrosa, o primeiro latino-americano e queer confesso a ocupar tal posto. A exposição reúne 331 artistas vindos de 81 países e acontece no momento crucial em que o número de migrantes forçados chegou a mais de 100 milhões, em 2022, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, portanto esse número atualizado é bem maior.

Aqui está caliente, 2004.
Aqui está caliente, 2004.

Estamos vivenciando um momento histórico para a produção artística dos povos originários, que, aos poucos, retomam seu lugar no planeta depois de genocídios e racismos estruturais seculares. A iniciativa desvenda as circunstâncias que levaram os povos aborígenes dos cinco continentes a seu precário estado atual. A mostra também fala da memória, aquela que elegemos para nossa legitimação no mundo. “A memória que serve para que outros recuperem a sua e que, unida a outra e a outra, chegue a formar as memórias de todos os homens”, como ensina o crítico Nelson Herrera Ysla.

O Pavilhão Central localizado na entrada principal do Giardini di Castello é o epicentro da mostra, onde Pedrosa defende parte de seus conceitos. Em contraste com algumas edições anteriores, este local privilegiado exibia obras impactantes de nomes consagrados do mercado internacional, com trabalhos inovadores, muitos feitos para a ocasião. Hoje, o pavilhão exibe, além de uma extensa coleção de pinturas ligadas ao modernismo brasileiro e de outros países, obras feitas por indígenas e uma coleção de trabalhos abstratos assinados por artistas queers, provenientes de China, Itália e Filipinas. Na fachada do edifício, o coletivo brasileiro Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin) foi especialmente convidado para intervir no frontão, executando um painel monumental de 700 metros quadrados. A mostra se desenvolve sobre a produção de outros sujeitos, que se movem no interior de diversas sensualidades, como o artista outsider que se encontra às margens do mundo da arte, assim como o artista popular e o artista indígena, tratado como estrangeiro em sua própria terra.

Em Veneza os espaços expositivos são superdimensionados. Ao caminhar pela Corderie do Arsenale, um antigo e imenso entreposto de mercadorias, tem-se a sensação de que o piso se expande. Neste local icônico, os artistas aborígenes Selwuin Wilson e Sandy Adset da nação maori, originários de Aotearoa/Nova Zelândia, mostram uma impactante instalação, misturando ancestralidade e contemporaneidade, em dois ambientes expositivos de impacto simbólico. Por este trabalho receberam o Leão de Ouro de melhor obra. Ao adentrar no espaço, o público tem contacto direto com os saberes nativos maori. A enorme tenda denominada takapau chama a atenção pela beleza técnica e elegância formal e se constitui em uma espécie de esteira tecida para ser usada em cerimônias festivas e nos partos. Ainda no Arsenale se destaca o trabalho do coletivo Claire Fontaine, nascido em Paris com sede em Palermo (Itália) e que inspirou o título dessa edição da Bienal, Stranieri Ovunque. Com forte apelo visual, a obra constitui-se de neons coloridos que trazem as duas palavras stranieri ovunque escritas em cinquenta línguas diferentes, entre as quais se destacam idiomas indígenas, alguns já extintos.

Dentro do universo agigantado da Bienal cabe ao curador geral fazer a curadoria do Pavilhão Central, do Arsenale e das 30 exposições colaterais espalhadas por Veneza. Já os 37 pavilhões nacionais, espalhados no Giardini di Castello, são de responsabilidade de cada país proprietário, desde a seleção dos artistas ao curador da mostra e à montagem da exposição. O Brasil mantém seu pavilhão desde 1952, e ele está localizado em um local estratégico, no final de uma ponte, passagem obrigatória a outros pavilhões. A coletiva Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, curada por Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana, merecia um projeto expositivo à altura da importância das peças expostas, que marcam a resistência dos povos originários do Brasil. A exposição destaca Glicélia Tupinambá com os mantos de seu povo, e chama a atenção a videoinstalação Dobra do tempo Infinito, de Ziel Karapotó, com projéteis e maracas, uma alusão ao período violento de colonização. Já era tempo de se estabelecer o rompimento com as formas coloniais que minimizam as contribuições indígenas impondo a categorização do que é considerado indígena ou não. O trabalho de Olinda Tupinambá coloca luz na voz Kaapora, a unidade espiritual que observa as atitudes do homem com a Terra.

A expansão do discurso curatorial é grande e, com o título Italiani Ovunque, o núcleo histórico apresenta a diáspora artística italiana no mundo no século 20, com artistas que foram para o exterior e lá construíram suas carreiras na América Latina, África, Ásia e nos Estados Unidos. Esta seção apresentada no Arsenale mostra cerca de 40 obras expostas nos emblemáticos cavaletes do Masp, projetados por Lina Bo Bardi, com obras de artistas de origem italiana que viveram no Brasil e em vários países da América Latina. Lina, autora do projeto arquitetônico do Masp, recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de Arquitetura, em 2021. A montagem exibe obras colocadas lado a lado provocando diálogos impossíveis como a Pedra Robat (1974), xilogravura de Maria Bonomi, e o Círculo Negro (1963), pintura de Clorindo Testa, expoente da arte argentina. Este segmento reúne obras ligadas ao modernismo da primeira hora como A mulher dos cabelos verdes (1915), tela de Anita Malfati, e obras posteriores como a pintura Fachada Marrom, (1950-60) de Alfredo Volpi e a pintura S/T (1963) de Waldemar Cordeiro.

A abordagem estratégica, centrada no global, multicultural e pós-colonial, deu ênfase às migrações, diásporas, desterritorialização e aos exílios. Essas bases foram moldadas por várias plataformas que promovem a diversidade e o diálogo intercultural desta edição. O pavilhão vencedor foi o da Austrália, apresentando a obra de Archie Moore, artista e cineasta de origem aborígene. A instalação Kith and Kin é um manifesto centrado na ideia de escuta como ativismo. A obra de Moore é complexa, destacada pelo imenso mural preto totalmente desenhado à mão, meticulosamente pesquisado ao longo de mais de quatro anos, inclui 3.484 pessoas e se inscreve nos 65 mil anos de história da Austrália, oferecendo monumental árvore genealógica dos primeiros aborígenes habitantes da Austrália. Os textos desenhados na parede nomeiam seu parentesco kamilaroi e bigambul.

A menção honrosa foi conferida à La Chola Poblete, artista argentina queer de ascendência indígena. A premiação foi euforicamente recebida por jornalistas, galeristas e colegas argentinos presentes em Veneza. Nascida em 1989 em Guaymallén, pequena cidade de Mendoza, na adolescência La Chola era conhecida como Maurício Poblete. O repertório da artista abrange trabalhos que refletem os dilemas e desafios de sua herança mestiça e da sua opção de gênero. Em 2017, La Chola recebe o prêmio de Artista do Ano, pelo Deutsche Bank. As pinturas expostas na Bienal, realizadas em aquarela se desenvolvem com temas abstratos, pop, em pequenas figuras que demonstram o sincretismo entre a cultura ocidental e a cosmologia aborígene.

Com enfoque nos conflitos ecológicos raciais do momento, o artista e cineasta John Akomfrah transforma o Pavilhão da Grã-Bretanha em uma poética instalação com narrativa cinematográfica. Listening All Night to the Rain foi construída com temas sobre a memória, injustiça racial, diáspora e mudanças climáticas. A obra é composta de oito multicanais que desempenham várias funções simultaneamente, com narrações visíveis e sonoras. Para ele, a água e seus significados formam um tecido cognitivo composto de numerosas estratificações narrativas visuais e sonoras. Em todo pavilhão ele trabalha um campo cromático específico influenciado pelo quadro do artista norte-americano Mark Rothko (1903-1970), com o objetivo de indicar, segundo o curador Tarini Malik, em qual abstração pode-se representar a natureza fundamental do drama humano.

A Alemanha mais uma vez dividiu opiniões com seu pavilhão no Giardini, ao ambientar uma catástrofe pós apocalítica de uma usina industrial. Com um grupo de atores encenou uma tragédia vivenciada por operários de uma fábrica de cimento. Dois artistas dividem a cena: Ersan Mondtag, cria uma cenografia densa que mostra os efeitos do cimento da fábrica Eternit, em Berlim, onde depois da guerra seu pai trabalhou e morreu contaminado por amianto. O cenário se completa com o vídeo futurista de Yael Bartana que se reporta às novas migrações humanas a bordo de uma nave espacial que se dirige a galáxias desconhecidas.

Neste ano, dilatando seus domínios para além do Giardini, a Alemanha ocupa também uma área na Ilha La Certosa, nos arredores de Veneza. A obra Thresholds instalada no Giardini e ao ar livre deu contemporaneidade à edição e deixou o visitante comum desorientado. Em La Certosa são vários autores de arte hightech atuando numa paisagem de árvores esparsas e vento constante. O artista Jan St. Werner ao criar a instalação Volumes Invertidos, dentro das ruínas de um mosteiro, dá ênfase aos sons repetidos de alta frequência emitidos por um microfone giratório. Já o musicista Michael Akstaller trabalha simultaneamente sons de gotejamentos e ruídos dissonantes vindos de duas árvores e que supostamente constituem um diálogo entre elas. Quem chega à Ilha La Certosa pouco fica por lá pela complexidade dos trabalhos e quem mantém a frequência do local durante a bienal, são artistas e diletantes experimentais.

Esta edição, que fica em cartaz até novembro, mexeu com a percepção da arte sem os desafios invocados pelo evento. Burocratizou a circulação dos jornalistas e estampou a diversidade das cosmovisões nitidamente expostas pelo atordoado homem de hoje. ✱

Colaboradores da edição #67

MARCOS GRINSPUM FERRAZ é jornalista, formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros e arte!brasileiros. Nesta edição, divide com Patricia Rousseaux a autoria da matéria sobre a artista-cientista Leticia Ramos

MARIA HIRSZMAN é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Nesta edição, Maria entrevista o curador e historiador de arte Luiz Marques

JOTABÊ MEDEIROS é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê conversa com Raphael Fonseca, curador da Bienal do Mercosul

CHRISTIAN DUNKER é professor titular em Psicanálise e Psicopatologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Nesta edição, Dunker reflete sobre catástrofe, tragédia e desastre como categorias clínicas e estéticas

CARLOS LEMOS é arquiteto, pintor, historiador e professor. Entre 1969 e 1979, esteve à frente da direção do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Nesta edição, compartilha o texto de sua autoria lido no lançamento do livro Imaginária Brasileira na Coleção Orandi Momesso, na Pinacoteca de São Paulo

Fotos: arquivo pessoal

Entre o vivenciado e o imaginado

Ogwa
Ogwa, Sem titulo e sem data, lapiz e acricilico sobre papel. Fotos: João Liberato

Nos anos 1950, o indígena Ogwa (1937-2008) colaborou com etnólogos e antropólogos, a exemplo da húngara Branislava Susnik, atuando como uma espécie de “informante” sobre os costumes dos ishir, povos originários do Paraguai, habitantes da comunidade de Puerto Diana, às margens do rio Paraguai e ao norte do Gran Chaco. Ogwa fazia relatos dos mitos e de rituais por meio de desenhos, expressando-se melhor assim do que oralmente, pois não falava espanhol ou guarani, somente a língua de seu povo.

Posteriormente, estes desenhos passaram a adquirir o que o crítico e curador Ticio Escobar, fundador do Museu de Arte Indígena do Paraguai, chama de “uma força criativa” que os tornava algo mais do que meras crônicas etnográficas ou antropológicas. “Eles se converteram em um meio de expressão progressivamente autônomo, o que significava dar mais importância à fantasia ou ficção do que à realidade”, diz Escobar, também ex-ministro da Cultura de seu país.

Até julho, a Galeria Estação, em São Paulo, apresenta a exposição A Dança dos Mitos, que reúne não apenas as experiências artísticas de Ogwa – seis desenhos-pinturas, que fazem parte do acervo da Fundação Cartier, em Paris –, mas também a produção de sua neta, Salmi (ou Zalmi, em grafia alternativa) López Balbuena, um conjunto de 35 pinturas. A curadoria é de Fernando Allen e Fredi Casco.

No caso de Ogwa, Escobar lembra que suas criações não fazem parte de costumes dos ishir, diferentemente dos desenhos feitos nos corpos dos indígenas ou em objetos. “Sua obra foi crescendo à margem de uma tradição coletiva, embora estivesse profundamente enraizada nela”, pondera. E, ainda que representem um mesmo tema, a saber, os rituais iniciáticos dos ishir, os trabalhos de avô e neta guardam diferenças. Ogwa participou das cerimônias, sagradas por assim dizer, e a experiência ficou “marcada a fogo em sua memória, sensibilidade e visão de mundo”. Escobar prossegue:

“No caso da neta, ela se alimenta das lembranças de Ogwa. É possível que Salmi nunca tenha visto um ritual, que é a principal fonte criativa de seu avô. Mas isso não desqualifica a sua obra, e sim a coloca em outro nível de criação na qual a fantasia tem maior peso do que a fidelidade, digamos, etnográfica. É uma ligação derivada, que também dá maior amplitude aos seus próprios sonhos, à sua própria imaginação”.
Na abertura de A Dança dos Mitos, Ticio Escobar participou de um bate-papo com o sociólogo, professor e ensaísta brasileiro Laymert Garcia dos Santos. Em entrevista à arte!brasileiros, Laymert ressalta a maneira como Ogwa respeita as tradições dos ishir e as traduz com um meio de expressão que não faz parte dos costumes de seu povo, que não têm a prática do desenho “tal como a gente entende na História de Arte do mundo ocidental”.

O sociólogo aponta que, na cultura de Ogwa, o desenho é sobretudo pintura corporal. “Traços, bolinhas, movimentos, que, num certo sentido, seria como uma pintura abstrata para nós”, diz. Em seu exercício de tradução para um interlocutor não indígena, Ogwa consegue manter a potência que é própria de sua cultura, de sua cosmogonia.
“Nestas cenas mitólogicas, míticas, a gente vê, de um modo muito claro, a passagem de um universo natural para um universo sobrenatural através de uma vibração que existe no desenho, tanto na terra, na água, no mar, quanto nesta espécie de redemoinho, de vórtice, que eleva os xamãs, transforma-os em espírotos e faz a comunicação entre o mundo humano e o divino”, avalia.

Questionado por Laymert acerca de uma eventual contaminação cultural do imaginário de Ogwa pela presença do cristinianismo junto ao povo ishir, Escobar fala que há processos de aculturação que partem da sociedade hegemônica, tanto de evangélicos quanto de católicos, uma catequisação compulsiva que apaga a religiões originárias que consideram pagãs. .

“Mas há uma resistência muito forte e um movimento de transculturação a partir do qual os indígenas se apropriam de determinados elementos e os incorporam a seus processos míticos para adaptar-se a uma realidade diferente”, afirma.
Escobar afirma ainda que, em vez de uma contaminação, ele acredita que, na maioria dos casos, os indígenas vão selecionando inclusive as pautas impostas e as reorganizam de acordo com seus imaginários e seus sistemas de representação. E prossegue:
“No caso de Ogwa, os idiomas que aprendeu, para trabalhar como tradutor, o ajudaram a mover-se no mundo dos brancos, num oportunismo saudável. Mas não houve qualquer influência em seus desenhos. Não se vê de forma alguma a iconografia cristã, que é uma coreografia muito dura, muito fascista. Quando ele fala de deuses, fala de forças de energias da natureza, do significado do mundo e do significado da vida, incluindo seus princípios éticos”, conclui. ✱

Uma artista cientista

História universal dos terremotos
Frame de Não é difícil para um investigador da natureza simular seus fenômenos (16mm, HD, 8 min), parte do projeto História universal dos terremotos

Por Marcos Grinspum Ferraz e Patricia Rousseaux

Ao se observar a vasta produção contemporânea, é evidente o enfoque dado pela maioria dos artistas às grandes questões que estão em debate no mundo e que afligem seu entorno. Há aqueles que se debruçam sobre as desigualdades e questões sociais, raciais ou de gênero; há os que tratam da crise climática ou das questões migratórias; existem os que dialogam mais diretamente com a psicanálise, tratando dos impactos da realidade nas profundezas da mente humana; alguns focam mais diretamente em questões formais, preocupados com as linguagens e suportes utilizados, com os avanços tecnológicos e das mídias digitais ou, por vezes, com pesquisas sobre universos geométricos e cromáticos; e assim por diante. Esta lista certamente poderia seguir longamente, sempre tendo em mente que os campos de investigação não são estanques e fechados e que, cada vez mais, o hibridismo é uma marca forte na arte de nosso tempo.

Mas ainda assim é raro encontrar uma artista que afirma de modo bastante direto, que seu campo principal de pesquisa é a ciência. E é este o caso da gaúcha radicada em São Paulo Leticia Ramos: “Eu sou uma artista, cientista”, diz ela, que realiza há quase duas décadas obras em formatos como fotografia, fotograma, filme, instalação, desenho e publicações impressas. “A ciência para mim faz parte do trabalho em sua forma analítica, nos temas tratados e métodos usados, mas sempre o ponto de partida são os fenômenos naturais, a natureza. E tendo em conta, também, o homem como parte disso, mesmo que raramente surjam figuras humanas representadas nas obras.”

Não à toa seu ateliê, no centro da capital paulista, possui não apenas uma sala de projeto, uma marcenaria e um espaço de projeções audiovisuais, mas também um laboratório com equipamentos e materiais associados aos métodos de pesquisa científicos. “É como se ali dentro, meio perdida, estivesse sendo feita uma pesquisa sobre um lugar que não existe ainda”, conta. Na mesma direção, suas viagens e residências artísticas costumam acontecer em lugares pouco usuais para o meio artístico: “Já fui para o Ártico para fotografar os ventos; já fui com um submarino para um lago sub-glacial da Antártica; já simulei quimicamente um vulcão; já fiz aparecer uma esfera misteriosa”, conta em depoimento.

Vários dos temas contemporâneos que surgem na obra de Leticia – como os impactos da ação humana no globo, a crise climática, o aquecimento global e o conceito de Antropoceno – não são tão incomuns ao mundo artístico. Mas, se normalmente são tratados sob um ponto de vista realista, de registro, representação ou denúncia, aparecem em sua produção a partir de experimentações e métodos focados nos aspectos naturais, geológicos, químicos e físicos, nem sempre ligados a casos específicos de nossa realidade, mas em ficções e mundos imaginados e atemporais. Assim, a artista trata de temas que nos são atuais sem focar neles diretamente, mas a partir do que ela chama de uma “ciência da ficção”.

Paleolítico III
Paleolítico III, impressão sobre papel de algodão a partir de polaroid, parte do projeto Bitácora. Foto: Leticia Ramos Studio.

“É uma espécie de mistura entre esses dois termos para criar uma outra paisagem, um outro lugar possível. Um lugar, inclusive, de crítica, de análise, através de um deslocamento poético do tempo natural presente”. A ficção de Leticia, é preciso ressaltar, não parte do nada, ou de uma espécie de “criação livre” de sua mente, mas de histórias e, especialmente, lugares e fenômenos do universo em que vivemos e de seus tempos passados, presentes, e, possivelmente, futuros. Mais do que focar diretamente em qualquer narrativa histórica – seja política, social ou econômica, por exemplo –, portanto, os trabalhos “partem, como argumento, de uma história da ciência”, explica ela.

A mesma ciência que vem sendo negada por grupos reacionários mundo afora – basta lembrar dos movimentos antivacina ou daqueles que afirmam que a terra é plana – é, para Leticia, um caminho não só para a compreensão de fenômenos naturais e para o desenvolvimento de soluções em diferentes campos da vida, mas é também matéria e método para a produção artística, poética, de sonhos e imaginação.

Da Lisboa antiga ao imaginário sobre Marte

Um bom exemplo para compreender a peculiaridade de seus métodos é o projeto História universal dos terremotos (2017), concebido a partir da história do terremoto que devastou a capital portuguesa, Lisboa, em 1755. Após pesquisar por meses as profundas e complexas questões socioeconômicas e políticas decorrentes da tragédia, Leticia se colocou uma questão básica, a partir do fato de que a fotografia ainda não existia à época do ocorrido: “Como falar de um evento histórico do qual não existem fotografias?”.

A partir de uma vasta pesquisa sobre ilustrações, textos e materiais de época, a artista começou a criar experimentações com diferentes procedimentos e materiais. De início, com uma lâmpada estroboscópica em diferentes velocidades, ela iluminou uma maquete da cidade portuguesa, registrando o ato com uma microfilmadora planetária, em um ato semelhante ao usado em laboratórios científicos. O projeto se desenvolveu e outras simulações de terremotos se seguiram, não mais referentes apenas ao caso português (uma delas, explica, “seria o terremoto simbólico para o Brasil, em outubro de 2018”, com a eleição de Bolsonaro”). Entre eles, chegou a realizar um experimento no Instituto de Química da USP – por questões de segurança –, gerando como resultados artísticos filmes, fotos e sons.

“As imagens de Ramos partilham do mesmo tipo de rigor metodológico empregado nos centros de pesquisa científica, mas sem a pretensão de explicar qualquer coisa”, escreve a curadora Fernanda Brenner, diretora do PIVÔ. E ela segue: “Suas simulações visuais fascinam por reiterarem o mistério e o grau de especulação que ainda residem na mais avançada das descobertas científicas”. A análise de Brenner se completa nas palavras da própria artista, que explicita ainda mais os caminhos peculiares da fusão entre ciência e arte e da dimensão misteriosa e mágica que a mobiliza: “Vejo o terremoto como uma forma abstrata, lindos freixos de luz perdidos no espaço profundo e negro, então decido uma espécie de condição ideal para um estudo, uma estrutura isolada, ainda sem história e sem contexto”.

Enquanto História universal dos terremotos foi concebida a partir de fatos passados reais, ligados a fenômenos da natureza e à vida humana, trabalhos como Grão (2016) e Microfilme (2013-2014) se projetam em tempos ficcionais futuros. O primeiro deles, um filme em 16mm realizado a partir de maquetes montadas no espaço PIVÔ, “conta a história de uma colônia humana em um planeta incógnito, onde um antigo silo de cereais foi construído”, como resume a sinopse. Ali, fenômenos naturais e mudanças climáticas fazem o silo explodir, o que resulta no crescimento “de uma estranha plantação”. Para Leticia, esta ficção não deixa de ser algo que “nós podemos imaginar acontecendo, dentro de alguns anos, após a colonização de Marte”.

Se uma história semelhante à contada em Grão pode acontecer no futuro, o caso mais marcante da ligação entre ficção e realidade dentre as obras de Leticia é Microfilme, realizada há dez anos (com apoio da Bolsa ZUM/IMS) e que parece tratar diretamente de algo que, está, tragicamente, acontecendo na atualidade. A partir da história geológica das áreas que hoje abarcam o litoral Sul do Brasil e a costa uruguaia, moldados pelo subir e descer das águas ao longo das eras, Leticia concebeu um trabalho que chamou também de O dia em que o Rio Grande do Sul vai virar mar. Utilizando microfilme e polaroids, tendo como bases Tavares (RS) e San Antonio (Uruguai), a artista imaginou uma paisagem perdida no tempo, sem humanos, resultado da instabilidade geológica que permeia a Lagoa do Peixe, a Lagoa dos Patos e o mar. As imagens fotográficas resultantes, com paisagens imprecisas, sem limites bem delimitados, resultado do ir e vir das marés e das chuvas, nos remetem diretamente aos alagamentos vividos recentemente no Sul do país.

Assim, a partir de histórias naturais, de narrativas sobre o movimento da natureza, explica a artista, “o que acontece é que vários trabalhos acabam se conectando com fatos atuais, que estão sendo causados pela crise climática”. “Mas não é a ideia de que os filmes preveem o futuro, como às vezes parece, mas é que eles são atemporais. Justamente por tratarem dessa condensação entre futuro e passado, isso faz com que consigam se relacionar de alguma forma com o presente e o contemporâneo”. Ao simular fenômenos não datados – com a utilização de pesquisas e métodos científicos ancorados em fenômenos naturais reais –, sem propor um registro exato de um acontecimento histórico, Leticia mistura tempos, confunde o público entre o que já foi, o que pode ser e, inesperadamente, o que pode estar sendo.

“Então a ficção nos permite tirar de um contexto muito específico e ancorado no presente para levar para uma coisa um pouco mais fluida. E essas ficções se ressignificam no tempo histórico. É como se com o passar do tempo o trabalho se atualizasse”, explica ela. “Eu nuca faço um trabalho pensando no tema do momento, faço trabalhos que tentam compreender os fenômenos naturais, mas também pensar como isso está representado no imaginário.”

Em síntese, conclui ela sobre a sobreposição dos tempos passados e futuros, “é essa acumulação que coloca as coisas numa perspectiva histórica extremamente contemporânea”.

Do gelo do norte ao Polo Sul

Outra obra marcante na trajetória de Leticia é Vostok (2013), que exemplifica também a multidisciplinaridade de sua obra. A artista, que já havia viajado para um período de residência no frio do Norte, no Ártico, onde realizou o projeto Bitácora (2011-2012), criou na sequência um trabalho inspirado no outro polo do globo. Em mais uma mescla de histórias reais e ficcionais, ela teve como inspiração a descoberta de um lago pré-histórico submerso, na Antártida, para o qual cientistas russos da base VOSTOK enviaram em 2012 um submarino em miniatura para recolher amostras de água. Estas amostras seriam como “cápsulas do tempo” que foram usadas para pesquisas sobre um passado longínquo, quando a Antártida começou a congelar.

Com essa história real em mente, Leticia concebeu um vasto projeto que envolve um filme – no qual é simulada, com maquetes, a exploração do lago pelo submarino –; música – que resultou em um disco (LP) –; uma cineperformance realizada com orquestra; e um livro. Para além das questões científicas e geológicas que percorrem o trabalho, Vostok levanta questões geopolíticas sobre um território que não é posse de um país, mas que gera tensões e debates entre nações. Se hoje é propriedade de toda a terra, a região corre riscos em 2040, quando haverá uma revisão do Tratado Antártico, que trata, entre outras coisas, da propriedade do conhecimento que lá é produzido.

O interesse de Leticia nos polos – seus aspectos naturais, paisagens inóspitas, o derretimento causado pelo aquecimento global e as questões geopolíticas – surge também em seu mais novo trabalho, uma série de cinco filmes intitulada (até o momento) Dropspike, mas que pode ganhar também o título de Histórias do fim do mundo. Nela, uma esfera misteriosa aparece em vários lugares da terra onde, de algum modo, a crise climática afetou ou irá afetar a paisagem. Esta bola, filmada em laboratório com miniaturas, representa uma espécie de objeto arqueológico que carrega em si algumas mensagens, como uma espécie de aviso para os humanos.

Dos cinco filmes, Leticia já concluiu três: um que apresenta duas estações na Antártida entre as quais um robô e um cientista se comunicam sobre ter visto essa esfera no horizonte; outro em que o objeto aparece no Lago Léman (Suíça), próximo a uma usina de energia que foi responsável por um alagamento no local; e um terceiro sobre uma escavação na qual esta mesma esfera é encontrada e, depois, também surge no horizonte. Todas estas histórias, segundo a artista, estão conectadas pela questão da crise climática e, mais especificamente, do derretimento das calotas polares que dela resultam. Surge aí, mais uma vez, a questão geopolítica sobre a Antártida, “este último repositório de microrganismos, fungos, relíquias arqueológicas e, consequentemente, de uma série de novidades científicas”.

Uma obra múltipla

Caberia ainda citar aqui, sobre estas e outras obras da artista, várias de suas fontes de inspiração, que para além de notícias, pesquisas e revistas científicas passa pelas obras de escritores como o chileno Benjamín Labatut, o argentino Rodrigo Fresán e a norte-americana Ursula Le Guin, que mesclam romance e teoria científica. Caberia também adentrar com mais ênfase no trabalho em laboratório, no uso especifico de materiais, nas técnicas – que incluem objetos criados pela artista, escolhas de métodos de revelação e assim por diante – e nos suportes artísticos em que as obras são apresentadas.

Sobre este tema, a artista explica: “Minha relação com esse processo de investigação é muito intensa porque há apenas um indício como ponto de partida. Preciso estar imersa nos assuntos de meu interesse para encontrar um mapa que me leve à síntese formal. Nos trabalhos, a isso se soma a reinterpretação da técnica. O meio também é investigado e irá apresentar, posteriormente, as ferramentas estéticas que serão usadas para a construção da imagem”.

Esta peculiaridade, no entanto, não faz de Leticia um “peixe fora d’água” ou um ser solitário no meio das artes, muito pelo contrário. Ramos circulou e expôs em algumas das mais reconhecidas instituições e eventos nacionais e internacionais – como as bienais do Mercosul e Sesc_Videobrasil, o Novo Museu Nacional de Mônaco, o CAPC de Bordeaux, o Instituto Moreira Salles e as sedes de sua galeria, a Mendes Wood, no Brasil, Bélgica e EUA, entre outros. De fato, trata-se de uma artista – cientista, mas, fundamentalmente, de uma artista que lida poeticamente com as possibilidades e questões relevantes de nosso tempo. ✱

‘Não vai virar a Bienal da Enchente’

Raphael Fonseca
O curador da 1ª Bienal do Mercosul, Raphael Fonseca, evita que a questão das enchentes direcione ou limite o trabalho dos artistas convidados. Foto: Thiele Elissa

Adiada por conta da tragédia climática que se abateu sobre Porto Alegre e o Rio Grande do Sul, a 14ª Bienal do Mercosul, que tinha 12 de setembro como sua data inaugural, agora examina uma nova expectativa, possivelmente ainda para este ano, em dezembro (mas isso ainda não está confirmado). A Bienal do Mercosul tinha, inicialmente, a estimativa de reunir um público de 800 mil pessoas e mais de 100 artistas convidados, e sua realização, no momento seguinte a um acontecimento tão trágico quanto a inundação que deixou quase meio milhão de desabrigados e 175 mortos, se reveste de grande expectativa agora.

A estratégia tradicional do evento, que está estimado em R$ 18 milhões, consiste em ocupar a maioria dos espaços expositivos de Porto Alegre, mas boa parte desses espaços – galpões e museus – fica em alguns dos lugares mais atingidos pela enchente, o que vai exigir uma nova conformação da mostra.

O curador da 14ª Bienal do Mercosul, o carioca Raphael Fonseca, demonstra cuidado em não trazer a questão da enchente para a mostra como uma contingência, algo que possa direcionar ou tolher o trabalho dos artistas convidados. O tema das mudanças climáticas já era uma preocupação constante de artistas em todo o mundo, pondera Fonseca, e ele não tem a intenção de impor isso como uma obrigatoriedade. Também não há artistas comissionados produzindo exclusivamente in loco, nas circunstâncias da enchente, ao menos até o momento.

“Eu não tenho como te dizer, nesse momento, se teremos ou não um trabalho comissionado a partir da enchente, porque tudo ainda é muito recente. Não sei. Não estou dizendo nem que não vai ter nem que vai ter. Não sei, porque tem muita coisa ainda por acontecer nos bastidores de Bienal”, afirma Fonseca. “Eu, curatorialmente, realmente nunca tenho a intenção, em nenhum dos meus projetos, de literalizar nada. Então, mesmo lidando com uma tragédia dessas proporções, eu não gostaria que a Bienal do Mercosul se transformasse, digamos assim, na ‘Bienal da Enchente’, que a gente literalizasse a tragédia da enchente em obras artísticas. Até porque, por mais que a arte possa dar conta de questões que perpassam a existência humana, fazendo um trabalho que monumentaliza, um trabalho que usa imagens documentais, enfim, essas obras seguem sendo trabalhos que se referem à tragédia, mas não conseguem, nunca vão conseguir dar conta da dor, do luto, da perda que as pessoas sentiram e sentem”, pondera Fonseca, de 36 anos, que vive em Denver, nos Estados Unidos, onde é o curador responsável pela coleção de arte moderna e contemporânea latino-americana do Denver Art Museum.

Graduado e licenciado em História da Arte pela UERJ, com mestrado também em História da Arte pela Unicamp, Fonseca é doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ e já atuou como professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, além de curador do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói). Na Bienal do Mercosul, atuarão como curadores adjuntos de Fonseca o baiano Tiago Sant’Ana e a dominicana Yina Jiménez Suriel, e a gaúcha Fernanda Medeiros será a curadora-assistente. O time ainda reúne colaboradoras como a artista carioca Andréa Hygino e a educadora gaúcha Michele Ziegt.
Os temas da contemporaneidade perpassam todo o conceito da bienal, que tem como tema geral o título Estalo. Esse mote, pela abrangência, não sofrerá mudança, informa Raphael Fonseca, que não considera necessário mudar o conceito por causa dos eventos recentes.

Estalo é adequado para denotar diversos pontos de vista artísticos, pondera, uma palavra que se acomoda também nos atos de despertar subitamente para algo, conscientizar-se, tomar conhecimento. Segundo definiu Tiago Sant’Ana, curador adjunto:
“Pensamos no estalo como uma metáfora do ponto de partida”, disse. O ‘estalar de dedos’ pode se constituir numa referência a sons, movimento, mas também a reações. “Teremos vídeo, fotografia, pintura, intervenções, uma polifonia de linguagens”, disse o curador adjunto, em entrevista recente.

Obras de artistas originários, asiáticos, latino-americanos e LGBTQIAPN+ estarão certamente na bienal. “Acho que todo curador se preocupa, e não só curador de minha geração, mais jovem, mas pessoas mais velhas também. Todo mundo tem se preocupado com essa presença de artistas de diferentes lugares: raciais, etários, geográficos, e também as diferentes linguagens”, considera Fonseca. “Todo mundo tem ampliado o seu escopo de pesquisa, na última década, no Brasil, que é um país que ainda faz muita vista grossa para indígenas. Ou seja: você olha o Canadá, olha os Estados Unidos, olha a Austrália, a Nova Zelândia. Você tem ali décadas de artistas dos povos originários constando das mostras. São também curadores, diretores de museus, e essa discussão, infelizmente, ainda é muito recente aqui na América. A gente, obviamente, está atento, tem pesquisado, e a nossa bienal vai refletir essa preocupação também”.

O adiamento da mostra foi informado há um mês por meio de uma nota da direção. “Devido aos desafios enfrentados após a tragédia climática em nosso estado, a 14ª edição da Bienal do Mercosul será adiada”, informou a nota. “Esse é um momento importante de solidariedade, união e reconstrução – e a arte tem um papel decisivo nesse processo. A Bienal vai acontecer na hora certa para reanimar o setor artístico e atrair visitantes de volta à Capital. Em breve anunciaremos a nova data, buscando sempre celebrar a arte, a cultura, a união e a superação”. ✱

‘Nordeste Expandido’ aporta em Natal

Orixás
BETO (PE), Orixás, sem data. Esculturas em latão com policromia, 32 x 11 x 8 cm cada

Lançado em novembro do ano passado, em Recife (PE), o projeto Nordeste Expandido: estratégias de (re)existir já passou por Fortaleza e tem novas datas para a sua itinerância: entre os dias 4 e 6 de julho, a Pinacoteca Potiguar, de Natal (RN), recebe o seminário que acontece em paralelo à exposição.

A mostra é resultado de um processo cultural levado a cabo nos nove estados do Nordeste, e ainda em parte de Minas Gerais e Espírito Santo. Em exibição, obras que vêm sendo adquiridas para a Coleção BNB, em sua maioria pinturas, ainda que não houvesse uma preferência de suporte a priori. O projeto vai circular pelas demais capitais do Nordeste e ser apresentado também em Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES). A parada final deve ser em Salvador (BA).

O seminário Nordeste Expandido tem por objetivo “articular o fazer artístico com as diversidades raciais, étnicas, de gênero e de território das artes visuais”. E também jogar luz sobre o processo de construção da exposição e, consequentemente, da coleção, que une popular e contemporâneo, sem hierarquizações.

Nicolas Soares (ES), diretor do MAES – Museu de Arte do Espírito Santo, é um dos curadores das Novas Aquisições do Banco do Nordeste no Nordeste Expandido, e esteve presente nos seminários de Recife e Fortaleza. Ele ressalta a importância de que estas obras, em boa parte de artistas nordestinos, estão sendo vistas por um público no próprio Nordeste.

“Boa parte da produção artística desse Nordeste expandido não tem tanta circulação e visibilidade no sistema da arte hegemônico, que está muito centralizado em São Paulo, principalmente”, pondera. “E a produção discursiva desses lugares também é geralmente vista de modo um tanto exótico e distanciado, etnográfico e antropológico. Algo que não faz parte de uma construção epistemológica, estética e imagética do que é, no fim das contas, o Brasil”.

Soares salienta que o projeto tem relevância não somente “pelo tamanho da proposta”, mas por se concentrar nesta produção de imagens, conceitos, pensamentos, que, fora do Nordeste, não se acessa. “Pela minha participação nos seminários, vejo que há também correspondências entre as produções de cada lugar, que poderiam permitir mais aproximações, diálogos e parcerias, num contexto que, de certa maneira, fazem mais sentido”.

Em Natal, as chamadas rodas de conversa do seminário terão a participação dos seguintes artistas e pesquisadores:

Programação

DIA 4/7

17h
NA LUA CLARA VEM DANÇAR: Força, existência e devir. A pintura e o desenho através das experimentações do corpo. Com Heitor Dutra (PE), Consuelo Véa Coroca (RN), Alcino Fernandes (RN), Iyá Boaventura (BA), e mediação de Max Pereira (RN);

19h (Abertura da exposição)
BRINQUEDO: DE ONDE SURGEM OS SONHOS? Performance de Tieta Macau (MA).

DIA 5/7

8h-19h
PROJETO “TRABALHO ABSTRATO”. Performance de Ton Bezerra (MA);
16h
PALAVRAS GERADORAS – Arte e educação atreladas aos movimentos da cidade. Com Civone Medeiros (RN), Fabíola Alves/ Acervo Rossine Perez (RN) e mediação de Sanzia Pinheiro (RN);

17h30
VIR VER OU VIR – Pensar social e antropológico sobre a arte. Com Manoel Ricardo (PI), Maria do Mares (PB) e Claudia Nên (SE). Mediação de Soa Bauchwitz (RN).

DIA 6/7

9h
VENTO A VIDA ESPALHOU – O fazer fotográfico e os experimentos da imagem. Com Gabi Coêlho (AL), Osani (RN), Barbara Carnielli (ES). Mediação de Paula Lima/ Margem HUB (RN);

11h
CANTO E DANÇO QUE DARA – Contornos políticos e sociais das estruturas corporais. A pensar nos movimentos transitantes. Com Ton Bezerra (MA), André Bezerra (RN), Tieta Macau (MA). Mediação de Max Pereira (RN). ✱

Ganância e dívida são pilares em mostra na Fundação Prada

Prédio da Fundação Prada
Prédio da Fundação Prada em Veneza foi completamente transformado pela instalação do artista Christoph Büchel

Das imensas contradições existentes na cena da arte contemporânea, a exposição Monte di Pietà, na Fundação Prada, em Veneza, é uma das maiores já vistas. Afinal, como uma grande marca de elite é capaz de patrocinar uma mostra tão radical que não só descontrói um palácio barroco do século 17, transformado em um imenso brechó decadente, como ainda faz a crítica às raízes do capitalismo.

Tudo isso é organizado pelo artista suíço Christoph Büchel, especializado em polêmicas, entre elas trazer para a Bienal de Veneza de 2019 um navio que havia sido afundado com centenas de migrantes líbios na costa italiana, em 2015. Apenas 28 teriam sido resgatadas. Barca Nostra, o nome da obra exposta na edição organizada por Ralph Rugoff, foi vista por uns como um monumento ao drama da imigração, por outros como oportunismo. Em 2015, Büchel chegou a transformar uma igreja veneziana em uma mesquita, mas alegando razões de segurança, a obra foi fechada em duas semanas.

Agora, o artista suíço revê a história do palácio Ca’ Corner della Regina, que tem tal nome por ter sido construído na área que pertenceu à família da rainha de Chipre, Caterina Cornaro, no século 15. Desde 2011, o imponente edifício é ocupado pela Prada, mas entre 1834 e 1969, ele funcionou como uma casa de penhores, o Monte di Pietá, onde a população pobre de Veneza buscava recursos para quitar suas dívidas.

É sobre ganância e dívida, dois pilares do capitalismo e da própria história humana, que a instalação do polêmico artista suíço, na Fundação Prada, se debruça. Todos os três pavimentos do palácio estão atulhados de todo tipo de material de uso humano, roupas, bolsas de luxo falsas (isso na Prada é bem irônico), bijuterias, móveis, cadeiras de roda, discos, e obras de arte – a parte mais divertida de se encontrar, já que elas não estão identificadas como tal, mas praticamente escondidas em meio a toda essa arqueologia do que poderia ainda ter algum valor de troca.

Estão lá uma valise de Marcel Duchamp, um conjunto com seis latas de merda de artista de Piero Manzoni, uma lousa de Joseph Beuys, gravuras de Marcel Broodthaers, uma caixa com cartas de Andy Warhol, um conjunto de caixas de Robert Filliou, um díptico de Ed Kienholz e um vídeo de Chris Burden, entre os contemporâneos que consegui identificar com a ajuda de uma monitora com boa vontade. A orientação não é para apontar o que é obra de arte.

Só esse grupo de obras já é uma exposição em si sobre a questão do valor na arte, mas só encontra esses trabalhos quem realmente se dedica. Agora, nenhuma deles chega perto do Retrato de Caterina Cornaro (1454-1510), a rainha (regina, em italiano) que dá nome ao prédio, realizada postumamente, em 1542, por ninguém menos que Tiziano Vecellio e que pertence à Galeria Uffizi, em Florença. A pintura tampouco está identificada e parece estar lá em um espaço de forma desleixada.

Diamantes

Mesmo o nome do próprio artista não aparece em nenhum momento da mostra e essa intervenção radical, mais do que propriamente uma instalação, faz com que o visitante de fato se sinta no que seria o acervo de uma casa de penhores falida. O espaço foi dividido em seções e, para dar a sensação do que seria um livro de registros de toda essa tralha, o artista conseguiu uma biblioteca de livros imensos e empoeirados, por serem seculares, da biblioteca de uma cidade do sul da Itália, que possuíam função semelhante. Curiosamente, entre 1975 e 2010, o palácio serviu como arquivo da Bienal de Veneza.

Não faltam objetos como grilhões reais, usados de fato durante o período que a Itália teve um papel colonial na Somália, trazendo assim o debate escravocrata como parte da construção do poder econômico e cultural a partir do capital. Esse tipo de sarcasmo, expor utensílios de violência de forma quase banal, faz parte das estratégias polêmicas de Büchel, como Barca Nostra.

Mas olhar para a história de Veneza e todo seu contexto é um dos trunfos importantes desta intervenção, já que a cidade sempre foi uma encruzilhada de misturas e intercâmbios comerciais e artísticos, o que fica patente na mostra.
Nessa bagunça toda, ainda está a obra The Diamond Maker, que Büchel concebeu como uma mala contendo diamantes feitos em laboratório. Os diamantes são o resultado de um processo de destruição e transformação de muitas obras em poder do artista, incluindo as criadas durante a sua infância e juventude e que contém seu DNA.

O palácio ainda tem áreas que simulam um quarto de controle, com dezenas de vídeos, uma sala de profissionais do sexo, outra para jogos online. Tudo, ou quase tudo, que diz respeito à troca de valores e dívidas está mapeado nesta delirante, envolvente, misteriosa, divertida, estranha e suja ocupação na Fundação Prada, Monte di Pietà. Adjetivos não faltam para definir Monte di Pietá. Nenhum deles jamais dará conta de descrever de fato o que é percorrer os três andares do Ca’ Corner Della Regina. ✱

Aceleração e Colapso

Há anos que defendemos a relação com o “mundo que nos rodeia”, que o “homem e a natureza são uma coisa só” e ressaltamos “a importância que a natureza tinha para nós”. Ainda assim, desde a revolução industrial isto foi negligenciado, fazendo com que os recursos naturais estejam absolutamente em perigo. O descuido com as crises sanitárias e ecológicas trariam uma conta difícil de pagar.

Na década de 1990, o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgard Morin, hoje com 102 anos, lançou um dos seus livros mais famosos Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Suas colocações revolucionaram sistemas de ensino, teorias pedagógicas e currículos escolares.

Em síntese, Morin postulou a necessidade de acabar com a concepção que estudava o mundo compartimentando o conhecimento em disciplinas estanques. Física, química, biologia, geografia, história, filosofia, arte. Morria aí a ideia de que se pudesse lidar da mesma forma com homens e mulheres do Tocantins, da Amazônia ou do sudeste brasileiro.

Na verdade, cada uma dessas coletividades pertence a biomas completamente diferentes, ecossistemas onde o ser humano, o clima, a flora, a fauna e os rios se relacionam em total interdependência. Além das diferenças de linguagem, que expressam saberes de cada região, estes grupos utilizam códigos e referências próprias, de histórias ancestrais.

A ideia do Pensamento Complexo começava a reverberar cada vez mais em diferentes circuitos do pensamento e ajudava a alertar para a importância de olhar nosso mundo como um todo. Mas isto estava longe de ser apenas uma reflexão filosófica.
O antropólogo francês Bruno Latour proferiu, a partir do ano 2000, uma série de conferências internacionais, compiladas no livro Diante de Gaia, Oito Conferências sobre a Natureza e o Antropoceno, dedicadas a debater e entender as enormes dificuldades que o homem tinha para tomar decisões internacionais e se organizar científica e politicamente perante as grandes mudanças que se estavam produzindo no planeta desde a Revolução Industrial.

O debate se centrou sobre a questão de estarmos ou não numa nova era geológica, o Antropoceno, um conceito em torno do qual ainda não há unanimidade entre os cientistas. Embora poucos deles duvidem do impacto da presença dos seres humanos sobre o planeta, da importância de se considerar o debate sobre o Sistema Terra, a comunidade geológica continua dividida. As mudanças climáticas e geológicas que vemos acontecer são suficientes para determinar que estaríamos numa nova era? E como nos comportar frente a isso?

Como parte dos seus esforços de trazer à tona estes debates, Latour fundou em 2009 o Médialab, laboratório interdisciplinar que une ciências, arte, política e tecnologia e chegou a ser convidado como um dos curadores da Bienal de Taipei em 2010.

Obviamente esta edição de arte!brasileiros foi perpassada pelas brutais enchentes que assolaram o sul do Brasil nos últimos meses, assim como os desmatamentos e as secas decorrentes do calor extremo vivenciado no país e em diferentes partes do planeta. O momento é de grandes incertezas e de muita fragilidade.

“Estamos mais perto [do colapso], mas não sabemos o quão mais perto”, disse, à agência Reuters, o oceanógrafo René van Westen, que faz pós-doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. A entrevista de van Westen é destaque de um artigo segundo o qual o enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século.” (Revista Pesquisa Fapesp, junho de 2024)
Esta edição traz opiniões, reflexões diversas sobre como lidar com as ameaças que nos rodeiam.

Em entrevista a Maria Hirszman, o professor Luiz Marques, historiador da arte, que chegou a ser curador do Masp e hoje se dedica a pesquisar os fenômenos contemporâneos, comenta seu primeiro livro de 2015, Capitalismo e Colapso Ambiental e O Decênio Decisivo – Propostas para uma política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”.

A artista-cientista Leticia Ramos estuda os diferentes movimentos do planeta e cria obras de extrema singularidade.

Christian Dunker analisa as diferentes concepções do que entendemos por catástrofe, tragédia e desastre, no caso como categoria clínica e estética.

Raphael Fonseca, curador da Bienal do Mercosul de 2024, que foi adiada pela catástrofe que viveu a cidade de Porto Alegre sustenta que, como forma de reação a tudo isto, “esta não será a bienal da enchente”.

A Bienal de Veneza não nos comoveu, mas a retomamos em reportagem de Leonor Amarante sobre várias obras importantes, pavilhões dignos de destaque. Já o professor Fabio Cypriano faz uma dura crítica à forma com que foi encarada a curadoria. Ao longo do trimestre ainda, até seu encerramento, voltaremos a abordar o assunto.
A importância da preservação da memória vem à tona em dois momentos na edição: no texto de Carlos Lemos acerca do livro Imaginária Brasileira na Coleção Orandi Momesso e na fala do crítico e curador paraguaio Ticio Escobar, que aponta: a experiência artística indígena, a exemplo do ishir Ogwa, tem um papel fundamental na salvaguarda das cosmogonias dos povos originários, por meio das representações que fazem de seus mitos e rituais.

Por fim, tentando ser coerentes com nossa forma de impulsionar a arte e os artistas, lembramos o que escreveu a maravilhosa professora e crítica da arte Aracy Amaral, em um dos seus primeiros livros, Arte para quê?: “O artista de nosso continente passa, cada vez mais, a se indagar sobre a função social de sua produção, seu público e como colocar sua obra a serviço das alterações da estrutura de uma sociedade injusta”. Boa Leitura! ✱