Arte: Naomi Vona - via Flickr

É com um diálogo entre um jardineiro e um botânico que começo hoje. Diálogo este relatado pela psicanalista Nathalie Zaltzman no seu texto “Do sexo oposto” (1999). Um jardineiro tinha um ruscus  e, como seu ruscus nunca dera flores, ele se inquietava sobre como fazer para descobrir se o pé era macho ou fêmea. Eis que o jardineiro envia esse questionamento para uma revista de botânica e recebe do botânico a seguinte resposta: “compre um outro ruscus, e coloque-o próximo”, “só uma outra planta poderá revelar os respectivos sexos, pela floração se forem do mesmo sexo, pela frutificação se forem de sexos opostos” (p. 89).

A partir deste diálogo, a psicanalista que o retoma faz a seguinte reflexão: se até no mundo vegetal, em algumas espécies, o “destino anatômico” não age sozinho, se ele encontra um limite intransponível e a determinação sexual não se realiza a não ser na presença do outro, se o destino anatômico não age sozinho nem nas plantas, imaginem só nos seres humanos nos quais o inconsciente, a linguagem e as fantasias estão presentes. Como esta situação se repete em outras espécies de plantas, o botânico e a autora que o retoma colocam a seguinte afirmação:

“A alteridade é uma condição necessária e prévia à identidade” (p. 90).

O outro na constituição do sujeito humano não está só no que se refere ao sujeito sexuado e à diferença dos sexos, e sim desde o início.
Na espécie humana, o corpo biológico do bebê e seu sexo anatômico são acolhidos desde antes do nascimento por uma subjetividade outra, a do adulto, que desde o começo interpreta seu corpo, seu sexo, seus movimentos e suas necessidades a partir do seu próprio inconsciente. Antes mesmo de nascer, o seu corpo é acolhido e interpretado a partir do  narcisismo e da sexualidade do adulto.

Na espécie humana, o corpo biológico do bebê e seu sexo anatômico são acolhidos desde antes do nascimento por uma subjetividade outra, a do adulto, que desde o começo interpreta seu corpo, seu sexo, seus movimentos e suas necessidades a partir do seu próprio inconsciente.

A alteridade está presente o tempo inteiro na constituição da sexualidade e da subjetividade: o outro, os outros, o Outro, ou seja o outro que toca o nosso corpo quando bebê e satisfaz as nossas necessidades, assim como o coletivo no qual nos inserimos e a própria linguagem como um todo precedem a construção de nós mesmos. O amor materno se insere nas “dobras da evolução libidinal”, marca o sujeito psíquico, inscrevendo inicialmente uma outra realidade psíquica, um outro desejo no próprio psiquismo embrionário.

A concepção psicanalítica da sexualidade retirou esta do paradigma do endogenismo biologizante, colocando a ênfase no processo, na construção e não na “essência” – seja esta da ordem biológica ou cultural. Uma afirmação que a psicanálise não fará é “o que é a mulher” e sim como ela advém, como se constitui a partir da “criança e sua sexualidade polimorfa”.

Uma diferenciação se faz necessária. Há de se distinguir o sexual do sexuado, sendo que este último é o que se organiza na história da sexuação e que vai constituindo uma “identidade sexual”, enquanto que o conceito de sexualidade na psicanálise se estende, na medida em que não se reduz a genitalidade, nem à finalidade procriativa, mas abrange todo o campo do pulsional, com o leque de pulsões parciais das orais às escópicas e muitas outras.

Pulsão é diferente de instinto, já que este surge colado a necessidade e tem objeto fixo, enquanto que a pulsão surge a partir daquilo que se introduz na sua satisfação e seu objeto é contingente. Excitações se introduzem junto com a satisfação das necessidades básicas desde o início, como o “leite quentinho” que entra na boca da criança quando amamentada e que produz nela uma experiência de prazer que a marca e dá origem à pulsão; mas esse leite é dado por um outro que junto introduz excitação, expectativas, demandas, inscreve afetos e vai fazendo surgir um “corpo erógeno” cuja geografia está desenhada pelas marcas de prazer, o que não é igual ao corpo biológico.

Quando nascemos, em total estado de “desajuda”, de impossibilidade de ajudar-nos a nós mesmos na satisfação das necessidades, para sobreviver dependemos totalmente do outro adulto, que no mesmo gesto de satisfazer as necessidades (alimentação, abrigo, limpeza) vai introduzindo em nós marcas de excitação, criando aquilo que nos impulsiona e nos liga à vida.  Esse outro, ao mesmo tempo em que nos toca acordando as sensações também nos nomeia, e ao nomear-nos nos inclui numa categoria que seria uma categoria em relação ao sexuado, categoria de gênero. Chegamos ao mundo com alguém que nos espera e nos diz menino ou menina. Mas esse outro nos nomeia a partir da discriminação da consciência e das categorias estabelecidas pela cultura, e também através de uma pluralidade de significações inconscientes do que para cada adulto é “ser uma menina” ou “ser um menino”, algo que ecoa na nomeação. Ao nomear-nos, nos dá um banho de desejo, do que o outro quer de nós, mas também um banho de imaginário cultural, do “como se espera que sejamos”.  

A alteridade, então, está na constituição da sexualidade enquanto essas marcas que se inserem infiltradas com a excitação na satisfação das necessidades, está na nomeação das categorias identitárias e está como objeto das identificações nas quais as pulsões – por serem contingenciais – vão construindo seus roteiros. O polimorfismo pulsional, a pluralidade das significações e demandas que o outro faz chegar e a multiplicidade identificatória que vai se desdobrando nos tempos de constituição psíquica fazem com que a construção da sexualidade humana seja um processo complexo, bem como a articulação do sistema sexo-gênero, e que sofra ressignificações em momentos da vida como no reconhecimento da diferença dos sexos, na puberdade, etc. Tudo isso faz com que a sexualidade humana seja uma construção absolutamente “singular”.

Não da para pensar a sexualidade no sentido evolutivo teleológico, supondo como fim a genitalidade ou a heterossexualidade, e sim como uma rede complexa de diferentes estratos psíquicos e da cultura abrangendo a pulsionalidade polimorfa constituída no seio da alteridade, a partir dos vínculos primários, da sexualidade infantil e das fantasias nela construídas, do narcisismo e do ego, e da inclusão do reconhecimento da diferença dos sexos. Neste conjunto complexo, cada um precisa articular uma busca de solução dos conflitos internos, construindo um “roteiro singular”. Mas é necessário pensar também na dimensão sócio-histórica, dentro da qual há que se considerar as normatividades das formas eróticas e das formas de amar, os modos de subjetivação e de laço social nos momentos da história e da cultura.

“cada um precisa articular uma busca de solução dos conflitos internos, construindo um ‘roteiro singular’”

Independentemente de qual seja a identidade sexual e o objeto “escolhido”, isso sempre é uma construção que se faz nesta articulação entre a complexidade de identificações – com seu caráter plástico –, sua possibilidade de ressignificação, e a categoria imposta ou atribuída pelos outros, que na nossa sociedade é binária – mas que não precisaria sê-lo.

Sabemos que em muitas culturas os mitos fundadores não são binários e sim plurais. Sabemos também que as lógicas identitárias tentam reduzir as diferenças à unidade, buscando uma fórmula única que classifique particularidades dentro de uma categoria, conceituando entidades como substâncias e não como processos, eliminando assim a particularidade da experiência singular com suas ambiguidades e incertezas.
Em relação à designação de gênero, também existem formas diferentes de pensá-la: como uma simples nomeação ou como, uma designação continua que é feita pelos outros pela linguajem, os gestos ,os atos; a partir de suas discriminações mas também suas ambiguidades, contradições… Com o qual se abre a possibilidade de pensar o gênero como plural e conflitivo.

A psicanalista Joyce McDougall cunhou o termo neo-sexualidades para pensar a criação de dramas eróticos complexos como soluções para os eventos traumáticos do início da vida, que seriam muito presentes nas apresentações sexuais da atualidade; no entanto, ela própria se pergunta se a totalidade da sexualidade humana não seria de neo-sexualidades. Ou seja, eu diria, todas as sexualidades seriam roteiros singulares escritos para dar conta dos eventos traumáticos da infância e na busca de uma solução para a complexidade que se instala ente o sexo, o amor e o gozo.

As notícias, escritos e debates sobre sexualidades, identidades e gênero tem tido uma presença constante na mídia, muitas vezes inclusive em debates fortemente acalorados, em defesa de posições antagônicas. Em grande parte do que circula, duas confusões insistem: confundir sexualidade com sexo biológico e pensar as identidades sexuais como se fossem “escolhas” voluntárias. Em ambas, desconhece-se o inconsciente do outro e o próprio, o que pode levar até a propostas absurdas e enganosas como a da chamada “cura gay”.

  1. Zaltzman, N. Do sexo oposto. In Ceccarelli, P. (org.). Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 1999.

 


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