Dora Longo bAHIA, detalhe de Paraíso-Consolação, projeto para calendário, 2019. Foto: divulgação
Dora Longo Bahia, detalhe de Paraíso-Consolação, projeto para calendário, 2019. Foto: divulgação

Faz algum tempo, quando manifestei meu interesse por um trabalho do artista chinês Ai Wei Wei – um prato de porcelana em que ele imprimiu a imagem do cadáver de Aylan Kurdi (o garotinho sírio encontrado morto numa praia turca em 2015) –, alguém me perguntou: “por que você gosta dessa exploração da dor alheia? Você conseguiria comer naquele prato?” Não respondi à provocação por ter mais o que fazer, mas a resposta ficou parada na garganta até hoje: “É claro que não, rapaz, aquilo não é  um prato, é uma obra de arte!”

O episódio me voltou à mente ao visitar a exposição de Dora Longo Bahia na Galeria Vermelho (São Paulo, em cartaz até 24 de agosto). Dora é uma artista que também costuma ir direto ao ponto e a mostra, que poderia ser intitulada, por exemplo, “No calor da hora” (ou ainda “De frente pro crime”, entre tantos outros títulos), se apropria de uma interjeição que, igualmente, expressa a urgência do momento atual, a raiva e a perplexidade que nos assoma quando cotidianamente somos atropelados por descalabros os mais perversos ocorridos no mundo todo (e no Brasil atual). Produzida “no calor da hora”, “de frente para o crime”, a exposição chama-se Ka’rãi – uma palavra tupi[1]. Porém, em termos fonéticos, soa como uma interjeição muito atual no Brasil significando, ao mesmo tempo, raiva e indignação perante imagens que denunciam injustiças, dores e revoltas.

Dora, como tantos artistas hoje em dia, coleciona imagens fotográficas que a ela chegam através dos mais diversos meios: jornais, revistas, internet etc. A partir do uso que faz de algumas delas, a artista apresenta trabalhos muitas vezes de uma crueza desconcertante.

Em A Girl A Gun – American Shot, de 2015, Dora apresenta uma série de 195 desenhos produzidos a partir de stills de filmes em que aparecem atrizes empunhando armas em plano americano. Em Paraiso – Consolação, 2019, uma coleção de desenhos de retratos de indígenas brasileiros, imagens que fixam o espectador, concebida originalmente para serem transformados em banners a serem colocados no canteiro central da Avenida Paulista, em São Paulo. Em Revoluções (projeto para calendário), 2016, a artista apresenta 12 desenhos produzidos a partir de fotografias que marcaram revoluções ocorridas em diversas partes do planeta, obedecendo a sequência mensal em que ocorreram.

O que parece unir esses três trabalhos – coleções que pertencem ao acervo de imagens coletadas por Dora –, além dos estados de tensão que deles emergem, é o fato de que são o resultado de um trabalho de tradução produzido pela artista. Todas as imagens que os constituem são produções gráficas, autógrafas, de imagens fotográficas.

Dora Longo Bahia, detalhe de A Girl A Gun – American Shot, 2015. Foto: Divulgação

Penso que a principal questão na prática de Dora Longo Bahia reside na sua recusa em deixar-se iludir pela rapidez com que a imagem fotográfica (notadamente aquela de cunho jornalístico) é tratada pelas mídias. Qualquer imagem, independente da potência de seu sentido, tende a ser substituída rapidamente por outra e mais outra, impedindo a todos de perceberem seu significado e, no limite, transformando a realidade que a foto registara em mero índice de si mesma. Outro foco de interesse da artista é reagir sobre outra característica manifesta na maioria dessas imagens: sua configuração a partir de estruturas visuais elevadas ao clichê que, ao se repetirem indefinidamente, reforçam essa capacidade da fotografia em se transformar em puro significante.

É contra essas características da fotografia que registra desastres, rebeliões, violência, que Dora se posiciona, concedendo estrategicamente ao vestígio fotográfico de origem a densidade do desenho como resultado de uma ação humana, do corpo humano. O traço, ora incisivo, ora frágil, sobre o papel transforma a imagem fotográfica em obra, em resultado de uma operação demasiadamente humana que tenta buscar/recuperar um sentido, alguma profundidade naquilo que, na origem, parece pura superfície.

Mas isso é arte? Não, a arte é que é isso (para usar uma expressão de Ronaldo Brito). Uma das possibilidades da arte hoje, depois do fim da arte. E não é de hoje, ou não é a partir da prática de Dora que a arte vem mostrando que é isso. Andy Warhol, quando conseguia ressignificar a Mona Lisa transformando-a numa alegoria da morte, demonstrava que a arte é que era aquilo. Geraldo de Barros, ao repintar imagens fotográficas de outdoors também; assim como Wei Wei, ao migrar a imagem fotográfica do pequeno Aylan Kurdi para o prato de porcelana.

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Mas Ka’rãi não se restringe a esses três trabalhos. Fogo, 2019, que reproduz em mantas térmicas de alumínio 10 fotografias das fachadas de instituições culturais brasileiras consumidas recentemente por incêndios, embora não se valha da estratégia do desenho para reconfigurar o sentido das imagens, também está comprometido com a recusa da artista em se deixar alienar pela sucessão de imagens desse tipo de desastre, já tornado “natural” pela mídia. Ao reproduzir as fotos pretensamente inócuas sobre um material igual ao utilizado pelos bombeiros em resgates de vítimas de catástrofes, Dora concede a elas a dimensão dramática que passaram a carregar após os resultados dos descalabros das quais foram vítimas.

Dora Longo Bahia, detalhe de Lava Jato, 2015. Foto: Divulgação

Lava Jato, 2018, por sua vez, é a obra mais polêmica da exposição: uma série de 98 intervenções feitas sobre as páginas repleta de fotografias coloridas retiradas de uma revista pornográfica. Sobre as páginas, a artista pinta outras imagens de origem fotográfica, simulando fotos p&b retiradas de jornais e revistas. Abaixo das mesmas, palavras ou expressões que não necessariamente mantém relação direta com as imagens pintadas ou impressas, mas que fazem referência às diversas fases pelas quais passou a operação.

Observando o conjunto, parece impossível não estabelecer relações entre as fotos que retratam cenas mecânicas e burocráticas de sexo, as pinturas sobre elas – estranhos paradoxos entre “expressividade” e “anonimato” – e a operação que dá nome ao trabalho (ainda mais agora, depois dos episódios envolvendo os protagonistas daquela investigação, que vêm sendo revelados pelo site Intercept Brasil).

Mera obra panfletária? Não me parece. Polêmica? Sem dúvida, mas, talvez, tanto pelo teor político que revela, quanto pela complexidade de registros usados por Dora (fotografia; pintura; palavras; expressões) para configurar a obra – o que não deixa, é claro, de embasar a dimensão política da mesma e o compromisso da artista com o aqui e o agora.

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Gostaria de mencionar ainda mais duas obras da artista presentes em Ka’rãi: Fuga (Terceira voz) e Fuga (Sujeito), ambas de 2019 e tendo como um dos pontos de contato entre elas o fato de que, para apreendê-las em sua totalidade, o interessado deve se valer de um aplicativo de Realidade Aumentada.

Muito interessante, em si mesmo, o fato de Dora, conhecida pela pintura e desenho, valer-se de um procedimento tão atual, de uma tecnologia tão nova que nem todo mundo ainda sabe como usá-la (eu mesmo sou um que não sabe, ou não sabia). Essa disponibilidade para as novas tecnologias, a meu ver, é mais um ponto positivo da exposição, pois demonstra que, para a artista, não existe preconceitos quanto às tecnologias recentes e, muito mais do que isso, que elas são usadas porque Dora soube inseri-las à sua poética e não ao contrário (como fazem tantos artistas por aí).

K'arãi Dora Longo Bahia
Vista da exposição Ka’rãi. FOTO: Divulgação

Se Fuga (Terceira voz) ressente-se de um certo sentimentalismo pouco visível na produção da artista, para mim não resta dúvida de que Fuga (Sujeito) é uma das melhores obras expostas: na fachada da galeria pintada de preto, uma grande pincelada vermelha dá lugar ao rosto de uma mulher gritando, se o visitante usa o aplicativo. Uma obra que diz bem a que veio, que sintetiza o horror da artista quando de frente para o crime, os crimes perpetrados cotidianamente e dos quais somos às vezes vítimas e quase sempre cúmplices.

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[1]Ka’rãi significa arranhar e está na origem da palavra carancho (por sua vez, sinônimo de carcará o que, para a artista teria a ver com condor, referência a uma das obras da mostra, O condor e o carcará, 2019),


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